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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.37 no.32 Rio de Jeneiro jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Considerações psicanalíticas sobre a herança psíquica: uma revisão de literatura

 

Psychoanalytic reflections on psychic heritage: a literature review

 

 

Angela Teresa Nogueira de VasconcelosI*; Maria Celina Peixoto LimaI, II**

IUniversidade de Fortaleza - UNIFOR - Brasil
IIGT/ANPEPP Psicanálise, Infância e Educação - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa a examinar como, a partir de Freud, a noção de herança psíquica se interpõe à teoria psicanalítica, oferecendo subsídios para pensar a constituição do sujeito em sua articulação com o herdado e os entraves daí decorrentes. A primeira parte expõe a originalidade com que Freud apresenta o tema em sua obra, relacionando-o com a formação de sintomas, com a formação do eu e com a cultura. A segunda parte aponta os desdobramentos atuais da concepção de herança psíquica, destacando que a transmissão psíquica pode ter um caráter subjetivante e um caráter não-estruturante.

Palavras-chave: Herança psíquica, Freud, clínica psicanalítica, transmissão psíquica.


ABSTRACT

This article aims at examining how, since Freud, the notion of psychic heritage interposes itself to psychoanalytic theory, by providing subsidies for reflections on the constitution of the subject in its articulation with the inherited and the hindrances deriving from that. The first part outlines Freud’s originality in introducing the theme in his work, relating it to the formation of symptoms, to the formation of the self and to culture. The second part indicates the current developments of the concept of psychic heritage, highlighting that the psychic transmission may have a subjectivating character and a non-structuring character.

Keywords: Psychic heritage, Freud, psychoanalytic clinic, psychic transmission.


 

 

Na teoria psicanalítica, é amplamente reconhecido que a precedência por outros é o que viabiliza a constituição de um sujeito, o que implica, em última instância, um entrelaçamento de gerações. Os afetos, a revivência de conflitos infantis, a reatualização do narcisismo dos pais e a reedição de histórias familiares decorrentes do encontro de gerações supõem a existência de uma herança psíquica que é transmitida de geração a geração.

Desde Freud, a questão da herança psíquica está presente na psicanálise: desde os seus estudos precursores (1894) até os mais tardios (1939). Mas, ainda que apareça com frequência na sua obra, o tema não ganhou por parte de Freud um estudo sistematizado, o que só foi realizado muitos anos depois, primeiramente, através dos psicólogos sistêmicos e depois por pesquisadores de influência psicanalítica. Foi nos últimos 35 anos que esta temática ocupou a atenção de autores como Abraham e Torok, René Kaës, Mijolla, Micheline Enriquez, Alberto Eiguer, Evelyn Granjon, Haydée Faimberg, etc. Em sua maioria representantes das abordagens familiares ou grupais, eles consideram que o material da vida psíquica é passível de ser transmitido no interior de uma família e buscam compreender o papel patológico da herança psíquica geracional. Isto porque a clínica, muitas vezes, impõe uma busca da origem mais primitiva de um sintoma que desafia em persistência o trabalho analítico e esta origem pode estar em conteúdos herdados que não foram simbolizados (SANTOS; GHAZZI, 2012; INGLEZ-MAZZARELLA, 2006; SILVA, 2003).

Pensar sobre a herança psíquica geracional ajuda-nos a compreender como se dá a constituição do sujeito na articulação entre as dimensões intrapsíquica e intersubjetiva. Trata-se de reconhecer uma pré-história que antecede todo sujeito, dada pelas relações parentais e pela transmissão cultural e de conferir a potência criadora de uma história nova, a partir dos conteúdos desta pré-história. Ademais, se supomos que da herança psíquica sobrevém habilidades e talentos, tragédias e adoecimentos, esta se configura como a trama em que são tecidos sintomas. Para a clínica psicanalítica, evidencia-se a importância de enriquecer a compreensão do sofrimento psíquico (SILVA, 2003) e de ampliar a escuta do sujeito através das gerações (INGLEZ-MAZZARELLA, 2006).

O presente artigo visa a examinar como, a partir das indicações freudianas, a noção de herança psíquica1 se interpõe à teoria psicanalítica, oferecendo subsídios para pensar a constituição do sujeito em sua articulação com o herdado e ao mesmo tempo os entraves daí decorrentes.

A primeira parte deste artigo expõe a originalidade com que Freud apresenta o tema da herança psíquica em sua obra. Na segunda parte, apontamos os desdobramentos da concepção de herança psíquica nos trabalhos dos autores que sistematizaram o estudo desta temática.

 

1. Herança psíquica e psicanálise: o legado freudiano

O tema herança psíquica está presente nos textos inaugurais da psicanálise, embora não apareça como um termo conceitual em nenhum dos trabalhos pesquisados. Porém, depreende-se que a partir do legado freudiano se edifica a ideia de que a herança psíquica é constitutiva e fundante do psiquismo de todo ser humano.

Ao longo da obra freudiana há diversas abordagens deste tema, que podem ser observadas desde As neuropsicoses de defesa (FREUD, 1894) até os seus últimos trabalhos, como Análise terminável e interminável (FREUD, 1937) e Moisés e o monoteísmo (FREUD, 1939).

