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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.38 no.34 Rio de Jeneiro June 2016

 

ARTIGOS

 

Enactment como via de construção da tópica*

 

Enactment as a path for topic construction

 

 

Camila Junqueira**

Universidade de São Paulo - USP - Brasil
Instituto Sedes Sapientiae - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho analítico com pacientes-limite inspirado, sobretudo, a partir dos ensinamentos de Winnicott e Green, leva-nos a ampliar a ideia de 'construções em análise', conceito que é examinado no texto. Propõe-se, então, uma clínica per via di porre, em que nada se assemelha ao uso da sugestão, e que visa incidir sobre a construção da tópica psíquica. Tal clínica pode ser favorecida pelo manejo dos enactments, conceito que é apresentado no texto. O analista, ocupando um lugar de suplência de objeto primário, pode contribuir para um adensamento dos limites entre dentro / fora e Eu / não-Eu, ou 'duplo limite' nas palavras de A. Green. Um caso clínico ilustra essas ideias.

Palavras-chave: Enactment, Construção tópica, Pacientes-limite, Suplência.


ABSTRACT

The analytical work with borderline patients inspired above all by the teachings of Winnicott and Green, leads us to expand the idea of 'constructions in analysis', which is a concept examined in the text. Then, it is suggested a clinic 'per via di porre' where nothing resembles the use of suggestion, and aims to focus on the construction of a psychic topic. Such a clinic may be enhanced by the management of enactments, a concept that is clarified in the text. The analyst taking the place of primary object supply may contribute to the thickening of the boundaries between inside / outside and I / not-I, or' double limit' on A. Green words. A clinical case illustrates these ideas.

Keywords: Enactment, Construction Topic, Borderline patients, Supply.


 

 

Como é amplamente indicado na literatura psicanalítica, os pacientes-limite, com questões de ordem narcísico-identificatórias, também conhecidos em inglês como Borderlines, atacam o setting clássico, com seus numerosos pedidos de exceções ao que se refere a mudanças de horário, substituição de sessões perdidas, diferenças no contrato de pagamento. Além disso, esses pacientes são geralmente escutados face a face , mais do que deitados no divã, devido a suas questões narcísicas e necessidades especulares, o que dificulta ainda mais a manutenção da assimetria necessária para o trabalho analítico (MAYER, 2004, 2001; VILLUTIS, 2002; GREEN, 1999; ANDRÉ, 1999). Tudo isso torna o tratamento destes pacientes uma operação muito delicada, pois de um lado, a negativa do analista em flexibilizar o setting pode resultar em interrupções abruptas e improdutivas, pondo fim a qualquer possibilidade de trabalho, e de outro, a completa aceitação das demandas do paciente pode comprometer a abstinência e a própria assimetria em que se baseia a condução analítica de um tratamento.

A literatura psicanalítica também aponta que a transferência borderline não se constitui como uma transferência de conflitos psíquicos reprimidos e deslocados, e, portanto, tal transferência não pode ter seu conteúdo interpretado na busca de uma revelação de um sentido inconsciente (ROUSSILON, 2012; ANDRÉ, 2004; FIGUEIREDO, 2003; GREEN, 2002; 1999, 1975; UCHITEL, 2002; 1997). A transferência dos pacientes com questões de ordem narcísico-identificatórias é, em geral, a repetição de uma relação com um objeto primário que não foi instalado como tal, que não esteve presente de forma consistente ou que não pôde se tornar ausente no tempo adequado, não se convertendo numa 'estrutura enquadrante', constituindo, como ensina Green (1999; 2008), uma estrutura que organiza o psiquismo (JUNQUEIRA, 2016).

Essas estruturas constituem as primeiras diferenciações dentro/fora, eu/outro (duplo limite), sobre o qual se apoiará a primeira e segunda tópica e todo o processo ligado ao Édipo, à castração e aos conflitos psíquicos que serão adjacentes e organizadores do sujeito. Desse modo, é muito importante destacar é que o caos e a instabilidade que se estabelecem na relação analítica em torno da construção de um setting de trabalho, de um lado refletem, sem dúvida, uma repetição das primeiras relações objetais que são em si matéria prima para nosso trabalho, porém, de outro lado, comprometem a prática do que temos de mais precioso na técnica analítica: a fluência das associações livres e de sua escuta flutuante, bem como prejudicam a interpretação do uso transferencial do setting pelo paciente, o que já foi apontado por André (2004).

