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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.37 no.33 Rio de Jeneiro Dec. 2015

 

ARTIGOS

 

Caminhos e descaminhos do luto: o trabalho de separação na relação mãe-bebê

 

Pathways and detours of mourning: The work of separation in mother-baby relation

 

 

Perla KlautauI, II *; Issa DamousIII**

ICírculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
IIUniversidade Veiga de Almeida - Brasil
IIIUniversidade Federal Fluminense - UFF - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, propomos seguir os caminhos e descaminhos do luto, considerando-se a relação de presença/ausência entre mãe e bebê, no processo de separação. Entendemos que a qualidade da presença materna favorece os caminhos do luto por uma via de independência ou, de forma contrária, impede o luto por uma via de reasseguramento da dependência na qual a separação é passível de abrir feridas conforme a melancolia evidencia. Destacamos então a importância de um interjogo entre presença e ausência durante o trabalho de separação, apresentando um fragmento clínico de um caso marcado pelo excesso e ambiguidade maternas em termos de proteção/engolfamento, cuidado/invasão, amor/ódio ao alimentar a filha, invasiva e insistentemente.

Palavras-chave: Luto, Melancolia, Incorporação, Função especular, Separação mãe-bebê.


ABSTRACT

In this article, we propose to follow the paths and detours of mourning in the separation process, as far as the relation of presence / absence between mother and baby is concerned. We understand that the quality of maternal presence favors a mourning pathway by means of independence or, on the contrary, prevents mourning through a pathway of dependence reassurance in which separation may inflict wounds as evidenced by melancholy. Then we highlight the importance of interplay between presence and absence during the separation process, presenting a fragment of a clinical case marked by maternal excess and ambiguity in terms of protection / engulfment, care / invasion, love / hate when feeding her daughter invasively and insistently.

Keywords: Mourning. Melancholy, Incorporation, Specular function, Mother-baby separation.


 

 

Luto e melancolia (FREUD, 1917[1915]) foi eleito como ponto de partida para a elaboração deste artigo cujo eixo central é orientando pelo conceito de luto entendido como um trabalho psíquico realizado a partir da perda de um objeto amado ou de algo que o represente. Esta perspectiva se constitui como um caminho elaborativo que libera a libido do objeto perdido para o estabelecimento de novos laços. Um processo como este possibilita o gradual desligamento da libido em relação ao objeto de prazer e satisfação narcísica perdidos, assim como está associado à estruturação da simbolização primária implícita no processo de construção de representações, no âmbito da primeira tópica freudiana ( Roussillon, 1999:12). Em contrapartida ao luto, na melancolia, esse trabalho não se realiza, pois a libido, ao invés de se ligar a um novo objeto, volta-se para o próprio eu (FREUD, 1917[1915]). Nesse ponto, é preciso considerar o momento de transição para a segunda teoria pulsional e, portanto, para a formulação de um novo arranjo do modelo topográfico. Levando isso em conta, é possível situar as dificuldades que os dados clínicos da melancolia impõem posto que o luto só é passível de ser realizado quando a representação pode ter lugar (ROUSSILLON, 1999). Seguindo esta via, Roussillon aponta o modo pelo qual os processos de simbolização relacionados à primeira teoria pulsional - em que a representação era possível pelo luto da coisa - encontram-se diante de um paradoxo: "para representar é preciso fazer o luto da coisa, mas fazer o luto da coisa supõe que se possa representa-la"
(ROUSSILLON, 1999:13). Se, de acordo com a primeira teoria pulsional, tinha-se primeiro o luto e então a representação, com os estudos sobre a melancolia tem-se que incluir também a ideia de que para fazer o luto é necessário que se possa representar. Adentra-se por conseguinte no âmbito de situações clínicas marcadas pelo desamparo atrelado à necessidade do sujeito ter de renunciar muito mais ao que ele não pôde ser do que ao que foi perdido, como indicaria o modelo pautado apenas nos caminhos do luto e portanto na primeira teoria pulsional.

A partir de tais considerações, nossa proposta é discutir a hipótese de que o processo de separação mãe-bebê pode ser concebido como um trabalho associado ao que o luto realiza e que deve ser empreendido tanto pela mãe quanto pelo bebê, diante da perda do prazer e da satisfação narcísica que tendem a permear os primórdios da relação entre ambos. Neste sentido, o trabalho de separação deve ser concebido como fundamental para que a mãe possa (re)adquirir existência como mulher e para que o bebê possa estabelecer os contornos do seu eu nascente. Entremeado pela dialética presença/ausência do encontro mãe-bebê, o trabalho de separação denota assim uma perspectiva constitutiva indispensável aos processos de subjetivação.

Em sua teorização a respeito do desenvolvimento infantil, Winnicott (1945) parte da situação na qual inicialmente o bebê é absolutamente dependente dos cuidados maternos sem os quais não é capaz de sobreviver. Gradualmente o bebê abandona esta condição para ingressar num período em que é relativamente dependente do ambiente. Nesta passagem, o trabalho de separação já está em curso tendo em vista que períodos de presença e ausência, no que tange ao oferecimento dos cuidados maternos, vão sendo efetivados paralelamente ao trabalho de luto associado ao processo de simbolização diante da crescente falta materna. Sob a ótica winnicottiana, uma das consequências do trabalho de separação é estar no mundo tendo alcançado o eu sou. Tal status requer o uso de processos complexos de simbolização para a elaboração do que foi vivido tanto no âmbito intersubjetivo quanto intrapsíquico. Para isso, de acordo com Winnicott, é condição si ne qua non que tenha sido possível estar só na presença de alguém, mais especificamente, na presença da mãe, no início da vida (WINNICOTT, 1958). Deste modo, a conquista da capacidade para estar só ilustra a essência paradoxal do pensamento winnicottiano: a presença/ausência concomitantes do objeto encarna uma continuidade que traz atrelada a si um sentimento de confiança.

