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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.37 no.32 Rio de Jeneiro June 2015

 

ARTIGOS

 

Figuras da terceiridade na psicanálise contemporânea: suas origens e seus destinos

 

Patterns of thirdness in contemporary psychoanalysis: its origins and its destinies

 

 

Nelson Ernesto Coelho JuniorI*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo procura apresentar as origens e os desenvolvimentos da noção de terceiridade na psicanálise. São discutidas as contribuições de Winnicott, Reik e do casal Baranger e suas influências para os trabalhos contemporâneos de Ogden e Green sobre o tema. A partir da elaboração de oito figuras centrais do terceiro na psicanálise, o texto foca as elaborações de Ogden e Green, suas semelhanças e diferenças.

Palavras-chave: Psicanálise contemporânea, terceiridade, Winnicott, Ogden e Green.


ABSTRACT

This paper seeks to present the origins and developments of the concept of thirdness in psychoanalysis. The contributions of Winnicott, Reik and the couple Baranger are discussed, as are their influences to the contemporary works of Ogden and Green on the subject. Considering the development of eight central patterns of thirdness in psychoanalysis the paper focuses on the elaboration of Ogden and Green, their similarities and differences.

Keywords: Contemporary psychoanalysis, thirdness, Winnicott, Ogden and Green.


 

 

Para meu pai, ausência presente.

A aposta na possibilidade de levar em frente uma aventura investigativa sobre o conceito de terceiro sustenta o presente ensaio. A intenção central que anima o artigo é a de apresentar e discutir a formulação da noção de terceiridadeou do terceiroem psicanálise, a partir das origens das concepções de Green (De la tiercéité) e de Ogden (The analytic third). Foi no início dos anos noventa do século passado, que ambos os autores começaram a construir, de forma mais decisiva, uma noção de terceiro que logo passou a fazer parte da estrutura de suas reflexões. Considero que em Ogden a noção é mais marcada pelas inovações que ele propõe para uma teoria da situação analítica, ao passo que, em Green, a terceiridade veio a constituir um dos eixos de sua reflexão metapsicológica sobre as dimensões psicopatológicas e clínicas. Em Ogden encontramos as bases para uma compreensão refinada das diferentes combinações transferenciais/contransferenciais, com exemplos clínicos singulares, em que a noção de um terceiro sujeito analítico acaba por iluminar e dar sentido aos diferentes modos de ação, fala e pensamento de analista e analisando. Já em Green, a noção de terceiridade vai ao encontro do esforço metapsicológico e psicopatológico do autor, em que a teoria freudiana recebe o suplemento da tradição das relações de objeto, na construção de uma inovadora teoria da constituição subjetiva e de seus destinos nos distúrbios psicopatológicos. Ele ainda procurou criticar a compreensão das relações de objeto nos termos duais da two body psychology, propondo uma concepção destas últimas que inclui uma referência inaugural ao terceiro. Mas, de toda maneira, são eles os autores que, nas últimas três décadas, (embora Green já fizesse referência aos processos terciários desde 1972) mais atenção e importância deram para essa ideia psicanalítica1.

Mas, desde já, é preciso que fique evidente que, muito antes das publicações de Green e Ogden, a ideia de um terceiro já existia de forma mais ou menos explícita na reflexão de muitos outros psicanalistas (Freud, Lacan, Klein, Winnicott, entre outros). Temos o terceiro do Édipo, o terceiro do nome do pai, o terceiro da posição depressiva, o terceiro do espaço intermediário, o terceiro simbolizado pela interpretação (e/ou pela linguagem) e o terceiro intersubjetivo, assim como aquele de várias outras concepções. Para Green (2005), é uma noção fundamental na teorização psicanalítica que veio em resposta ou em oposição ao predomínio das relações duais como base para todo pensamento. Mas, curiosamente, a ênfase na relação dual teria surgido como uma crítica àquilo que se convencionou chamar de one body psychology da teoria clássica, a concepção solipcista, que colocaria o mundo intrapsíquico como o foco central das investigações psicanalíticas. Com a inclusão da dimensão contratransferencial, a situação analítica passou a ser pensada, por vários autores, a partir do binômio transferência-contratransferência. Ao que tudo indica, teria sido a formulação conceitual de John Rickman (1951)2, aproveitada e recontextualizada por Michael Balint (1952/1985, p. 235), a primeira que sugere que, o que se passa em uma situação analítica, não se resolve na esfera da Psicologia de Um Corpo, mas é basicamente uma Situação de Dois Corpos. Olhando a partir dessa perspectiva, o desafio seguinte seria relativizar a visão dual e abrir caminho para uma nova hegemonia, a terceiridade. Resta saber se a dualidade e a terceiridade são visões que se excluem mutuamente ou se são visões suplementares em psicanálise.

 

Diferentes terceiros (figuras da terceiridade)

Em psicanálise, há o terceiro que separa, mas também o terceiro que religa, o terceiro que gera distância, mas também o terceiro que aproxima o que estava irremediavelmente separado. Caberia distinguir, aqui, diferentes concepções psicanalíticas do terceiro, que comparecem em teorizações distintas sem serem, necessariamente, excludentes:

1- O terceiro, que é uma presença material que interrompe um par já constituído, um terceiro elemento de natureza igual à dos dois primeiros, como no modelo mais empírico do Complexo de Édipo e da triangulação edípica;

2- O terceiro da ausência. Para Green, por exemplo, qualquer relação dual em termos psicanalíticos traz em si um terceiro; é o paradoxo de uma presença ausente. A relação mãe-bebê comporta desde o início uma função paterna. Trata-se do outro do objeto, otriângulo aberto com o terceiro substituível (pai, irmão ou tio que compõem a relação com a dupla mãe-bebê (GREEN, 1981);

