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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.37 no.32 Rio de Jeneiro June 2015

 

ARTIGOS

 

A linguagem dos gestos e dos corpos: o silêncio na perspectiva clínica de Sándor Ferenczi

 

The language of gestures and bodies: silence in the clinical perspective of Sándor Ferenczi

 

 

Sergio Gomes da SilvaI, II*

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil
IICírculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do presente artigo é analisar o silêncio na clínica psicanalítica, com base nas contribuições do principal herdeiro teórico de Freud, Sándor Ferenczi. Para isso, o autor parte das considerações metapsicológicas do psicanalista húngaro para investigar os referentes do silêncio, pontuado em seus escritos como resistência, censura, recalque e transferência/contratransferência. São também investigadas as inovações teórico-clínicas de Ferenczi, fundamentadas na descrição da linguagem dos gestos e dos corpos em sua relação com a técnica ativa, elasticidade da técnica, relaxamento, neocatarse e o tato do analista. Considera-se que Ferenczi foi o primeiro autor a tentar problematizar o silêncio na psicanálise, compreendendo-o como uma linguagem e uma comunicação, além de manejá-lo tendo por referência os afetos vividos na dupla analítica.

Palavras-chave: Silêncio, comunicação, linguagem dos gestos, linguagem dos corpos, Ferenczi.


ABSTRACT

This study aims at analyzing silence in the psychoanalytic practice as far as the contributions of the main theoretical heir to Freud, Sándor Ferenczi, are concerned. To this purpose, the author examines the referents of silence, in the metapsychological considerations of the Hungarian psychoanalyst, such as: resistance, censorship, repression and transference/countertransference. In addition, the author investigates Ferenczi’s theoretical and clinical innovations regarding the description of the language of gestures and bodies as it relates to the active technique, elasticity technique, relaxation, neocatharsis and the analyst’s tact. Ferenczi is considered to be the first author who tried to problematize silence in psychoanalysis, assuming it as language and communication, as well as managing it from the perspective of the affections experienced by analyst and patient.

Keywords: Silence, communication, language of gestures, language of bodies, Ferenczi.


 

 

Falar é imitar. O gesto e a fala (voz) imitam objetos do mundo circundante (Diário clínico, FERENCZI).

Introdução

Desde o início dos primeiros casos clínicos, Freud incitava seus pacientes a verbalizarem seus pensamentos, memórias ou lembranças, sem nenhuma censura, na tentativa de não deixar escapar nada. Eles tinham que dizer tudo, absolutamente tudo, sem esconder nada do seu médico, a mais simples ideia, palavra ou imagem, seja durante o estado de vigília, seja durante o sono através dos sonhos. Essa fórmula constituiu o "imperativo de dizer tudo" e a "regra de ouro" da psicanálise. Mas, aos poucos, Freud se deparou com a recusa dos pacientes a lembrarem de algo, ou, então, nada vinha a suas mentes e estes silenciavam, fazendo com que o médico vienense empreendesse todos os artifícios para driblar essa situação.

Com um tratamento centrado eminentemente na palavra e Freud como um incansável pesquisador do mundo inconsciente, ele logo se deparou, inúmeras vezes, com o não verbalizável, não dito, não comunicável, ao tratar dos males da alma daqueles que chegavam ao seu consultório. Ao mesmo tempo, para que pudesse alcançar o inconsciente dos pacientes, Freud recorria ao seu silêncio, com uma escuta profunda, atenta, investigadora, questionadora.

Com efeito, a regra de ouro da psicanálise nunca foi explicitamente anunciada por Freud, malgrado encontrarmos, em seus escritos técnicos e casos clínicos, indicações de como o médico vienense se comportava diante dos seus pacientes. Pelos seus próprios relatos e de seus herdeiros teóricos, sabemos que os analistas vienenses eram muito pouco silenciosos e passavam ao largo da neutralidade recomendada pelo mestre. A incitação ao discurso era uma característica daquele grupo de analistas pioneiros, que desenvolveram algumas de suas ideias, não só no que se refere à metapsicologia como no manejo do silêncio durante uma sessão de análise.

Deste seleto grupo, Sándor Ferenczi foi aquele com quem Freud estabeleceu um franco diálogo por meio de artigos, mas também desenvolveu e contribuiu para o cenário psicanalítico com sua sensibilidade clínica. Naquele instante em que a psicanálise se firmava nos diversos círculos, Freud era a teoria e Ferenczi era a prática clínica. Ele era conhecido como o teórico da clínica e suas construções sobre a técnica foram extremamente sofisticadas, ao ponto de ir às últimas consequências, o que tornou sua clínica singular (PINHEIRO, 1996).

Se Freud deu pouca atenção teórica ao advento do silêncio produzido numa sessão de análise, Ferenczi foi um dos primeiros a questionar o seu valor para o paciente e para o analista. Com isso, entre seus herdeiros, Ferenczi foi o mais prolífero dos psicanalistas em sua prática clínica e aquele que prestou mais atenção ao que era interdito, silenciado ou não verbalizado numa sessão de análise. Assim, o objetivo do presente artigo é analisar o silêncio a partir das suas contribuições teórico-clínicas.

 

"O silêncio é de ouro"

Apesar de o tema em questão não ter sido objeto de estudo e pesquisa ao longo de sua obra, é possível verificar em Ferenczi um duplo estatuto no que se refere ao silêncio: de um lado, a exemplo de Freud, o autor vai tratá-lo como um epifenômeno da transferência, do recalque e da resistência, podendo seguir por dois caminhos distintos: ou precisará ser eliminado para a boa execução do trabalho de análise por meio do manejo da técnica, na qual o analista é mais ativo na sessão, ou será usado como recurso do próprio analista para provocar as ansiedades do paciente, diminuindo sua resistência. De outro lado, o silêncio pode ser compreendido como parte do desenvolvimento da libido e em termos de pulsões. Em ambos os casos, o enfant terribleproporá um trabalho de escuta diversificado por meio de uma "técnica do silêncio" a partir do acolhimento das demandas do paciente, e de uma "ética do cuidado" para com o sofrimento de seus pacientes. Vejamos como isso se deu.

De acordo com Pellegrino (1988), uma das ideias mais originais de Ferenczi foi operar um deslizamento da concepção tópica para uma concepção mais dinâmico-econômica no que se refere à compreensão das neuroses. A fórmula "tornar consciente o inconsciente" estaria subsumida à dinâmica da resistência, decorrente da relação transferencial entre o médico e o paciente. Nesta relação, haveria um deslocamento do afeto produzido pela transferência cujo silêncio, quando se fizesse presente, poderia ser interpretado singularmente, ora como recalque, ora como satisfação da pulsão sexual. Em termos de manejo, a técnica adotada seria sempre revelar ao paciente, por meio de interpretações graduais dos conteúdos inconscientes, o sentido latente do silêncio produzido na sessão.

O que são essas transferências, pergunta-se Ferenczi, logo de início? Retomando Freud, ele responde: são "reedições, reproduções de tendências e de fantasmas que a progressão da análise desperta e deve trazer de volta à consciência, e que se caracterizam pela substituição, na pessoa do médico, de pessoas outrora importante" (FERENCZI, 1909/1991, p. 77).

A maior dificuldade no manejo da técnica psicanalítica nestes casos, diz o autor, é lidar com a força dos sentimentos transferidos pelos neuróticos para o analista. Uma vez familiarizado com o psiquismo do seu paciente, é possível identificar que esses sentimentos não aparecem apenas durante o curso de uma análise: "a transferência apresenta-se como um mecanismo psíquico característico da neurose em geral, que se manifesta em todas as circunstâncias da vida e abrange a maior parte das manifestações mórbidas" [grifos do autor] (FERENCZI, 1909/1991, p.78) e que, por consequência, será sustentada pela posição libidinal do sujeito.