Seguindo o pensamento winnicottiano, tem-se que o objeto é de fato importante no processo de separação mãe-bebê em função do papel facilitador que lhe cabe desempenhar. Do ponto de vista subjetivo do bebê, a sua representação é ainda fundamental para que a experiência de separação não redunde em uma desorganização psíquica marcada pelo desamparo e agonias impensáveis. A representação do objeto indica em todo caso a manutenção do investimento sobre ele, a despeito de sua ausência ou perda na realidade objetivamente experimentada: "Ainda que a separação gere sempre uma forma de sofrimento (...) o sujeito pode mais ou menos manter o laço com o objeto estando religado psiquicamente com ele. O objeto não foi perdido porque está presente dentro (...)" (FERRANT, 2007:465). Articulada ao trabalho que o luto realiza, a representação do objeto engendra assim, psiquicamente, uma promessa potencial de retorno do objeto ausente na realidade externa funcionando como um alento subjetivo frente à realidade da separação. Ocorre que, via luto, tem-se igualmente os processos identificatórios através dos quais o sujeito pode se transformar mediante a introjeção de traços do objeto perdido na separação levando-o a tornar-se um pouco como o que perdeu, assegurando a presença do objeto internamente:

A perda enfrentada na realidade é compensada por um processo de autotransformação que ameniza a perda. Pode-se notar que se reproduz aqui a mesma operação que permite toda criança pequena a tornar-se autônoma quando ela se apropria das qualidades do objeto que lhe são necessárias: alimentar-se por si mesma, acariciar-se, limpar-se, etc. O ser humano sustenta as perdas inevitavelmente enfrentadas por meio de suas capacidades de autotransformação (FERRANT, 2007:465).

O luto então promove a introjeção do objeto perdido através das identificações e, além de conservá-lo na realidade psíquica, favorece uma transformação do eu que, após a separação do objeto, pode sempre se apresentar sob uma nova versão de si mesmo. Sendo assim, para que o trabalho de separação na relação mãe-bebê seja efetivado, consideramos imprescindível a confluência com o outro. Nesse sentido, há de se pensar em uma metapsicologia da presença, como sugere Roussillon (2013) no artigo La séparation et la dialectique présence/absence. Neste trabalho, o autor recobra uma ideia de coreografia do encontro nos primórdios da vida psíquica que atravessa um modo de comunicação no qual se faz absolutamente necessária a qualidade da presença do outro, tal como definida por Winnicott como o papel de espelho da mãe para o seu bebê (WINNICOTT, 1967). Trata-se aqui da possibilidade da resposta em eco da mãe, ou seja, da possibilidade de compartilhar o estado interno de seu bebê de modo que, por algum tempo, se configure um "estado comum" entre ambos, um mettre ensemble como embasamento relacional crucial para a atividade de simbolização: "É esse tipo de troca e de comunicação que sustenta as representações de uma 'união' entre bebê e ambiente" (ROUSSILLON, 2013, p. 229). A separação é então assinalada como um processo completamente atrelado ao trabalho de simbolização.

Na verdade, se os primeiros encontros e ligações conduzem a um trabalho de separação passível de viabilizar a constituição de um si-mesmo, entende-se que houve um trabalho de luto capaz de costurar a reordenação da libido. Desde que Freud (1914) introduziu o narcisismo, podemos nos referir a essa costura como algo pautado em uma economia libidinal reguladora de um trânsito das relações objetais. Ora libido objetal, ora libido narcísica, a atividade pulsional se reequilibra mais ou menos sem problemas a serviço de Eros lidando assim, ora com confluências, ora com separações e perdas. Por esse viés, temos os caminhos do luto associados aos primeiros processos de simbolização que envolvem a separação mãe-bebê, o que passaremos a examinar a seguir a partir da metapsicologia da presença materna.

 

Os caminhos do luto no contexto da presença materna

Convidadas pelo entusiasmo contido na apresentação de Maria Rita Kehl (2011) à tradução de Marilene Carone do texto de Freud (1917[1915]), Luto e melancolia, propomos seguir os caminhos e descaminhos do luto, a partir da relação de presença/ausência estabelecida entre mãe e bebê, que marcam a organização subjetiva e o tornar-se si-mesmo, o que inclui, naturalmente, discutir, na próxima parte deste artigo, a melancolia. Por enquanto, é importante destacar o que há de comum, tanto nos estados de luto quanto na configuração dos quadros de melancolia: a perda e a reação a ela.