3- O terceiro pensado como o espaço "entre dois", o espaço entre dois elementos, realidades ou modos de experiência já constituídos ou em constituição. O espaço intermediário entre a dimensão subjetiva e a dimensão objetiva, que tem uma função constitutiva dessas duas dimensões. Aqui, o terceiro é indício de dinâmica, movimento, passagem e surgimento da alteridade, como nas concepções de Winnicott;

4- O terceiro intersubjetivo, que corresponde a um elemento que, ao mesmo tempo, constitui a dualidade e é constituído pela dualidade, como na concepção de Ogden do terceiro analítico. Há diferentes figuras de um terceiro intersubjetivo que podem ser pensados por meio das diversas formas em que a alteridade emerge no contexto da constituição subjetiva3;

5- O terceiro como a junção de dois objetos. Green (2002) chegou a definir a sessão analítica nesses termos: "Há três objetos: os dois pedaços separados e o objeto que corresponde à sua junção. Na sessão, o objeto analítico é como esse terceiro objeto, produto da junção entre aqueles formados pelo analisante e pelo analista" (p. 251). Nessa mesma linha, seria possível pensar o enquadre analítico como sendo um elemento que ajuda no processo de estruturação psíquica, constituindo um terceiro que aparece na junção das pulsões com os objetos;

6- O terceiro da teoria semiótica de Charles Sanders Peirce, em sua concepção triádica do signo: primeiridade: as qualidades emocionais e as percepções de indiferenciação; secundidade: as qualidades da dualidade, da separação e do conflito; terceiridade:interação das duas primeiras realizada por meio do pensamento e de sua capacidade de estabelecer leis e generalizações, ou seja, a ação do signo. Essas ideias estão na base das proposições de Lacan e de Green sobre o terceiro;

7- O terceiro da lógica dialética, que é uma síntese entre uma tese e uma antítese. A síntese pode ser temporária, em uma concepção teleológica, mas haverá, necessariamente, a síntese final. Nesse caso, o terceiro é uma nova entidade concebida a partir do embate entre as duas anteriores. A partir da dialética do senhor e do escravo de Hegel há também a inclusão do tema do reconhecimento entre o par de opostos.

8- O terceiro de uma dialética sem síntese (como proposta por Merleau-Ponty, retomando Heráclito de Éfeso): o terceiro que aparece como a tensão permanente entre os polos ou como resultado da suplementariedade entre polos, como prefere Derrida. Possivelmente, esta é a concepção filosófica sobre o terceiro, que melhor sustentação daria para as ideias de Ogden sobre o terceiro sujeito analítico4.

9- Antes de avançar nas teorias originais de Green e Ogden sobre o terceiro, realizarei um desvio por concepções que, para mim, estão na origem das propostas dos dois autores. Trata-se das influências de Donald Winnicott, Theodor Reik e do casal Baranger para as noções psicanalíticas contemporâneas do terceiro.

 

1. A influência de Winnicott (e de Freud)

Ao psicanalista e pediatra inglês Donald W. Winnicott (1896-1971) coube o privilégio de avançar para além das ideias de Freud em vários planos teóricos e clínicos. Por meio de conceitos como objeto e fenômenos transicionais, espaço intermediário ou terceira área, Winnicott formulou uma nova concepção de realidade. A ideia de uma terceira área, de um espaço intermediário, de um entre dois, parece-me especialmente fecunda e fez com que a psicanálise pudesse passar a trabalhar em três planos de experiência e não apenas com dois planos em permanente oposição (realidade material e realidade psíquica). Um terceiro plano, uma terceira área que, no entanto, não se configura como uma síntese ou como uma região segura, pré-formada e de fácil delimitação. O entre revela-se, assim, como a região psicanalítica por excelência, estruturando o espaço de ilusão e a condição para a criação.

Mas, nessa aproximação de uma das influências maiores das concepções sobre o terceiro em psicanálise, quero deixar claro que não acredito, ao lado de outros psicanalistas contemporâneos, que a história das ideias psicanalíticas se dê em termos de grandes rupturas e da instauração periódica de pensamentos, que brotam por geração espontânea. Ao contrário, acho importante valorizar, ao máximo, as heranças e reconhecer o pensamento de Freud, assim como o de Ferenczi, em doses menores, em cada um dos autores pós-freudianos. Além disso, não custa relembrar que o próprio Winnicott propôs que ninguém pode ser original a não ser baseado na tradição.

Não bastasse a convicção quanto ao peso das heranças na construção das teorias psicanalíticas, apresento o que me parece uma "prova" a mais. Relendo um livro que me acompanha há muito tempo e do qual já me servi em várias situações, "descobri" uma passagem de Freud sobre o entre, ou em suas palavras, o reino intermediário (Zwischenreich). No livro Entre o sonho e a dor,do psicanalista francês J. B. Pontalis (1977) pode-se ler: "Mas o pensamento freudiano, mesmo sendo um pensamento dualista, pensamento do conflito e do par de opostos, não se deixa prender em um [ou isso ou aquilo]. Nosso reino é aquele do entre dois, pôde dizer Freud no tempo em que inventava a análise" (p. 9). Em nota de rodapé, Pontalis remete o leitor a uma carta de Freud a Fliess, de 16 de abril de 1896. A passagem completa é a seguinte: "Só tenho a registrar umas poucas ideias nascidas de meu trabalho cotidiano sobre o reino intermediário, como um reforço genérico da impressão de que tudoé como suponho que seja e, portanto, de que tudo será esclarecido" (MASSON, 1986, p. 182)5. É claro que, ao escrever as linhas que citei, Pontalis estava bastante influenciado em sua leitura de Freud por Winnicott e pelo filósofo Merleau-Ponty, autores de referência de seu livro de 1977 e defensores de um pensamento que reconhece o lugar fundamental da dimensão do entre dois. Sem entrar nas querelas hermenêuticas, nem no destino que teve o "reino intermediário" no restante da obra freudiana, o que quero registrar é que até no aspecto que sempre foi considerado o da mais genuína originalidade de Winnicott pode-se encontrar, através de Pontalis, um grão de areia freudiano. Não há garantia de que esse grão de areia esteja, de fato, presente na inspirada concepção winnicottiana da realidade, mas si non é vero, é bene trovato.