Para Ferenczi, a linguagem dos neuróticos é composta de uma gama de representações simbólicas de sentimentos e emoções que eles ainda não sabem "ler" ou "interpretar"; são como analfabetos frente a essa linguagem e precisam da ajuda do analista para traduzi-la. Além disso, seus desejos inconscientes e inconfessáveis, rejeitados pela consciência, reivindicam explicações diante do enigma que se apresenta na rede linguística que vai sendo tecida, apropriando-se de sintomas antes impensados e se aferrando a eles tal como uma criança se apropria de um brinquedo. Os afetos despertados nesse movimento são recalcados por algum motivo, vindo a se chocar com a pessoa do médico que, neste momento, funciona como um agente catalizador dos afetos ab-reagidos e liberados por meio da transferência (FERENCZI, 1909/1991).

O autor também estabelece uma relação intrínseca entre transferência e introjeção, afirmando que o silêncio é uma manifestação pulsional específica de cada estrutura clínica. Nos neuróticos, por exemplo, os afetos recalcados são introjetados, ou seja, vão para dentro do seu mundo psíquico, pois eles estão em busca constante de objetos de identificação, encontrando na transferência uma possibilidade de dar vazão a esses afetos. Eles se esforçam por absorver em seu eu (ego) uma parte do mundo para fazer dele objeto de suas fantasias inconscientes, de modo a aplacar os desejos inconscientes insatisfeitos e impossíveis de serem satisfeitos.

Quando o silêncio se faz presente, é necessário identificar de qual tipo de silêncio se trata para que se possa compreender o tipo de afeto que está em questão e não apenas considerá-lo como um efeito de resistência ao tratamento ou da ação de recalque impedindo a cura. Conforme afirma Pellegrino (1988), "a transferência é a classe das introjeções que, numa análise, toma como objeto a pessoa do médico" (p. 187). De acordo com essa autora, esses mecanismos interferem logo cedo no desenvolvimento das relações entre o indivíduo e o mundo exterior, pois os sentimentos de amor e ódio expostos numa análise são sentimentos autoeróticos prazerosos e desprazerosos vividos em termos de "objetos de amor e ódio", motivo pelo qual a interpretação ferencziana da transferência será formulada em termos de relações fantasmáticas entre o eu e os objetos bons e maus, exteriores e interiores (PELLEGRINO, 1988, p. 187). Portanto, Ferenczi é um dos primeiros analistas a apontar a importância das primeiras relações de objeto, de amor e de ódio, tanto na análise quanto na hipnose, a partir do fenômeno da transferência.

No texto A técnica psicanalítica(FERENCZI, 1919/1992), ele volta ao tema da resistência e nos recorda da regra fundamental da psicanálise formulada por Freud. Segundo o autor, em pacientes obsessivos, o desejo de permanecer calado ou de falar algumas ideias absurdas pode se fazer presente no decurso de uma sessão. Neste caso, a interpretação dada não será outra senão a de um sinal de resistência, a exemplo de Freud. Até aqui, ambos os autores não diferem quanto ao gênero, número e grau dos processos que atuam neste momento da análise; o denominador comum que os une ainda será o trinômio resistência-transferência-recalque. Mas o que fazer se "nada ocorre" no momento em que o sujeito se coloca diante da regra fundamental, onde nem mesmo sons articulados, palavras inteiras, gritos ou melodias, ao invés de palavras, chegam ao espírito? Neste caso, a orientação é a de continuar a esboçar da melhor maneira possível um pensamento coerente com o que se exigiu do paciente. No entanto, ele prossegue,

Isso pode acontecer sem qualquer razão particular. Se o paciente permanece calado por bastante tempo, isso significa em geral que ele calaalguma coisa. O súbito silêncio do paciente deverá sempre ser interpretado, portanto, como sintoma "passageiro". Um silêncio prolongado explica-se muitas vezes pelo fato de que a demanda do dizer tudoainda não foi tomado ao pé da letra. Se interrogarmos o paciente, após uma longa pausa, sobre o conteúdo de seus pensamentos durante esse silêncio, ele responde que estava olhando para um objeto no gabinete, ou experimentando uma sensação esquisita ou uma parestesia nesta ou naquela parte do seu corpo, e assim por diante [grifos do autor] (FERENCZI, 1919/1992, p. 358).

Para Ferenczi restaria explicar, novamente, a regra fundamental da psicanálise para o paciente e enfatizar que aquilo que interessa ao médico não é apenas os seus pensamentos, mas suas percepções sensoriais, sentimentos e impulsos de modo a vencer suas resistências. Mesmo recebendo essa nova orientação, a resistência em análise não se desfaz rapidamente como um passe de mágica, posto que o paciente sempre encontrará uma forma de recair na sua própria armadilha diante das ordens do analista, racionalizando seu silêncio e sucumbindo às suas reticências. "Alguns, por exemplo, dizem que se calaram porque não tinham pensamentos claros, apenas sensações vagas e confusas. Eles demonstram assim, naturalmente que ainda criticam suas ideias, apesar da recomendação que lhes foi feita", enfatiza o autor (FERENCZI, 1919/1992, p. 359).

Tudo é motivo para ser analisado e tudo é conteúdo para se conseguir superar, dissolver e remover as resistências do paciente. Se esse comportamento se mantém, a interpretação dada é a de que haveria algo no inconsciente do paciente que impede que o trabalho de análise seja levado a cabo, necessitando-se opor o silêncio do analista ao silêncio do analisando. Muitas vezes, a alternativa adotada pelo analista é o prolongamento do silêncio durante toda a sessão sem que ambos digam uma só palavra, produzindo no paciente uma angústia insuportável ou tensão, nas palavras do autor. Quando isso ocorre, o paciente dificilmente suportará o silêncio imperativo que se presentifica, despertando-lhe sentimentos de tristeza, mágoa, rancor, raiva, ódio, temor ou vingança. O analisando, assim, projetará na figura do médico sua má consciência, levando-o a ceder e a renunciar ao seu negativismo diante da regra fundamental (FERENCZI, 1919/1992).

Ora, Ferenczi é guiado por um imperativo, qual seja, o imperativo ético. De acordo com Costa (1995a, p. 9-11), o que podemos fazer diante do desamparo do paciente, o que podemos fazer com quem sofre e não pode ou não consegue saber do que sofre, o que podemos fazer quando dependemos eminentemente da linguagem para conseguirmos ser o que somos, embora venha dela o que nos tranquiliza? Resposta do autor: uma vez que o ego é um efeito da linguagem, ela pode ou não fazer sentido, e, sendo ou não linguagem, tendo ou não sentido, tem de se tornar causa linguística para poder funcionar e ser reconhecida como causa inconsciente dos sintomas. Desse modo, é possível e preciso interpretar o silêncio do paciente cada vez que ele se faz presente em um processo de análise. Cabe ao analista a sua sensibilidade diante do silêncio do paciente, para que possa acolhê-lo e interpretá-lo, e assim fazendo, intuitivamente possa devolver as suas impressões sobre o que foi percebido diante daquele nada dizer:

O papel do silêncio em relação à maneira de falar e de associar do paciente é revelado a partir das seguintes operações: num primeiro momento, o analista aponta o silêncio, para destacá-lo do bloco de condutas consideradas "naturais" pelo paciente, a fim de transformá-lo em objeto de observação. Num segundo tempo, o analista descreve-o de modo detalhado ao paciente, de acordo com a forma como ele aparece: por exemplo, ele mostra ao paciente que este se cala sistematicamente quando surge determinado assunto etc... Quando o paciente se torna capaz de apreender essas formas de conduta, o analista tentará torná-las compreensíveis a partir de sua biografia e dos sentimentos detectados no hic et nuncda seção. Desta forma, chega-se a captar, de um lado, os elementos históricos que determinam a utilização do silêncio e de outro, que sentido tem o silêncio na transferência. Se a reconstrução interpretativa é eficaz e adequada, o paciente acaba se dando conta do caráter inadequado do seu comportamento na situação, levando-o a uma re-libidinização dos elementos formais ego-sintônicos (...) mas de caráter defensivo (PELLEGRINO, 1988, p. 188-189).