Mas a interpretação não encontrou seus limites apenas em pacientes com questões narcísico-identitárias. Freud apontou os primeiros limites do termo interpretação quando apresentou seu conceito de construção em análise (FREUD, 1937). Nesse trabalho, Freud compara o trabalho analítico com a escavação feita por um arqueólogo, ele escreve "sua tarefa [do analista] é a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços que deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo..." (p. 293). Contudo, continua Freud, o analista trabalha em melhores condições que o arqueólogo, pois:

Todos os elementos essenciais estão preservados; mesmo coisas que parecem completamente esquecidas estão presentes, de alguma maneira e em algum lugar, e simplesmente foram enterradas e tornadas inacessíveis ao indivíduo. Na verdade, como sabemos, é possível duvidar de que alguma estrutura psíquica possa realmente ser vítima de destruição total. Depende exclusivamente do trabalho analítico, obtermos sucesso em trazer à luz o que está completamente oculto (p. 294).

Freud reafirma, com essa analogia, sua ideia de que a psicanálise se dá per via di levare. Freud (1905) nos diz que o psicanalista, como um escultor, retira a pedra bruta que encobre e deixa aparecer a estátua nela contida; ele escreve:

A terapia analítica, em contrapartida (à sugestão), não pretende acrescentar nem introduzir algo novo, mas antes tirar, trazer algo para fora, e, para esse fim, preocupa-se com a gênese dos sintomas patológicos e com a trama psíquica da ideia patogênica, cuja eliminação é sua meta (p. 244).

Freud afirma, mais tarde:

Se nas descrições da técnica analítica se fala tão pouco em 'construções', isso se deve ao fato de que, em troca, se fala nas interpretações e em seus efeitos. Mas acho que 'construção' é de longe a descrição mais apropriada. 'Interpretação' aplica-se a algo que se faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou parapraxia (FREUD, 1937, p. 295).

No exemplo que se segue e no decorrer do texto de Freud fica forte a impressão de que a construção pode conter algo de ficção acerca da história do sujeito, desde que ela produza no paciente um efeito de convicção; como diz o velho ditado italiano: 'se non è vero, è bene trovato'. Entretanto, o que se gostaria de destacar, nas ideias apresentadas acima, é que Freud, ao falar de construção, continua apostando que o caminho do tratamento analítico passa pela recordação e elaboração dos elementos recalcados, pois a construção também incide sobre esses dois elementos: a recordação e o recalque, tal como a interpretação.

A partir do relato de um sonho de infância do Homem dos Lobos, ocorrido, provavelmente, perto de seu aniversário de quatro anos, Freud (1918) concebe uma construção relativa à cena primária que teria sido vivida por esse paciente aos dezoito meses de idade. Para Freud, o sonho do paciente é uma tentativa de representação dos afetos vividos em uma época pré-verbal; em nota de rodapé Freud (1918) escreve: "sua compreensão dessas impressões foi protelada, tornou-se possível na época do sonho devido ao seu desenvolvimento, às suas excitações e pesquisas sexuais" (p. 55). Tal construção sustenta a detalhada interpretação que Freud faz do sonho, e sustenta, sobretudo, sua hipótese que o sonho era motivado pelo recalque do desejo de obter do pai satisfação sexual. Desejo recalcado que seria também a força motivadora de grande parte dos sintomas do paciente. O que está em jogo não é a veracidade da construção freudiana acerca da cena primária, mas o efeito, não apenas de convicção, mas o efeito reorganizador das cadeias associativas do paciente, que permitem a continuidade da análise quando a construção é coloca em pauta. Dessa forma, ainda que não seja possível (nem necessário) afirmar que o sonho do paciente aos quatro anos realizou o processamento de uma experiência pré-verbal, Freud marca seu interesse pelo processamento dessas experiências tão precoces e por sua participação na organização psicopatológica do paciente. Para Paim Filho (2015), o sonho do Homem dos Lobos será o segundo tempo do trauma, no qual a cena primária ("caos dos traços de memórias inconscientes do sonhador"- p.53, nas palavras de Freud) ganhará simbolização e fará seus efeitos sintomáticos a partir do recalcamento de desejo relativo ao pai.