É nesse plano que entendo a importância das inovações propostas por Winnicott para a concepção psicanalítica da realidade. Ao formular uma teoria sobre o espaço intermediário entre a realidade externa e a realidade psíquica, Winnicott cria as condições para a valorização de um terceiro elemento em nossa compreensão sobre as relações entre o sujeito e seu mundo. É a clássica oposição entre mundo interno e mundo exterior que é revista, a partir desta conceituação e que levou Winnicott a propor três questões de fundamental importância:

Temos utilizado os conceitos de interior e de exterior, e necessitamos de um terceiro. Onde estamos quando fazemos o que em verdade fazemos durante boa parte do tempo, quer dizer, quando nos divertimos? O conceito de sublimação abarca todo o panorama? Podemos obter alguma vantagem se examinarmos este assunto da possível existência de um lugar para viver, que os termos 'exterior' e 'interior' não descrevem de forma adequada? (WINNICOTT, 1971, p. 140).

Como se sabe, os estudos de Winnicott sobre o espaço intermediário consideram tanto o espaço construído na relação mãe-criança, como também o espaço intermediário presente na relação analista-analisando. Tal espaço representa, segundo ele, "uma terceira zona de vida humana, que não está dentro do indivíduo, nem fora, no mundo da realidade compartilhada" (1971, p. 146).

Para chegar aos paradoxos que desorganizam as formulações canônicas sobre a natureza da realidade, sobre a natureza da experiência humana da realidade ou mesmo sobre a natureza das formas de conhecimento humano da realidade, Winnicott elabora um conjunto de conceitos. São todos conceitos que procuram descrever diferentes estados maturacionais do desenvolvimento emocional humano (e seus distúrbios), as formas de relação entre um bebê e sua mãe (e entre o analista e o analisando), entre o bebê e seus primeiros objetos e, de forma mais ampla, que procuram descrever e nomear as formas de relação do ser humano com seu ambiente. Atento às dimensões positivas da ilusão e à necessidade de se reconhecer o papel da criatividade nos processos de constituição subjetiva e intersubjetiva, Winnicott acaba por valorizar e construir conceitualmente um espaço entre, que é um espaço de ilusão. Este espaço que, originalmente, é o espaço do brincar infantil em que é um prazer se esconder, para poder ser encontrado, é também o lugar da criatividade e futuro lugar da experiência cultural. Seguramente, é uma das figuras mais potentes do terceiro em psicanálise.

 

2. A influência de Theodor Reik

Com Winnicott, acompanhamos a importância de um modo específico de se conceber o terceiro em psicanálise, que, reconhecidamente, teve impacto nos pensamentos de Green e Ogden. Quero agora apresentar as formulações de um contemporâneo de Winnicott, que, inicialmente, em Viena e depois em Nova Iorque, também recorreu a uma noção de terceiro para fazer avançar as ideias psicanalíticas. Entendo que a obra desse autor teve influência, principalmente, em Ogden e em sua concepção do terceiro sujeito analítico. Theodore Reik (1888-1969), em sua fase madura, depois de trinta e cinco anos de prática analítica, resolve escrever um livro sobre a experiência psíquica do analista nas sessões de psicanálise. Para ele era fundamental que o analista fosse capaz de "aprender como uma mente se comunica com outra mente aquém das palavras e do silêncio. O analista precisa escutar com 'o terceiro ouvido'" (1948, p. 144). Em nota de rodapé, Reik informa que pegou a expressão 'terceiro ouvido' de Nietzsche (aforismo 246, Além do Bem e do Mal)6. A ideia de Reik é que o terceiro ouvido, o modo de escuta analítica, tem como característica ouvir o que o analisando fala, o que ele não fala, mas sente e pensa e também voltar-se para dentro, ouvindo as vozes interiores do próprio analista. Para Reik, por meio do terceiro ouvido, as mensagens enviadas inconscientemente pelo analisando são captadas pelo inconsciente do analista:

O analista ouve não apenas o que está nas palavras; ele ouve também o que as palavras não dizem. Ouve com o 'terceiro ouvido', ouvindo não só o que o paciente fala, mas também suas próprias vozes interiores, aquilo que emerge das profundezas de seu próprio inconsciente. É mais importante [para o analista] reconhecer o que a fala oculta e o que o silêncio revela (REIK, 1948, p. 125-126).

Com Reik, assim, a atenção deve voltar-se primordialmente para o próprio Inconsciente, pois é ele que irá escutar e compreender o analisando. O analista assume um papel muito diferente do observador imparcial, sendo ele mesmo parte daquilo que observa. Nessa forma de pensar a situação clínica, existem três elementos: o inconsciente do analisando, o inconsciente do analista e a consciência do analista que observa a comunicação entre inconscientes e elabora modos de compreensão, que favorecem ou podem favorecer as formas de elaboração do analisando. O analista não só "capta" as manifestações do analisando, mas, principalmente, é modificado pelo que tem diante de si. "Para compreender o inconsciente de outra pessoa, nós devemos, pelo menos por um momento, nos modificar e nos tornar aquela pessoa" (p. 361). Essa modalidade de experiência empática ou vicariante é também constituída por três elementos: a experiência do analisando, o movimento do analista em direção ao analisando e a possibilidade do analista de reconhecer-se sendo outro. Reik entende que, para que ocorra a compreensão do inconsciente do outro, é preciso que o outro seja "introjetado" de forma temporária no observador:

O meio [para a compreensão] é o ego, para dentro do qual a outra pessoa é inconscientemente introjetada. Para compreender o outro nós não precisamos nos sentir em sua mente, mas sentir o outro inconscientemente no ego. Nós podemos atingir a compreensão do inconsciente do outro somente se ele é tomado pelo nosso próprio inconsciente, ao menos por um momento, como se fosse uma parte de nós mesmos - ele é uma parte de nós mesmos (p. 464).