Não raro, uma situação pode ser observada pelo analista: o surgimento no paciente de uma sensação de sonolência decorrente ou não do ódio, do sentimento de tristeza ou do sentimento de tédio, tal como descreve o autor: "Uma terrível sonolência invadia uma das minhas pacientes toda vez que a análise ia por um caminho desagradável; e isso se produzia mais quando os assuntos evocados eram de natureza a suscitar mais tristeza e inquietação do que ódio" (FERENCZI, 1912/1992, p. 188).

Com frequência, no decorrer da sessão analítica (no apogeu da resistência), alguns de seus pacientes se queixavam de sonolência e ameaçavam adormecer. Diziam que o tratamento era inútil, absurdo ou enfadonho. Ferenczi explicava-lhes o sentido dessa ameaça e o sono passava. Em outro exemplo dado pelo autor, isso aconteceu com um de seus pacientes ao adormecer independente das explicações do médico quanto à regra fundamental. Sem incomodá-lo, o analista esperou o paciente despertar do sono profundo que se abateu durante a sessão. De acordo com Ferenczi, o analisando sabia muito bem que seu objetivo era desqualificar o seu método de trabalho, ou seja, impedindo-o de falar durante a sessão. Essa forma particular de resistência fez com que ele compreendesse os motivos pelos quais seu paciente tivesse adormecido por cinco minutos, no decurso dos quais ele permaneceu calado, silencioso, vendo-o despertar com um sobressalto e continuar seu discurso de onde parou. Essa era uma forma particular de resistência que poderia se manifestar numa sessão (FERENCZI, 1914/1992, p. 135). Ao esperar o paciente retornar da sua letargia durante o sono e, ao compreender o que se passava na dinâmica da sessão, Ferenczi acolhe o silêncio do paciente sonolento para então dar continuidade ao trabalho de análise a partir do que ele traz no retorno à vigília.

Sono e silêncio, muitas vezes, podem não representar um movimento de resistência, e, sim, indicar que há algo no discurso do paciente ou do analista que não está progredindo, provocando outro fenômeno, qual seja, o tédio. O tédio não é um fenômeno raro e muito menos incomum no setting. Algumas vezes, ele pode se fazer presente por sessões enfadonhas, morosas, sem vida, produzindo sono tanto no paciente quanto no analista.

A ameaça de adormecer de tédio, formulada por alguns pacientes, tampouco nos deve perturbar; é certo que, em alguns casos, o paciente adormece efetivamente, por um breve instante, mas seu despertar rápido fez-me concluir que o pré-consciente se mantinha na situação do tratamento mesmo durante o sono. Portanto, o perigo de que o paciente durma durante toda a sessão não existe (FERENCZI, 1919/1992, p. 359).

Enganava-se o autor ao pensar que, durante anos de trabalho, seria impossível que algum de seus pacientes adormecesse durante toda a sessão. A questão não é a impossibilidade ou não de o paciente adormecer e sim que, nos anos em que a técnica psicanalítica ainda não estava totalmente desenvolvida, Ferenczi ainda não havia elaborado todas as críticas que faria à metapsicologia freudiana e ao trabalho clínico da análise, propondo inovações teóricas e práticas. Mesmo assim, após as proposições metapsicológicas de Freud, seguidas pelos seus herdeiros e acrescidas de suas contribuições, não era admissível deixar um paciente sonolento ao longo de toda uma sessão. Evocamos que, se neste instante, o silêncio constituído durante a sessão a partir do tédio e na forma de sono por parte do analisando, era insustentável para todo e qualquer analista que tinha, no discurso do inconsciente por meio da palavra, sua ferramenta de trabalho, como acessar o recalcado? Como transformar em consciente o inconsciente? Como e o que interpretar? Como eliminar os sintomas por meio da "cura pela fala" ou da "limpeza da chaminé"? Uma vez o paciente, estando dormindo ao longo de uma sessão inteira, não só haveria uma paralisia dos seus pensamentos inconscientes como uma paralisia do expediente de trabalho do analista. Sem palavras, não haveria análise e, sem análise, não haveria como transformar um material inconsciente em consciente, eliminar os sintomas e promover a cura. Era nesse sentido que o silêncio se constituía como um inimigo para a psicanálise clássica, desde os primeiros casos clínicos de Freud até as contribuições e inovações técnicas de Ferenczi.

De igual modo, o sentimento de tédio não é experimentado apenas pelo analisando, mas pode acometer o analista a partir do fenômeno da contratransferência:

Situaremos no capítulo da "contratransferência" o fato de que em certas sessões o médico também deixa passar as associações do paciente e só dá ouvidos a algumas de suas falas; pode-se produzir nesse caso uma sonolência de alguns segundos. Um exame ulterior leva-nos, em geral, a constatar que reagimos pela retirada do investimento consciente ao vazio e à futilidade das associações fornecidas nesse momento precioso; à primeira ideia do paciente relacionada, de algum modo, com o tratamento, estamos de novo atentos. Portanto, tampouco existe nenhum perigo de que o médico adormeça e deixe de prestar atenção ao paciente (FERENCZI, 1919/1992, p. 359).

Mais uma vez, enganava-se o autor quanto aos poderes encontrados no fenômeno da contratransferência. O sentimento de tédio revela aspectos da dinâmica psíquica de todo paciente que se encontra em análise, despertando no médico o mesmo tipo de sentimento. Se o tédio se faz presente e é traduzido em determinadas situações pelo sono por parte de um ou de outro na cena analítica, isso pode ser remetido ao empobrecimento do mundo interior do analisando, a um discurso patogenicamente mórbido, calcado na pulsão de morte ou até mesmo a uma forma de resistência particular por parte do paciente. Superar os fenômenos contratransferenciais só seria possível, diz o autor, a partir de mais trabalho de análise por parte do analista, sem o qual ele não teria como enfrentar a diversidade de sintomas e de fenômenos que surgiam ao tratar de seus pacientes.

No entanto, Ferenczi é imperativo no que se refere ao silêncio como sinônimo de resistência. Sem dar chance para que este tipo de silêncio se manifeste e objetivando, sobretudo, a "cura psicanalítica", o analista deve se colocar diante desta situação como um médico obstetra durante o trabalho de um parto que não é levado a contento, tal como descreve a seguir:

A situação do médico na cura psicanalítica lembra em muitos aspectos a do parteiro, que também deve se comportar, o tanto quanto possível, passivamente, limitar-se ao papel de espectador de um processo natural, mas que nos momentos críticos terá o fórceps à mão para terminar um parto que não progride espontaneamente (FERENCZI, 1919/1992, p. 362).

As palavras, diz Ferenczi, precisam ser retiradas a fórceps, precisam ser arrancadas à força pelo médico para que elas se façam presentes, para que a resistência seja superada. Com isso, o autor passa a considerar aquilo que viria a definir, dois anos mais tarde, como "técnica ativa", período que recobre os anos entre 1919 e 1926 no seu pensamento, provocado pela estagnação do processo de associação livre do paciente, ou seja, uma situação em que o médico intervém diretamente na experiência do paciente, ajudando-o na superação das resistências. O termo usado por Ferenczi para isso é a produção de um "parto de pensamento" (FERENCZI, 1921/1988, p. 183), cujo objetivo, diz o autor, é a educação do eu (ego) do paciente em termos de comportamentos passivo e ativo. No entanto, ele adverte os analistas iniciantes ou sem grande experiência, pois estes deveriam evitar tal procedimento na iminência de conduzir os pacientes a pistas falsas sobre seu próprio inconsciente, devendo seguir à risca a "regra de ouro" da psicanálise. Aqui, conforme podemos perceber, o autor ainda está seguindo os passos postulados por Freud em seus artigos sobre a técnica psicanalítica. Mas isso não foi adiante durante muito tempo.