Dessa forma, não se trata de discordar de Freud sobre o fato de que o trabalho analítico se constitui prioritariamente per via di levare, ou de que o desmanche da resistência e a recordação dos elementos recalcados constitui grande parte do trabalho analítico, sobretudo quando se trata de uma neurose ou das partes neuróticas de um paciente. Mas, se trata de questionar quais podem ser as intervenções empregadas nos tratamentos onde o que predomina não é o recalque, nem a neurose e nem a transferência (no seu sentido mais freudiano de reedição de conflitos recalcados). Quais podem ser as intervenções quando os traços ou reminiscências não puderem ser significados por sonhos ou fantasias integrando a rede representacional?

Freud (1937) dizia num trecho citado acima: "é possível duvidar de que alguma estrutura psíquica possa realmente ser vítima de destruição total". Também não se trata de discordar de Freud nesse ponto. Entretanto, tendo em vista que as estruturas psíquicas não são dadas a priori e que elas necessitam ser constituídas ao longo do desenvolvimento do sujeito, o que se coloca em questão é: o que ocorre quando existem falhas no processo de constituição das estruturas psíquicas? Tal questionamento ocupa a todos os analistas que se dedicam à clínica das patologias-limite, pois, são dessas falhas mais primitivas e constitutivas de que padecem os pacientes-limite. As questões narcísico-identitárias deixam vazios representacionais, como se a pedra do escultor escondesse grandes ocos, comprometendo o trabalho per via di levare. Para esses pacientes imaginamos uma clínica que também pode se apresentar per via di porre, como o pintor que mistura as tintas e as acrescenta sobre a tela, criando realidades juntamente com seu paciente (MAYER, 2001; MARUCCO, 2009). Evidentemente, aqui não se está propondo um retorno à técnica da sugestão associada por Freud ao trabalho per vi di porre. Mas se trata de propor que quando se trabalha fora do campo na neurose há outro tipo de contribuição do analista, a qual se pretende discutir nesse trabalho sob a via do enactment.

Mas, como se sabe, a ideia de uma contribuição do analista não é propriamente nova. Winnicott (1947, 1955-6) já nos apontou que a técnica freudiana foi constituída a partir das experiências com a neurose, onde houve um cuidado inicial suficiente para garantir a integração do ego, e que o trabalho com psicóticos e borderlines nos levou à necessidade de criar uma técnica modificada. Nessa técnica, o inconsciente do paciente se manterá como guia do trabalho, entretanto, haverá uma mudança de ênfase, o trabalho interpretativo será menos importante do que o contexto, o manejo que esse autor irá relacionar com o holding e que eu associo com uma clínica per via de porre. Winnicott (1955-6) escreve: "Enquanto na neurose de transferência o passado vem ao consultório, nesse tipo de trabalho é mais correto dizer que o presente retorna ao passado, é o passado" (p. 396), enfatizando a importância da presença viva do analista criando realidades em conjunto com o paciente.

O que me parece ainda pouco dito em psicanálise é que quando os psicanalistas contemporâneos (ANDRÉ, 2004; MAYER, 2001, 2004; entre outros) sugerem a 'construção' como fundamental no tratamento dos pacientes borderline, estão fazendo uma ampliação necessária, uma referência a algo diferente das construções na acepção freudiana como vimos acima. Pois essa não está relacionada com o 'preenchimento' de pequenas fissuras de sentido a partir de elementos recalcados desvelados per via di levare, mas estão se referindo ao trabalho com as falhas que estão aquém do recalque, ao trabalho com a ausência de sentido.