Nos estados de luto, tanto a existência do objeto quanto a sua perda são registradas pelo teste de realidade. Na medida em que o objeto já não pode mais ser reencontrado no meio externo, a libido precisa ser desligada dele assim como precisa ter reequilibrada a sua economia. Neste momento, a palavra trabalho - em sua acepção de lida, labuta, esforço incomum - é apropriada para esclarecer o processo que promove a renuncia ao objeto de amor. Diante da constatação da perda, é possível, inicialmente, observar um esforço incomum, de não respeitar o teste de realidade, ou seja, de prolongar a existência psíquica de um objeto que já não existe mais. Ao longo dessa batalha, o trabalho de luto vai sendo realizado, de forma gradual e dolorosa, com grande dispêndio de tempo e de energia de investimento.

Ainda assim, ao contextualizar o luto, Freud (1917[1915]), destaca o caráter passageiro deste estado que, apesar de tornar o sujeito temporariamente impedido de realizar novos investimentos libidinais, é realizado em prol de uma reconfiguração psíquica: "Uma a uma, as lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são focalizadas e superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido" (p. 49). O trabalho do luto realizado a partir da perda traz, portanto, atrelado a si a possibilidade de abertura de novos caminhos uma vez que o desligamento do investimento no objeto perdido possibilita o estabelecimento de novas ligações. Desta forma, é (re)instaurada a possibilidade de o sujeito estabelecer novos laços afetivos.

Para investigarmos especificamente a separação mãe-bebê como um trabalho associado aos caminhos seguidos pelo luto torna-se necessário examinar antes a forma como a presença da dimensão alteritária pode ser concebida nos primórdios da constituição do psiquismo. A necessidade de percorrer este caminho se justifica na medida em que, em termos de relações objetais, a separação mãe-bebê coloca diretamente em evidência a situação de dependência na qual o sujeito se encontra absolutamente atrelado ao objeto para uma série de satisfações pautado, porém, na ilusão narcísica de autossatisfação. Diante das ausências do objeto um exame da metapsicologia da presença permite evidenciar um modelo de encontro, particularmente dos primeiros encontros e, desta forma, descortinar as vias da experiência de separação.

Com o intuito de teorizar a respeito da presença do ambiente nos momentos iniciais da constituição da subjetividade, Winnicott (1967), em seu artigo "O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil", estabelece uma analogia entre a função materna e a função especular. A principal tese desenvolvida neste artigo é a de que para perceber objetivamente a realidade é preciso que a criança tenha introjetado a experiência de ter sido objeto de investimento do olhar materno. Winnicott (1967) caracteriza o desenrolar de tal experiência a partir do momento em que o bebê passa a olhar em volta e a estabelecer certos movimentos. Isto leva o autor a considerar a hipótese de que um recém-nascido ao seio, prioritariamente, olha para o rosto de sua mãe. Ao formular esta hipótese, coloca a seguinte questão: "O que vê o bebê quando olha para o rosto de sua mãe? Sugiro que normalmente, o que o bebê vê é ele mesmo. Em outros termos, a mãe está olhando para o bebê e aquilo com o que ela se parece se acha relacionado com o que vê ali" (p. 154). Desta forma, é possível afirmar que o bebê se vê refletido no olhar materno. É, justamente, com as respostas faciais da mãe que o bebê se identifica e, por consequência, vai dando sentido à própria existência antes que possa, gradualmente, constituir um sentimento de eu. No artigo La dépendance primitive et l'homossexualité primaire 'en double', Roussillon (2004) oferece um prolongamento da importância dada por Winnicott à função especular materna quando concebe que os primeiros vínculos estabelecidos pelo bebê pressupõem o encontro com um "objeto duplo de si-mesmo" (ROUSSILLON, 2004). Neste sentido, cabe ressaltar que este objeto deve ser entendido como um duplo-semelhante posto que, especularmente, a mãe encarna o papel de um duplo vivido como uma espécie de diferente capaz de se fazer semelhante (SALEM; KLAUTAU, 2013). Para demarcar este tipo de vínculo primitivo com o objeto, a experiência de uma homossexualidade primária em duplo é postulada pelo autor:

Um duplo é um outro, se o duplo não é um outro, ele não pode ser um duplo; a referência ao duplo exclui a confusão psíquica. Não se trata aqui de uma forma de indiferenciação nem de uma forma de 'fusão'. Mas um duplo é um semelhante, ele se torna, é tornado semelhante num encontro e nas condições desse encontro. Para que exista certa qualidade do prazer 'homossexual em duplo', o outro deve ser encontrado como um semelhante, naquilo que ele é semelhante, mas também naquilo que ele se 'propõe' a ser semelhante, naquilo que ele se 'faz' semelhante, no que aceita se tornar semelhante, que ele aceite partilhar os mesmos estados de ser, os mesmos estados de espírito [...]. (ROUSSILLON, 2008, p. 114).

