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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.38 no.34 Rio de Jeneiro jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Ambiente conjugal: repercussões na parentalidade

 

The conjugal environment: repercussions on parenthood

 

 

Fernanda Ribeiro PalermoI, II*; Andrea Seixas MagalhãesI**; Terezinha Féres-CarneiroI***; Rebeca Nonato MachadoI, III****

IPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil
IICírculo Psicanalítico do Rio de Janeiro-CPRJ - Brasil
IIISociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro-SBPRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, discutimos a noção de ambiente conjugal dos pais como parte do ambiente facilitador do processo de maturação do filho, considerando que a conjugalidade dos pais repercute no processo de integração psíquica do sujeito. Para tal, abordamos o conceito de ambiente na obra winnicottiana, ressaltando os componentes de adaptabilidade e qualidade humana. Destacamos que os conflitos vivenciados na conjugalidade evidenciam-se na construção do espaço transicional conjugal, que revela falhas psíquicas individuais dos membros do casal. Concluímos que uma conjugalidade psiquicamente precária repercute sobre a parentalidade, interferindo na construção do sentido de existência própria do filho.

Palavras-chave: Conjugalidade, Parentalidade, Ambiente, Integração psíquica.


ABSTRACT

In this paper we discuss the notion of the parents' conjugal environment as part of the facilitating environment of the child's maturation process, considering that parental conjugality affects the psychic integration process of the subject. Therefore, we address the concept of environment in Winnicottian literature, highlighting the components of adaptability and of human quality. We stress that the conflicts experienced within conjugal life are reflected in the construction of the conjugal transitional space, which reveals the individual psychic flaws of each of the partners. We conclude that a psychically precarious conjugality from a psychic standpoint reflects on parenthood, thus interfering in the construction of the meaning of the child's own existence.

Keywords: Conjugality, Parenthood, Environment, Psychic integration.


 

 

Introdução

No campo dos estudos sobre a conjugalidade, alguns autores vêm se dedicando a ressaltar a construção de um espaço formado pelo encontro dos parceiros, no qual se dá um jogo inconsciente dinâmico (EIGUER, 1989, 2013; MAGALHÃES, 2003; MAGALHÃES; FÉRES-CARNEIRO; GORIN, 2013; PUGET; BERENSTEIN, 1993). Desta forma, este espaço é pensado como um lugar de trocas, no qual cada um dos parceiros desenvolve e projeta partes de si, podendo haver momentos de fusão e de diferenciação entre eles. A estrutura resultante dessas trocas fornecerá a base para o início da família, antes mesmo da chegada dos filhos.

No momento da escolha amorosa, ambos os parceiros partem de suas motivações inconscientes. Essas motivações são embasadas no percurso de desenvolvimento emocional de cada um, influenciado pelas suas relações objetais primitivas e pelas resoluções edípicas. Desse modo, cada membro do casal forma seu repertório individual que se revelará no encontro amoroso. O desdobramento das vivências infantis de cada parceiro forma imagens internas de si e do outro, assim como do próprio encontro amoroso. Medos e anseios inconscientes compõem a conjugalidade, sendo derivados dos padrões relacionais que foram apreendidos a partir da elaboração de desejos e conflitos primitivos.

A conjugalidade pode ser pensada como oportunidade para a transformação subjetiva de cada parceiro, sendo um terreno fértil, pleno de possibilidades de novas configurações subjetivas (MAGALHÃES, 2000). Isso ocorre na medida em que o processo identificatório não se reatualiza de forma mimética, podendo ser um processo criativo, como ressalta Winnicott (1989). Contudo, muitos casais, ao enfrentarem dificuldades relacionais, acabam vivenciando padrões repetitivos nos quais se enredam de modo entediante. Nessas situações, frequentemente, os cônjuges têm dificuldade em serem criativos por estarem presos a uma trama inconsciente, na qual os aspectos primitivos e geracionais pesam sobre seus comportamentos e sobre a dinâmica conjugal. Ainda assim, considerando que a separação envolve a elaboração de perdas e desilusões, realçando as incompletudes dos cônjuges, muitos optam por manter o laço conjugal.