Esta posição, porém, não está completa. Para compreender o inconsciente de outra pessoa é preciso introjetá-lo em nós mesmos. Mas para introjetar é preciso antes, de alguma forma, conhecer o que se está introjetando. Reik propõe, então, que o outro desperta em nós, através de suas palavras e gestos, um "embrião" do impulso que o motiva e isso é suficiente, se estivermos atentos, para compreendermos o que se passa com ele. "Por indução de impulsos inconscientes, possibilidades psíquicas no ego do observador são percebidas por um momento" (p. 361). Ou ainda: "O que é essencial no processo psicológico que ocorre no analista é (...) que ele pode vibrar inconscientemente no ritmo do impulso da outra pessoa e ainda ser capaz de entender isso como algo fora dele mesmo" (p. 468). É esse movimento de "escuta" que merece o nome de escutar com o terceiro ouvido. É desta forma que a comunicação de inconsciente a inconsciente se configura para Reik, assumindo, como apontam Laplanche e Pontalis (1998), "o sentido de uma empatia (Einfühlung) que se produziria num nível infra verbal" (p. 41-42). Reik atribui essa comunicação sutil à ação de "sentidos rudimentares que, embora não totalmente perdidos, perderam sua significância (como o olfato)". Como veremos um pouco mais à frente, muitas dessas ideias reaparecerão com nova roupagem no trabalho original de Thomas Ogden. Antes, mais um desvio, agora pelo trabalho do casal Baranger, outros autores que estão no rico cenário das influências reconhecidas ou reconhecíveis de Green e Ogden.

 

3. A influência do casal Baranger

O casal Willy e Madeleine Baranger, franceses radicados na Argentina, em 1946, onde fizeram sua formação em psicanálise, construíram, no início dos anos sessenta, uma concepção da situação analítica, que em muito preparou a inclusão da noção de terceiridade na psicanálise contemporânea. Em um artigo originalmente publicado 1961, os Baranger apresentaram o seu incômodo com a unilateralidade daquilo que chamaram "as primitivas descrições da situação analítica como uma situação de observação objetiva" (1969/1993, p. 129) por parte do analista. A situação analítica é, na realidade, uma "situação de duas pessoas extremamente ligadas e complementares e envolvidas no mesmo processo dinâmico" (p. 129). O conceito de campo dinâmico, presente na psicologia da Gestalt e na filosofia de Merleau-Ponty, pode ser "aplicado à situação criada por analisando e analista - ao menos no plano descritivo - sem que isso implique a intenção de traduzir a terminologia analítica em outra" (p. 129). Para eles, a situação analítica deve ser descrita como tendo uma estrutura espacial e temporal, estando orientada por linhas de força e dinâmicas determinadas, tendo suas leis e finalidades próprias. "Este campo é nosso objeto imediato e específico de observação. A observação do analista sendo simultaneamente observação do analisando e auto-observação correlata, só pode ser definida como observação desse campo" (p. 130). Nessa descrição, fica evidente a presença de três elementos: a observação do analista do psiquismo do analisando, de seu próprio psiquismo e a observação do campo. Nessa mesma linha, sugerem que a relação psicoterapêutica constituída na situação analítica é uma relação bipessoal. Mas é também, ou basicamente, uma "relação tri e até mesmo multi-pessoal" (p. 132), já que as múltiplas clivagens psíquicas estão em perpétuo movimento, criando um campo que é, necessariamente, mais complexo do que um campo bipessoal estrito. Portanto, por si só, a introdução da noção de campo, no panorama das teorizações psicanalíticas, é uma indicação de que a situação analítica para ser bem trabalhada e entendida precisa de três elementos, ou seja, analisando, analista e o campo de forças e sentidos constituído pelo par. O campo é tanto uma resultante de analista e analisando como a condição de possibilidade da própria situação analítica.

Ao retornar ao tema, anos mais tarde, Willy Baranger (1994) questiona a ideia de "uma psicologia 'de dois corpos', como dizia Balint, que com isso procurava evitar várias dificuldades ao manter-se no nível mais evidente (duas pessoas em uma sala de consultório), "bipessoal" - para designar o campo -, mas não evita dificuldade alguma, já que o mais imediato e fundamental que se desdobra neste campo é uma situação de três, ou triangular. (...) Não se trata nem de dois corpos nem de duas pessoas, mas sim de sujeitos divididos, cuja divisão é resultado de uma triangulação inicial" (BARANGER, 1994, p. 369). Nesse trecho de Willy Baranger, reconheço não só uma crítica ao movimento do qual Balint é um dos pioneiros, mas uma crítica aos próprios limites de sua noção de campo analítico dinâmico. Embora, já no texto de 1961, ele e Madeleine Baranger procurassem ir além da definição da situação analítica como uma estruturação terapêutica bipessoal, restava o problema de como fazer conviver, em um mesmo plano teórico, uma noção como a de campo dinâmico e as singularidades dos mundos intrapsíquicos de analisando e analista. O terceiro elemento, desse ponto de vista, não deve anular a singularidade e a especificidade dos dois elementos primários. Pode ser entendido como condição de possibilidade, como suplemento, como resultante ou como um entre, mas seja qual for a concepção, não deve substituir por um elemento intersubjetivo as marcas intrapsíquicas de cada um dos sujeitos do par analítico. Entendo que esse é o desafio herdado por Ogden e Green a partir do legado de seus antecessores na psicanálise.