Embora a abordagem de Freud ao tema não siga uma organização cronológica e tampouco enfatize um aspecto em detrimento de outro, foi possível reunir as referências em três vias de articulações: a herança na formação de sintomas; a herança e a formação do eu; a herança na constituição da cultura.

 

1.1 A herança psíquica na formação de sintomas

O papel da hereditariedade na etiologia das doenças neuróticas era ponto pacífico no ambiente psiquiátrico em que Freud produzia suas investigações (DUNKER, 1996). Ele, no entanto, não partilhava desta concepção, desenvolvendo uma longa elaboração acerca de sua discordância em alguns artigos, tais como Sobre os fundamentos para destacar da neurastenia uma síndrome específica denominada "neurose de angústia" (FREUD, 1895[1894]), Resposta às críticas a meu artigo sobre a neurose de angústia (FREUD, 1895) e A hereditariedade e a etiologia das neuroses (FREUD, 1896). Neste último, Freud (1896, p. 145) anunciava o deslumbramento dos médicos pela "grandiosa perspectiva da precondição etiológica da hereditariedade", revelando-nos o entusiasmo que a nova ciência provocava nos estudiosos de sua época. Atento a este fato, Freud não negou a ação da hereditariedade, mas minimizou seus efeitos e os transfigurou para uma leitura que, interpondo-se aos fatores biológicos e psíquicos, lança mão da ideia de hereditariedade considerando a noção de genealogia. A curiosidade de Freud procurava então aliar as recentes descobertas acerca da hereditariedade - e toda a perspectiva agregada às investigações etiológicas - com seu interesse pela etiologia das neuroses.

Entre os anos de 1893 e 1894, Freud estava às voltas com o problema das neuroses; mais especificamente, para a origem dos sintomas. Mas pode-se dizer que desse interesse deriva também uma inquietação quanto à transmissibilidade pela via psíquica. É deste período a publicação de diversos artigos que tratam da etiologia das neuroses.

Em As neuropsicoses de defesa (FREUD, 1894), ao estabelecer que são os processos de recalcamento os responsáveis pelo desenvolvimento de uma neurose, Freud se depara com uma questão: por que o processo de recalcamento desembocará em histeria numa pessoa e em neurose obsessiva em outra? A explicação possível àquele momento é que uma disposição do sujeito encaminhará esta escolha da neurose. Para Freud, haveria em cada sujeito uma disposição para um encaminhamento específico, mas ele ressalta, entretanto, que a disposição, por si só, não é determinante na etiologia da neurose, posto que, para a eclosão de uma neurose, é necessária a ação de causas específicas que atuariam como agentes desencadeadores do adoecimento. Outro aspecto interessante deste termo é que apesar de levar o leitor a uma analogia com aquilo que é inato, não é esta a concepção de Freud, como podemos ver neste trecho de As neuropsicoses de defesa (FREUD, 1894, p. 55):

A capacidade de promover um desses estados [...] através de um esforço voluntário desse tipo deve ser considerada como manifestação de uma disposição patológica, embora esta não seja necessariamente idêntica à ‘degeneração’ individual ou hereditária.

Vemos, embutida nesta referência, uma ideia particular atribuída ao termo disposição, que está para além - ou aquém - de uma atribuição hereditária. Podemos entender que para Freud disposição está ligada às ideias de tendência, inclinação, aptidão, mas sempre em referência a algo que possa agir junto.

No artigo Hereditariedade e a etiologia das neuroses (FREUD, 1896), Freud aprofunda a investigação da via psíquica de transmissão das neuroses, seu interesse maior à época. Neste trabalho, ele argumenta que a hereditariedade não determina a escolha da neurose, mas tem um efeito multiplicador, tal como num circuito elétrico, que aumenta o desvio da agulha, sem, no entanto, determinar a direção. Ou seja, ainda que a hereditariedade tenha papel importante na vida de um sujeito, como que viabilizando a escolha por determinado caminho, o destino de cada pessoa pode ser criado por ela própria. Neste artigo, Freud analisa de forma criteriosa o papel etiológico da hereditariedade nas doenças nervosas, em contraponto ao entusiasmo da ciência em vistas das novas descobertas à cerca da hereditariedade e a perspectiva da precondição etiológica hereditária. Diferentemente de Charcot, ele não acreditava que a causa exclusiva, verdadeira e indispensável da neurose fosse hereditária. Para ele, a hereditariedade é apenas um dos três fatores etiológicos das neuroses, ao lado das causas concorrentes e das causas específicas. Ressaltava ainda que a investigação das causas específicas é fundamental na medida em que permitiria uma via de acesso para a terapêutica, ao passo que a precondição hereditária fixa o paciente desde o seu nascimento, impossibilitando qualquer via de acesso à terapêutica. Este artigo é um contraponto à importância dada por Charcot ao papel da hereditariedade, a mesma importância que Freud reivindicava para a experiência sexual precoce na etiologia das neuroses, ideia que começava a entrar em cena à época deste artigo. Contudo, não há um rompimento completo em relação à noção de hereditariedade, já que ele reconhece a influência desta na gravidade dos sintomas neuróticos. Freud não abandona por completo a ideia de hereditariedade, apenas não lhe deu o valor atribuído por outros estudiosos.