Pincus e Dare (1981) ressaltam que a família advirá a partir de um "contrato não escrito do casamento" ancorado nas motivações inconscientes dos parceiros. Este contrato é um acordo mútuo inconsciente, realizado com base nas projeções e identificações pautadas nas histórias de origem dos cônjuges. Os autores afirmam que este contrato é matriz da personalidade das crianças. Winnicott (1988) postula que a existência de um ambiente doméstico sadio para a criança no período de desenvolvimento emocional é fundamental, visto ser ele precondição para o surgimento da capacidade de relacionamentos interpessoais, realizado entre pessoas totais. Assim, afirma que quando a família tem como base uma união satisfatória do casal de pais e quando estes conseguem distinguir entre sonho e realidade são proporcionadas condições para a criança descobrir todos os variados aspectos da satisfação triangular. Em contrapartida, a criança também contribui para a situação familiar, na medida em que suas tendências naturais se associem ao acolhimento ambiental, tecendo uma comunicação dialética.

Neste artigo, discutimos a noção de ambiente conjugal dos pais entendendo que este faz parte do ambiente facilitador no qual o filho se inserirá. Abordamos os efeitos de um ambiente conjugal marcado preponderantemente pela dimensão narcísica no processo de integração do eu e na delimitação dos limites psíquicos do filho.

 

O casal como "ambiente facilitador"

Winnicott (1989) enfatiza que ser aquilo que somos depende muito do ponto que atingimos no desenvolvimento emocional. Ressalta que o desenvolvimento é um processo contínuo e interdependente desde o pré-nascimento. Toma como preocupação a investigação das condições ambientais, visto entendê-las como condicionais para a experiência de um ser total, social, pertencente à comunidade e preservado em sua autonomia. Partimos do pressuposto que o ambiente conjugal dos pais também pode ser compreendido como fazendo parte do ambiente facilitador do filho, e que a conjugalidade dos pais repercute no processo de integração psíquica do mesmo. Tomamos como base principal para tal formulação os componentes de adaptabilidade e qualidade humana, ressaltados por Winnicott (1971a) na conceituação de ambiente facilitador.

No início, o ambiente é absolutamente importante, contudo, em um segundo momento passa a ter importância relativa. A adaptabilidade é um processo dinâmico e essencial vivido no ambiente, na sua integral adaptação às necessidades mutáveis do bebê, fornecendo-lhe subsídios necessários ao desenvolvimento. Winnicott (1971) afirma que as funções paternais, complementando as funções da mãe, e a função da família, com sua maneira cada vez mais complexa de introduzir o princípio de realidade, propicia à criança a apropriação de sua autonomia.

No que diz respeito à qualidade humana, o autor pontua que o ambiente saudável requer presença humana nos cuidados. Mas, certamente, essa presença falhará, devido às imperfeições próprias da qualidade humana, contraposta com a perfeição programática das máquinas. Graças à qualidade humana envolvida na relação, o bebê poderá desenvolver suas tendências herdadas para o desenvolvimento, alcançando uma plenitude pessoal, um si mesmo individual preservado.

O tema do ambiente facilitador capacitando o crescimento pessoal e o processo maturacional tem que ser uma descrição dos cuidados que o pai e a mãe dispensam, e a função da família. Isso leva à construção da democracia como uma extensão da facilitação familiar, com os indivíduos maduros eventualmente tomando parte de acordo com sua idade e capacidade na política e na manutenção da estrutura política (WINNICOTT, 1989, p. 113).