A ideia de construção, nesses autores, parece estar mais relacionada à diferenciação proposta por Vidermann (1990), que recai sobre a necessidade para certos pacientes da constituição do recalque originário. Vidermann (1990) propõe uma diferença entre a re-construção, que pode ser realizada a partir do material que sofreu o recalque propriamente dito (ou secundário); e a construção que se pode fazer dos elementos do recalque originário, aqueles que nunca poderão retornar à consciência. Pois, se o recalque originário não estiver firmemente estabelecido, não funciona como ponto de imantação e aderência dos elementos do recalque secundário que formarão parte das barreiras e dos limites psíquicos, dos quais tanto carecem os pacientes-limite; trata-se assim da construção de espaços e limites psíquicos. Mais recentemente, Paim Filho (2015) reafirma essa diferenciação entre construção e reconstrução, proposta por Viderman, a partir da análise do Homem dos Lobos.

A literatura psicanalítica também sustenta que aquilo que não pode ser simbolizado, não pode ser expresso em palavras, sonhos ou sintomas (no sentido da formação de compromisso), e será expresso no corpo (ideia base da psicossomática psicanalítica) ou será expresso em atos (MCDOUGALL, 1982). O que me parece novo é que nesse contexto o conceito de enactment ganha sua relevância. Grosso modo, o enactment é definido como a atuação na relação analítica dos elementos cindidos, despertando não apenas sentimentos, mas também ações do analista; rompendo a estabilidade do setting; os elementos cindidos levam o analista a atuar com o paciente construindo uma cena. O enactment será também concebido como uma forma importante de expressão das falhas no processo de constituição do psiquismo e como uma oportunidade de constituição de partes ausentes ou insuficientes do psiquismo; como procuro desenvolver nesse texto.

É bem verdade que, Freud (1914) já havia dito que o que não puder ser lembrado, pois foi recalcado, poderá ser atuado e vivido na relação transferencial (agieren). Fará menção inclusive às vivências da infância remota, como posteriormente foi exemplificado do seu relato do Homem dos Lobos, ele escreve:

Há um tipo especial de experiências da máxima importância, para a qual lembrança alguma, via de regra, pode ser recuperada. Trata-se de experiências que ocorreram em infância muito remota e não foram compreendidas na ocasião, mas que subsequentemente foram compreendidas e interpretadas. Obtém-se conhecimento delas através dos sonhos e é-se obrigado a acreditar neles com base nas provas mais convincentes fornecidas pela estrutura da neurose (FREUD, 1914, p.195, grifos do autor).

Mas, como para Serguei C. Pankejeff, a vivência remota foi integrada ao campo representacional, foi recalcada e pôde, então, ser sonhada1. Quando nos mantemos no terreno da neurose e do recalque o que se passa entre o analista e o paciente na transferência se dará em termos de afetos e fantasias. Por exemplo, o paciente poderá se sentir espoliado pelo analista, assim como se sentiu roubado da presença materna pelo nascimento de um irmão. O analista poderá se sentir impotente diante da angústia de seu paciente, tal qual se sentiu a mãe desse paciente que não conseguia conter a angústia de ter que cuidar de duas crianças ao mesmo tempo. Esses sentimentos poderão ser interpretados em relação à história de vida relatada, o que deverá provocar novas associações, lembranças e até o enfraquecimento da resistência; o que, por fim, poderá levar a uma ressignificação da realidade psíquica e o apaziguamento da angústia.

No entanto, a ampliação da prática analítica com pacientes psicóticos e borderlines levou os analistas a se depararem com outros tipos de atuação na transferência. No contexto das teorias sobre a contratransferência e a identificação projetiva como forma de evacuação e de comunicação de elementos primitivos não representados e cindidos o conceito de enactment foi introduzido na literatura psicanalítica por Ogden, (1982) e por Jacobs (1986) há mais de três décadas. No contexto de um enactment, um pa ciente não se sentirá espoliado pelo analista assim como se sentiu roubado da presença materna com o nascimento de um irmão; esse paciente vai se comportar de tal modo, ou transmitir por identificação projetiva certos aspectos de seu mundo interno, que levará o analista a espoliá-lo, fazendo, por exemplo, um reajuste inadvertido, uma confusão na cobrança dos honorários, etc., vivendo em ato a espoliação com seu analista.

