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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.37 no.33 Rio de Jeneiro Dec. 2015

 

ARTIGOS

 

Suportar o ódio, suportar o próprio ódio: os casos R.N., S.I. e os limites na clínica de Ferenczi

 

On bearing hate, on bearing one's own hate: R. N. and S. I. cases and the limits of Ferenczi's clinical treatment

 

 

Priscila Frehse Pereira RobertI*; Daniel KupermannI**

IUniversidade de São Paulo - USP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo consiste na investigação das articulações ferenczianas sobre o manejo da transferência diante do risco da reincidência traumática na clínica. O percurso contempla do questionamento da posição do analista desde os primeiros escritos de Ferenczi, bem como problemas clínicos, que o levaram à sua teoria do trauma e da identificação ao agressor e à proposição da elasticidade da técnica psicanalítica. Para ilustrar a íntima relação entre construção teórica e investigação clínica, os casos R. N. (Elisabeth Severn) e S. I., do Diário clínico de Ferenczi, são abordados, demonstrando a necessária implicação do analista no manejo clínico, quando o ódio traumático reincide na transferência, em busca de simbolização.

Palavras-chave: Transferência, Trauma, Ódio, Manejo, S. Ferenczi (1873-1933), Psicanálise.


ABSTRACT

This study investigates Ferenczi's propositions on transference management in face of the risk of traumatic recurrence in the clinical treatment. The course of the inquiry addresses the questioning of the analyst's position from the early writings of Ferenczi, as well as the clinical problems that led to his theory of trauma and identification with the aggressor and the proposition of elasticity in psychoanalytical technique. To illustrate the close relationship between theoretical construction and clinical research, R. N. (Elisabeth Severn) and S. I, cases of Ferenczi's Clinical Diary, are covered, thus demonstrating the necessary implication of the analyst in the clinical management when traumatic hate recurs in the transference, in search of symbolization.

Keywords: Transference, Trauma, Hate, Management, S. Ferenczi (1873-1933), Psychoanalysis.


 

 

O questionamento da posição do analista em Ferenczi

Se Dinâmica da transferência (1912) é o texto que fornece um mapa central sobre o conceito de transferência em Freud, o ponto de partida, a partir do qual é possível derivar as outras articulações teóricas da transferência, o mesmo se pode dizer do texto Transferência e introjeção (1909), de Ferenczi. Do mesmo modo que Freud, parte do campo clínico da histeria, mas traz, como grande novidade, o conceito de introjeção. Diz Ferenczi: "O neurótico procura incluir na sua esfera de interesse uma parte tão grande quanto possível do mundo externo, para fazê-lo objeto de fantasias conscientes ou inconscientes" (FERENCZI, 1909/2011, p. 95) Os esboços da paradoxal relação entre "percebido objetivo" e "subjetivo" e o movimento expansivo e erótico do sujeito em direção ao mundo, que será, posteriormente, articulada por Ferenczi emO conceito de introjeção (1912) e Desenvolvimento dos sentidos da realidade e seus estágios (1913) são aqui enunciados.

A introjeção, para Ferenczi, é constitutiva, na medida em que se refere a um movimento de inclusão de tudo o que pode ser incluído no psiquismo, um movimento que não se diferencia do narcísico e que compõe "as bases identificatórias do que mais tarde formará o aparato egoico como um todo" (PINHEIRO, 1995, p. 51). Abraham; Torok (1995, p. 222) sintetizam as considerações de Ferenczi, de maneira exemplar:

É que, precisamente, a aspiração da introjeção não é da ordem da compensação, mas da ordem do crescimento: ela busca introduzir, alargando-a e enriquecendo-a, a libido inconsciente, anônima ou recalcada. Além disso, não se trata de 'introjetar' o objeto, como se diz facilmente, mas, o conjunto das pulsões e de suas vicissitudes cujo objeto é o próprio contexto e mediador. (ABRAHAM; TOROK (1995, p. 222).

Ferenczi, porém, levará, aproximadamente, 20 anos para retomar o conceito de introjeção, mas em sentido distinto do que é aqui apresentado, uma vez que será concebido como resposta traumática e relativa à identificação ao agressor. Desde então, o conceito segue vivo no movimento psicanalítico, com desenvolvimentos importantes na psicanálise a partir dos anos 1950 (OLIVEIRA, 2011, p. 54).

Mas, é importante destacar que, em Transferência e introjeção (1909/2011), os afetos hostis, na clínica, já estão sublinhados neste artigo. Tudo indica que a polarização da transferência em positiva e negativa tenha a primeira aparição textual, justamente neste texto: "reconhecer a transferência das emoções positivas e negativas é capital na análise" (FERENCZI, 1909/2011, p. 91), antes, portanto, de sua aparição em Dinâmica da transferência (1912), de Freud.