Compreendemos o meio facilitador, o ambiente, como uma organização complexa, repleta de nuances, sendo destacável o quanto é esperado que este se reorganize para se adaptar às necessidades mutantes do indivíduo em formação, ao seu crescimento e amadurecimento psíquico. A capacidade de conservar um sentimento de continuidade de ser provém de um sentido de unidade, que é adquirida no contato com ambiente. Deste modo, será permitido ao bebê se relacionar com um mundo objetivamente percebido através da base no mundo subjetivamente concebido desde o início.

Pensando na aquisição do senso de continuidade de ser, outro conceito que se torna central para fundamentar a nossa argumentação é o de personalização. Winnicott (1988) postula a ideia de alojamento da psique no corpo, uma coesão somática alcançada no processo de amadurecimento a partir de um asseguramento do bebê pelos cuidados maternos: sua reunião somática nos braços e no olhar do outro. Nesse paulatino processo de integração do si mesmo é que se introduz o caráter temporal e espacial para o bebê e a psique passa a realizar o seu trabalho de elaboração imaginativa das funções e sensações corpóreas. Entregar-se aos cuidados maternos, quando estes se mostram confiáveis, progressivamente transforma esse corpo físico em corpo erógeno, estabelecendo uma íntima conexão entre a psique e o soma. Assim, como ressalta Dias (2003): "A psique passa a habitar no corpo, tornando-o sua morada" (p.200). Segundo Winnicott (1987), para a construção do sentimento de si é preciso haver uma predominância do fazer pelo impulso sobre o fazer reativo. Em casos patológicos extremos a vivência de "ser" fica esvaziada de sentido e, na saúde, a criatividade é o fazer que, gerado a partir do ser, indica que se está vivo. O autor ressalta que para o sentimento de si se constituir é importante existir um ambiente saudável que não coloque a criança em uma posição demasiado avançada dentro do seu processo de desenvolvimento. É pelo amor recebido do ambiente que a criança se torna suficientemente confiante. É preciso que o bebê se encontre com um seio/ambiente que exista espontaneamente, no qual a alma compareça, mostrando uma capacidade de ser e não apenas de fazer."Sentir-se um eu, isto é, sentir-se um ser singular diferente dos outros e do ambiente não é um dado presente desde o início da vida, mas uma aquisição resultante da atualização das tendências naturais no contexto de um ambiente que as favoreça" (PLASTINO, 2009, p. 74).

A experiência de ser é a base de todas as experiências subsequentes, o que inclui a experiência de identificação. Dias (2003) acentua que o "ser" é a mais simples de todas as experiências e provavelmente por isso a mais difícil de ser concebida. O encontro com o objeto viabiliza o estar vivo. Ainda na etapa da oralidade, a experiência de identificação primária com o objeto subjetivo faz o bebê se imaginar como sendo ele próprio o seio, formando uma identidade incipiente do si mesmo primário.

O conceito de integração também se torna relevante para a nossa discussão. O sujeito parte, inicialmente, de um estado de não integração psíquica e, através dos cuidados proporcionados pelo ambiente, trilha um gradual e contínuo processo em direção à integração psíquica. Há de se ter, primeiramente, um sentido de tempo e espaço, no mundo subjetivo, assegurado pela presença da mãe, sua permanência e a continuidade de cuidados, de forma a haver, pouco a pouco, o encontro de objetos na exterioridade. Para haver um encontro de objeto é necessário haver um mundo onde os objetos possam ser encontrados e um si mesmo que possa encontrá-los; um paradoxo inerente à constituição subjetiva. A desadaptação suficientemente boa da mãe é imprescindível para o início do rompimento da unidade indiferenciada mãe-bebê, desencadeando um processo de separação que levará o indivíduo à integração em um eu unitário, capaz de estabelecer relações com o não-eu, adquirindo o sentido de alteridade.