Através do conceito de homossexualidade primária em duplo Roussillon (2004; 2008) aponta para a coincidência entre a capacidade adaptativa da mãe suficientemente boa ao seu bebê, e, igualmente, para certa nuance de diferença bebê/objeto nas experiências de satisfação que compõem o narcisismo primário, tal como talvez possa ilustrar a necessidade de certa adaptação por parte do bebê à percepção periférica do seio da mãe visto de perfil. Um trabalho adaptativo como esse não assume um caráter necessariamente traumático para o bebê e tampouco invalida a experiência de ilusão que permeia o encontro/criação do objeto subjetivo. Pelo contrário, abre à possibilidade de pré-inscrição da futura questão referida potencialmente à sexualidade materna. São portanto fundamentais as características e as formas que assumem os reflexos em espelho da mãe para o seu bebê. Nesse contexto de comunicação em duplo pelo menos quatro fios de experiência de satisfação estão em jogo. O primeiro deles remonta à satisfação orgânica associada às necessidades somáticas, o segundo diz respeito ao prazer das zonas erógenas fundamentado inicialmente na teoria do apoio, já o terceiro se refere justamente ao encontro com um objeto e às condições desse encontro. É precisamente neste momento que um outro precisa estar presente e, sobretudo, se configurar como objeto investidor e de investimento. Além disso, é exatamente nesse ponto que se faz necessário considerar o aparato pré-conceptivo inato do bebê assim como as competências que o favorecem a perceber a existência de um outro com quem será possível construir um vínculo de apego. No âmbito então do terceiro fio da trança de prazeres primitivos, Roussillon (2008) pressupõe uma experiência de satisfação que perpassa um compartilhamento de prazer na relação mãe-bebê que engloba duas perspectivas: a estésica e a sintonia afetiva. Da primeira fazem parte a imitação (a adequação mimo-gesto-postural), a antecipação e mesmo o êxtase com a harmonia do encontro primitivo. Já do ponto de vista da sintonia afetiva, tem-se propriamente o ajustamento da mãe ao bebê, ou a sua adaptação a ele em conformidade com o estado emocional do bebê, porém comportando variações entre o que pode ser identificado como um afeto passional, um afeto intenso e um afeto-sinal.

Há, por fim, um quarto fio da trança de satisfações iniciais que alude ao prazer propriamente do objeto, enigmático para a criança em função da diferença que coloca entre a sua linguagem e a do adulto. Este enigma, no entanto, pode evocar a existência de um terceiro elemento e assim a organização da fantasia da cena primária. Trata-se nesse aspecto do prelúdio de uma dimensão colocada em termos de objeto do objeto que estabelece a possibilidade de abertura à conflitualidade psíquica atrelada a relações triangulares.

De todo modo, as primeiras trocas com o ambiente nos moldes da homossexualidade primária em duplo fundam conjuntamente uma expressividade mimo-gesto-tônico-postural compartilhada que permite criar uma forma de linguagem assim como uma reciprocidade que torna tolerável a dependência. Segundo o autor:

[...] o papel desempenhado pela organização e pela regulação da homossexualidade primária em duplo é determinante: é ela que condiciona a 'mutualidade', a reciprocidade suficiente que torna a dependência tolerável, que atenua a ferida que ela representa para o Eu, que alivia o sentimento de impotência e mesmo o desamparo que ela às vezes implica." (ROUSSILLON, 2008, p. 134).

Nesse contexto de encontro, que configura uma metapsicologia da presença, tanto a empatia quanto o esforço de ajustamento da mãe ao seu bebê permitem mantê-lo informado da intenção dela de estabelecer contato com o estado emocional dele como, ao mesmo tempo, testemunham para ele a maleabilidade dela, vivida inicialmente por ele como efeito de sua capacidade de criar o mundo (ROUSSILLON, 2013). Assim, são estabelecidas as bases para a regulação das dissimetrias da vida experimentadas inicialmente pelo bebê como ausência ou falha materna. Tais experiências são de extrema importância para a constituição da subjetividade pois são passíveis de anunciar as condições psíquicas de uma separação futura da unidade primordial.

Na configuração de uma metapsicologia da presença, a função de espelho do rosto da mãe para o bebê postulada por Winnicott ressalta para além do rosto da mãe aquilo que ela transmite com a ajuda de seu corpo, ou seja, o manejo que ela dispensa a ele. Isto confirma o lugar essencial dos "ecos", ou duplos, reenviados à criança nas relações objetais primárias engendrando um tipo de encontro que só é possível "se a mãe pode partilhar o estado interno de seu bebê, se o estado interno de seu bebê se torna, pelo menos durante um tempo, um estado comum", assinala Roussillon (2013, p.228). Indo além, o autor assegura: "É este tipo de troca e de comunicação que estabelece as representações de uma 'união' entre bebê e ambiente" (ibid, p. 229).

O sucesso do tipo de representação de uma união enquanto uma construção simbólica certamente favorece a regulação da economia libidinal na medida em que a falta materna se impõe e a separação se anuncia, pois, nessas situações de ausência, o sujeito se vê confrontado não apenas com a ausência perceptiva do objeto que o teste de realidade não pode mais assegurar, mas principalmente com a questão de uma representação interna do objeto investido: "O problema específico da separação é aquele da passagem da presença à ausência" (ROUSSILLON, 2013, p. 216), o que significa que a impossibilidade de perceber o objeto externamente deve estar descolada da representação interna da relação de objeto pautada na união do encontro, e que esta deve, além disso, permanecer constante. Um luto é então colocado em marcha no trabalho de separação da união mãe-bebê inserindo uma brecha nas satisfações narcísicas primárias e assinalando questões quanto à relação estabelecida com o objeto, sobretudo em termos de representação. Daí em diante, a qualidade da presença materna favorece os caminhos do luto por uma via de independência ou, de forma contrária, por uma via de reasseguramento da dependência na qual a separação é passível de abrir feridas, tal como a melancolia evidencia.