 

4. Thomas Ogden e o terceiro analítico

Em seu livro The matrix of the mind, publicado em 1990, Thomas Ogden começa a construir, a partir das ideias do desenvolvimento emocional de Winnicott e de uma concepção dialética, a sua noção de terceiridade: "O atingimento da capacidade em manter a dialética psicológica [mãe - bebê] envolve a transformação da unidade que não requer símbolos em uma "terceiridade" (threeness), que é um interjogo de três diferentes entidades" (p. 213). Para Ogden essas entidades são o símbolo (um pensamento), o simbolizado (aquilo sobre o que se pensa) e o sujeito interpretante (que é o sujeito que pensa, gerando seus próprios pensamentos e interpretando seus próprios símbolos). Essas seriam as condições básicas para criatividade e a criação do espaço triangular, ou seja, para a instalação do espaço potencial de Winnicott. Com isso, estão colocadas as bases para uma inovadora noção de terceiridade, o terceiro analítico. Ogden afirmou, mais de uma vez, que concebeu a sua noção do terceiro analítico, explicitamente a partir de uma inspiração na obra de Winnicott. Segundo ele, de forma análoga à concepção de que a unidade mãe-bebê coexiste em tensão dinâmica com a mãe e o bebê como sujeitos diferenciados, é possível propor uma compreensão da situação analítica com analista e analisando vivendo a mesma tensão dinâmica. Em Subjects of analysis, livro publicado em 1994, a noção de terceiro analítico é assim apresentada: "O terceiro-analítico é uma criação do analista e do analisando, ao mesmo tempo em que ambos (na qualidade de analista e analisando) são criados pelo terceiro analítico" (p. 93). É o campo interpessoal formado por analista e analisando, que constitui o foco de sua investigação. Longe de ser uma descrição idealizada da situação analítica, o que vemos, na concepção intersubjetivista de Ogden, é o exercício de um pensamento clínico que retoma as tradições kleino-bionianas e winnicottianas, com um estilo próprio. Três anos mais tarde, na abertura de seu livro Reverie and Interpretation, Ogden procura enfatizar a importância da receptividade inconsciente do analista para a vida inconsciente do analisando: "Uma receptividade inconsciente desse tipo envolve (parcialmente) abrir mão da individualidade separada em nome de um terceiro sujeito, um sujeito que não é nem o analista nem o analisando, mas uma terceira subjetividade inconscientemente gerada pelo par analítico" (p. 9).

Mas, vamos voltar ao texto de 1994, destacando a importância da noção kleino-bioniana de Identificação Projetiva e o uso que Ogden faz dela, nesse momento de sua obra. A identificação projetiva passa a ser compreendida como "uma dimensão de toda intersubjetividade, às vezes como qualidade predominante da experiência, outras somente como um sutil pano de fundo (subtle background)" (p. 99). As dimensões mais complexas e conflitivas do campo analítico são reafirmadas: "Na identificação projetiva há um colapso parcial do movimento dialético da subjetividade e intersubjetividade individuais" (p. 106). Ogden insiste que em "um processo analítico bem sucedido envolve a superação do terceiro e a reapropriação das subjetividades (transformadas) pelos participantes como indivíduos separados (e, ainda assim, interdependentes)" (p. 106). Para ele isso se dá "por via de um mútuo reconhecimento que, muitas vezes, é mediado pela interpretação, por parte do analista, da transferência-contratransferência e o uso que o analisando faz da interpretação do analista" (p. 106). Aqui encontramos os traços da influência de Hegel pela concepção da necessidade de um mútuo reconhecimento como parte decisiva das mudanças almejadas em um processo analítico.

Mas os problemas enfrentados por Reik em seu livro, de 1948, também parecem fazer eco nas preocupações de Ogden. O problema que se apresentava ao analista como o da diferenciação entre suas próprias reações emocionais, os elementos que pertenciam exclusivamente à sua própria subjetividade, daqueles que eram despertados nele pelo analisando, recebe agora uma solução fundamentalmente diferente das que podem ser identificadas em outros autores: "Tanto na relação entre a mãe e o bebê quanto na relação entre o analista e o analisando, a tarefa não é desembaraçar os elementos constitutivos da relação, num esforço para determinar que qualidades pertencem a cada indivíduo que participa dela" (p. 64). Para Ogden (1994), ao contrário, "do ponto de vista da interdependência entre sujeito e objeto, a tarefa analítica envolve uma tentativa de descrever o mais completamente possível a natureza específica da experiência de interjogo da subjetividade individual e da intersubjetividade" (p. 64).

Distante de uma concepção do trabalho terapêutico pensado apenas a partir da dimensão relacional do encontro (como nas terapias existenciais humanistas), Ogden (1997) mantém uma das marcas da situação analítica clássica (a assimetria entre analista e analisando), já que, para ele, o terceiro analítico "não é um evento único, experimentado de forma idêntica por duas pessoas; é, ao invés disso, um agrupamento de experiências intersubjetivas conscientes e inconscientes vividas e estruturadas conjuntamente, mas de forma assimétrica...". (p. 110) De um ponto de vista realista e/ou empírico, ainda que a situação analítica nunca deixe de ser a situação de dois sujeitos separados e distintos, em comunicação um com o outro, o que Ogden nos propõe é que abandonemos esse ponto de vista em nossa tentativa de compreender os fenômenos analíticos. O que para outros autores poderia ser pensado como sentimentos e pensamentos comunicadosde forma inconsciente, ou induzidos inconscientemente pelo analisando no analista, Ogden descreve como sentimentos e pensamentos que são simplesmente sentidos e pensados pelo terceiro sujeito intersubjetivo.