Em 1913, Freud retoma seu interesse pelo problema da escolha da neurose no artigo A disposição à neurose obsessiva. Neste trabalho, ele organiza suas ideias em uma proposição geral que assinala dois pontos: 1. Os determinantes patogênicos que estão envolvidos nas neuroses são de dois tipos, o constitucional (que a pessoa traz consigo) e o acidental (que a vida traz para a pessoa); 2. Os motivos que determinam a escolha da neurose são "inteiramente" constitucionais, ou seja, tem caráter de disposições e independem de experiências. Uma nota de rodapé de James Strachey a esta proposição, contudo, chama-nos atenção para o fato de que neste artigo Freud emprega a palavra disposição no sentido de algo hereditário e que esta concepção foi mudando em trabalhos posteriores, significativamente na Conferência XXIII (FREUD, 1917[1916-1917]), que expomos a seguir.

A investigação acerca da etiologia das neuroses ganha uma análise mais elaborada na Conferência XXIII - Os caminhos da formação dos sintomas (FREUD, 1917[1916-17]), onde Freud propõe uma somação causal que inclui: a) a constituição sexual; b) a experiência infantil; c) a fixação da libido e d) a experiência casual. A constituição sexual é considerada como sendo herdada e quanto à experiência infantil, fator para o qual Freud (1917[1916-17], p. 363) dá um valor especial na causação da neurose, há um entendimento de que as vicissitudes da história infantil "tornam manifestas as tendências instituais que a criança herdou com sua disposição inata Freud" Estas disposições são consideradas efeitos secundários de experiências vividas por ancestrais. Nesta conferência, se reporta claramente à noção de herança na etiologia das neuroses: "É concebível que uma aquisição dessa espécie [as disposições da constituição vividas pelos ancestrais], que conduz à herança, chegaria ao fim justamente na geração que estamos considerando?" (FREUD, 1917[1916-17], p. 364). No mesmo trabalho, ele põe em questão se os mais marcantes tipos de regressão libidinal não seriam determinados sobretudo pelo fator constitucional hereditário.

A contribuição principal da Conferência XXIII para o entendimento das neuroses e que implicaria numa virada conceitual para a psicanálise foi a introdução da noção de fantasia na questão do sintoma. Esta concepção foi fundamental para que Freud pudesse avançar no estudo e tratamento do caso clínico sobre O homem dos lobos. Neste caso, a relação entre cenas primárias e fantasias primitivas conduziu Freud para o problema da possibilidade de que o conteúdo mental destas fantasias pudesse ser herdado. No trabalho publicado sobre este caso, História de uma neurose infantil (FREUD, 1918[1914]), Freud dedica algumas linhas à discussão acerca da herança das fantasias primitivas, ressaltando mais uma vez, como em outros trabalhos, que embora o papel da herança psíquica seja importante, as experiências infantis são mais:

Essas cenas de observação das relações sexuais entre os pais, de ser seduzido na infância e de ser ameaçado com a castração são inquestionavelmente um dote herdado, uma herança filogenética, mas podem também facilmente ser adquiridas pela experiência pessoal (FREUD, 1918[1914], p. 104).

Para Freud, a criança lança mão de uma experiência filogenética quando lhe falta uma experiência própria, preenchendo as lacunas de sua verdade individual através de sua pré-história, substituindo as ocorrências de sua vida pelas de seus ancestrais. Contudo, ele considera equivocado adotar a explicação filogenética antes de se esgotarem as possibilidades ontogenéticas.

Não vejo razão para discutir obstinadamente a importância da pré-história infantil, ao mesmo tempo reconhecendo livremente a importância da pré-história ancestral. Nem posso omitir o fato de que os motivos filogenéticos e os próprios produtos permanecem necessitando de elucidação, e que, em um bom número de exemplos, esse esclarecimento é proporcionado por fatores da infância do indivíduo. E, finalmente, não me surpreendo se aquilo que foi originalmente produzido por determinadas circunstâncias, em tempos pré-históricos, e foi depois transmitido na forma de uma predisposição à sua reaquisição, reemergisse uma vez mais, desde que persistissem as mesmas circunstâncias, como um evento concreto na experiência do indivíduo (FREUD, 1918[1914], p. 105).

Esta citação ilustra mais uma vez a posição em que Freud estava diante da questão da herança na vida psíquica, pois ao mesmo tempo em que considerava sua significativa influência sobre os conteúdos mentais e a formação de sintomas, negava que sua força fosse exclusiva e indispensável. Cada vez mais apegado à importância da experiência infantil na causação dos sintomas, era neste fator que seus estudos colocavam acento.

 

1.2 A herança psíquica e a formação do eu

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 1905), trabalho que discorre acerca do desenvolvimento do sujeito, identifica-se uma noção de herança psíquica, na medida em que, em vários momentos, Freud admite que o desenvolvimento de um sujeito se dá na relação a um outro, em geral seus predecessores.