Ferenczi destaca que todo sentimento de simpatia ou antipatia se refere à uma posição sexual inconsciente e que o analista é catalisador das transferências em análise (FERENCZI, 1909/2011, p. 106). De um lado, "o comportamento naturalmente compreensivo, benevolente, por assim dizer "paternal" do psicanalista" é capaz de engendrar "simpatias conscientes e fantasias eróticas inconscientes cujos primeiros objetos foram os pais" (FERENCZI, 1909/2011, p. 91). Mas também - e a esse aspecto nos interessa destacar - o analista pode operar como catalisador das transferências negativas:

Em contrapartida, uma única palavra um pouco menos amistosa, um comentário a propósito da pontualidade ou de qualquer outra obrigação do paciente basta para desencadear toda a raiva, o ódio, a oposição, a cólera recalcados, outrora alimentados a respeito das pessoas onipotentes que lhe impunham o respeito pregavam a moral, ou seja, os pais, os adultos da família, os educadores (FERENCZI, 1909; 2011, p. 91, itálicos nossos).

Temos, aqui, os germes das articulações posteriores de Ferenczi sobre transferência: raiva, ódio, oposição, cólera poderão estar relacionados à onipotência, à imposição de respeito e à moral e desencadeados (ou não) pela posição do analista na transferência.

Mas, é na segunda parte de Transferência e introjeção (1909), intitulada Hipnose e sugestão, que a posição do analista começa a ser explicitamente problematizada, a partir do estudo das relações entre hipnose, sugestão e transferência. A citação a seguir, que fecha o texto, é espécie de anúncio dos temas que serão desenvolvidos ao longo de sua produção teórica:

A sugestão e a hipnose correspondem à criação artificial de condições em que a tendência universal (geralmente recalcada) para a obediência cega e a confiança incondicional, sobrevivência do amor e do ódio infantil-erótico pelos pais, é transferida do complexo parental para a pessoa do hipnotizador ou do sugestionador (FERENCZI, 1909/2011, p. 123).

É preciso que o hipnotizado encontre no hipnotizador um mestre capaz de despertar "os mesmos afetos de amor ou de temor, a mesma fé cega em sua infalibilidade que a criança sentia por seus pais" (FERENCZI, 1909/2011, p. 111, itálicos do autor). O argumento de Ferenczi, em espécie de prenúncio à discussão posterior de Freud sobre o masoquismo erógeno (FREUD, 1924/2007), é que o aparecimento do amor objetal e a consequente introjeção de objetos de amor no ego faz com que a obediência "deixe de ser um desprazer". O problema da mestria - que será tratado de maneira original por Lacan (1969-1970/1992) - começa, aqui, a ser articulado em relação à dimensão constitutiva do complexo de Édipo.

Mas, se de um lado, as identificações são constitutivas, de outro, podem ter efeitos catastróficos quando ultrapassam um limiar: "Naturalmente, essa obediência espontânea tem um limite que varia segundo os indivíduos e, quando esse limite é transposto pelas exigências dos pais (...) pode levar a uma perturbação brutal do desenvolvimento psíquico" (FERENCZI, 1909/2011, p. 115).

Essas "perturbações brutais do desenvolvimento" ganharão importância cada vez maior na teoria de Ferenczi, desembocando em sua teoria do trauma e, consequentemente, em leitura peculiar sobre o masoquismo. Ferenczi percebe uma dimensão de submissão em situações nas quais a transferência reflete uma potência paterna irredutível, resultando ou em docilidade ilimitada ou em arrogância obstinada.

A discussão sobre a posição do analista reaparecerá em seu texto A técnica psicanalítica (1919). Como Ferenczi estava atento à problemática da obediência, da confiança e da submissão na transferência, não tardaria a se questionar sobre os paradoxos e "contradições" do manejo da transferência e da contratransferência tal como estavam enunciados na "técnica clássica" (FREUD, 1911-1915). Como aponta Prado de Oliveira (2011, p. 24):

Ferenczi é o pioneiro de um conjunto de iniciativas tão necessárias quanto as indicações de Freud são contraditórias, porque é impossível conciliar "associação livre", "atenção flutuante" e "precisão cirúrgica", proposições antagônicas para o tratamento psicanalítico.

De um lado, é preciso deixar que o inconsciente do analista fale, de outro, a necessidade de exame metódico e intelectual do trabalho, algo entre o livre jogo da imaginação e o exame crítico e que demanda o domínio da contratransferência. Corolário da teoria da técnica de Freud (1911-1915), mas com uma sensibilidade clínica tal que permite entrever suas inovações técnicas, a dimensão paradoxal da transferência e a implicação do analista no campo transferencial começam a ser delineadas. Ferenczi não tardaria a dar uma atenção ainda mais especial à transferência negativa.

 

Elasticidade na técnica analítica e a traumatogênese ferencziana

Tentando abarcar a problemática do trauma, Ferenczi propõe um resgate no campo psicanalítico das bases traumáticas do sofrimento psíquico, em pecu liar retorno ao Freud dos primeiros anos da psicanálise. Como aponta Prado de Oliveira (2011, p. 27), foram as dificuldades clínicas encontradas por Ferenczi em seu percurso, que o levaram ao retorno às primeiras teses freudianas, sobre a teoria da sedução e os traumatismos infantis. Mesmo que Freud não tenha recusado inteiramente essas teses, nunca foi muito claro a esse respeito: "ter abandonado sua neurotica permitiu talvez à Freud construir seu edifício teórico, mas Ferenczi teve que retornar a essa neurotica para consolidar seu próprio edifício teórico, na teoria e na clínica".