 

Descaminhos do luto: melancolia e as falhas da função especular materna

A questão examinada se complexifica na medida em que contextos traumáticos passam a permear as primeiras relações objetais. Contextos estes cujo paradigma pode ser descrito por intermédio de situações em que a ausência é concebida como a única forma de presença ou, em outros termos, quando o olhar da mãe não comparece como espelho para o bebê. Como fica então o engendramento narcísico, o jogo de identificações, a construção de representações? É sob essa perspectiva que os primeiros encontros desvirtuados criam obstáculos para a separação. Neste contexto, o luto aparece em seus descaminhos e a melancolia, e não apenas ela, pode ter que assumir a cena psíquica.

Ao analisar as manifestações de luto e de melancolia, Freud (1917[1915]) estabelece uma diferença fundamental entre ambas: o estatuto dado ao objeto de amor perdido. Enquanto no luto a perda do objeto é atestada pelo teste de realidade, na melancolia a perda é de natureza ideal. Isto significa que, frente ao teste de realidade, o objeto "não é algo que realmente morreu, mas que se perdeu como objeto de amor" (ibid, p. 51). Nos casos de melancolia, Freud ressalta que esta perda ideal, não atestada pelo teste de realidade, também engloba as qualidades do objeto. Qualidades estas que o melancólico não sabe enumerar, não consegue reconhecer mas, mesmo assim, sabe que perdeu. Este sentimento, que aparece frequentemente no discurso melancólico, faz com que Freud estabeleça a seguinte correlação: "Isso nos levaria a relacionar a melancolia com uma perda do objeto que foi retirada da consciência, à diferença do luto, no qual nada do que diz respeito à perda é inconsciente" (ibid, p. 51). Se levarmos em conta esta distinção, torna-se possível entendermos o caráter passageiro do luto e a permanência da melancolia: no luto é possível atestar que o objeto que existia já não existe mais ao passo que na melancolia o teste de realidade não garante a perda do objeto. Só temos acesso a tal perda a partir do discurso do melancólico. Desta forma, há uma permanência de algo que, segundo Freud, só pode existir no inconsciente. Seguindo este raciocínio, podemos dizer que há uma presença inconsciente que se configura como uma ausência na consciência, como uma perda de algo que dificilmente pode ser descrito.

Tal como acontece no luto, na melancolia há um trabalho iniciado em reação à perda. A diferença é que no luto, a inibição e a falta de interesse duram o tempo necessário para que a libido possa se desligar do objeto perdido, enquanto que na melancolia a inibição e a falta de interesse perduram já que o objeto amado encontra-se perdido no inconsciente. Sendo assim, há a permanência da inibição dos investimentos libidinais e da falta de interesse em estabelecer novos laços afetivos com outros objetos. Tal estado passa a se configurar como uma posição subjetiva que, de acordo com Freud (1917[1915]), é composta por um tipo de sofrimento que não é observado no luto: um rebaixamento extraordinário do sentimento de autoestima, uma autodepreciação e um empobrecimento do ego:

O doente nos descreve o seu ego como indigno, incapaz e moralmente desprezível; ele se recrimina, se insulta e espera ser castigado. Humilha-se perante os demais e tem pena dos seus por estarem ligados a uma pessoa tão indigna. Não julga que lhe aconteceu uma mudança, mas estende sua autocrítica ao passado: afirma que ele nunca foi melhor. O quadro desse delírio de inferioridade - predominantemente moral - se completa com insônia, recusa de alimento e uma superação - extremamente notável do ponto de vista psicológico - da pulsão que compele todo ser vivo se apegar à vida (FREUD, 1917[1915], p. 53).

Diante da descrição freudiana, é possível perceber que ao se depreciar, o melancólico se distancia do enlutado. Este último sofre pela perda de um amor, ao passo que o melancólico sofre por se julgar indigno de amor. A partir desta correlação é possível perceber que o sofrimento do melancólico aponta constantemente para si-mesmo, "de suas afirmações surge uma perda em seu ego" (FREUD, 1917[1915], p.57). De acordo com Freud, se colocada em evidência, esta perda pode ser reconstituída: "Houve uma escolha de objeto, uma ligação da libido a uma pessoa determinada; graças à influência de uma ofensa real ou decepção por parte da pessoa amada, essa relação de objeto ficou abalada. O resultado não foi o normal, uma retirada da libido desse objeto e o deslocamento para um novo, mas foi outro [...]" (FREUD, 1917[1915], p. 61). O percurso empreendido pela libido livre, de acordo com Freud, foi a retirada para o próprio eu: "Lá, contudo, ela não encontrou uso qualquer, mas serviu para produzir uma identificação do ego com o objeto abandonado. Desse modo, a sombra do objeto caiu sobre o ego [...]" (ibid, p. 61). E mais: a identificação narcísica passou a ocupar o lugar de um investimento objetal. Podemos, então, localizar neste descaminho uma alteração em relação ao trabalho de luto: "a perda do objeto se transformou em uma perda do ego e o conflito entre o ego e a pessoa amada em uma bipartição entre a crítica do ego e o ego modificado pela identificação" (ibid, p. 61). Temos, portanto, a identificação narcísica como o epicentro da melancolia e o corolário disto é que a identificação narcísica mantém o objeto perdido vivo no interior do próprio eu: o objeto é mantido assim a qualquer custo.