Há, neste texto, várias referências subjacentes ao tema da hereditariedade, visto que era um campo de estudo que crescia muito àquela época. Freud admitia que havia algo de hereditário no desenvolvimento do sujeito, mas elegeu outra via para a condução de sua exposição teórica. No prefácio à terceira edição, em 1914, Freud comunica aos seus leitores que escolhera priorizar os fatores acidentais em detrimento dos fatores disposicionais, do mesmo modo em que enfatizara o desenvolvimento ontogenético ao invés do filogenético. Isto porque, segundo ele, é o acidental que é preponderante no trabalho de análise, enquanto que o fator disposicional é despertado pelas vivências e sua apreciação ultrapassa o campo de trabalho da psicanálise. Quanto à relação entre ontogênese e filogênese, Freud entende que a primeira é uma repetição da segunda e assim a disposição filogenética se faz notar por meio do processo ontogenético. Nesta perspectiva, Freud (1905, p. 125) considera a predisposição como o "precipitado de uma vivência prévia da espécie, à qual se vem agregar a experiência mais nova do indivíduo como soma dos fatores acidentais". Não deixemos de ressaltar que esta escolha já é decorrente de seus estudos anteriores, entre 1896 e 1917, expostos no presente artigo.

Em Narcisismo, uma introdução (FREUD, 1914), Freud aponta para uma continuidade na vida psíquica entre gerações, na medida em que considera que a atribuição de lugares e significantes feitos pelos antecedentes do bebê tornam-no o herdeiro dos sonhos e desejos não realizados de seus pais. É deste e neste lugar que o bebê deve apropriar-se de uma pré-história e criar a sua própria versão, o que marcará e assegurará o seu processo de singularização. Por outro lado, é o investimento narcísico que garantirá ao sujeito a manutenção da identidade familiar, a transmissão dos enunciados históricos e familiares e o fortalecimento do narcisismo do grupo (BERTIN; PASSOS, 2003).

A questão da herança psíquica permanece nos textos da segunda tópica, como podemos ver em O ego e o id (FREUD, 1923). Neste trabalho, vemos referências à noção de herança psíquica sobretudo quando se trata do supereu, considerado uma herança do desenvolvimento cultural humano. Ao considerar o superego como herdeiro do complexo de Édipo, Freud enfatiza, contudo, que ainda que se trate de uma herança cultural, ou seja, universal para todos os humanos, é a influência dos pais em cada sujeito que perpetua a existência dos fatores que deram sua origem.

Em Análise terminável e interminável (FREUD, 1937), ao expor suas investigações acerca das alterações do ego, Freud reitera a existência e a importância de características distintivas, originais e inatas do ego, o que reforça a ideia de que cada pessoa está dotada de disposições e tendências individuais. Contudo, continua alertando que "não devemos exagerar a diferença existente entre caracteres herdados e adquiridos, transformando-a numa antítese; o que foi adquirido por nossos antepassados decerto forma parte importante do que herdamos" (FREUD, 1937, p. 257). Para Freud, antes mesmo do ego se edificar, algumas linhas de desenvolvimento, tendências e reações que se apresentarão posteriormente já estavam estabelecidas. Neste trabalho, Freud (1937, p. 257) afirma explicitamente a potência da herança psíquica na constituição dos sujeitos:

A experiência analítica nos impôs a convicção de que mesmo conteúdos psíquicos específicos, tais como o simbolismo, não possuem outras fontes senão a transmissão hereditária e pesquisas em diversos campos da antropologia social tornam plausível supor que outros precipitados, igualmente especializados, deixados pelo primitivo desenvolvimento humano, também estão presentes na herança arcaica.

A relação entre herança psíquica e origem do psiquismo pode ser esclarecida na leitura dos textos freudianos, mas vale ressaltar que Freud se aproxima mais da ideia de uma genealogia do que propriamente da ideia de genética que temos hoje (MAGALHÃES; FÉRES-CARNEIRO, 2004). Para ele, há um elo entre as gerações que está para além da consanguinidade. A hipótese freudiana sobre a herança psíquica é fundamentalmente filogenética.

 

1.3 A herança psíquica na constituição da cultura

A constituição do sujeito não pode ser pensada sem a edificação de uma cultura que o antecede, cultura que é transmitida de geração a geração para sustentar a vida em grupo e a existência de cada sujeito individualmente. Nos trabalhos em que Freud analisa a relação entre o desenvolvimento cultural e o desenvolvimento dos sujeitos, vemos explicitamente a ideia de que certos conteúdos mentais, inclusive os inconscientes, tem sua origem na herança arcaica dos ancestrais do homem moderno.

Totem e tabu (FREUD, 1913[1912-13]) é um texto fundamental para a compreensão deste tema, visto que nele Freud concebe a existência de uma mente coletiva e a continuidade da vida psíquica a partir da transmissão do tabu, do crime e da cultura. Segundo este texto, a proibição do incesto e de matar o animal totêmico são organizadores da cultura e de cada sujeito e estas leis foram transmitidas de geração a geração desde os ancestrais através do sentimento de culpa, que se origina aí. Freud concebe cada sujeito como sendo herdeiro do crime dos seus ancestrais.