A situação analítica, como um todo, é modificada quando se passa a considerar a criação do terceiro: analista e analisando não existem mais puramente como sujeitos isolados, passando a constituir-se a partir da relação dialética (ou seria melhor dizer, suplementar - como sugere Derrida - ou então, de uma dialética sem síntese, como propõe Merleau-Ponty a partir de Heráclito de Éfeso) entre subjetividade e intersubjetividade. E essa relação dialética é uma relação de mútua constituição, onde não faz sentido falar em comunicação ou em qualquer forma de relação entre polos puramente exteriores um ao outro. Na experiência do terceiro analítico estão em jogo "formas simbólicas e proto-simbólicas (baseadas em sensações) atribuídas à experiência não articulada (e muitas vezes ainda não sentida) do analisando, quando estas estão ganhando forma na intersubjetividade do par analítico (no terceiro-analítico)" (1994, p. 82).

Avançando um pouco mais, Ogden (1994) sugere que "a apropriação do espaço intersubjetivo pelo bebê representa um passo crítico no estabelecimento da capacidade do indivíduo de gerar e manter as dialéticas" (p. 60). Quando Ogden (1994) afirma que a partir de certo momento do desenvolvimento há uma "apropriação do espaço intersubjetivo" por parte do bebê, ele sugere que a constituição da subjetividade nunca termina e que a dialética entre subjetividade e intersubjetividade nunca se interrompe. O mesmo vale para o processo analítico: "O término de uma experiência psicanalítica não é o fim do sujeito da psicanálise. O sujeito se apropria da intersubjetividade do par analítico e a transforma num diálogo interno" (p. 47).

A ênfase clínica do pensamento de Ogden ganha um contraponto no pensamento com estilo mais metapsicológico de Green. As fontes de inspiração comuns são Winnicott e Hegel. De forma distinta, aspectos da concepção dialética de Hegel aparecem, como vimos, nas proposições de Ogden (a dialética entre as distintas subjetividades de analista e analisante gerando o terceiro sujeito analítico), mas também nas de Lacan e Green, que se apropriaram de alguns aspectos do pensamento hegeliano sobre o terceiro7. Vale, no entanto, recordar que, principalmente para os autores franceses, o pensamento de Hegel chegou pela leitura de A. Kojève; leitura esta que está longe de produzir unanimidade entre os historiadores e comentadores da obra de Hegel. Mas se Green precisou passar por Lacan (e também em menor escala por Bion) para chegar à sua concepção de um terceiro psicanalítico, Ogden, como vimos, também precisou passar por Bion, (e em menor escala por Lacan).

 

5. André Green e a noção de terceiridade

Talvez mais do que em outros temas abordados em sua obra, a noção de terceiridade tenha colocado André Green diante da necessidade de diferenciar suas posições das de Lacan. Assim como Lacan, Green recorre às ideias de Charles Peirce para introduzir a sua ideia de um terceiro, mas o faz para se libertar da concepção de linguagem de Lacan: "Peirce permitiu com que fosse possível pensar a relação da linguística com a semiologia, nos auxiliando a sair do confinamento no qual Lacan nos havia mantido sequestrados e nos permitiu estender a reflexão, para além da linguagem como sistema de representações de palavra, à semiologia incluindo igualmente a representação de coisa" (2002, p. 265). A força da noção peirceana do interpretante como o terceiro, que não é a pessoa que interpreta, mas um elemento constitutivo do signo, assim como a inclusão das dimensões instintivas e dos sentimentos na teorização de Peirce fez com que Green encontrasse aí a formulação adequada para sua ideia de terceiridade. Para Peirce, a concepção triádica do signo se configura resumidamente da seguinte forma: a terceiridade é o que traz a primeiridade, ou seja, as qualidades emocionais, instintivas e as percepções de indiferenciação, para a interação com a secundidade, ou seja, as qualidades da dualidade, da separação e do conflito; interação essa realizada por meio do pensamento e de sua capacidade de estabelecer leis e generalizações, ou seja, a ação do signo, sua força interpretante (a terceiridade).