Sem abrir mão do objeto pela identificação narcísica e sob o domínio de sua sombra, o melancólico não renuncia ao amor e tampouco à hostilidade que nutre para com ele. Isto se deve basicamente ao amor e ódio presentes na identificação instaurando o conflito devido à ambivalência que se desenha na manobra identificatória do melancólico: por um lado, o amor pelo objeto é perpetuado na substituição do investimento objetal pela identificação narcísica; por outro lado, o ódio é igualmente mantido nos ataques ao eu, depreciativos e acusatórios, num satisfatório processo de autotortura que tende mesmo ao sadismo e explica de certo modo a possibilidade de suicídio na melancolia (DAMOUS, 2012). Vale notar que a permanência da hostilidade para com o objeto, destinado ao próprio eu identificado com o objeto, é empreendida por uma parte do eu que atua independentemente como agente crítico, tomando o eu por objeto e voltando-se intensamente contra ele julgando-o. Desse modo, o melancólico não expressa abertamente sua hostilidade contra o objeto que também é amado, o que evoca portanto também o sentimento de culpa no complexo melancólico que traça um caminho tortuoso e indireto de ataque ao objeto. De fato, sem abrir mão do objeto perdido através da identificação narcísica, o melancólico mergulha em autocomiseração e recriminação, considerando-se constantemente sem valor, sem capacidade de realização e ainda dotado de moral desprezível. Degradando a si mesmo e comunicando sua pobreza interior insistentemente, sem vestígios de vergonha, para os melancólicos, geralmente, "queixar-se é dar queixa no velho sentido do termo; eles não se envergonham nem se escondem, porque tudo de depreciativo que dizem de si mesmo no fundo dizem de outrem" (FREUD, 1917[1915], p. 59).

Se retomarmos as elaborações apresentadas acerca da função especular, torna-se possível conceber esse outro, figura principal das queixas melancólicas, como aquele que, nos primórdios da constituição subjetiva, não desempenhou o papel de um "objeto duplo de si-mesmo" ( Roussillon, 2004; 2008). De fato, sem os ecos da mãe demarcando uma reflexividade para o bebê no contexto das primeiras satisfações, a saída encontrada no complexo melancólico é a identificação com as qualidades presentes na ausência do objeto, ou como já foi dito, com a sombra do objeto:

[...] [a] hipótese de que a sombra do objeto seria aquilo que o objeto não refletiu ao sujeito de seus próprios estados e movimentos internos, lá onde falhou sua função de espelho, lá onde ele frustrou a expectativa narcísica primária do sujeito. Para seguir além de Freud e Winnicott, eu diria que o sujeito tende então a incorporar o objeto e a parte dele que experimenta como tendo sido confiscada por este objeto quando ele não lhe reflete nada (ROUSSILLON, 2004, p. 189).

Para que a ausência não se faça presente, o objeto não é dado como perdido. Pelo contrário, a decepção em relação ao não-encontro com o objeto é negada e, neste momento, a identificação narcísica assume a cena, regredindo à sua forma primordial: canibalisticamente, o objeto é incorporado, colocado para dentro do eu, passando, então, a existir no seu interior. Diferentemente do caminho percorrido durante o processo de luto, ao invés de ser gradualmente desinvestido, posteriormente abandonado e reinvestido num substituto, o objeto é assim presentificado na incorporação:

Todas as palavras que não puderam ser ditas, todas as cenas que não puderam ser rememoradas, todas as lágrimas que não puderam ser vertidas, serão engolidas, assim como, ao mesmo tempo, o traumatismo, causa da perda. Engolidos e postos em conserva. O luto indizível instala no interior do sujeito uma sepultura secreta. Na furna repousa, vivo, reconstruído a partir de lembranças de palavras, de imagens e de afetos, o correlato objetal da perda, enquanto pessoa completa, com sua própria tópica, bem como os momentos traumáticos - efetivos ou supostos - que haviam tornado a introjeção impraticável (ABRAHAM; TOROK, 1995, p. 249).

A passagem transcrita deixa claro que a incorporação cria uma dependência objetal. O objeto perdido que deveria estar morto passa a viver numa tumba, no interior do eu, guardando consigo lembranças afetivas de momentos correlatos da perda. O luto é magicamente colocado em conserva e, com isso, a separação do objeto é inviabilizada. Neste descaminho do luto, a manutenção da situação de dependência pelo viés da identificação narcísica pode ser entendida como uma recusa à realização do trabalho de luto, único recurso capaz de promover a inscrição de um espaço psíquico para a perda do objeto. Sem a elaboração e a assimilação da perda, o objeto incorporado passa a ocupar maciçamente o espaço egóico impedindo, assim, a construção demarcação de fronteiras psíquicas.

 

Entre a presença e a ausência: o trabalho de separação na relação mãe-bebê

Até aqui nossa proposta foi a de seguir os caminhos e descaminhos do luto, a partir da relação de presença/ausência estabelecida entre mãe e bebê, que marcam a organização subjetiva e o tornar-se si-mesmo. Diante do que foi exposto, é possível perceber que o trabalho de luto não só encontra-se associado à elaboração e assimilação da perda de um objeto de amor como também ao trabalho de separação da unidade primordial mãe-bebê e à construção de representação que implica essa separação. Esse trabalho torna-se fundamental quando o que está em questão é a perda do prazer e da satisfação narcísica que tendem a permear os primórdios da relação mãe-bebê. Com o intuito de destacarmos a importância do estabelecimento de um interjogo entre presença e ausência durante o trabalho de separação, apresentaremos, de forma breve, um fragmento clínico que ilustra esta questão1:

Diana, um bebê pré-termo nascido com 31 semanas de gestação, sem maiores complicações durante o parto, é a primeira menina e caçula de um casal que já tem dois filhos, oito e dez anos mais velhos. Sua mãe conta que a gravidez não foi programada e diz não saber o que fez "para merecer uma filha menina". Como veremos, este relato revela a ambiguidade do discurso manifesto materno pois apesar de expressar o ganho de ter tido uma menina, a frase marca também uma espécie de "castigo" por ter dado a luz a uma filha-mulher.