Neste texto, o problema da transmissão aparece explicitamente: "Quanto podemos atribuir à continuidade psíquica na seqüência das gerações? Quais são as maneiras e meios empregados por determinada geração para transmitir seus estados mentais à geração seguinte?" (FREUD, 1913[1912-13], p. 159). Para Freud (1913[1912-13], p. 159-160), nem a comunicação direta nem a tradição seriam suficientes para explicar o processo: "uma parte do problema parece ser respondida pela herança de disposições psíquicas que, no entanto, necessitam receber alguma espécie de ímpeto na vida do indivíduo antes de poderem ser despertadas para o funcionamento real". Nesta concepção, vemos mais uma vez como Freud dá importância para as experiências individuais e que ele retoma a questão da disposição. Ele ilustra seu pensamento com uma bela citação de Goethe: "aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu" (FREUD, 1913[1912-13], p. 160). Ao usar esta citação, Freud insinua como há, no processo de herança psíquica, uma potência do sujeito em transformar os conteúdos herdados em uma história singular.

Freud (1913[1912-13], p. 160) deixa claro que as marcas da herança geracional são indeléveis, ressaltando que nem mesmo o recalque bem sucedido pode evitar a permanência de vestígios, que sempre haverá lugar para impulsos substitutos e reações que deles resultem:

[...] podemos presumir com segurança que nenhuma geração pode ocultar, à geração que a sucede, nada de seus processos mentais mais importantes, pois a psicanálise nos mostrou que todos possuem, na atividade mental inconsciente, um apparatus que os capacita a interpretar as reações de outras pessoas, isto é, a desfazer as deformações que os outros impuseram à expressão de seus próprios sentimentos. Uma tal compreensão inconsciente de todos os costumes, cerimônias e dogmas que restaram da relação original com o pai pode ter possibilitado às gerações posteriores receberem sua herança de emoção.

Em O mal-estar na cultura (FREUD, 1930), assim como em Totem e tabu, Freud demonstra como na passagem da natureza para a cultura é necessário um processo de transmissão entre gerações que possa dar sustentação à manutenção da civilização. Para Seligmann-Silva (2012, p. 26), Freud propõe a passagem de certos dados inconscientes de geração a geração, o que produz uma "teoria da temporalidade e da inscrição mnemônica transgeracional que ocupa um papel de destaque neste ensaio". Freud ressalta a transmissão geracional da culpa que foi fundadora da civilização e que passa a ser parte da constituição subjetiva de cada indivíduo.

Quase uma década depois, o tema aparece de forma mais elaborada em Moisés e o monoteísmo: três ensaios (FREUD, 1939[1934-38]), com a inclusão da análise apurada da ideia de herança arcaica. Em nota de rodapé ao terceiro ensaio, James Strachey aponta o fato de que o exame da herança arcaica é, neste ensaio, o mais extenso de todos os escritos de Freud. Ainda que já houvesse feito menção a esta ideia em Totem e tabu, na Conferência XXIII, na História de uma neurose infantil, em O id e o ego e em Análise terminável e interminável, dentre outros, é neste trabalho que ele se dedica a um exame detalhado acerca do tema.

Aquilo que pode ser operante na vida psíquica de um indivíduo pode incluir não apenas o que ele próprio experimentou, mas também coisas que estão inatamente presentes nele, quando de seu nascimento, elementos com uma origem filogenética - uma herança arcaica (FREUD, 1939[1934-38], p. 112, grifos das autoras).

Freud ressalta que as reações a alguns traumas precoces não se limitam ao que o próprio indivíduo experimentou, levando à compreensão de um modelo de evento filogenético que só pode ser explicado por tal influência. Os complexos de Édipo e de castração seriam um exemplo disso, pois só se tornam inteligíveis pela vinculação com a experiência de gerações anteriores. Estas observações o fazem concluir que "a herança arcaica dos seres humanos abrange não apenas disposições, mas também um tema geral: traços de memória da experiência de gerações anteriores" (FREUD, 1939[1934-38], p. 113).

Duas questões são colocadas por Freud no texto acerca do caráter patogênico da herança arcaica: primeira, sob que condições uma recordação ingressa na herança arcaica; segunda, em que circunstâncias ela pode se tornar ativa? À primeira questão ele responde que se o acontecimento foi suficientemente importante ou repetido com bastante frequência, ou ambas as condições, está dado o ingresso da recordação na herança arcaica. Em relação à segunda questão, ele afirma que o despertar do traço de memória esquecido por uma repetição real e recente do acontecimento é o que levará este conteúdo do id para a consciência.

Freud concebe os efeitos do trauma como sendo positivos e negativos. Nos efeitos positivos, o evento traumático é revivido por meio da repetição; nos negativos, o trauma não é relembrado e nem repetido. Está evidenciado nesta concepção o caráter patogênico da transmissão psíquica, que poderá abrir caminho para as inibições, as fobias e até mesmo para a psicose.

Neste texto, pela primeira vez, o tema da transmissão surge em seu caráter de negatividade, como afirma Inglez-Mazzarella (2006), ou seja, que conteúdos ocultados, suprimidos ou renegados que são transmitidos de maneira deformada também tem efeitos relevantes para o sujeito herdeiro. Para Freud, a causa das passagens obscuras e enigmáticas do texto sagrado é a origem ocultada de Moisés.