Assim, Ferenczi se atreve a retornar ao território clínico explorado por Freud para, a partir dele, tentar mapear sua própria teoria: a teoria do trauma e a valorização da experiência da catarse na clínica. E assim, começa a se delinear uma dimensão mais primitiva, mais arcaica da transferência e o esboço de outro desenho para o sofrimento psíquico.

Se Freud (1940[1938] /1996) estava ciente da ineficácia da insistência na interpretação, que pode levar a análise para um campo predominantemente intelectual, Ferenczi, para tentar contorná-las, propõe o laisser-faire (FERENCZI, 1930a/2011, p. 68) - estratégia diametralmente oposta à técnica ativa, que ensaiara anos antes - e cria um espaço clínico que favorece a regressão dos pacientes e abre espaço para a repetição do trauma na clínica. Tal proposta parece afinada às considerações de Freud sobre o manejo relativo à compulsão à repetição : "nós a admitimos na transferência, como numa arena em que lhe é facultado desenvolver em quase completa liberdade" (FREUD, 1914a/2010, p. 206).

Assim, apesar de importantes pontos de contato entre os autores, Ferenczi segue seu próprio projeto de investigação. Aos poucos, o psicanalista começa a perceber que, com a regressão permitida pelo relaxamento - a criação de um ambiente clínico, em que o analisando pode "permitir-se tudo, impunemente, em palavras, em movimentos expressivos, em explosões emocionais" (FERENCZI, 1931/2011, p. 284) - nem sempre gerava um alívio ao paciente. Em certos casos, pelo contrário, a repetição acabava excessivamente bem-sucedida, com todo o horror e sofrimento a ela relacionados. Ferenczi estava, mais uma vez - como já havia se dado conta na técnica ativa - diante do risco da reincidência traumática. O trabalho tornava-se muito pesado para ambos, analisando e analista, como é possível observar em seus relatos do Diário clínico (1932/1990).

Nesse contexto clínico, Ferenczi começa a ficar atento às queixas e acusações dirigidas a ele pelos pacientes em momentos de transe. O curioso, ele nota, é que as acusações não eram a tônica da relação transferencial: "no final da sessão, minhas interpretações eram aceitas pelo paciente com uma docilidade e um empenho impressionantes e até com certa confusão". (FERENCZI, 1933/2011, p. 112). Em geral, não era possível perceber indícios de contrariedade nos pacientes, o que o leva a supor uma divisão no campo transferencial. Ou seja, a transferência era vivida de forma dissociada: havia afetos hostis que só eram dirigidos ao analista em situações especiais de transe. Em todos os outros momentos, o clima era de colaboração, sem indícios de contrariedade ou agressividade na transferência.

Assim, partindo da análise das dificuldades em contradizer o analista, de manifestar contrariedade e antipatia, Ferenczi parece ter a chave de uma de suas principais contribuições teóricas, o conceito de identificação ao agressor:

Cheguei pouco a pouco à convicção de que os pacientes percebem com muita sutileza os desejos, as tendências, os humores, as simpatias e antipatias do analista, mesmo quando este está inteiramente inconsciente disso. Em vez de contradizer o analista, de acusá-lo de fracasso ou de cometer erros, os pacientes, identificam-se com ele (FERENCZI, 1933/2011, p. 113).

São casos nos quais, em vez da transferência "em sentido clássico", a questão transferencial que ganha relevo é a da identificação, mas, especificamente, o conceito de identificação ao agressor. A originalidade de Ferenczi, está em não tratar dessa identificação no sentido regressivo, tal como fez Freud, mas pela progressão traumática (FERENCZI, 1933/2011, p. 119), cuja dinâmica se elucida a partir do conceito de identificação ao agressor.

A relevância do conceito de identificação ao agressor tem sido, consistentemente, discutida na comunidade psicanalítica (BERTRAND; BOURDELLON, 2009). Pela investigação do negativo de "Sua Majestade, o Bebê", de Freud (1914b/2010), Ferenczi trata das consequências psíquicas de crianças que são "hóspedes não bem-vindos" na família. Desconfiança, ceticismo, pobreza do fantasiar e a aversão à vida são percebidas nesses pacientes que, muito precocemente, "registraram bem os sinais de impaciência da mãe e que sua vontade de viver viu-se, desde então, quebrada" (FERENCZI, 1929/2011, p. 59). O problema da confiança que rondava Ferenczi desde seus primeiros escritos é relacionado ao desenvolvimento de uma sensibilidade especial aos afetos hostis do outro. Interessante notar o giro realizado por Ferenczi. Se em Freud, a ênfase é nos afetos hostis sentidos pelo sujeito, em Ferenczi, o campo investigado é o dos impactos dos afetos hostis do outro no sujeito.

Em Confusão de línguas entre os adultos e a criança (1933), a dinâmica intersubjetiva do trauma será enunciada em termos da assimetria entre a sexualidade do adulto e a da criança. A sexualidade adulta é marcada pela "luta dos sexos", que mescla amor e ódio e contrasta, visivelmente, com a linguagem da ternura da criança. Importante destacar, com esta distinção, Ferenczi não nega a relevância da sexualidade infantil na infância. Ao contrário, sua leitura permite estabelecer uma importante diferença entre as fantasias edípicas e sexuais infantis (brincar de papai e mamãe, brincar de médico) e um "enxerto" brutal da sexualidade adulta na criança, a partir de uma situação de violência.