Com efeito, a técnica ativa não designa apenas em uma intervenção enérgica por parte do médico na situação do paciente, mas também na observância da regra fundamental. Em determinadas circunstâncias o analista pode impor situações ao analisando para dar prosseguimento ao tratamento, tais como a renúncia a ações e sensações agradáveis na forma de excitações masturbatórias, estereotipias, tiques ou excitações em outras partes do corpo, de modo tornar possível o acesso à consciência a materiais mnésicos e dar prosseguimento ao curso da análise (FERENCZI, 1921/1988, p. 184-185).

Vejamos como isso ocorre, a partir de um exemplo dado pelo próprio autor: trata-se de uma jovem musicista croata que sofria de uma quantidade diversificada de sintomas fóbicos e temores obsessivos. A jovem tinha medo de tocar em público, ruborizava-se, tinha dificuldade de executar determinados exercícios em público, os quais eram perfeitamente executados quando se encontrava sozinha, inviabilizando suas apresentações. Durante uma determinada sessão, essa jovem lembra-se do refrão de uma canção popular que a irmã mais velha (que a tiranizava) tinha o hábito de cantar; em determinado momento, ao relatar o trecho da canção, cala-se e fica em silêncio durante bastante tempo. Ferenczi pede para que a moça cante a música durante esta e mais duas sessões, o que foi impossível; o analista insiste até que a jovem cede ao pedido e canta, não sem antes interromper o canto quando se lembra da estrofe que a irmã cantava, sentindo-se incomodada. Encorajada pelo analista, a musicista é ensejada a cantá-la mesmo assim, com voz cada vez mais forte até conseguir repetir o mesmo refrão do modo como a irmã cantava, inclusive com gestos, revelando-se não só uma excelente cantora como superando o desânimo ao atender ao pedido do seu médico.

Aqui, a sensibilidade e a capacidade intuitiva do analista húngaro se revelam na possibilidade de lidar com o silêncio de modo bastante diverso do seu mestre. Com a técnica ativa, Ferenczi não deixa de conceder ao silêncio um statusde resistência, mas produz no settingum expediente condenável por Freud em termos de técnica analítica: pôr em ato o fenômeno que impedia o acesso aos sintomas inconscientes, uma vez que, para Ferenczi, a psicanálise deveria ser libertária quanto ao nosso desejo. Dito em outras palavras, Ferenczi possibilitou à sua paciente um novo começo, uma capacidade de elaborar os afetos reprimidos sob forma de ato dentro do próprio setting e junto com o seu analista. Nada mais criativo para um analista não clássico! Para isso, não media esforços para inovar na prática clínica, incentivando alguns de seus pacientes a produzirem pensamentos e fantasias (FERENCZI, 1924a/1988) ou dissuadindo-os dessa tentativa, simulando sonhos por meio de "projetos de pensamento", ora driblando o abuso da atividade associativa, ora impedindo que os seus pacientes "falassem" ou "pensassem de lado", ou seja, produzissem um discurso vazio e sem sentido, que não levasse a lugar algum na análise (FERENCZI, 1921/1988, p. 189).

A técnica ativa só deveria ser usada na solidez da transferência e nunca no início do tratamento, visto que ela trabalha na contramão do princípio do prazer. Se nesse momento o analista fala e é mais imperativo, em outros deve permanecer mais silencioso, reservado e passivo para não perturbar a transferência nem interferir na possível resistência de seu paciente (FERENCZI, 1926/1988). Para Ferenczi, "atividade" é algo que só pode ser aplicado ao paciente ao invés do analista. Este, por si só, já é ativo durante suas intervenções, interpretações e construções junto ao psiquismo do paciente, ao promover o acesso à cadeia de associações livres (PINHEIRO, 1995).

Malgrado suas inovações sobre a técnica psicanalítica, haveria dois grandes perigos no uso da técnica ativa: primeiro, que o paciente se "cure rápido demais" e de "forma incompleta" decorrente de intervenções sucessivas (aqui o autor sugere moderação na quantidade de observações dirigidas ao seu paciente e na quantidade de interpretações dadas); segundo, o perigo de se exacerbar a resistência, impedindo a cura, e, pelo contrário, prolongando-a. A técnica ativa é na verdade uma forma particular de manejo na análise com o objetivo de incitar o paciente a certas atividades, inibições, atitudes psíquicas ou descarga de afetos, para que se consiga ter acesso ao material inconsciente ou mnésico, ou seja, um meio de alcançar o efeito catártico que Breuer e Freud conseguiam na época dos primeiros casos clínicos.

A técnica ativa assume consequentemente apenas o papel de agente provocateur, com suas injunções e interdições favorecendo as repetições que devem em seguida ser interpretadas ou reconstruídas em lembranças. (...) A técnica ativa não tem outra finalidade senão trazer à luz, pela ação, certas tendências ainda latentes à repetição e ajudar, assim, a terapêutica na obtenção desse triunfo talvez um pouco mais rapidamente [grifo do autor] (FERENCZI, 1921/1988, p. 192-197).

O que o psicanalista húngaro não prestou atenção é que, com a técnica ativa, o analista ressalta o conforto do analisando ou o prazer que este pode experimentar durante as sessões, provocando concomitantemente o soerguimento das defesas organizadas do paciente na medida em que o analista interfere na cadeia de associações livres. A técnica ativa pretendia incidir sobre esse prazer do paciente ao longo das sessões, o que fez com que Ferenczi criticasse, em 1924, certas regras que dizem respeito ao comportamento do analista que, a seu ver, poderia funcionar como um escudo protetor contra as defesas do paciente.

Ora, se a interpretação seria uma interferência ativa sobre o psiquismo do paciente, o analista só deveria usá-la de modo econômico e somente após uma avaliação cuidadosa do paciente. Ferenczi, então, produz uma guinada no seu pensamento, ao propor uma inovação em termos de técnica: "o tato do analista". No setting, o analista precisa de "tato" com seu paciente, ou seja, entender, compreendere estar atentoa tudo o que acontece durante a dinâmica psíquica e não se encostar confortavelmente em sua poltrona, pensando que, com uma ordem objetiva, fez todo o trabalho necessário e possível para o paciente. Com o "tato do analista", Ferenczi traz para o primeiro plano o poder de manejar o afeto (tanto do paciente, quanto do analista) por meio da transferência e da contratransferência.

A segunda inovação no seu pensamento se deu em 1928. Com a compreensão do "tato do analista" e fazendo uma dura crítica à posição que certos analistas ocupavam na análise de seus pacientes, Ferenczi abandonará a técnica ativa pela "elasticidade da técnica" psicanalítica. De acordo com o autor, o uso da técnica ativa não se refere a ceder à resistência do paciente. O que se busca é sentir com ele todos os seus caprichos, todos os seus humores, sem com isso perder-se no trabalho clínico (FERENCZI, 1928/1992, p. 36).

De acordo com Pinheiro (1995, p. 107), Ferenczi se deu conta de que a técnica ativa não lhe trouxe os objetivos que ele tanto buscava. Primeiro porque seu caráter autoritário não provocava a agressividade e hostilidade do paciente para com o analista por meio da transferência, pelo contrário, a técnica remetia o paciente de volta à cena traumática e a uma nova submissão com o agressor. Segundo, o material pesquisado com a técnica ativa sempre aparecia no curso da análise, e, se o analista soubesse esperar, acabaria se deparando com ele; o uso da técnica ativa reforçava a pressa do analista, o que só poderia lhe ser útil mais próximo ao fim de uma análise, permitindo ao paciente que resolvesse sua transferência, mas o efeito era justamente o contrário, ele identificava-se com o analista submetendo-o ao desprazer que lhe era imposto, aumentando ainda mais a sua ligação transferencial. Por sua vez, o conforto combatido pela técnica ativa, ao invés de desaparecer, permanecia, e, ao invés de surgir uma transferência negativa, material com o qual o analista trabalha, o que aparecia era um estado de docilidade do paciente frente ao seu analista. O conforto não pode ser um conforto nem para o paciente e nem para o analista. Se um deles está confortável nesse lugar, há algo errado nesse processo. Se o analista está confortável ao atender seu paciente ou se o paciente está se sentindo confortavelmente no atendimento com seu analista, algo precisa ser feito pelo primeiro para promover alguma mudança no tratamento do segundo. Sem isso, a análise estaria dada ao fracasso, ou dito em outras palavras, não haveria possibilidade de elaboração, nem diminuição das resistências e, consequentemente, não haveria a promoção da cura dos sintomas do paciente.