O mal-estar na cultura, Totem e tabu eMoisés e o monoteísmo nos mostram que na relação entre a constituição do sujeito e a formação da cultura Freud enfatizou que é a transmissão das tradições e das leis que sustentam a civilização. No entanto, não é a transmissão direta, via comunicação, que está em jogo, mas sim conteúdos inconscientes cuja apreensão é intangível.

 

2. Os herdeiros de Freud: contribuições acerca da transmissão psíquica

Baseando-se nesses esboços conceituais formulados por Freud, vários autores aprofundaram o corpo teórico relacionado à temática iniciada pelo pai da psicanálise. É importante dizer que muitos deles buscaram, além de Freud, outros interlocutores na psicanálise, tais como Ferenczi, Melanie Klein, Winnicott, Bion e Lacan. Estes estudiosos se referem mais frequentemente ao termo transmissão psíquica, entendido como um trabalho psíquico de apreensão de afetos, pensamentos, histórias e mitos familiares que são passados de geração a geração.

Segundo Santos e Ghazzi (2012), o interesse por essas pesquisas surgiu a partir do tratamento de pacientes psicóticos e de sua família, quando diversos estudiosos se questionavam sobre o papel da família na doença que acometia um de seus membros. A maior parte das investigações origina-se, portanto, na experiência clínica com organizações ou estruturas psicóticas, borderline ou narcísicas, com ênfase para o que se passou a entender como falha na transmissão (KAËS, 2001). Ou seja, inicialmente a preocupação era com o aspecto patológico da transmissão.

Nicolas Abraham e Maria Torok, psicanalistas de origem húngara, são considerados os iniciadores da discussão sobre transmissão psíquica, especialmente a partir do livro A casca e o núcleo (ABRAHAM; TOROK, 1971). Suas investigações sobre o luto, a incorporação, a cripta e o fantasma foram decisivas para o surgimento do campo de pesquisa sobre a transmissão geracional. Eles retomaram os conceitos de introjeção, de Ferenczi, e de incorporação, de Melanie Klein e propuseram uma nova leitura a partir da introdução de novos conceitos à psicanálise. Para Abraham e Torok a realidade concreta é tão importante quanto a dimensão fantasmática - esta última mais valorizada por Freud - na transmissão entre gerações. Eles privilegiaram o aspecto patológico da transmissão, no sentido de uma impossibilidade de o sujeito simbolizar conteúdos ou eventos traumáticos vividos por gerações anteriores.

Outro estudo importante produzido por Abraham e Torok diz respeito a catástrofes sociais, entre elas o extermínio de judeus pelos nazistas. Segundo estes estudos, a denegação de um trauma vivido é tão traumática quanto a experiência em si. Trata-se aí da dimensão negativa da transmissão, ou seja, quando a vivência não encontra registro na palavra. Estes autores enfatizaram os efeitos do trauma na transmissão psíquica geracional, mas ao mesmo tempo ressaltaram o movimento constante do sujeito na recriação de si próprio e na procura de um sentido.

Abraham e Torok distinguiram a transmissão psíquica intergeracional da transgeracional, o que teria efeitos não só teóricos, mas fundamentalmente para a clínica.

A transmissão psíquica intergeracional caracteriza-se pelo contato direto entre as gerações, geralmente entre pais e filhos, e seu conteúdo pode ser modificado conforme o tempo e a capacidade de cada geração para simbolizar a história de seus antepassados e apropriar-se dela (GRANJON, 2000; INGLEZ-MAZZARELLA, 2006; SANTOS; GHAZZI, 2012). O intergeracional refere-se a interações de gerações que puderam conviver em vida.

Na transmissão psíquica transgeracional, não há contato direto entre as gerações. Esta modalidade ocorre sem modificações, atravessando as gerações e impondo-se em estado bruto aos descendentes (GRANJON, 2000). Em geral, o objeto transgeracional é consequência de um segredo, algo que ainda não acedeu ao estatuto de palavra.

Com base nestas concepções, veremos que a transmissão psíquica pode ter um caráter constitutivo, que chamamos de subjetivante, e um caráter não-estruturante. O primeiro diz respeito à inserção do sujeito na história familiar, na filiação e na cultura. O segundo tem a ver com a impossibilidade de simbolizar conteúdos herdados psiquicamente de outras gerações.

 

2.1 A transmissão subjetivante da história: origem, filiação e parentalidade

Quando tratamos de transmissão psíquica, é importante destacar um aspecto fundamental relativo à constituição de todo sujeito, qual seja, a questão da origem. A curiosidade pela origem é essencial para a constituição do sujeito, visto que este interesse levará a criança a buscar sua inscrição no desejo de seus pais, o que implica também a busca pela pertença na história de sua família, na história que lhe antecede.

Estudos sobre parentalidade, desenvolvidos sobretudo por Serge Lebovici (SILVA, 2004) enfatizam que a questão da filiação está mais ligada a vínculos afetivos e relacionais do que aos aspectos biológicos e hereditários. O tipo de herança que interessa nestes estudos tem a ver com o que se herda da história dos pais, dos avós, dos bisavós, inclusive o que se herda dos conflitos e do narcisismo de gerações anteriores.