O traumático surge quando essa assimetria é quebrada de maneira intrusiva, quando o adulto impõe a linguagem da paixão à linguagem da ternura. Para além da proposição de que há uma dimensão traumática inerente à sexualidade, marcada pela diferença entre os sexos e pela interdição do incesto, Ferenczi explicita assim, a faceta da violência que, mais do que excesso pulsional inerente à constituição do sujeito, implica no excesso do outro que incide e cinde o sujeito.

Ferenczi usa como paradigma duas situações extremas de violência: o abuso sexual e as punições passionais. Na ocasião da violência, afirma Ferenczi, a criança sente brusco desprazer e medo intenso. Pela impossibilidade de reagir à força e à autoridade do adulto, com quem, além de tudo, mantém um vínculo, a criança acaba por "submeter-se automaticamente à vontade do agressor, a adivinhar o menor de seus desejos, a obedecer esquecendo-se de si mesmo, e a identificar-se totalmente com o agressor" (FERENCZI, 1933/2011, p. 117, itálicos do autor). Em vez de reação de recusa, ódio, repugnância ou resistência violenta, o sujeito identifica-se com aquele que o violenta.

Prado de Oliveira (2014) atenta para a imprecisão de Ferenczi ao utilizar os termos introjeção e identificação. Para resolver a imprecisão, Abraham & Torok (1995) preferem descrever a identificação ao agressor em termos de incorporação. Pois, a ideia de introjeção ao agressor tem sentido distinto, talvez até diametralmente oposto, à introjeção tal como Ferenczi a havia apresentado em seus textos iniciais sobre introjeção (FERENCZI, 1909/2011, 1912/2011). Naquele contexto, a ênfase era a expansão erótica do sujeito em direção ao mundo, em última instância, um processo constitutivo. Na introjeção, o outro opera como mediador para a expansão do sujeito. Na identificação ao agressor, o processo é contrário: diante da violência do agressor, o que ocorre é uma cisão e uma intrusão violenta do outro. Como consequência, os processos introjetivos deixam de seguir seu curso (ABRAHAM; TOROK, 1995).

O terror que rompe as fronteiras do aparelho psíquico e que deixa marcas indeléveis no psiquismo é, portanto, vivenciado: "Não existe choque, nem pavor", conclui Ferenczi, "sem anúncio de uma clivagem na personalidade" (FERENCZI, 1933/2011, p. 119). E assim, surge no psiquismo um "enxerto prematuro de formas de amor passional e recheados de sentimento de culpa" (FERENCZI, 1933/2011, p. 118). Com a incorporação do agressor - que passa então, a ser intrapsíquico - o sentimento de culpa do adulto agressor passa a ser sentido pela criança: "o jogo até então anódino apresenta-se agora como um ato merecedor de punição" (FERENCZI, 1933/2011, p. 117). A partir de então, a origem de um superego cruel e tirânico passa a ser efetivamente relacionada à clivagem, dando outros contornos para as relações entre sadismo e masoquismo na clínica.

A "cisão do eu" ou o "rompimento na tessitura [Einriss] do Eu ocasionada por trauma psíquico" (FREUD, 1940[1938]/2007, p. 171), mobiliza uma série de defesas arcaicas. Pode haver uma separação entre intelecto (prematuramente desenvolvido) e afetividade, uma busca constante de retornar a momento anterior ao trauma, que Ferenczi nomeia como a busca para reencontrar um estado de beatitude pré-traumática, ou ainda, uma tendência a reviver, repetidamente, o sofrimento traumático, o "terrorismo do sofrimento" (FERENCZI, 1933/2011).

Além disso, a imagem evocada por Ferenczi de um "bebê sábio" - um bebê traumatizado que se desenvolve prematuramente, que sabe tudo o que se passa à sua volta, mas nada sente, tornando-se cuidador, em vez de ser cuidado - ilustra outro aspecto importante da clivagem: a renúncia de um cuidado de si, em prol de um cuidado do ambiente que o cerca (FERENCZI, 1923/2011).

Esboçando algumas articulações teóricas entre Freud, Ferenczi e Winnicott, Bourdellon (2009, p. 23) afirma que a identificação ao agressor irá constituir um implante destrutor: a criança interioriza a paixão e a culpabilidade do adulto em um tipo de superego cruel. O ego, assim, torna-se empobrecido, porque, pela identificação narcísica ocorre um desligamento - ou mais que isso, um corte - de suas raízes pulsionais autênticas.1

Assim, a partir da articulação entre a traumatogênese ferencziana e as noções de autenticidade (WINNICOTT, 1960/1983) e identificação narcísica (FREUD, 1917/2006), tem-se uma importante pista na investigação dos caminhos pelos quais o ódio se traveste em submissão e passividade pela via da sedução. Parseval (2007, p. 28), tecendo relações entre Ferenczi e Winnicott, sintetiza:

De qualquer forma, esse mecanismo de defesa impede qualquer emergência do sentimento de ódio vis-à-vis ao agressor ("é porque eu me identifico que não posso odiar"). Mais precisamente, introjeção toma o lugar do ódio: a submissão dócil à vontade do outro é a transformação última da agressividade reprimida. (PARSEVAL, p. 28, 2007).

