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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.37 no.32 Rio de Jeneiro jun. 2015

 

ARTIGOS

 

A propósito de Caminhos e descaminhos do luto

 

 

Paulo Sérgio Lima Silva*

SPCRJ - Brasil
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 

O tema eleito para o CPRJ aprofundar neste 2015 foi Caminhos e descaminhos do luto. Sobre ele versarão nossas conferências, mesas-redondas, seminários, a grande Jornada do final do ano, o ciclo Psicanálise e Cinema e alguns dos artigos dos Cadernos de Psicanálise-CPRJ.

O assunto é da maior relevância e várias razões nos impulsionaram a decidir por esta escolha. Para ilustrar a primeira delas apresento um pequeno texto escrito na China, 300 anos antes de Cristo:

"Havia um homem que ficava tão perturbado ao contemplar sua sombra e tão mal-humorado com as suas próprias pegadas que achou melhor livrar-se de ambas. O método encontrado por ele foi o da fuga, tanto de uma, como de outra. Levantou-se e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o pé no chão, aparecia outro pé, enquanto sua sombra o acompanhava, sem a menor dificuldade. Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo como devia. Então, pôs-se a correr cada vez mais, sem parar, até que caiu morto por terra. O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas pisasse num lugar sombrio, a sua sombra desapareceria e, se se sentasse ficando imóvel, não apareceriam mais as suas pegadas."

Chama-se A fuga da sombra e foi escrito por Chuang Tzu (1989), o maior pensador taoista da filosofia clássica chinesa. Pode ser pensado como expressão da fuga do luto (do lado sombra da vida) e, associado a esta, o evitamento do próprio devir histórico de nossas existências (as pegadas). O método empregado é a velocidade e tem a ver com a mania, que é o movimento de negação da sombra, da dor, da tristeza e, por conseguinte, do luto. E, já foi dito, que a mania funciona como uma espécie de fobia em velocidade.

Como o próprio texto indica, com fina argúcia, o luto, ao contrário, pede quietude, recolhimento, acrescento eu alguma reflexão e não a fuga. Fica sugerido pelo autor, como uma saída, o enfrentamento corajoso e o contato, momentâneo que seja, com essa experiência do sombrio.

Lembro-me de meus tempos de criança e da experiência do luto, pesado, imposto com rigor: o fumo nos braços masculinos, as roupas negras das mulheres. Com o tempo até se permitia alguns tons mais leves, a flexibilizar as vestes escuras: chamava-se "luto aliviado". Às crianças não era pedido um semblante carregado como o dos adultos, mas, muitas vezes, eram proibidas de brincar de modo barulhento, algo que pudesse exalar alegria. Nas sextas-feiras da Paixão, marca de um luto maior de grande parte da sociedade, não se ia ao cinema, nem havia acesso a divertimentos; as estações de rádio apenas alternavam breves noticiários e música sacra. Como se sabe, a parte ritualística do luto exposta acima caiu por terra nas últimas décadas.

O mundo mudou radicalmente e os exemplos descritos podem soar como solenemente bizarros para os mais jovens. A velocidade que liquefaz a dimensão da profundidade é a marca das experiências na contemporaneidade: não há lugar para o luto. Independente das dificuldades pessoais para lidar com este, a rapidez se impõe nos novos códigos sociais. Se por um lado, ficamos livres da obrigação de um ritual que nem sempre correspondia ao afeto interno, fomos lançados a um novo código que faz a apologia do instante, do prazer incessante, da festa, do eterno e da juventude. Esta, não como potência da exploração do mundo, de transformá-lo com sua vitalidade e energia, mas como um estado ideal ao qual todos nos devemos nos render.

Se assim é, o próprio tempo e, em última instância, a finitude são negados. As "pegadas", apontadas pelo filósofo chinês, incomodam. Flávio Ferraz (2005) em um belo trabalho, intituladoA recusa do tempo (2005), fala do horror a tudo que lembra falibilidade (doença, cansaço, dor, envelhecimento, perda da beleza e morte) e aponta para as tentativas de burlar o imponderável da passagem do tempo, à maneira de um Dorian Gray de Oscar Wilde. Nesta novela, à eterna juventude do protagonista se contrapõe seu retrato, escondido num sótão, que, magicamente, envelhece aos poucos, deixando também marcadas nas suas feições as vilanias da personagem. Trata-se de uma clara imagem sobre as tentativas de apagamento da dor e do tempo. Mas estas ficam registradas em algum "lugar" e tendem a retornar sob forma de dor dilacerante (psicossomática) e de um luto patológico. Embora não se sustente na realidade, a "exigência de imortalidade" persiste no mundo mental, como um produto do desejo moderno.

As causas deste cenário escapam a esta apresentação e muitos autores têm se debruçado sobre esta temática. Destaco dois: Joel Birman em O sujeito na contemporaneidade (2012) e Lebrun em a Perversão comum (2010).

O primeiro autor assinala que "a dimensão do espaço se sobrepõe a do tempo para o sujeito contemporâneo: o olhar, o espetáculo, a exibição e a exacerbação da dimensão da imagem. Daí as miragens de um eterno presente, repetição do mesmo que apaga a temporalização e todo horizonte de futuro". Acrescenta: "O sujeito atual não se apresenta mais interiorizado, mas sim impelido para a ação".