É bem verdade, contudo, que um enactment pode ocorrer tanto em pacientes neuróticos como em não neuróticos; e que, portanto, é clinicamente relevante fazer uma diferenciação. Na neurose estas encenações ocorrem de modo pontual, resgatam elementos cindidos como resultado de um processo defensivo, relacionados a um conflito psíquico e são um aspecto da relação transferência-contratransferência, como bem exemplifica Sandler (1998). Já, nos pacientes não-neurótico S essas encenações ocorrem de forma mais extensa e intensa, desestabilizando o setting, resgatam elementos não representados ou cindidos pelo efeito de falhas no processo de constituição psíquica.

De acordo com alguns autores brasileiros (FIGUEIREDO, 2003; JABUR, 2003; GUS, 2007) o enactment é essencialmente a forma de comunicação do primitivo que não foi inscrito na trama psíquica. Em outro trabalho (JUNQUEIRA, 2013), discuti como esses enactments podem se constituir como convites para vivências de relações inaugurais do psiquismo e como esse processo pode se dar a partir da inoculação da função alfa2 do analista seguindo as sugestões de Cassorla (2009, 2010).

Entretanto, o que se deseja destacar nesse trabalho é como a vivência de um enactment pode nos fazer ampliar o sentido do conceito de 'construções em análise', pois não se trata tão somente da tessitura de um sentido esgarçado ou incompleto, mas da construção de um aparelho psíquico que possa ser produtor de sentidos e de deslocamento e condensações, capaz, então, de recalcar e de formar sonhos e sintomas como mensageiros do recalcado. Uma construção que está muito mais relacionada à própria tópica psíquica.

Enquanto na transferência neurótica podemos trabalhar com a realidade psíquica, onde nosso trabalho passa por reescrever novas versões, ressignificando as vivências passadas, com os pacientes com questões narcísicos-identitárias a transferência encenada pela dupla analítica dá à realidade vivida uma importância ímpar. Retomando Winnicott (1955), 'o presente é o passado', o presente é constitutivo; e para que o presente se torne passado, para que a realidade vivida se torne realidade psíquica, propomos que o analista precisa exercer uma espécie de suplência3 de objeto primário; é nessa linha de pensamento que a clínica me parece se tornar per via di porre. Noutro texto, Winnicott (1947) escreve: "Para o neurótico, o divã, o calor e o conforto podem simbolizar o amor da mãe. Para o psicótico seria mais correto dizer que essas coisas são a expressão física do amor do analista" (p. 283, grifos do autor). Em Winnicott (1971) o objeto primário terá a função de proporcionar a experiência de ilusão e desilusão essencial para a diferenciação entre os objetos subjetivos e objetos objetivamente percebidos, bem como para a criação do espaço potencial, que fundam a discriminação entre interno e externo. Em Bion (1962) o objeto primário irá não apenas, através de sua função alfa, metabolizar os elementos betas recebidos através das identificações projetivas do bebê, transformando-os em elementos alfa; mas irá, no exercício dessa função, transmitir a função alfa, para que o bebê metabolize suas próprias experiências criando uma diferença entre conteúdo e continente, entre dentro e fora. Em Green (1966-67, 1980) o objeto primário deverá investir pulsionalmente o bebê e ser investido por ele criando no bebê um estrutura enquadrante que coincide com o nascimento do Eu e do duplo limite (eu/não-eu, consciente/inconsciente) (GREEN, 1990, 2008). Em Anzieu (1988), o objeto primário será o responsável pelo 'banho de palavras' que dará contorno à pulsão, através de sua função de para-excitação irá criar a noção de eu-pele, que dá ao bebê a noção entre interno ou externo. Ou seja, dentre essas diferentes formas de descrever o que se passa na relação do bebê com seu objeto primário, e que se reapresenta na relação analítica, podemos observar a relevância do objeto primário para a constituição os primeiros limites da tópica psíquica (JUNQUEIRA, 2016).