Mas, esse processo de transformação do ódio em sedução, só pode ser compreendido ao levar em conta a performance adaptativa, que leva o sujeito à progressão traumática ou à prematuração (patológica). (FERENCZI, 1933/2011, p. 119 [itálicos do autor]). O psiquismo faz um movimento para frente, na tentativa de neutralizar o trauma, mas o faz às custas do desmantelamento do eu:

Chega-se assim a uma forma de personalidade feita unicamente de id e superego e que, por conseguinte é incapaz de afirmar-se em caso de desprazer; do mesmo modo que uma criança, que não chegou ainda ao seu pleno desenvolvimento, é incapaz de suportar a solidão se lhe falta a proteção materna e a considerável ternura (FERENCZI, 1933/2011, p. 118).

Tem-se, portanto, um psiquismo dilacerado pelo trauma e pela ausência de um ego que possa fazer o trabalho de elaboração. Mas aqui, o aspecto intersubjetivo é fundamental: há um outro que não assume a violência, e como corolário, o sofrimento do sujeito é colocado em descrédito. É a impossibilidade de consideração da violência do trauma que impede sua elaboração. O desmentido ou descrédito [o termo em alemão é Verleugnung] implica no "não reconhecimento e a não validação perceptiva e afetiva da experiência da violência sofrida" (GONDAR, 2008, p. 196). É como se o sofrimento do sujeito fosse jogado em um limbo: não pode nem ser afirmado nem negado.

Se seguirmos o argumento de Freud, em Anegativa (1925), podemos dizer que a função da Eros, que poderia incluir o objeto dentro de si, fica impedida. De outro lado, a função de pulsão de destruição, de expulsar o objeto para fora, também fica colapsada. O sujeito permanece num limbo, no qual só resta a identificação ao agressor como saída, como uma tentativa de reconstrução. Nesse sentido, podemos compreender a afirmação de Ferenczi de que "...toda performance de adaptação seria, portanto, um processo de destruição interrompido em seu desdobramento" (FERENCZI, 1930b/2011, p. 277). E se considerarmos a assertiva freudiana de que afirmação e negação estão na base da formação das fronteiras do eu (FREUD, 1925/2007), não surpreende que o eu colapse diante da violência de um objeto incorporado.

A progressão traumática é, assim, uma busca pela sobrevivência e tentativa desesperada de controle, forma de resistir que não consegue nem introjetar nem expulsar o objeto. O sujeito se adapta às circunstâncias. A atenção aos movimentos do outro é testemunho de sua desconfiança. Assim, como consequência, não é mais do próprio ódio, mas do ódio do outro que se trata, o que se nota, literalmente, nas considerações ferenczianas sobre o caso S.I..

 

Caso S.I.: o terrorismo do sofrimento

S.I. foi uma paciente aterrorizada pelo sofrimento. São poucos e esparsos os extratos mencionados por Ferenczi em seu Diário clínico (1932) sobre o caso, mas relevantes por ilustrarem situações limites no manejo. Com uma história traumática importante e atualizada na clínica, a paciente é marcada pelo medo da loucura e ideação suicida que, no relato clínico, se mescla com lembranças de agressão da mãe, quando ainda muito pequena (SAUNAL, 2014)

Ferenczi descreve situações nas quais a analisanda está relaxada durante os atendimentos e nas quais, surpreendentemente, surge o pedido para que ele seja "mais duro e severo com ela". Como aponta Saunal (2014), Ferenczi não menciona como reage a essas demandas. O que se sabe é que, nesse caso, o psicanalista não recorreu ao expediente da análise mútua, que ficava restrita às análises didáticas de candidatos a analista (AVELLO, 2013, p. 212-4). A paciente o contagiava com seu sofrimento. Era bastante agressiva e descrevia com detalhes seu terror: uma parte de sua pessoa era posta fora dela e o lugar que assim esvaziou era ocupado pela vontade de quem a aterrorizou.

Queremos enfatizar o impacto que causa no analista essa espécie de configuração clínica. Isso rendeu a Ferenczi, como ele próprio relata, um grande dispêndio de energia; foi preciso um grande esforço para "sobrepujar o terrorismo do sofrimento", pois sadismo e masoquismo, assim, se alternam, tornando delicado o manejo da transferência (SAUNAL, 2014).

Uma fala da paciente chama atenção de Ferenczi. Quando S.I. é agressiva, dura e sarcástica, sente como "se algo estranho falasse pela sua boca, na qual ela não se reconhece". Índice de identificação narcísica com a mãe e de clivagem na personalidade, S.I. não sente a agressividade como própria, está "possuída pela mãe" (FERENCZI, 1932/2011). "A loucura da mãe" aparecia "como fator alheio ao ego", como diria Winnicott (1969/1994), anos depois, no título de um artigo que trata, justamente, desse aspecto. Mas o fato de estar alheio não impede que seja sofrido, pelo contrário, o ódio reincide, sem que haja possibilidade de elaboração.