Assim, a elasticidade da técnica acabou prevalecendo sobre a técnica ativa. Com isso, Ferenczi pôde ressaltar o mundo interno do psicanalista, ou seja, aquele que se afeta e se deixa afetar pelo seu paciente, em oposição à neutralidade do analista recomendada por Freud. Repensando o lugar do analista, o settinge o que se passa dentro do seu mundo interno, Ferenczi proporá uma "metapsicologia do analista em sessão", rompendo com a ideia de neutralidade e passando a questionar o conforto do analista com seu paciente. Uma experiência analítica pode comportar qualquer coisa, menos a ideia de conforto. O lugar do analista, para o autor, não é apenas um lugar de escuta; pelo contrário, é também um lugar de promoção de atos ligados à estagnação libidinal do analisando, no qual o analista deve recolocar em movimento aquilo que a palavra interpretativa torna-se impossível (BIRMAN, 1996).

Contrário às proposições técnicas e à neutralidade freudiana, Ferenczi passa a se opor ao analista que se torna impermeável ao seu próprio psiquismo. Não era assim que uma análise funcionava. Para o analista húngaro, deveria haver uma sinceridade em relação a si próprio e ao paciente e só uma boa análise pessoal poderia produzir no analista essa sinceridade. Além disso, esse deve ser um exercício constante no analista, pois, com a elasticidade da técnica, ele tem condições de assimilar o interior dos fundamentos teóricos de sua prática clínica por intermédio da sua própria análise pessoal.

O procedimento que aplico e recomendo, a elasticidade, não equivale, em absoluto, a ceder sem resistência. Procuramos, é certo, colocar-nos no diapasão do doente, sentir com ele todos os seus caprichos, todos os seus humores, mas também nos atemos com firmeza, até o fim, à nossa posição ditada pela experiência analítica. (...) A única base confiável para uma boa técnica analítica é a análise terminada do analista. É evidente que num analista bem analisado, os processos de "sentir com" e de avaliação, exigidos por mim, não se desenrolarão no inconsciente mas ao nível pré-consciente (FERENCZI, 1928/1992, p. 36).

O tato do analista refere-se à capacidade dele em "sentir com" ou "ser como" o paciente, ou seja, representar o vivido do paciente - o que ia de encontro aos ditames do método criado por Freud. A elasticidade da técnica passou a ser o método usado por Ferenczi com determinados tipos de pacientes, os chamados casos mais difíceis, os tipos obsessivos, falso self, borderlineou personalidade narcísica (PINHEIRO, 1995; 1996). Foi a partir deste tipo de trabalho que ele passou a prestar mais atenção no silêncio na análise, constituindo o esboço de uma primeira teoria sobre o assunto enfatizando o manejo do silêncio e repensando a técnica psicanalítica. Dois dos seus pacientes lançaram luz sobre o fenômeno do silêncio na análise.

O primeiro deles era um paciente avarento em suas palavras, ou seja, comedido em falar, inibido em suas associações e prolixo durante algumas sessões. Ao ser chamado a atenção sobre o fato, o paciente lhe responde "o silêncio é de ouro, doutor". Essa associação deu ao psicanalista húngaro a oportunidade de explicar ao paciente a relação entre fezes e ouro (ou qualquer outro objeto de valor), mostrando-lhe como ele havia sido econômico na sua fala, do mesmo modo como ele provavelmente também era na sua relação com o dinheiro ou no trato intestinal. Para a psicanálise, Ferenczi explica, "o silêncio é de ouro" porque não falar representa em si uma economia, estabelecendo uma relação direta entre dinheiro, ouro e fezes. A psicanálise, desde Freud (1908/1996), já havia traçado esta relação por meio do erotismo anal e determinados traços de caráter, sobretudo aqueles que têm relação com a fala. Por exemplo, o próprio Ferenczi (1911/1991) já havia exposto a possível relação existente entre a vocalização e o erotismo anal em um texto sobre as palavras obscenas, ao passo que Jones (1918) ventilou a hipótese de um deslocamento da libido anal para o âmbito fonético.

Em outro paciente, essa relação se mostra perfeitamente coesa ao estabelecer um paralelo entre espasmos nas cordas vocais e espasmos no esfíncter anal, pois, quando estava de bom humor, sua voz era clara e forte e, consequentemente, tinha uma evacuação abundante e satisfatória. Porém, quando estava deprimido ou tinha que falar com pessoas mais velhas ou superiores, a afonia surgia de repente e ele era acometido por espasmos esfincterianos simultaneamente. De acordo com Ferenczi, a análise desses tipos caracterológicos mostrou que alguns indivíduos que retêm inconscientemente suas fezes esperam ficar fortalecidos no plano físico e psíquico, ao passo que receiam ficarem debilitados pela evacuação (FERENCZI, 1916-1917/1992, p. 277-278).

Aqui o autor estabelece uma estreita relação entre a "força" para expulsar as fezes e a "retenção" das mesmas, remontando à primeira infância de todos nós. Essa relação está vinculada a duas fases do desenvolvimento da libido pelas quais passamos, mais especificamente as fases oral e anal tal como defendidas por Freud (1905/1996) e Abraham (1921/1927; 1924/1927). Há, portanto, para Ferenczi, uma relação direta da vocalização e da elocução com o erotismo anal, tal como no ditado popular: se a palavra é de prata, "o silêncio é de ouro", pois guarda o valor das palavras assim como as crianças guardam suas fezes que podem ser doadas para sua mãe.

As noções de relações fantasmáticas do eu com seus objetos internos permitem a Ferenczi o estabelecimento de equações simbólicas tais como a que aparece no silêncio: palavras-fezes, ânus-boca. Aqui começa a se esboçar toda uma nova grade de decodificação para a apreensão do comportamento global do paciente enquanto metáfora de seus conteúdos psíquicos inconscientes, na base do inter-jogo dos deslocamentos sobre os objetos fantasmáticos, o que caracteriza a dinâmica do mundo interno do sujeito (PELLEGRINO, 1988, p. 188).

Como vimos, Ferenczi não deixou de prestar atenção nas proposições teóricas de Freud, como em Caráter e erotismo anal, mas foi além do seu mestre ao pontuar a natureza das forças libidinais que operavam no discurso dos seus pacientes (FERENCZI, 1930b/1992).

Era preciso aprender com eles. Os analistas, afirma o autor, prestam muita atenção no que os pacientes dizem, mas atentam muito pouco para o que os pacientes não dizem e, às vezes, o que eles calam é infinitamente mais interessante e importante do que o que é dito. Já os analisandos apreendem os sentimentos do analista por meio da transferência, sentem pelo timbre de voz, pela escolha de palavras ou pela linguagem dos gestos os pensamentos e emoções dele e, portanto, não podem ser enganados a cada vez que chegam para análise (FERENCZI, 1924b/1988; 1933/1988). O analista experiente deve prestar atenção nesse conjunto de comportamentos, tanto seus quanto dos seus pacientes, e fazer uso desse material para o bem deles. Aqui vemos, nitidamente, a ênfase do autor no papel da transferência e da contratransferência na trama analítica, naquilo que denominados de intersubjetividade, ou seja, a subjetividade que não está expressa na própria linguagem, mas que se expressa por meio de formações não verbais inconscientes.