Comentando o desenvolvimento teórico de Green, Fernando Urribarri (2011) sugere que há em sua obra, a partir dos anos 908 do século passado, a construção de uma "teoria psicanalítica da terceiridade,concebida como matriz geral do sentido. Trata-se de um eixo meta-conceitual que se apropria da semiótica de Peirce para articular as noções 'terciárias' de Green: do modelo de base da simbolização 'ligamento-desligamento-religamento' e dos 'processos terciários', à 'teoria da triangulação generalizada do terceiro substituível'" (p. 20). Ainda na visão de Urribarri (2012), "a Terceiridade, mais do que uma noção, é um eixo conceitual ou um meta-conceito" (p. 156). Para fundamentar essa posição ele cita o próprio Green (2002): "Prolongando as reflexões de Lacan, dei-me conta de que as relações triangulares tinham sido arbitrárias e, negligentemente, restringidas ao complexo de Édipo. Mais do que a função, tratava-se da metáfora paterna. Foi então que a obra de C. S. Pierce me trouxe uma luz decisiva, através da sua noção de relações triádicas, que desemboca no conceito mais geral de terceiridade. Tentei aplicá-la a ideias que havia expressado, sem referir-me a uma teoria em particular e a casos que não havia analisado sob esse ângulo" (p. 250). Para Urribarri (2012) "Green fala de 'configurações da terceiridade', nas quais podemos observar a natureza triádica das relações. Nesse marco, podemos colocar triângulo Edípico (Freud), a tríade Imaginário-Simbólico-Real (Lacan) e os fenômenos transicionais (Winnicott)" (p. 156-157). Sob certo aspecto, no entanto, Green parece enfatizar a ideia do terceiro como uma ausência (que como ele diz é uma situação intermediária entre a presença e a perda). O terceiro, que é uma sombra invasiva, participa do movimento da dualidade desde seu início. Para Green, qualquer dualidade comporta, desde seu início, um terceiro (a relação mãe-bebê sempre traz uma função paterna, ainda que como representação no psiquismo da mãe). É o triângulo aberto com o terceiro substituível, o outro do objeto, que pode ser o pai, um tio, um irmão, compondo a relação com a dupla mãe-bebê. (Green, 1981). Mas, como indica Talya Candi (2010), "o verdadeiro problema (...) não é o trajeto que leva da díade à tríade, mas sim a passagem dos três potenciais (quando o pai está unicamente no pensamento materno como vínculo amoroso da rêverie) a uma terceiridade real, onde cada parceiro pode ser percebido distintamente" (p. 138). E aqui o terceiro pode ser condição de possibilidade de novos caminhos para a subjetividade da criança ou então ser vivido como impedimento da completude dual originária. Já, mais para o final de sua obra, Green passa a falar em estrutura ternária (structure ternaire), que compreende o sujeito, o objeto e o outro do objeto.

Green procurará pensar uma história da noção do terceiro em psicanálise, principalmente, a partir de Freud e de Winnicott (assim como o fez Ogden). Apoiado na concepção winnicottiana de simbolização, Green insiste que a reunião das partes separadas (base da noção de símbolo) jamais será a reedição ou a reconstrução da unidade primordial perdida, será, necessariamente, a criação de um terceiro elemento, que é diferente das duas partes separadas e depois reunidas (GREEN, 2004, p. 107). Além da dimensão espacial presente nessa concepção, deve-se acrescentar a dimensão temporal (a forma de religação entre duas experiências que ocorreram em momentos distintos). Para Green, a dimensão simbólica da linguagem se encaixa nesse ponto e, assim, a potência interpretativa em uma situação analítica sustenta-se na possibilidade de religar, por exemplo, o aspecto subjetivo ao aspecto objetivo de uma experiência, gerando a produção de sentido. A partir dessa ideia de símbolo e da concepção freudiana dos movimentos pulsionais (ligação - pulsão de vida e desligamento - pulsão de morte), Green propõe o modelo 'ligar-desligar-religar' como um dos marcos iniciais da formação da sua noção de terceiridade. Aqui, por meio dessas modalidades de relação/não relação, Green passa a explorar formas de trabalho clínico pensadas a partir da relação dupla de transferência, a transferência sobre a palavra e a transferência sobre o objeto. Com isso, configura um modo para se pensar o espaço clínico em sua dimensão transformacional apoiado, justamente, nas formas de ligação e mediação entre processos primários e processos secundários efetuados pelo analista (os processos terciários). A noção de processos terciários, que Green (1972[1995]) define como "o processo que coloca em relação os processos primários e os processos secundários de tal modo que os processos primários limitam a saturação dos processos secundários e os processos secundários aqueles dos processos primários" (p. 152) tem caráter primordial em sua obra. Ele insiste que é necessário ir além de Freud para conseguir apreender, conceitualmente, a complexidade da situação analítica, em particular, a constituição dos processos de ligação efetuados no espaço analítico.

Por fim, como já indiquei, para Green a terceiridade é uma noção fundamental na teorização psicanalítica, que veio em resposta ou em oposição ao predomínio das relações duais como base para todo pensamento psicanalítico, que se instalou a partir dos anos 40 do século passado, com a ênfase nos estudos das relações mãe-bebê e o foco nos estudos do assim denominado período do desenvolvimento psíquico "pré-edípico". Por isso, para ele, dois já é sempre três. Entendo, que na obra de Green, a noção de terceiridade ocupa um lugar central na concepção metapsicológica sobre a constituição subjetiva e no estudo dos distúrbios psicapotológicos, principalmente das não-neuroses. Interessado na clínica dos estados limites, na clínica de pacientes graves, Green organiza um pensamento clínico que procura dar conta dos distúrbios na dimensão narcísica-identitária e para isso a noção de terceiridade será fundamental. Como já sugeriu Octavio Souza (2013), "[Green] acompanha as propostas pós-freudianas de modificação do método analítico para o tratamento dos quadros de não-neurose, mas valoriza, desenvolvendo as intuições de Winnicott e Bleger, a função do enquadramento analítico, função que introduz a dimensão do terceiro na compreensão da relação analista-analisando, compreensão esta tradicionalmente formulada pelos autores pós-freudianos nos termos mais duais da relação de objeto e da contratransferência. Nesta trilha, valoriza a importância da construção psicanalítica e da participação imaginativa do analista para a simbolização das experiências traumáticas das falhas objetais" (p. 167-168). Nesse contexto, a noção de terceiridade de Green encontra o terceiro analítico de Ogden. É no espaço clínico, nos embates para fazer frente às demandas dos casos difíceis, que tanto Green como Ogden fazem aparecer a maior importância da noção de um terceiro.

 

6. Considerações finais

É evidente que tanto Green como Ogden trazem a noção do terceiro em psicanálise para um patamar de grande complexidade teórica. Para além das diferenças que caracterizam suas respectivas posições, há que se reconhecer a influência de suas ideias no conjunto das práticas psicanalíticas contemporâneas. Assim, para finalizar, quero reordenar, em quatro dimensões, as oito figuras do terceiro que apresentei no início desse artigo, procurando dar ênfase a elementos que, em minha opinião, são centrais nas construções de Ogden e Green. São dimensões ao mesmo tempo conceituais e clínicas, na medida em que comparecem como possibilidades do funcionamento do terceiro na dinâmica transferencial-contratransferencial.

