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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.37 no.32 Rio de Jeneiro June 2015

 

RESENHAS

 

Três ensaios sobre juventude e violência

 

GURSKI, Rose. São Paulo: Escuta/Clínica Maud Mannoni, 2012. 176 p.

 

 

Charles Elias LangI, II, III*

IAPPOA - Porto Alegre - Brasil
IIUniversidade Federal de Alagoas - UFAL - Brasil
IIIAssociação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia - ANPEPP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Mais de dez anos nos separam do lançamento de Hell - Paris: 75016, de Lolita Pille1, e de seu relato cínico sobre a juventude parisiense do início do terceiro milênio. A protagonista poderia ser a realização dos mais elevados sonhos do consumismo: jovem e rica, pertencente ao círculo social mais nobre de Paris, com tempo para esbanjar o dinheiro dos pais em roupas de grife, bolsas, sapatos, restaurantes caros, casas noturnas e com livre acesso a todos os tipos de drogas. No entanto, ao contrário de seus amigos, que se perdem no vazio, ela é diferente, pois mesmo jogada neste meio, produz uma narrativa que lhe permite refletir sobre o que ela poderia ser, acompanhada por Charles Baudelaire, mas sem citar Walter Benjamin. Enquanto Hell narra e reflete sobre tudo aquilo que vive, os outros apenas vivem. Ela busca se fazer representar de algum modo, experienciar e não apenas viver: e nos toma como destinatários e testemunhas. A felicidade não existe; se existisse, os ricos seriam felizes, a revelação de Hell que, ao narrar-se, mostra-nos que a vacuidade da existência pode não ser um privilégio de classe.

Evocamos este livro para introduzir o livro de Rose Gurski, resultado de sua tese de doutoramento em Educação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Em diversos pontos as duas leituras se atravessaram. O livro de Rose trata dos jovens contemporâneos e de suas formas de representar-se no cenário social. O pano de fundo é a inquietação com a banalidade que a mídia tem tratado acontecimentos envolvendo violência, crueldade e maus tratos com o outro, protagonizados por jovens.

Poder-se-ia, a princípio, justificar estes atos bizarros e violentos e o modo banal de lidar-se com eles, pelo prisma da desigualdade e da miséria social. No entanto, crueldade e desprezo pelo outro não podem ser debitados exclusivamente na conta dos menos favorecidos, daqueles que padecem de privações extremas; haja vista o sem número de casos em que os das classes mais privilegiadas protagonizaram atos emblemáticos como atear fogo em um índio (sob a justificativa de era um mendigo) ou o espancamento de uma doméstica (sob a justificativa de que que ela foi confundida com uma prostituta). Concomitante, a associação dos jovens de classe média com o crime organizado tem feito crescer o volume de jovens desta classe nos presídios. De que privações padecem os jovens, já que as econômicas, a primeira vista, parecem supridas?

Para Rose Gurski, a violência juvenil tem se feito presente em todos os âmbitos. A pergunta consequente diz respeito às condições de nosso laço social e ao modo como ele facilitaria esses atos e comportamentos. Para ela, a violência destes jovens pode ser efeito de convocações das práticas culturais de nosso tempo, ou seja, condições de crueldade são construídas na medida em que o outro passa a ser um simples objeto, alguém que não é um sujeito como nós. O que abre perguntas sobre a natureza da experiência no laço social atual, sobre a mutação que pode estar em questão em nossa época e sobre as formas de representação ou modos pelos quais os jovens têm buscado fazer suas marcas e inscrições, demandando reconhecimento.

Por outro lado, a inflação do imaginário social sobre o adolescente pode estar mascarando o sofrimento do jovem. Na passagem do cenário familiar para o cenário social, atos violentos podem ser tentativas dos jovens de se constituírem alheios e prescindindo do outro. Ou seja, o sujeito da cultura do espetáculo e da cultura visual parece ser visto e ver o outro como mero objeto de gozo e instrumento de prazer. E, na ausência de projetos sociais compartilhados, restariam somente os pactos narcísicos.

O exame dos problemas atuais, que envolvem os jovens, exigiu da professora doutora um percurso por autores que têm buscado compreender a problemática, o que introduz-nos em três ensaios. Nestes, são perseguidas diferentes narrativas da cultura, sejam em filmes, em casos, ou em notícias da mídia e que tratam da violência dos jovens - em especial, jovens da classe média.