Há, deste modo, uma relação estreita entre história e transmissão do psiquismo, na medida em que é também de histórias que se constrói uma subjetividade, como atestam os trabalhos desenvolvidos por Golse (2003, 2004) e Gutfreind (2010).

Para Golse (2004), a entrada na história é uma das vias que o bebê encontra para se apropriar da linguagem e do pensamento que o precedem. Gutfreind (2010) defende que é a narrativa que garante a transmissão da história das gerações. Além disso, a narrativa da história dos descendentes assegura a fundação de um sujeito: "a narrativa é a ponte entre o eu e o outro (pai, mãe, seus substitutos) que nos fará sentir-nos vivos verdadeiramente" (GUTFREIND, 2010, p. 30). Este autor emparelha psicanálise e narratividade, na medida em que ambas têm a função de gerar subjetividade. Sua hipótese fundamental é que a narratividade é o que pode tornar o sujeito autor de sua história, que o sujeito é feito das histórias de seus ancestrais e é a narratividade que possibilita a transmissão. A importância da narração e mesmo da criação de uma história já fora apontada por Freud (1909) em Romances familiares, em que ele fala da importância de a criança narrar em torno da família, inventando outra história, uma ficção que lhe servirá para elaborar seus conflitos de separação. Golse (2004), por outro lado, sustenta a tese de que os bebês têm necessidade de uma história que não seja apenas biológica ou genética, mas fundamentalmente relacional e por isso eles devem se inscrever no seio de uma dupla filiação, materna e paterna. Este autor assinala que o recém-nascido é um historiador em busca desesperada de uma história. A busca por sua história assegura na criança o sentimento de pertencimento à linhagem familiar. É ao ocupar um lugar na história que a criança encontrará a cultura que comporá sua humanidade. Nas palavras de Bernardino (2006, p. 27),

No seio da estrutura familiar ele [o bebê] receberá a transmissão de uma língua, das tradições e costumes de sua comunidade, das leis que a regulam, além das particularidades específicas do desejo familiar, inconsciente, a seu respeito. Desta combinatória resultará um produto: sua subjetividade, seu desejo próprio (colchetes das autoras).

Para ressaltar a importância da narratividade em busca de uma história, Gutfreind (2010) traz à tona a história de Édipo Rei, fonte de inspiração de um dos pilares da psicanálise freudiana, uma tragédia que revela o desespero de um homem em busca de sua história, de sua origem. A narratividade é a chance de tratar o passado para contar um presente inédito e um futuro mais original, é o que defende Gutfreind (2010).

 

2.2 A transmissão do não-dito: um entrave à subjetividade

Os efeitos da transmissão psíquica dos segredos ou não-ditos2 são enfatizados por diversos autores como ponto essencial na produção sintomática. Se os estudos iniciais sobre esta temática colocavam acento sobre a falha na transmissão, como nos casos de psicose, Kaës (2001, p. 20) também assinala que "não é só a partir do que falha e falta que a transmissão se organiza, mas a partir do que não adveio, o que é ausência de inscrição e de representação, ou do que [...] está em estase sem estar inscrito".

Inglez-Mazzarella (2006) distingue duas categorias de não-ditos que atravessam as gerações, cada um dos quais com efeitos específicos sobre a subjetivação e sobre a produção sintomática: o proibido de dizer e o inominável. O não-dito como proibido de dizer pressupõe uma interdição deliberada e sua ocultação está geralmente relacionada à vergonha e à culpa. São segredos que permanecem na história das famílias sob a forma de um recalcado e vez por outra retornam sob a forma de um sintoma. Já o não-dito como inominável encontra-se fora do registro de qualquer inscrição, transitando na família como enquistado - como diriam Abraham e Torok (1971) - e cuja tentativa de representação esbarra sempre na repetição. No proibido de dizer houve simbolização, ou seja, o que fica proibido é o acesso à representação; no inominável, não há sequer a simbolização.

Os efeitos da transmissão dos não-ditos são particularmente manifestados na clínica com crianças, isto não só pelos efeitos da presença do outro na subjetividade, mas principalmente pela constatação de que a articulação entre constituição subjetiva e discurso parental tem efeitos sobre o sujeito (ROSA, 2009). O bebê é perpassado pela história que o precede e o atravessa, inclusive pelas lacunas dessa história: "através das gerações, os não-ditos podem arrastar com eles o deslocamento dos afetos, até mesmo das afecções, aquelas do corpo submetido à insistência da inscrição do significante" (SZEJER, 1999, p. 67).

Há estudos que atestam os efeitos da transmissão psíquica dos traumas decorrentes de catástrofes sociais sobre a subjetividade. O que se vê operar são os efeitos decorrentes de não-ditos, sejam eles recalcados ou não simbolizados. O que ocorre, nas palavras de Inglez-Mazzarella (2006), é uma insuficiência de palavras para tratar de algo que é indizível, irrepresentável e que insiste na repetição da cena traumática como tentativa de inscrição. Estas situações extremas de traumas sociais fazem marcas sobre os sujeitos, mas também sobre o social, o que demonstra que a transmissão psíquica se dá também através do que se herda em termos culturais e sociais3. Nos traumas sociais, o não-dito pode operar a partir daquilo que é proibido de falar (como nas ditaduras militares) e a partir do que é inominável (como nos Holocausto). Em ambas as situações, contudo, o acesso à palavra deve ser incentivado como recurso à simbolização. Para Inglez-Mazzarella (2006, p. 114), "dizer, de certa forma, é fazer novamente existir, o que possibilita algum trabalho de elaboração. Não ter palavras para dizer é ficar à mercê do que não pode circular como imaginado e, muito menos, simbolizável".