Já, no segundo autor citado aparece com destaque o mecanismo radical que alicerça os descaminhos do luto: a recusa. De acordo com sua principal tese, apesar de, em sua maioria, a sociedade atual ser composta por indivíduos neuróticos (entenda-se ter o recalque como o mecanismo fundante da subjetividade), a recusa se estabelece como mecanismo complementar. Assim, a perversão sob forma de traço subjetivo se alastra no contemporâneo produzindo sujeitos "fúteis" que dão as costas ao limite e à castração.

Narcisismo, perversão, mania, então, são as características que se destacam para a descrição destes "novos sujeitos" que transitam no cenário atual e aparecem no dia-a-dia de nossa clínica psicanalítica. Em minha interpretação, como que se apresenta um medo à integração, uma espécie de acomodação à vida fragmentada e, por vezes, até mesmo uma indução à fragmentação do outro. Veja-se, por exemplo, as propagandas de bens de consumo anunciadas na TV, onde ágeis e sorridentes indivíduos, através naturalmente de mensagens velozes, "tentam estilhaçar", sem nos darmos conta, nossa pessoalidade, nossas necessidades reais, possibilidades financeiras, etc. Na verdade, ao contrário da dissociação, a integração do solar e da sombra na vida leva ao sentido da continuidade histórica (as pegadas do texto chinês) e a emergência da positividade de um sujeito responsável por sua existência e atento à presença do outro.

Outra razão para a escolha deste tema tem a ver com os 100 anos do trabalho seminal de Freud Luto e melancolia (1915). Nesta obra, a "perda" entendida dentro do contexto da melancolia foi alçada ao centro de um novo paradigma dentro da obra freudiana e, junto com o modelo do trauma e da compulsão à repetição, estudado em 1920, se constituíram em signos do mal-estar na modernidade.

Freud estabelece aí a diferença entre o luto normal e o patológico, mas, mais do que isto, faz uma intricada geografia da vida interna do sujeito. Nela aparece mesclados e articulados a sombra do objeto perdido, a identificação com os aspectos parciais deste objeto, expressão de uma necessidade narcísica arcaica, a ambivalência pulsional e a presença do sadismo do superego. Este mundo interno, conceitualizado como um verdadeiro espaço tridimensional onde o self e o objeto têm relações multifacetadas e mutáveis, se constitui num verdadeiro precursor da Teoria das Relações de Objeto desenvolvida pela Escola Inglesa de Psicanálise.

Para finalizar, seguindo a sugestão de Freud de dar voz aos poetas, para ilustrar ainda um motivo para a escolha do tema, apresento o final da oitava Elegia de Duíno, de Rilke (1989):

Quem nos moldou assim,
para que tivéssemos um ar de despedida
em tudo que fazemos? Como aquele
que partindo se detém na última colina,
para contemplar o vale à distância,
e ainda uma vez se volta, hesitante, e
aguarda - assim vivemos nós,
numa incessante despedida.

Se nos afastamos da indagação do poeta "quem nos fez assim?" e nos centramos naquilo que é marca de nossas vidas, fica reafirmada a ampliação da ideia de luto. Não se trata apenas da separação e perda das pessoas queridas por morte, mas de algo que é constitutivo de nossas vidas.

Freud apontou com clareza o grande ciclo das perdas e os medos a elas associados: a separação da mãe matriz, da mãe nutriz, das próprias fezes como parte de si e de seu corpo, do amor do outro e mesmo da aprovação do superego. Mas a cada um desses momentos pode ser articulado um ganho: o nascimento para a vida, o descolamento do seio, a afirmação da autonomia e o encaminhamento para administrar uma "dependência madura" como dizia Fairbairn. Os pequenos lutos ou lutos invisíveis se acham presentes no nosso cotidiano sob forma de uma indisposição, uma tristeza sem nome, passageira, um "hoje não estou bem", uma discreta manifestação psicossomática...

Não é à toa que no poema fica como que sugerida na "incessante despedida" do alto da colina o início de uma viagem, de uma mudança, de uma caminhada para outro lugar. Pois, na verdade, a aceitação do luto está longe de uma apologia à tristeza ou uma adesão à sombra. O reconhecimento de que algo passou, o tempo de um amor, de uma fase da vida, de um bem material, de uma emoção intensa que se diluiu, de um instante prazeroso, tudo isto, se bem aceito e elaborado, abre caminho para a usufruição do momento seguinte, para a verdadeira experiência da alegria, da satisfação de estar vivo, da valorização da descoberta de outros espaços, de outras experiências e a ampliação das relações com as pessoas e com o mundo.

 

 

Referências

BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.         [ Links ]

FERRAZ, F. C. A recusa do tempo. In: FRANÇA, Cassandra (Org.). Perversão, variações clínicas em torno de uma nota só. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.         [ Links ]

FREUD, S. (1915). Luto e melancolia. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 14).         [ Links ]

LEBRUN, J-P. A perversão comum, viver junto sem outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2010.         [ Links ]

RILKE, R. M. Elegias de Duíno. Petrópolis: Editora Vozes, 1989.         [ Links ]

TZU, C. A fuga da sombra. In: MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 1989.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Paulo Sérgio Lima Silva
E-mail: pslimasilva@terra.com.br

 

 

*Psicanalista, doutor Psicologia Clínica/PUC-SP (São Paulo-SP-Brasil), membro aderente e supervisor/SPCRJ, membro efetivo/CPRJ (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).

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