Diana Corso prefaciou o livro e nota que o percurso teórico de Rose Gurski passa por autores como Hannah Arendt (para quem o termo banalidade não é banal!), Giorgio Agamben, Eric Hobsbawm e Jacques Lacan. Mais próximos e no contexto brasileiro, Contardo Calligaris, Maria Rita Kehl e Ana Costa. Aos quais acrescentamos Slavoj Zizek, Charles Melman, Alfredo Jerusalinsky, Miriam Debieux Rosa, Lúcia Serrano e Edson de Souza, entre outros. Não podemos deixar de sublinhar o peso do pensamento crítico de Walter Benjamim, enlaçado à filosofia de Arendt e às reflexões psicanalíticas e a aproximação com Jacques Derrida.

No primeiro ensaio, intitulado Aos treze: uma crônica da adolescência contemporânea, os leitores podem encontrar uma revisão da história social da juventude (que passa por Philippe Ariès e Eric Hobsbawn) e da delinquência juvenil (na qual encontramos o trabalho de Norbert Schindler). Tal poderá ajudar-nos a responder às perguntas: como foi inventada a adolescência e a exaltação de seu modo de vida (a teenagização, segundo Kehl), o que significa ter treze anos no início do século XXI e qual a relação do jovem de classe média com episódios de violência gratuita e brutalidade?

Aos treze, no ensaio, é o título de um filme norte-americano de 2003 que trata do adolescer de jovens em grandes centros urbanos. O roteiro foi escrito pela diretora em parceria com sua ex-enteada e dona da história. Ou seja, a diretora encontrou um modo de inscrever a jovem, em um espaço longe do mundo das drogas e do consumo desenfreado no qual a adolescente estava enviscada, analogamente ao que no início apontávamos sobre Hell. Para Rose, as produções culturais, no caso o filme, são um caminho de excelência para pensar-se problematizações do presente e, especificamente, o sintoma social. Assim, se Aos treze ilustra modos de passagem que os adolescentes realizam em nossos dias, o filme Prenda-me se for capaz! Ilustra, com seus atos de delinquência, a demanda de reconhecimento simbólico, de acordo com a psicanalista Eda Tavares, citada no ensaio. Tal pode encontrar eco em Charles Melman, também citado, quando este sugere que os nossos jovens não conseguem aderir ao sistema de dívida e da troca e que para eles a dimensão da dívida simbólica inexiste, concomitante às dificuldades da adultez de nossa época e no sentido da transmissão.

Rose vale-se do termo "erosão da adultez" para mostrar que não somente mudou o núcleo familiar, mas também o modo como deveria se desenrolar a cena política; o que é compartilhado é o espaço da fala. O efeito disto pode ser encontrado no empobrecimento das condições da vivência e da transmissão da experiência. Isto é um dos sintomas da juvenilização da cultura e da dificuldade dos adultos de tomarem uma distância apropriada dos jovens, o que poderia fazer verem-se como adultos e verem os jovens como jovens.

No primeiro ensaio do livro, encontramos, também, referências aos filmes Beleza americana e Cama de gato e ao polêmico jogo GTA. No segundo, intitulado Os jovens e os atuais perigos do prazer, somos recebidos pela referência ao clássico de Stanley Kubrick, Laranja mecânica, filmagem de um romance escrito na década de 1960. Ora, no primeiro ensaio, a autora notava que, a partir da década de 1960, no rol das inovações trazidas pela revolução cultural, começou a delinear-se um quadro social de quase anomia.

Laranja mecânica, com fortes cenas de violência, mostrava uma gangue de jovens delinquentes que aterrorizava Londres em um futuro próximo e não datado. Para a autora, Kubrick, assim como outros artistas, poetas e escritores, antecipou-se aos intelectuais e especialistas e lembrar-nos do episódio ocorrido em Brasília em 1997, em que jovens da classe média atearam fogo no índio Galdino, em pleno 21 de abril. A inusitada justificativa foi: "Só queríamos dar um susto em um mendigo. Não sabíamos que era um índio". A realidade superou a ficção de Kubrick.

Cama de gato, Tiros em Columbine, Aos treze, Elefante, Alpha dog e Meu nome não é Johnny são convocados como exemplos da preocupação, no cinema, com determinados comportamentos de jovens da classe média e alta. No segundo ensaio, temos uma atenção especial ao Cama de gato - filme brasileiro que, ao tratar de questões da classe média paulista, critica valores e comportamentos juvenis da classe média brasileira e o vazio de referências que padecem. Através deste, a autora chega ao tema das formas de representação e às condições de emergência de atos violentos e brutais. Ou seja, ao movimento de fazer-se representar de modo a equacionar corpo e linguagem, escrever e inscrever no corpo as marcas de seu tempo, de sua cultura e dos significantes que concernem a cada um: viver a experiência do tempo presente sem abandonar os laços com a tradição, com a memória e com o passado. Quais as representações que podem oferecer alguma autoridade aos jovens da atualidade?