 

A linguagem dos gestos e dos corpos

Com seu raciocínio atento ao que se passava na sessão e com suas técnicas inovadoras, Ferenczi não deixou de privilegiar o lugar do corpo na análise, por meio daquilo que ele denominou de "linguagem dos gestos" - observados através de bocejos, sono, tosses repentinas, mímicas, atitudes corporais, cacoetes, olhares em torno do setting, vontade súbita de urinar, modo de cruzar e descruzar as pernas ou até mesmo movimentos que repetiam e lembravam o ato de masturbação em plena sessão de análise. Com isso, seria possível admitir que o paciente falasse não com palavras, mas por expressões corporais tais como a linguagem dos gestos referida pelo autor: "nos momentos em que o sistema psíquico falha, o organismo começa a pensar" (FERENCZI, 1932a/1990, p. 37). Toda essa "nova linguagem", à qual Freud não deu grande atenção, tinha como finalidade preencher lacunas psíquicas no discurso do paciente por meio de sua corporeidade, pois, se esse corpo puído, doído e maltratado clamava por atenção, é justamente esse corpo quem vai dar uma sensação de unidade psíquica mediante ao seu sofrimento durante os traumas vividos.

De acordo com Pinheiro (1995, p. 97), somente o corpo guardou a lembrança dos traumas provocados no paciente, e é justamente ele que se expressa nos silêncios do paciente durante uma sessão de análise. A voz que se cala, assim como as representações do evento traumático, diz a autora, deixa o corpo se expressar e são as palavras desse corpo que o analista deverá escutar, pois o analista não escuta apenas com ouvidos, mas também com os olhos e com toda a sua dimensão corporal que está igualmente em cena durante uma análise.

A elasticidade da técnica, assim, constituiu-se como método de trabalho, objetivando transgredir a regra analítica clássica, ora prolongando as sessões, ora frustrando as expectativas dos pacientes, ora aumentando a tensão ao provocar angústia por meio de um silêncio duradouro por parte do analista ou agindo imediatamente ao observar um comportamento não desejável na sessão, provocando um posterior estado de relaxamento: "A psicanálise trabalha, de fato, com dois meios que se opõem mutuamente: produz um aumento da tensão pela frustração e um relaxamento ao autorizar certas liberdades" (FERENCZI, 1930a/1992, p. 59).

O analista se surpreendeu com os resultados dessa técnica em pacientes neuróticos, particularmente os obsessivos. Com isso, ele criou uma atmosfera de confiança para o pleno desenvolvimento do seu trabalho, angariando severas críticas por parte do seu mestre e de seus colegas de profissão. No entanto, ao dar margem a esses novos aspectos na cena analítica, Ferenczi constituiu aquilo que viria a ser chamado de uma "ética do acolhimento", principalmente ao observar situações de traumas revividos em análise por parte de alguns de seus pacientes. A "ética do acolhimento" só foi possível após o abandono do uso da técnica ativa em prol da elasticidade da técnica, do uso do relaxamento e da neocatarse como ferramentas de trabalho clínico. Segundo o autor, ele preconizou uma "espécie de acolhimento caloroso em preparação da análise propriamente dita das resistências. As medidas de relaxamento que acabo de propor apagam ainda mais, por certo, a diferença, excessivamente acentuada até hoje, entre análise de crianças e análise de adultos" (FERENCZI, 1930a/1992, p. 65).

O leitor desatento poderia se perguntar por que falar sobre a importância do acolhimento, o papel do corpo e da linguagem dos gestos ou da ênfase na técnica ativa ou na elasticidade da técnica em um texto que trata eminentemente do silêncio na psicanálise. Ora, se não prestarmos atenção ao apelo desse corpo que fala sem palavras, sem o devido acolhimento desta forma particular de linguagem, que é encenada em plena sessão e sem uma técnica que pudesse dar conta das especificidades dos sintomas apresentados pelos pacientes, não haveria como sustentar o silêncio destes, sobretudo no que se refere às grandes diferenças representadas no trabalho clínico com adultos e crianças, e particularmente a partir de uma conceituação do trauma, que passou a fazer parte das preocupações de Ferenczi.

Por exemplo, em alguns textos publicados, Ferenczi sustentará que o trabalho analítico com crianças e adultos diferem entre si. As crianças falam a linguagem da ternura, enquanto que os adultos falam a linguagem da paixão, provocando nelas traumatismos precoces de toda sorte. A ternura e a sensualidade das crianças, ou seja, sua inocência diante da vida e do mundo externo chocam-se com as respostas que os adultos lhes dão, ora pontuadas por um erotismo sedutor, ora por um erotismo perverso, produzindo, no mais das vezes, alguns traumas de difícil remoção. As crianças, por sua vez, identificam-se com o seu agressor e introjetam sentimentos de culpa do adulto pelo abuso que sofreram, perdendo a confiança em seus cuidadores (FERENCZI, 1931/1992; 1933/1988; 1934/1992). Em seu Diário clínico, o analista refere-se ao sentimento de responsabilidade nas crianças pequenas, quando os adultos agiram mal com elas. Ele afirma que as investidas sexuais, a linguagem da paixão dos adultos, produz uma reação nas crianças: a promessa muda de nada divulgar do que sofreram, posto que suas famílias poderiam se desagregar. As preocupações da criança se voltam, sobretudo, para a possível perda de um de seus objetos de amor, o qual, na maioria das vezes, é encarnado pela figura materna. Para garantir ainda mais o silêncio, diz Ferenczi, é preciso esquecer, recalcar o que foi vivido como desprazer e deixar as marcas do tempo apagarem as cicatrizes, se possível, é claro (FERENCZI, 1932a/1990, p. 157).

Não é raro, portanto, que algumas crianças que sofreram abuso cheguem reticentes à análise, caladas, sem conseguir expor o trauma que sofreram ou apresentando sintomas de difícil detecção pelo analista. Precisam encontrar, para tanto, um ambiente acolhedor para expor o que sofreram. O mesmo ocorre com adultos que passam por experiências traumáticas quando crianças. Sem esse ambiente, os mecanismos psíquicos e orgânicos entram em colapso, pois não há no centro do ego uma força capaz de sustentar esse evento no psiquismo infantil. As crianças, diz Ferenczi, sequer possui um eu (ego) ou um isso (id) que consiga elaborar o evento traumático por que passaram, donde a necessidade da análise proporcionar ao paciente um meio favorável à elaboração do trauma (FERENCZI, 1932a/1990, p. 259).

Para o autor, a palavra a ser destacada aqui é o "choque" decorrente do trauma pelo abuso. O choque, diz o autor, é equivalente à aniquilação do sentimento de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas à defesa do si mesmo (soi). A palavra Erschütterung, ou seja, "comoção psíquica" em alemão, deriva da palavra Schutt, que significa restos, destroços; engloba não só o desmoronamento de si, como a perda de sua forma própria e a aceitação fácil e sem resistência de uma forma outorgada.

A comoção psíquica sobrevém sempre sem preparação. Teve que ser precedida pelo sentimento de estar seguro de si, no qual, em consequência dos eventos, a pessoa sentiu-se decepcionada; antes, tinha excesso de confiança em si e no mundo circundante; depois, muito pouca ou nenhuma. Subestimou a sua própria força e viveu na louca ilusão de que tal coisa não podia acontecer; "não a mim". Uma comoção pode ser puramente física, puramente moral ou então física e moral. A comoção física é sempre também psíquica; a comoção psíquica pode, sem nenhuma interferência física, engendrar o choque (FERENCZI, 1931/1992, p. 109-110).