Diana recebeu este nome "porque nasceu para ser a princesinha da família". Maria teve uma gravidez complicada, pois ganhou muito peso, e, como relata, desde o terceiro mês de gestação, sua pressão arterial "subiu de tanta emoção". Maria conta que a proximidade do final da gestação a deixava "a mil" com tantas coisas para preparar: "minha princesinha tinha que chegar e encontrar tudo cor-de-rosa. Muita coisa que eu sonhei não dava pra fazer, aí acho que descontei na comida". Diana nasceu prematura, ficou internada na UTI por, aproximadamente, um mês para ganhar peso. Durante este período Maria passou todo o tempo da internação no hospital com a filha, sem ir até sua casa uma única vez. Após a alta hospitalar, Diana começou a não ganhar peso e a apresentar um quadro de refluxo que se tornava grave. Durante o processo de desmame o refluxo se agravou e a pediatra, atenta a necessidade de Maria superalimentar Diana, encaminhou o casal e a filha para um atendimento psicanalítico.

Em uma das primeiras entrevistas, Maria segurava Diana no colo, apertando-a contra seus seios de tal modo que ficava difícil enxergar a cabeça da neném, dando a impressão de sufocá-la. Desde a alta hospitalar, Maria relata levar Diana, pelo menos duas vezes por semana, ao posto de saúde para pesá-la, pois achava que seu leite não alimentava a filha: "eu acho que é fraco, a bichinha fica chorando". Maria acredita que "só o peito não dá, ela chora muito". Conta que, mesmo sem recomendação da médica, dá um complemento vitamínico para a menina. Relata ainda que põe a filha no colo, troca a fralda e mesmo assim, Maria continua chorando: "só pode ser de fome". Durante os atendimentos, foi possível notar que qualquer choro ou inquietação de Diana eram traduzidos como fome, mesmo se este fosse decorrente da recusa à mamadeira. A recusa era interpretada como manha, como uma tentativa de desagradá-la, revelando a angústia e a dificuldade da mãe em alternar presença e ausência.

Ao falar de sua infância, Maria relata ter tido uma mãe muito atarefada e pouco afetuosa que delegava às filhas mais velhas o cuidado dos irmãos mais novos. Desta forma cresceu recebendo o cuidado das irmãs mais velhas que a tratavam como "parte da casa que deveria estar sempre limpa". Em um dos atendimentos, conta um fato que a marcou muito. Quando tinha 10 anos, ficou em casa com um de seus irmãos, cuidando do irmão mais novo ainda bebê. Em um determinado momento, achou o bebê muito quietinho e percebeu que ele estava queimando em febre. Chamou a avó, que morava nos arredores. A avó chamou o médico, mas o bebê veio a falecer alguns dias mais tarde. Ela se sentiu muito responsável pela morte do irmão, mesmo tendo sido isenta de responsabilidade pela mãe e pela avó que lhe asseguraram que ela fez tudo o que podia ter sido feito.

Este pequeno fragmento da história infantil de Maria aliado ao dado de que ela havia engordado demais e que não conseguia retomar o trabalho após o nascimento de sua filha permite entendermos o refluxo de Diana como um pedido de separação de sua mãe que a engolia, sufocando-a em seus braços. O excesso observado na forma como a mãe segurava o bebê pode ser pensado a partir da relação ambivalente de amor e ódio direcionada a Diana. Através de um excesso de cuidados, Maria parece proteger a filha de si mesma, devido a seu medo de danificá-la, o que pode ser percebido mais claramente na maneira como se desenrolam as situações de amamentação. Devemos chamar atenção para o fato de que, diante de sua insistência exigente em colocar algo para dentro de sua menina, esta responde com uma recusa, colocando para fora o que lhe era ofertado. Aqui o refluxo pode ser entendido como uma forma de comunicação muito primitiva através da qual uma primeira delimitação eu/não-eu é demandada, tal como um apelo por uma espécie de cuidado negativo, de ausência materna. Ou em outros termos, de separação. Mesmo diante de tal demanda, Maria continua atribuindo os apelos de sua filha à falta de comida. Esta talvez fosse a garantia de afastamento do fantasma da morte e da repetição de seu passado, provavelmente reativado com a necessidade de hospitalização de sua filha recém-nascida. Desta forma, Maria encontrava-se identificada, não com Diana e suas demandas, mas com o bebê que ela mesma foi, filha de uma mãe pouco afetuosa e muito atarefada, que quando se tratava de dar amor, deixava-a sempre de barriga vazia.