No caso R.N., outra faceta é explorada. A análise de Elisabeth Severn, que apresentaremos, a seguir, nos permite abordar outras dimensões do manejo quando o ódio e o desprazer, em questão, se referem ao campo do traumático e se atualizam na clínica, exigindo enorme disponibilidade afetiva do analista.

 

Caso Severn: a precocidade do trauma e o amor impiedoso

Elisabeth Severn - ou R.N. como a nomeia Ferenczi em seu Diário clínico (1932) - iniciou sua análise com Ferenczi em 1924 e, como aponta Avello (2013), é uma das pacientes mais difíceis e também mais emblemáticas de Ferenczi. Os relatos de Ferenczi demonstram o exaustivo trabalho do analista, diante de uma configuração transferencial que traz à tona efeitos dilaceradores de traumas precoces. Da elasticidade da técnica à transferência passional, o relato do caso, reconstruído por Prado de Oliveira (2014, p. 244-252) - de onde extraímos as informações históricas sobre o caso que relatamos a seguir -, demonstra o solo clínico, a partir do qual Ferenczi cria seu conceito de identificação ao agressor e, subjacente, os processos de fragmentação e atomização do eu. O ponto alto dessa análise, em 1928, coincide com o início do período mais fértil da produção ferencziana (FERENCZI, 1928a/2011, 1928b/2011, 1928c/2011). Elisabeth Severn, como o próprio Ferenczi reconhece (FERENCZI, 1930a/2011, p. 74), oferece importante material para a construção de sua teoria do trauma.

A paciente desenvolvia suas atividades como terapeuta nos Estados Unidos e vai à Budapeste para realizar a análise com Ferenczi. Apesar de conseguir manter uma vida profissional, relativamente bem-sucedida, Severn sofre de sintomas físicos e psicológicos crônicos: "alucinações, pesadelos, grande confusão, depressão severa e ideias suicidas" que a levam a uma busca desesperada por tratamento. Sua única filha relata que sua atividade social era restrita ao trabalho: "Ela não tinha amigos ou colegas, somente pacientes". Esses pacientes a acompanharam a Budapeste para seguir em terapia, algo comum naquela época (OLIVEIRA, 2014, p. 245-246).

A contratransferência - que desembocou na experiência de análise mútua - perpassa as considerações de Ferenczi sobre o caso. O psicanalista nos conta que, desde os primeiros atendimentos, sente antipatia pela paciente, angústia e medo e, ao longo da análise, inúmeros são os esforços para sobrepujá-la. As lembranças de Ferenczi sobre o primeiro atendimento relatam que a voz da paciente era doce e insinuante e lhe causara má impressão. Além disso, Ferenczi nota uma independência e uma confiança em si desmedida, uma força de vontade extraordinária, uma fixidez dos traços, alguma soberania (OLIVEIRA, 2014).

Logo no início do tratamento, na terceira ou quarta sessão, a paciente demanda que Ferenczi declare seu amor por ela, o que ele nega formalmente (OLIVEIRA, 2014). Um campo transferencial atípico parece se configurar. Diferente das demandas de amor da histeria, que são contornadas pela ambivalência, vemos, aqui, que o movimento é focado nos afetos do analista. A paciente, em uma posição aparentemente onipotente e extremamente defensiva, está atenta aos movimentos do outro. Não apenas percebe os afetos de Ferenczi, mas também os interpreta. A transferência é maciça e passional, mas com contornos muito diferentes do amor de transferência na histeria. O amor da paciente é exigente e impiedoso. Como destaca Prado de Oliveira (2014, p. 248), ao longo do tratamento, a paciente passa a exigir cada vez mais de Ferenczi e se instala em sua vida de maneira autoritária. As sessões tornam-se mais longas, por vezes realizadas duas vezes por dia, todos os dias da semana, sendo que Ferenczi vai até sua casa, nos momentos de maior dificuldade e, inclusive, a ajuda financeiramente.

A paciente, considerada na época uma das primeiras analistas americanas, retoma sua clínica em Nova Iorque, após o primeiro ano de análise. Em seguida, retorna a Budapeste, participa dos seminários de Ferenczi e também o acompanha, para seguir a análise, em suas viagens.

As primeiras mudanças significativas da paciente começam a acontecer a partir de 1928. A partir da técnica de relaxamento, paciente e analista constroem uma história de abusos muito precoces a que teria sido submetida (a paciente não sabe, vale destacar, se são lembranças verdadeiras). O conteúdo que emerge na análise é terrível: assassinatos, coerção à prostituição, lembranças de ter sido drogada, violentada. A paciente tenta buscar provas concretas - por exemplo, entrando em contato com a mãe - para averiguar se essas lembran-
ças eram verdadeiras. Imagens de agressão surgem com força e sofrimento (OLIVEIRA, 2014).