Ferenczi ainda se pergunta: o que ocorre quando o sofrimento infligido pelo adulto ultrapassa a capacidade de compreensão da criança? O que ocorre ao pequeno ser quando ele é colocado diante de uma situação para a qual não tem condições psíquicas de assimilar? Resposta do autor: a criança se constitui como fora de si mesma, ou seja, os seus sintomas são vistos de fora, não por elas mesmas, mas por um adulto que os identifique. E quais seriam esses sintomas? Ele responde: ausência de reação do ponto de vista da sensibilidade, câimbras musculares generalizadas e frequentemente seguidas de paralisias generalizadas ou ainda ausências vividas pela criança durante o estado de vigília. É como se ela apagasse o tempo presente vivido e buscasse um outro que ela não sabe qual colocar no lugar. Ou ainda, como diz o autor, não é como "não estar", é mais do que isso: é um "não estar lá". Aqui, duas hipóteses podem se constituir: ou elas encontram-se dentro de si mesmas, em um tempo limítrofe entre o passado, o presente e o futuro vividos como um só - e daí sua confusão espaço-temporal, ou como diz o autor, elas partiram para longe e se encontram em outro universo, voando entre os astros, sem encontrarem obstáculos algum. Dito em outras palavras, presente, passado e futuro estão sendo vividos como um só; o tempo e o espaço, por outro lado, são vividos "de fora", fazendo que com que mecanismos de defesas próprios da onipotência, aos quais Ferenczi denominou de "alucinação negativa", sejam erguidos para que se possa dar conta da violência do trauma. Visto desta perspectiva, finaliza o autor, a importância do próprio sofrimento desaparece (FERENCZI, 1931, p. 65).

O sinal de alarme que soa no psiquismo é o inesperado e extremo sofrimento. O perigo catastrófico é o desmoronamento dos suportes que estão na base da organização ainda precária do sujeito. Fazer coincidir num único momento o passo, o futuro e o presente, um espaço psíquico que se expande até abarcar todo o universo, tudo isto permite o afastamento até uma estrela distante, e "lá de cima", olhar o que se passa "aqui em baixo". A comoção psíquica destina-se, pois, a distanciar-se de seu próprio corpo e de seu próprio psiquismo. Ele é o elemento fundamental que, aliado à alucinação negativa, permite ao sujeito voltar à terra, a si próprio, após o remanejamento do ego, o que permite a este último seguir seu curso, retomar a própria vida nas mãos, quando esta parecia estar escorrendo pelos dedos (PINHEIRO, 1995, p. 90).

Sem condições para assimilar o que lhe aconteceu, a pessoa que sofreu o choque demora a significá-lo ou ressignificá-lo; é sempre um "a posteriori", pois relembrar a cena que foi vivida causa desprazer. Portanto, não é incomum o paciente perder o fluxo do pensamento por meio da fala quando se aproxima das lembranças que provocaram o trauma que sofreu, seja ele homem ou mulher, criança ou adulto. "O que a criança [ou o adulto] deseja, de fato, mesmo no que diz respeito às coisas sexuais, é somente o jogo e a ternura, e não a manifestação violenta da paixão" [acréscimo nosso] (FERENCZI, 1930a/1992 p. 64).

Acolhedor ao sofrimento do seu paciente, afetuoso nas respostas dadas a esse sofrimento, observador do discurso e da linguagem dos gestos e do corpo, atento à escuta profunda do que o seu paciente não verbalizava, Ferenczi não se cansou de inovar na sua clínica, sendo o primeiro analista contemporâneo a Freud a propor algo mais próximo do que chamaríamos de "uma clínica psicanalítica do silêncio" por meio dos dispositivos incorporados à psicanálise clássica. Com a elasticidade da técnica, o principio de relaxamento e a neocatarse, Ferenczi propôs que o interdito, o não verbalizado, o recalcado, a resistência e até mesmo a introspecção dos seus pacientes fossem tratados de forma não invasiva. O analista freudiano quer sempre saber dos processos inconscientes do seu paciente, custe o que custar. Ferenczi, neste caso, era freudiano na teoria, mas ferencziano na sua prática clínica! A descoberta de uma linguagem que se expressava pelo corpo e não dispunha de palavras, fez com que Ferenczi empregasse a técnica do relaxamento e da neocatarse.

Na técnica ativa, ele impôs tarefas ao paciente, objetivando aumentar-lhe a tensão (angústia) para que surgissem associações livres com as quais pudesse trabalhar. No entanto, se deu conta que esses pacientes se mostravam estranhamente dóceis diante da ordem dada, não trazendo nenhum material que manifestasse uma transferência negativa. Com isso, ele estabeleceu uma relação direta entre o analista da técnica ativa e o agressor que impunha tarefas ao paciente traumatizado. Por outro lado, a técnica do relaxamento e a neocatarse ofereciam aos pacientes uma possibilidade de elaboração do evento traumático por meio da vivência corporal do trauma durante o processo de análise, reconstruindo e reintegrando o paciente com sua própria história (PINHEIRO, 1995).

Assim, sem poder dar uma representação psíquica àquilo que foi vivido como traumático, resta ao corpo se tornar o único depositário da memória do trauma, trazendo para o processo analítico uma possibilidade de resolução desse trauma. Para o autor, o sonho não mais teria a função de realizar o desejo do paciente, se compreendermos o sonho do ponto de vista freudiano, mas de recuperar os traços mnêmicos de uma fala que se calou, por meio de uma vivência sensorial e corporal. Se o analista não tem condições de lidar com as palavras oriundas de seu paciente, tudo o que lhe resta é escutar o que o corpo diz por meio dos sentidos e expresso sem palavras, para, daí, reconstruir a história do paciente, transformando em lembrança o que foi proibido pelo aparelho psíquico de ser pronunciado1. Foi o que Ferenczi denominou de "símbolos mnêmicos corporais", ou seja, quando as palavras passaram a ser feitas de carne. É como se a lembrança do evento traumático ficasse comprimida no corpo para somente daí ela poder se acordada, ou seja, revivida. Para o autor, não há como solicitar ao paciente reviver algo que jamais se constitui no sistema consciente, só a análise poderá proporcionar a elaboração do trauma recalcado por meio do seu processo clínico. Uma vez em análise, cabe ao paciente reviver o traumatismo e ao analista compreendê-lo e daí interpretá-lo, liberando os afetos represados por meio da verbalização. De acordo com Tereza Pinheiro,

A lembrança comprimida no corpo faz dele [o paciente] escravo do seu papel de porta-voz e de mártir de uma palavra que perdeu a voz. O único meio de aliviar este corpo, segundo Ferenczi, é o da reconstrução pela análise. Para isto, é preciso que este corpo se expresse, como poder, de maneira que a vivência traumática seja reconhecida como passado. As lacunas de memória do paciente traumatizado vibram em algum lugar do corpo sem encontrar, contudo, uma tradução possível em sua fala. Este trabalho, segundo Ferenczi, é longo e difícil. Exige do analista tato e uma grande capacidade de interpretação desses enunciados corporais [acréscimo nosso] (PINHEIRO, 1995, p. 99-100).

Para Ferenczi, haveria uma desvantagem no "falar continuamente", qual seja, um obstáculo ao relaxamento produzido pela comunicação intermitente, tornando meramente conscientes e especulativas as associações que daí surgissem, as quais permaneceriam na superfície ou andando em círculos (caso dos discursos que nada dizem, esvaziados de sentidos, ou falas ou pensamentos "de lado"). Os momentos de silêncio que se prolongam, para o autor, produziriam um relaxamento mais profundo semelhante ao relaxamento produzido no sonho. Não obstante, questiona-se: Quando é preciso, em seguida, falar apesar de tudo? O analista deve interromper (surpreender) o silêncio? Quando devem começar as "sessões de silêncio" (FERENCZI, 1932b/1992, p. 265, grifos do autor)?

Ao dar ênfase ao silêncio do paciente, Ferenczi esperava que no momento seguinte fossem produzidas imagens ou cenas a partir das associações livres advindas desses momentos, sem que fosse necessária nenhuma intervenção por parte do terapeuta. Este é o momento de acolhimento, no tempo e no espaço, do psiquismo do paciente. Este também é o momento em que o autor fala de elaboração psíquica advinda do silêncio, na forma conferida por Freud (1926/1996) ou, em suas palavras, por via da "translaboração" (FERENCZI, 1927/1992)2.