Na ocasião do nascimento de Diana, Maria ainda nutre uma identificação narcísica para com a própria mãe? Manteria assim seu investimento libidinal nessa relação perpetuando a presença materna através da sombra desse objeto tombada sobre si? Tais questões nos conduzem a algumas ranhuras da função especular, principalmente, no que diz respeito à sustentação dos jogos identificatórios e às primeiras satisfações narcísicas que facilitariam os caminhos de um luto primário associado à separação e, em última instância, à possibilidade de tornar-se si-mesmo. Agravada a situação com a morte de seu irmão mais novo, Maria nutriu em seu interior o contexto traumático de sua infância nos moldes de uma sepultura secreta, como falam Abraham e Torok (1995). Com o nascimento de Diana tal contexto passa a ocupar o primeiro plano, pois Maria estabelece com sua filha uma relação de objeto em que tudo é interpretado como fome: seu ganho de peso durante a gestação, o choro da filha e provavelmente suas ansiedades em geral. Sua sepultura precisa ser alimentada assim como é através da necessidade de alimento que enxerga o mundo. Essa fome ainda voraz a conduz a relações com sua filha marcadas pelo excesso e ambiguidade em termos de proteção/engolfamento, cuidado/invasão, amor/ódio, através da qual alimenta Diana invasiva e insistentemente. Esta conduta indica finalmente que os ecos ou duplos sugeridos por Roussillon por ocasião das relações objetais primárias sinalizam mais descaminhos que caminhos nessa relação mãe-bebê, dificultando mesmo algum trabalho adaptativo de Diana no sentido de estabelecer algum estado comum com sua mãe.

Quando se trata do contexto de relações objetais traumático, marcado por decepções e maus tratos, sejam esses por excesso de presença ou de ausência, torna-se um grande impasse para o sujeito entregar-se amorosa e odiosamente sem conflito pela ambivalência. Isto não apenas abala a possibilidade de luto, como instaura um sistema de contra investimento utilizando os mesmos motivos odiosos sofridos pelo objeto numa espécie de agressão fantasística que, no entanto, não é a primeira: "ela prolonga aquela, efetiva, que já atingiu o objeto - a morte, a vergonha sofrida, o distanciamento, causa involuntária da ruptura" (ibid, p. 255). Em casos como o de Maria, a presença não cede à ausência, a perda não pode ser confessada como perda, ela é tanto negada quanto presentificada pela incorporação que, em última instância, dá segurança ao ego: "Diante da iminência de perder sua sustentação interna, o núcleo do seu ser, o ego vai se fundir com o objeto incluso que ele imaginará isolado de si e começar às claras um "luto" interminável" (ibid, p. 255).

Vemos, assim, que tanto para garantir sua sustentação interna quanto para proteger e cuidar de sua menina, Maria lançou mão do recurso de colocar para dentro de si e de sua filha alimentos que não as deixassem de barriga vazia. Ao longo dos atendimentos, os apelos de Diana puderam ser traduzidos e gradualmente Maria tornou-se sensível à demanda de separação da filha. Separação esta que, aos poucos, foi sendo experimentada fisicamente durante os atendimentos já que após alguns meses de sessões conjuntas, Maria pode começar a deixar Diana em casa sob os cuidados do pai. A partir de então, passou a ser atendida sozinha. O trabalho analítico permitiu que o excesso, tanto de presença quanto de alimentação, pudesse ser associado a sua própria história e, por conseguinte, à tentativa de preencher sua fome de afeto e cuidados. Desta forma, Maria conseguiu começar a elaborar a perda mantida em conserva ao longo de sua vida.

Se nos caminhos do luto vislumbramos o trabalho de separação possível na relação mãe-bebê, é porque apostamos que, no luto, a realidade da perda do objeto no mundo externo é suportada justamente mediante a sua representação no mundo interno enquanto processo facilitado pela qualidade da presença em duplo nos primórdios da existência. Nesse sentido, podemos fazer referência ao processo psíquico de introjeção que organiza o mundo interior e que conduz a um alargamento do ego (FERENCZI, 1909). Em contrapartida aos caminhos do luto que viabilizam a separação mãe/bebê, teríamos então os seus descaminhos situados na discussão sobre a melancolia e seus derivados, que dizem respeito principalmente à identificação narcísica e ao conflito devido à ambivalência. Aqui, diferentemente da introjeção, a incorporação se destaca, delineando uma fantasia de cura mágica que dispensa, ou mesmo recusa, o dispendioso trabalho de recomposição exigido pelo luto.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 01/06/2015
Aprovado para publicação em: 04/08/2015

Endereço para correspondência
Perla Klautau
E-mail: pklautau@uol.com.br
Issa Damous
E-mail: issa@infolink.com.br

 

 

*Psicanalista, membro efetivo Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro-CPRJ, profa. Programas de Mestrado e Doutorado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (Rio de Janeiro-RJ-Brasil).
**Psicanalista, profa. adjunta Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense-UFF/Pólo Rio das Ostras (Rio das Ostras-RJ-Brasil).
1Este caso foi atendido pela primeira autora deste artigo, no âmbito da pesquisa de Pós-doutorado A intervenção psicoterapêutica na relação precoce mãe-bebê, realizada por Silvia Zornig, no Instituto Fernandes Figueira, sob a coordenação do Prof. Octavio Souza. Participaram também da equipe de pesquisa: Angela Rabelo, Denise Morsh e Suzana Pons Antunes. Este caso já figurou objeto de análise em outro artigo, cf. Zornig, 2001.

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