A suplência de objeto primário, que pode, muitas vezes, se apresentar na clínica pela via de um enactment em razão da repetição em ato, na relação analítica, das falhas na relação com o objeto primário, funciona quando ela logra realizar construções na tópica psíquica. Ou seja, quando ela consegue desfazer a fusão com o objeto primário, permitindo uma melhor diferenciação entre dentro/fora e Eu/não-Eu, ou 'duplo limite' nas palavras de GREEN (1990; 2008), fundamental para o processo de desenvolvimento do Eu que poderá então lidar de outro modo com as questões da sexualidade, do Édipo e da castração.

A literatura psicanalítica já indica que os pacientes-limite têm suas fronteiras psíquicas tênues e frágeis, sendo vítimas de severas angústias de perda e intrusão concomitantemente (FIGUEIREDO; CINTRA, 2004; VILLA; CARDOSO, 2002; BRUSSET, 1999). A construção de uma suplência de objeto primário poderia se estabelecer então via um enactment da relação objetal com um objeto primário (como se poderá observar no material clínico a seguir); poderia operar como constitutiva do que Brusset (2006) denomina de terceira tópica. Uma tópica que dá conta dos primeiros limites do psiquismo (duplo limite) em que irão se apoiar a primeira e segunda tópica freudiana, uma tópica que se forma do encontro entre o pulsional e as relações de objeto, entre o intrapsíquico e o intersubjetivo (JUNQUEIRA, 2010, 2016).

 

 

Ilustração clínica

Marta, uma paciente de 20 anos, que em face do agravamento da depressão materna, apresentou uma piora dos sintomas bulímicos, passou a ter comportamentos de risco ligados ao abuso de álcool e sua presença na sessão foi sendo substituída por uma troca de mensagens de texto por celular. Até esse momento, minhas tentativas de interpretação eram recebidas como engraçadas e criativas, mas rechaçadas como se fossem sem qualquer sentido. No período de troca de mensagens eu ficava com toda angústia dos riscos que ela corria. Sentia um impulso de responder às mensagens, menos pela resposta em si, mais para comunicar que eu havia recebido e estava lá, à sua espera, à sua escuta, preocupada. Apenas depois de um tempo associei esse modo de funcionar a uma babá eletrônica em que eu ficava 24 horas a disposição para reagir aos seus mínimos movimentos, e depois a um cordão umbilical virtual que nos mantinha conectadas.

Quando percebi o que estava acontecendo, decidi não interpretar ou apontar. Decidi ficar nesse lugar por um tempo, alguns meses mais, e sair dele devagar, tentando dar de volta à paciente o controle de sua própria rotina e, só depois de um tempo, quando pude compreender as razões para o aprofundamento da depressão materna, relacionada com a dinâmica entre os pais da paciente, é que pudemos falar sobre o que havia acontecido e do lugar que ela ocupava para a mãe: único elo com o pai. Aqui, então, comecei a responder a maioria das mensagens com reticências, tentando me mostrar viva, mas não intrusiva. Naquela época, com a redução dos sintomas bulímicos e dos comportamentos de risco, acredito que a paciente tenha reforçado sua capacidade de ser separada de seu objeto primário, bem como tenha podido ter comigo a experiência de um objeto primário menos intrusivo e menos deprimido, embora muito trabalho psíquico ainda precisasse ser realizado. Aos poucos, ela encontrou espaço para ser ela mesma e para abandonar o lugar de elo entre os pais, no qual havia sido colocada desde que nascera.

Acredito que durante o enactment, caracterizado pelo período de troca de mensagens, onde foi encenado um cuidado de tipo materno, minha empatia (FERENCZI, 1928) com seu sofrimento e a capacidade de me manter diferenciada, embora muito próxima, pôde contribuir para uma construção de espaços psíquicos oriundos de uma maior apropriação pela paciente da diferenciação eu/não-eu que poderia lhe permitir uma existência cada vez mais própria e desligada da mãe ou do lugar para o qual foi concebida (elo impossível entre os pais). Sustento essa hipótese clínica, pois foi possível observar que as tentativas de construção de sentido que anteriormente caíam no vazio, passaram a ser recebidas com alguma possibilidade de sentido e passaram a despertar algumas associações e memórias, dando a impressão de que a experiência vivenciada pela dupla analítica teve efeitos no formato e no funcionamento de sua rede representacional - o intersubjetivo se tornava então intrapsíquico. Também foi possível observar a concomitante diminuição dos sintomas bulímicos e do 'colocar-se em risco', compreendidos como evacuações pulsionais de traços irrepresentados que, anteriormente, não encontravam continente no aparelho psíquico da paciente, e que, posteriormente, foram aos pouco transformadas em medos e incômodos que podiam ser falados em análise e quiçá um dia poderão ser sonhados pela paciente.