Esse é um período muito delicado da análise. A paciente está muito fragilizada e Ferenczi intensifica o cuidado. Em 1930, diante de uma piora no quadro, a paciente precisa ser hospitalizada. Trata-se de um período fatigante para Ferenczi, mas também gratificante, como escreve em carta a Groddeck (citado por OLIVEIRA, 2014, p. 251). A análise parecia próxima do fim e exigia muito mais "sacrifício de si" que o habitual. Prado de Oliveira (2014, p. 251) relaciona essa disposição ao sacrifício de Ferenczi a seu desejo de provar sua teoria do traumatismo e suas capacidades terapêuticas.

A dinâmica transferencial nesse caso - no qual Ferenczi experimentou o complicado expediente da análise mútua - não nos permite compreendê-la nos mesmos termos que as transferências em sentido "clássico". Aqui, havia um terreno traumático que reincidia: a paciente estava atenta e disposta a analisar Ferenczi. Identificação maciça que, como o conceito de identificação ao agressor anuncia, é resultante da progressão traumática patológica. Há uma atuação da clivagem em uma demanda, na qual amor e ódio quase coincidem e que o sofrimento, que se atualiza no consultório, é tremendo. A desintegração e a dissociação, com todo o terror a elas relacionadas - que se evidencia nas cenas de traumatismo precoce que traz em análise - demandam autêntico esforço de sobrevivência do analista, para parafrasear Winnicott (1971/1975). Ferenczi precisa lidar com os afetos nele despertados durante o tratamento.

 

Suportar o ódio, suportar o próprio ódio: os limites na clínica ferencziana

A partir da análise dos casos S.I. e R.N. é possível entrever o solo clínico, a partir do qual tece suas considerações sobre o manejo da transferência. Nesse sentido, Ferenczi enfatiza que, nesses casos, o analista precisa permitir que a hostilidade do paciente venha à tona, o que consiste em encorajar, suportar e não retaliar as agressões do paciente, visto que elas podem ser uma expressão de resistência que, na ocasião do trauma, não teve ocasião de manifestação. A metáfora do João Teimoso (ou João Bobo) - boneco que quando empurrado ou batido cai, mas logo volta a seu estado inicial - é paradigmática dessa mudança de ênfase no manejo:

Em numerosas ocasiões já tentei mostrar como o analista no tratamento deve prestar-se, às vezes, durante semanas, ao papel de "João teimoso" em quem o paciente exercita seus afetos de desprazer. Se não só nos protegermos, mas em todas as ocasiões, encorajarmos o paciente, já bastante tímido, colheremos mais cedo ou mais tarde a recompensa bem merecida de nossa paciência, sob a forma de uma nascente transferência positiva (FERENCZI, 1928c/2011, p. 35).

Nesse campo clínico, o que está em jogo não é a transferência ambivalente, típica da neurose (ROBERT; KUPERMANN, 2012), pois é o traumático que reincide no tratamento. O trabalho do analista implica na sustentação desse espaço clínico, como condição para o manejo das transferências.

Para Ferenczi, o ambiente clínico deve fornecer condições mais favoráveis, seguras e confiáveis do que aquelas a que o sujeito foi submetido na ocasião do trauma. Assim, a repetição do traumático precisa ocorrer, na clínica, como condição da elaboração, mas contando com o analista para oferecer suporte, para estar junto, para ajudar a criar sentido. Ou seja, o analista não desmente o trauma. Pelo contrário, acolhe e reconhece o sofrimento, antes insuportável.

Esse contexto clínico faz com que a "benevolência [Freundlichkeit] materna" (FERENCZI, 1928/2011, p. 115) do analista - que não deve ser confundida com piedade - seja uma necessidade clínica. O analista, com sua tolerância benevolente, não deixa o paciente sozinho diante do sofrimento, mas dá suporte para que o analisando, ao destruir, não se veja na mesma situação insuportável e insustentável que o havia levado, antes à clivagem. Somente se o analista fizer esse papel diferencial é que o trabalho conjunto, entre analista e paciente, pode ser transformador, nesse interjogo entre repetição e rememoração (FERENCZI, 1930a/2011, p. 76), ou, novamente parafraseando Winnicott, entre repetição, destruição e criação.

Em outras palavras, o analista, ao suportar o exercício dos afetos hostis, permite uma diferenciação da posição transferencial, que lhe é destinada, inicialmente, pela repetição do paciente. Mas não só. É necessário também um esforço concomitante do analista em ajudar na criação de sentidos para a experiência vivida. Pois, como abordamos anteriormente, não é só a intensidade e a intrusão violenta do outro que traumatiza, é o desmentido, ou o descrédito que lima sua possibilidade de elaboração.

Essa investigação do território analítico não se faz sem custos para Ferenczi. A metáfora do João Bobo é interessante, porque pressupõe a resistência do analista à queda, mas também a queda efetiva e o reerguer-se, embora o processo não se faça sem cicatrizes, pois o analista não é, de fato, um João Bobo, mas sujeito de carne e osso. Não por acaso, o reconhecimento dessa dimensão de destrutividade na clínica aparece no mesmo texto, no qual Ferenczi enuncia a análise do analista como a segunda regra fundamental da psicanálise (FERENCZI, 1928c/2011).