A violência, fácil e gratuita, seria um modo jovem de se fazer representar e confirmar a inscrição de si num cenário esvaziado das condições de construção de experiências e num espaço público paupérrimo no que diz respeito à autorização e à legitimação da representação.

No terceiro ensaio, Tempo de criar, temos um trabalho com a dificuldade de os jovens encontrarem traços para se representarem. Para tal, parte-se do maior massacre, jamais antes ocorrido em universidades americanas e em que um sul-coreano de 23 anos matou 32 pessoas, ao mesmo tempo em que enviava um vídeo à TV NBC para se fazer apresentar. Por que alguém, até então anônimo, buscou esta forma de escrever seu nome no mundo e ao redor do planeta? Eric e Dylan, por exemplo, dias antes de se empenharem no massacre de Columbine, disseram a um colega que iriam "fazer algo notável para que fossem sempre lembrados". "Um dia quero que todos saibam o meu nome", esta é a frase lapidar do estudante alemão que, em 1999, protagonizou uma chacina em Erfurt. Rose Gurski pergunta-nos: "Serão os jovens invisíveis aos olhares parentais ou padecem exatamente do oposto, de um excesso nessa relação com o "olhar"? Como compreender uma relação que apresenta um semblante de onipresença, mas que, ao mesmo tempo, não consegue "ver" o que acontece nas diferentes formas de sofrimento juvenil?" (p. 148).

Walter Benjamin é convocado quando escreve sobre o esvaziamento da experiência e o empobrecimento da transmissão, entendido pela autora nos termos em que, no lugar da transmissão da falta, apresentam-se prescrições de comportamentos, manuais de autoajuda, dicas de especialistas e toda parafernália que acompanha a cultura de mercado. Junto a isto, ela também nos fala de uma mediatização das subjetividades e em que estamos sempre prontos para ver e ser vistos.

A paixão pelo real (importada de Slavoj Zizek) ou um desejo de destruição das aparências e cujo efeito é o desnudamento das "camadas enganadoras da realidade", produziu a chamada paixão pela coisa em si. O encontro e a relação com o outro passaram a ser organizados por um laço social no qual as aparências e protagonismo da imagem, deixam pouco espaço para intercâmbios, que não sejam da ordem da paixão pelo real. Isto Rose lê em fragmentos do documentário Falcão - meninos do tráfico, em notícias da mídia e na polêmica Exposição corpos: a exibição, sob o comando do médico Roy Glover. Nela, podem ser vistas partes do corpo humano, desde pulmões cancerosos até fetos, preparados a partir de modernas técnicas de ressecamento, a platinação.

As notas finais do livro tratam de herança e transmissão e nelas encontramos algumas reflexões, em particular, a partir de Derrida e sobre a responsabilidade do sujeito com o que veio antes e com o que vem depois: "uma vivência que não pode ser narrada e transmitida condena simultaneamente o passado e o futuro à aridez" (p. 163). Melman está bastante próximo quando afirma que, atualmente, o que se transmite são bens ou dívidas reais, enquanto que, no passado, o que se transmitia era um estado de espírito.

"A possibilidade de que as vivências decantem experiências, narrativas e testemunhos, parece ser o que "aquece" o laço entre os sujeitos; esta é uma das formas pela qual se produzem inscrições e representações, é um modo que possibilita a produção da polissemia e que flexibiliza os sentidos, produzindo enunciações, não só enunciados ecolálicos" (p. 157). Estas poderiam ser palavras finais. No entanto, para se chegar a estas notas é preciso ter percorrido o caminho proposto pela autora dos Três ensaios e perceber que as notas finais abrem-nos para outras leituras que possibilitam novos textos ensaísticos ou ficcionais, críticos, filosóficos ou psicanalíticos. O que percebemos é que os ensaios exigem-nos uma leitura como Derrida nos propõe, ou seja, uma leitura que exige que acrescentemos algo nosso. Talvez, doravante, não consigamos mais ficar anestesiados diante de atos espetaculares protagonizados pelos jovens e, que o fato destes terem se tornado mais uma notícia no jornal, não nos impeça de ler, tanto na violência e na crueldade juvenil, quanto na sua banalização, sintomas de nossa época.

 

 

Endereço para correspondência
Charles Elias Lang
E-mail: celang@me.com

*Psicólogo, psicanalista, doutor Psicologia Clínica/PUC-SP (São Paulo-SP-Brasil), analista membro/APPOA (Porto Alegre-RS-Brasil), prof. associado Nível I/UFAL (Maceió-AL-Brasil), prof. permanente PPG em Psicologia/UFAL (Maceió-AL-Brasil), secretário executivo/ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia), PILLE, L. Hell: Paris - 75016. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2003.
1PILLE, L. Hell: Paris – 75016. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2003.

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