 

Considerações finais

A psicanálise nos tem apontado, desde Freud, para a importância da presença do outro na constituição do sujeito. O que fizemos com este estudo foi realçar a ação da herança psíquica sobre a subjetivação, bem como apontar os entraves que dela podem ser gerados. Nenhum sujeito escapa da trama psíquica projetada pelos discursos parentais e ancestrais, ninguém se torna sujeito se não há uma herança geracional demarcando e confirmando sua existência.

A herança psíquica é, por assim dizer, uma espécie de rascunho através do qual uma nova história vai ser criada. Esta é a ação positiva da herança, no sentido de ser algo subjetivante.

No entanto, como vimos, há uma ação negativa no processo de transmissão psíquica entre as gerações, que pode ter um caráter não-estruturante. As principais contribuições dos estudos sobre herança e transmissão psíquica dizem respeito a estes aspectos, considerados cruciais para a produção sintomática.

Como é próprio do narcisismo um impulso para transmitir algo, como forma de assegurar a sobrevivência psíquica, vemos que é sobretudo pela via narcísica que os pais alimentam seus filhos daquilo que eles próprios herdaram, mantendo o encadeamento de gerações através da transmissão de afetos, histórias, leis, costumes, mitos e segredos familiares. O que será transmitido e o modo de transmissão parecem ser decisivos na constituição do sujeito e na formação de seus sintomas.

Este é um dos pontos mais importantes a serem considerados quando se trata de herança e transmissão psíquica. De um lado, vemos que a transmissão da lei paterna e dos interditos culturais é o que permite a ancoragem do sujeito no campo simbólico e, do mesmo modo, entende-se que a historização do desejo promove a inclusão do sujeito na genealogia e na filiação. Por outro lado, a circulação de uma herança comprometida devido a conteúdos não elaborados tem como destino o sofrimento psíquico e as somatizações, como manifestações do retorno do recalcado ou da compulsão à repetição.

Para a clínica psicanalítica, o trabalho fundamental diante dos fenômenos inter e transgeracionais é a criação de um mito acerca da origem, a fim de possibilitar um posicionamento subjetivo diante da ascendência e da filiação e promover uma existência singular. Se elementos importantes da história familiar são segredados, o desafio da análise é reconstruí-los através de uma narrativa que seja capaz de integrá-los. Assim é possível construir uma história singular, restituir ao sujeito o que lhe pertence e isentá-lo daquilo que não é seu.

 

 

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Artigo recebido em: 27/06/2014
Aprovado para publicação em: 21/10/2014

Endereço para correspondência
Maria Celina Peixoto Lima
E-mail: celina.lima@unifor.br
Angela Teresa Nogueira de Vasconcelos
E-mail: angelanogueiravasconcelos@gmail.com

 

 

*Psicóloga, mestre Psicologia/Universidade de Fortaleza-UNIFOR (Fortaleza-CE-Brasil).
**Psicanalista, doutora Psicologia/Universidade Paris 13 (Paris-França), profa. titular Programa de Pós-graduação Psicologia/Universidade de Fortaleza (Fortaleza-CE-Brasil), membro/GT/ANPEPP Psicanálise, Infância e Educação, membro-coordenador/Laboratório de Estudos sobre Psicanálise, Cultura e Subjetividade/Universidade de Fortaleza-UNIFOR (Fortaleza-CE-Brasil).
1Freud utiliza, mais frequentemente, a palavra herança, embora algumas vezes ele utilize o termo transmissão e seus derivados. Os autores a que nos referimos na segunda parte do artigo utilizam mais o termo transmissão. De modo geral optamos por usar herança quando nos reportamos a Freud e transmissão na referência aos outros autores. Quando tratamos do tema a partir de nosso próprio discurso, escolhemos usar herança quando nos referimos aos conteúdos herdados e transmissão ao trabalho psíquico de passagem destes conteúdos. Nisto estamos em consonância com Silva (2003), que conceitua transmissão como o processo de transporte, deslocamento ou transferência da vida psíquica de um indivíduo a outro, entre eles, através deles ou nos vínculos do grupo.
2Neste artigo usamos as palavras segredo e não-dito indiscriminadamente.
3As marcas do Holocausto estão presentes na nossa cultura e na nossa memória, mas também na formação subjetiva dos povos que estiveram diretamente envolvidos, geração após geração. Do mesmo modo, os sobreviventes do genocídio em Ruanda nos anos 1990 são herdeiros dos traumas de que foram vítimas seus pais e avós. Na América Latina, os efeitos das ditaduras militares ainda ressoam nos jovens da Argentina, do Chile, do Brasil.

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