Uma primeira dimensão é a do entre. O terceiro, nesse caso, funciona como elemento, seja de separação, seja de (re)ligação. É a condição inaugural, a função primeira de um terceiro, que abre em dois o que psiquicamente funcionou como uma unidade indiferenciada e permite a triangulação. A segunda dimensão é a do terceiro como suplemento ou como ausência. É uma função constitutiva da triangulação precoce, que coloca limite na saturação dos elementos constituintes da dualidade, mas não é um entre, é mais uma potência ausente que produz efeitos tanto nas dimensões intrapsíquicas de analisando e analista, como no campo formado em uma situação analítica. Classicamente, o terceiro aparece como o elemento ausente que configura uma presença psíquica constitutiva do campo. A próxima dimensão da terceiridade é quando ela pode ser concebida como a condição de possibilidade da dualidade primária. Ou seja, o terceiro nesse caso é constituinte da dualidade, é a condição originária, uma espécie de indiferenciação primária, que possibilita a emergência das singularidades de analista e analisando no campo analítico. Por fim, a quarta dimensão é a do terceiro como resultante da dinâmica entre os dois elementos primários, é o efeito ou a consequência da dinâmica. Neste último caso, o terceiro é o produto, é o que se cria a partir da dinâmica entre analisando e analista no campo analítico, são as transformações produzidas no campo. As duas últimas dimensões são muito evidentes na noção do terceiro analítico de Ogden, formando o que ele denomina de uma dialética entre as subjetividades e a intersubjetividade, característica central de seu terceiro sujeito analítico. As duas primeiras estão mais presentes nas posições de Green e nas formas como ele concebe a constituição subjetiva e seus impasses. Evidentemente, cada uma das formas de constituição subjetiva e das dificuldades desta constituição que determinam diferentes formações psicopatológicas são elementos fundamentais na compreensão de Green sobre as modalidades de atuação do analista, nas diferentes situações clínicas formadas com cada analisando. Mas, como as quatro dimensões apresentadas não são mutuamente excludentes, acho que podemos pensá-las como funções simultâneas, presentes em nossa prática e teorização psicanalíticas ora com ênfase maior em uma, ora em outra.

Portanto, mais do que apenas contribuições teóricas criativas e potentes, as noções de terceiridade de Ogden e Green possuem grande pregnância clínica. E aqui se abre a mais fascinante de todas as aventuras inspiradas pelas obras dos dois autores, ou seja, a aventura de fazer, a cada novo encontro clínico, um trabalho de invenção e renovação que sustente a fertilidade da psicanálise contemporânea.

 

 

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Artigo recebido em: 23/11/2014
Aprovado para publicação em: 26/08/2014

Endereço para correspondência
Nelson Ernesto Coelho Junior
E-mail: patnelco@uol.com.br

 

 

*Psicanalista, prof. doutor Instituto de Psicologia/USP (São Paulo-SP-Brasil).
1Cf. The psychoanalytic quarterly. The third in psychoanalysis, v. LXXIII. #1, January, 2004, New York; e Revue Française de Psychanalyse. Le tiers analytique. Tome LXIX. # 3, Juin, 2005. Paris: P.U.F.
2Cf. Rickman, J, (1951). Rickman propõe uma sequência que vai da "Psicologia de um corpo" (modelo da psicologia geral clássica, com ênfase no estudo dos processos de memória, percepção e aprendizado) até a "Psicologia de múltiplos corpos" (relações grupais), passando pela "Psicologia de dois corpos" (relação mãe-bebê), "três corpos" (modelo do complexo de Édipo) e "quatro corpos" (a rivalidade entre irmãos no contexto do complexo de Édipo).
3Cf. Coelho Junior, N. e Figueiredo, L. C. (2003), Patterns of intersubjectivity in the constitution of subjectivity: dimensions of Otherness, In: Culture and Psychology. Vol. 9, Num. 3.London: Sage Publications, p. 193-208.
4Cf. Reis, B. (1999), Thomas Ogden's phenomenological turn, Psychoanalytic Dialogues, 9 (3): p. 3371-393.
5Precisamos também lembrar aqui da carta de Freud a Groddeck, de 5 de junho de 1917: "É sabido que o Inconsciente ( Ubw) é o elo/mediação autêntico(a) ( richtige Vermittlung) entre o corporal ( Körperlichen) e o anímico ( Seelischen), talvez o tão esperado missing link." (p. 317-318). Ou seja, a estrutura da metapsicologia, nesse caso, é pensada levando em conta três elementos, sendo o inconsciente o terceiro, que é ligação e mediação.
6Cf. Naffah Neto, A. (1993), O terceiro ouvido - Nietzsche e o enigma da linguagem, Cadernos de Subjetividade (Revista do Núcleo de Estudos e Pesquisa da Subjetividade, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP), v. 1, n.2, set./fev. 1993, p. 151-6.
7Cf. Macdonald, M (2014) Hegel and Psychoanalysis: a new interpretation of "Phenomenology of Spirit". New York: Routledge, em particular o capítulo 3, Negation, binding and thirdness: The André Green - Hegel Couple.
8Em uma das retomadas de seu percurso, que foram recorrentes nos dez anos finais de sua vida, Green (2002, p. 265) sugere que tomou consciência da noção de terceiridade relativamente tarde em seu percurso psicanalítico (1989, texto De la tercéité, publicado no volume Les Monographies de la Revue française de psychanalyse).

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