A translaboração, para o autor, refere-se ao trabalho psíquico a que o paciente se entrega com a ajuda do analista, envolvendo uma relação de forças entre o recalcado e a resistência, portanto, um fator puramente quantitativo, enquanto que a elucidação da causa patogênica e da formação dos sintomas refere-se a uma análise meramente qualitativa. Entretanto, após repetições dos mecanismos de transferência e resistência vividos na análise, é possível que haja um avanço importante na análise a partir do processo de translaboração, ao passo que, às vezes, o que se ocorre é exatamente o contrário: após um longo período de translaboração, o caminho fica aberto para que um novo material mnêmico anuncie o fim de uma análise (FERENCZI, 1927/1992, p. 20).

No que se refere à técnica do manejo do silêncio, não só a elaboração, perlaboração ou translaboração são necessárias para suscitar um relaxamento, mas a própria associação livre vai ser apontada pelo autor como coadjuvante no trabalho clínico. A elaboração, para o autor, também é um relaxamento passageiro, que pode se dar por meio do silêncio sob forma de um desligamento do pensamento consciência até a irrupção da associação livre. Quando isso ocorre, o silêncio e a vontade de não pensar é interrompido espontaneamente pelo analista a partir de seus questionamentos (O que é que lhe acode ao espí rito? O que você está pensando? Onde você se encontra?). Geralmente, o paciente se cala por mais algum tempo, tem um conjunto de associações - profundas e superficiais, esquecendo-se da presença de uma terceira pessoa e passa a comunicar uma série de associações levando em uma direção completamente oposta ao que começara a enunciar, aproximando-se do material recalcado. Desse modo, diz o autor, não há nenhuma diferença de princípio entre uma técnica do silêncio usada ocasionalmente e a associação livre. Trata-se apenas de uma diferença de grau, ou seja, o silêncio um pouco mais prolongado (pensamento não consciente) leva o analisando um pouco mais longe e mais profundo em termos associativos (FERENCZI, 1932c/1992, p. 265-266).

A regra mais importante, nesse trabalho, é a economia das palavras do analista e de suas interpretações para com as associações do seu paciente. Pela primeira vez na análise, o que está em discussão é o duplo estatuto do silêncio: do analista e do analisando. Em que momento este último deve ser solicitado a falar do que lhe ocorre à alma e em que momento o analista deve se calar para que sejam produzidas associações livres a partir do próprio silêncio do seu paciente? Ferenczi, a exemplo da paciente de Freud, exemplifica esta situação a partir de um caso clínico no qual sua paciente ordena: "Não fale tanto, não me interrompa a torto e a direito; você agora estragou tudo de novo". Diante disso, o analista interpreta que uma associação livre interrompida fica sempre na superfície. A comunicação e a fala do analista trazem o paciente de volta à situação presente (a análise) e podem impedir o mergulho em profundidade (FERENCZI, 1932c/1992, p. 266).

 

Considerações finais

Como vimos, o silêncio na clínica Ferencziana ganha uma importância maior do que a clínica e a metapsicologia freudiana. Ferenczi, no entanto, não foi o único a levar em conta o manejo do silêncio junto ao seu paciente. Theodor Reik, pertencente ao Círculo dos Analistas de Viena também trabalhava pari passucom as concepções clínica do analista húngaro. Para Reik (1926/2010, p. 17) escutar nunca é suficiente, nunca pode ser suficiente se o analista não estiver disposto a ouvir profundamente o que o seu paciente tem a dizer. É preciso algo mais: é preciso ouvir com a "terceira orelha", pois, para o paciente, é difícil entregar a um estranho os fatos mais íntimos de uma vida e mais difícil ainda confiar-lhe seus pensamentos e suas emoções que sequer ousam serem dirigidas para si mesmo. "O analista não escuta somente o que está nas palavras, ele escuta também o que as palavras não dizem. Escuta com a "terceira orelha", escutando o que dizem os pacientes e suas próprias vozes interiores, o que surge de suas profundezas inconscientes" (REIK, 1926/2010, p. 23).

O analista nunca ouve apenas palavras, palavras e mais palavras. O que ele escuta tem a ver com sentimentos e emoções que são difíceis de expor para um outro que acolha esse material na sua totalidade, pois o sujeito nem sempre consegue admitir para si mesmo o que está falando ou tentando encobrir com seu silêncio. Para Reik, não seria justo atribuir os resultados da psicanálise unicamente aos poderes das palavras, mas ao poder das palavras e do silêncio (REIK, 1926/2010, p. 19).

Esse é, portanto, um encontro a dois que se passa em um mundo outro que não o da realidade. O que é encenado em um consultório de análise, de Freud aos dias atuais, na verdade, é uma grande "alucinação" do que foi um dia vivido em forma de grande sofrimento. Donde a importância de o analista ter se submetido a um processo analítico para ter conhecimento dos seus limites, quando vai ao encontro de outro sujeito que lhe pede ajuda diante do seu sofrimento. Este encontro, podemos afirmar, é acima de tudo um encontro entre inconscientes, no qual a palavra não precisa estar presente. Reik afirma que o silêncio do psicanalista se faz presente no setting, posto que, quando alguém fala, necessariamente, um outro tem que se calar para dar ouvidos ao seu interlocutor. O analista, portanto, não tem e nem pode ter medo do silêncio, independente dos inúmeros sentidos que ele tenha. Quando falamos, as palavras têm um valor diferente do que quando pensamos em nossas representações verbais, diz Reik. "A palavra articulada tem um efeito retroativo sobre quem fala. O silêncio do analista intensifica essa reação; age como um quebra-voz" (REIK, 1926/2010, p. 22).

Muitas vezes, nas primeiras sessões, tudo que o paciente precisa é encontrar um ambiente acolhedor, calmo e silencioso diante do ruído do seu mundo interno. Esse silêncio, diz Reik, parece solicitar que ele fale livremente, esquecendo-se temporariamente suas inibições convencionais, sem nenhum juízo de valor. O silêncio do analista, nesse sentido, marca um olhar em direção a um outro que não é olhado, no máximo espiado, perscrutado, observado, e o analisando penetra na situação analítica saindo do silêncio que tinha como companheiro, ora fazendo silêncio de suas experiências, de suas emoções e de seus pensamentos (REIK, 1926/2010).

É nesse sentido que Ferenczi se propõe a escutar os seus pacientes, colocando o afeto na cena analítica, pois, conforme afirma, somente a simpatia cura (healing). A compreensão do que é falado em uma sessão de análise só deve ser usada no momento adequado e da melhor maneira possível, em favor do paciente. Sem simpatia, diz o autor, não há cura, no máximo, uma visão geral do sofrimento humano (FERENCZI, 1932a/1990, p. 248).

Ao compreender a linguagem dos gestos e dos corpos, o analista húngaro foi aquele quem produziu as primeiras elaborações teóricas e técnicas sobre o silêncio na clínica psicanalítica e seu manejo. Com isso, Ferenczi não só é um dos primeiros a teorizar o silêncio na psicanálise, como também compreende-lo como uma forma de linguagem e de comunicação entre o analista e seu paciente diante do seu sofrimento psíquico.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 05/08/2014
Aprovado para publicação em: 08/01/2015

Endereço para correspondência
Sergio Gomes da Silva
E-mail: sergiogsilva@uol.com.br

 

 

*Psicanalista, doutor Psicologia Clínica/PUC-Rio, supervisor de estágio/Instituto de Psicologia-UFRJ (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), membro associado em formação/CPRJ (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).
1Sob outra perspectiva teórica, é preciso que o analista possibilite ao paciente sonhar sonhos não sonhados, assim como vivenciar gritos interrompidos durante seu processo de análise (OGDEN, 2010).
2Em uma breve nota de rodapé no texto O problema de fim de análise (FERENCZI, 1927/1992), a questão sobre o conceito de elaboração, perlaboração ou translaboração é discutida pelos tradutores franceses da sua obra. A palavra alemã para translaboração é " Durcharbeiten". Durch quer dizer "através de". Em latim, a preposição "trans", através de, para além de, não corresponde à preposição "per", que significa também "entre", "em", "sobre", "diante de", "por meio de".

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