Outros sintomas e passagens da vida do Homem dos Lobos, que envolvem a questão da castração, como a cena no delírio do dedo cortado, fazem outros autores, sobretudo de orientação lacaniana (CAMARGO; SANTOS, 2012, entre outros), pensar seu caso mais próximo de uma psicose, reflexão que foge ao escopo deste texto. Contudo, cabe destacar que, no que tange a analise proposta nesse texto acerca da ideia de construção, vimos que a construção da cena primária se situa em relação ao recalque do desejo em relação ao pai, que na interpretação de Freud (1918[1914]) reaparece no sonho.

Cabe lembrar que, de acordo com a teoria de Bion (1962) a função alfa é a capacidade de um terceiro (mãe, analista) transformar os elementos beta (experiência pura/não simbolizada) recebidos através de processos de identificação projetiva em elementos alfa (simbolizados e capazes de compor o pensamento).

A ideia de uma suplência surge inspirada no que Lacan (1975-6) nos ensina acerca do tratamento da psicose (ver também KLAUTAU, WINOGRAD; LANNES, 2014). Ainda que se trate de uma corrente psicanalítica bastante diversa d a qual é abord ada no texto, permanece a ideia de que o analista realiza uma função de substituição (suplência) daquilo que anteriormente não havia sido instalado do psiquismo (num a metáfora paterna, noutro a discriminação eu/não-eu, dentro e fora) e contribui assim para uma reorganização da estrutura psíquica (num do elo entre os registros e noutro da tópica psíquica), ainda que não apague de forma alguma as marcas deixadas pela instalação tardia dessas funções.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 08/01/2016
Aprovado para publicação em: 10/05/2016

Endereço para correspondência
Camila Junqueira
E-mail: camilajunqueira@gmail.com

 

 

*O presente texto é parte de uma pesquisa de pós-doutorado e tem apoio da FAPESP.
**Psicóloga, psicanalista, mestre, doutora e pós-doutoranda/Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo-USP (São Paulo-SP-Brasil), terapeuta voluntária do Projeto de Investigação e Intervenção na Clínica das Anorexias e Bulimias do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae-São Paulo (São Paulo-SP-Brasil).
1Outros sintomas e passagens da vida do Homem dos Lobos, que envolvem a questão da castração, como a cena no delírio do dedo cortado, fazem outros autores, sobretudo de orientação lacaniana (CAMARGO; SANTOS, 2012, entre outros), pensar seu caso mais próximo de uma psicose, reflexão que foge ao escopo deste texto. Contudo, cabe destacar que, no que tange a analise proposta nesse texto acerca da ideia de construção, vimos que a construção da cena primária se situa em relação ao recalque do desejo em relação ao pai, que na interpretação de Freud (1918[1914]) reaparece no sonho.
2Cabe lembrar que, de acordo com a teoria de Bion (1962) a função alfa é a capacidade de um terceiro (mãe, analista) transformar os elementos beta (experiência pura/não simbolizada) recebidos através de processos de identificação projetiva em elementos alfa (simbolizados e capazes de compor o pensamento).
3A ideia de uma suplência surge inspirada no que Lacan (1975-6) nos ensina acerca do tratamento da psicose (ver também KLAUTAU, WINOGRAD; LANNES, 2014). Ainda que se trate de uma corrente psicanalítica bastante diversa da qual é abordada no texto, permanece a ideia de que o analista realiza uma função de substituição (suplência) daquilo que anteriormente não havia sido instalado do psiquismo (num a metáfora paterna, noutro a discriminação eu/não-eu, dentro e fora) e contribui assim para uma reorganização da estrutura psíquica (num do elo entre os registros e noutro da tópica psíquica), ainda que não apague de forma alguma as marcas deixadas pela instalação tardia dessas funções.

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