Nos registros de seu Diário clínico (1932), vemos que Ferenczi tem a coragem - meio kamikaze - de excursionar territórios psicanalíticos desconhecidos, não raro sem apoio para suportar as dificuldades. Apoio que analistas podem contar hoje, através de uma análise pessoal, supervisão, discussão de casos clínicos, estudo teórico e vínculos institucionais.

O percurso de análise com esses pacientes difíceis leva Ferenczi a perceber que precisava dar especial atenção ao ódio e que, além disso, seu próprio ódio estava em jogo no trabalho analítico. Isso se explicita na constatação (acusação) de uma transferência negativa não analisada em sua análise com Freud e também no recurso à análise mútua, que demanda que o analista confesse aspectos negativos, odiosos, incômodos do paciente para o próprio paciente.

Em suma, a coletânea de notas e comentários sobre os atendimentos é testemunho autêntico do esforço de Ferenczi para dar outros destinos ao terrorismo do sofrimento e fragmentação de si, além do reconhecimento de suas próprias dificuldades de suportar a destrutividade, que estava em jogo nesse tipo de trabalho.2

Nesse sentido, em seu Diário clínico (1932) Ferenczi apresenta algumas dificuldades recorrentes no manejo da transferência: a presença de um sentimento de culpa insuperável que se reverte em compulsão em ajudar e em sentimento de compaixão (FERENCZI, 1932/1990, p. 78), além do risco de cair, junto com o paciente, no terrorismo do sofrimento. Ferenczi, portanto, está atento a seus próprios excessos (AVELLO, 2013, p. 77). Do mesmo modo, nossa leitura da produção de Ferenczi não nos deixa dúvidas: o autor é hiperbólico e superlativo em relação à psicanálise. E se essa intensidade afetiva perpassa seus escritos, ela não teria como deixar de se refletir na clínica, com uma entrega e disposição à doação, por vezes, surpreendentes. Isso parece, inclusive, o maior legado e a maior confusão que Ferenczi deixou aos contemporâneos. Um analista excessivo, com desejo de ajudar, mas talvez próximo demais da compulsão de curar.

A citação a seguir, explicita a intensidade com que vivia esses impasses dos limites do manejo:

Diferente do crime original [Ferenczi está no campo do traumático], ele [o analista] não tem o direito de negar sua falha; a falha analítica consiste em que o médico não pode oferecer todos os cuidados, toda a bondade e abnegação maternas, e reexpõe, assim sem ajuda suficiente, as pessoas de quem trata ao mesmo perigo que, no passado, elas se libertaram com grande sofrimento e dificuldade (FERENCZI, 1932/1990, p. 87, itálicos nossos).

Assim, em Ferenczi, é possível vislumbrar outras vias para esse sofrimento - para esse terrorismo do sofrimento - quando o próprio Ferenczi se desloca desse ideal de bondade e abnegação materna, em direção a uma concepção menos assimétrica da análise:

A impressão que se tem é a de duas crianças igualmente assustadas que trocam suas experiências, e que, em consequência de um mesmo destino se compreendem e buscam instintivamente tranquilizar-se. A consciência dessa comunidade de destino faz com que os parceiros se apresentem como perfeitamente inofensivos em quem, portanto, pode-se confiar com toda tranquilidade (FERENCZI, 1932/1990, p. 91).

Essa comunhão, entre dois parceiros de confiança, é a base para uma concepção da transferência, na qual destruição e criação se entrecruzam e, assim, torna suportável a experiência analítica. Diante do terrorismo do sofrimento, a "ilha de sonhos" de Ferenczi - para parafrasear a expressão de Freud, em carta de maio de 1932 (citado por AVELLO, 2013) - talvez fosse uma utopia necessária para seguir em frente, na esperança de dar contorno ao horror do trauma que reincide na clínica, em busca de simbolização.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 06/05/2015
Aprovado para publicação em: 04/08/2015

Endereço para correspondência
Priscila Frehse Pereira Robert
E-mail: priscilafrehse@gmail.com
Daniel Kupermann
E-mail: danielkupermann@gmail.com

 

 

*Psicanalista, doutora Psicologia Clínica/Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo-USP, mestre em Letras, psicóloga Universidade Federal do Paraná (UFPR), membro do psiA – Laboratório de Pesquisas e Intervenções Psicanalíticas-IPUSP (São Paulo-SP-Brasil).
**Psicanalista, prof. doutor Departamento de Psicologia Clínica/Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo-USP, bolsista do CNPq - Brasil, coordenador do psiA – Laboratório de Pesquisas e Intervenções Psicanalíticas –IPUSP (São Paulo-SP-Brasil).
1A autora, ainda que não explicitamente, parece propor um entrecruzamento das teorias de Freud, Ferenczi e Winnicott. No entanto, ainda que o problema da clivagem e da autenticidade seja abordado por Winnicott, ele não os relaciona apenas às raízes pulsionais mas, antes, à discussão sobre o self (WINNICOTT, 1990).
2A partir daí, se esboçam problemas clínicos que foram trabalhados por Winnicott, quinze anos depois, em O ódio na contratransferência (1947), onde o psicanalista inglês aborda o reconhecimento do medo e do ódio do próprio analista como condição indispensável ao manejo na clínica dos casos limites.

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