Entendemos que para que o indivíduo atinja uma maturidade emocional é necessário haver um ambiente familiar que proporcione um caminho de transição entre o cuidado dos pais e a vida social. É preciso que a família dê oportunidades para que ele seja capaz de se identificar com outros agrupamentos sem perder o sentido de continuidade pessoal, sem sacrificar em demasia seus impulsos espontâneos, sendo esta uma das raízes da criatividade. Como elucida Winnicott (1965), em seu trabalho sobre a família e sobre a maturidade emocional, o pai e a mãe estão na origem de todos os futuros deslocamentos, e é função da família construir as bases sobre as quais se desenvolvem os elementos essenciais para o crescimento emocional dos filhos. O autor também corrobora a ideia de que é da família de origem de cada um dos membros do casal que são extraídas, para a nova relação, as heranças subjetivas e emocionais que darão o contorno relacional conjugal.

Para fundamentar nossa discussão, destacamos teóricos como Eiguer (1985, 2013) Nicolló (1995), Walsh (2002) e Gomes (1998, 2003), que trabalham temas tais como a escolha do par conjugal e a formação da família. Os referidos autores destacam a importância do ambiente de origem de cada um dos membros do casal e ressaltam a influência do processo de amadurecimento de cada um como sendo imprescindível para a consolidação do laço conjugal. O estabelecimento de uma conjugalidade madura depende do encontro entre pessoas totais e isso também favorecerá a adaptação às mudanças inerentes à constituição familiar e à criação dos filhos.

A adaptabilidade é central para a composição de um ambiente saudável. Walsh (2002) corrobora essa ideia, considerando fundamental haver uma relação de equilíbrio no casal, uma estrutura estável e flexível, que possa responder às vicissitudes e às oscilações da vida, sendo essa capacidade um dos requisitos principais para um bom funcionamento do casal e da família.

Gomes e Paiva (2003) consideram que o casamento, na sociedade atual, pode constituir um holding, mesmo havendo um alto grau de imaturidade e individualismo inerente ao mundo contemporâneo. Utilizando o referencial winnicottiano, as autoras pontuam que tanto o casamento quanto a família podem, muitas vezes, funcionar como espaço de maturidade parental, onde pode haver um contínuo crescimento da família, incluindo pais e filhos, o que pode não ocorrer em muitos casos.

Quanto à influência do ambiente conjugal no ambiente facilitador do filho do processo de maturação do filho, Winnicott (1988) e Dolto (1988) afirmam que é mais provável a criança suportar ou se restabelecer dos efeitos da morte de um dos pais, ou de um divórcio, do que das complicações provocadas pelas dificuldades emocionais entre os membros do casal conjugal. Dolto (1988) questiona como poderia uma criança não sentir uma vivência de ameaça na sua própria coesão psíquica quando percebe o estado de desentendimento vivido entre os pais. Quando a criança não consegue distinguir entre os compromissos recíprocos da relação conjugal dos pais e os compromissos parentais, emergem sentimentos de desamparo e angústia.

As tensões na relação conjugal dos pais poderão provocar uma descontinuidade no desenvolvimento psíquico dos filhos principalmente na fase anterior à latência, visto que nessa etapa, ainda primitiva, não foi possível desenvolver um "ambiente interno" no qual uma organização ativa seja capaz de tolerar falhas ambientais graves e produzir um contexto emocional mais agradável e mais seguro. Tendo em vista que a característica central dos cuidados iniciais é a confiabilidade, a construção de um falso self pode despontar como resposta adaptativa a um meio falho e invasivo.

Quanto mais para trás formos, maior será a importância do ambiente. Mesmo aos dois anos, para uma criança normal que está lidando bem com as complexidades do relacionamento com ambos os pais, verificamos que o ambiente tem que ser suficientemente bom, e precisa ser mantido (WINNICOTT, 1988, p. 175).

As crianças que tiveram experiências conturbadas, na interação com pais inseguros ou angustiados, frequentemente veem-se aflitas no contato com a realidade externa. O sentido de externalidade e a capacidade de percepção, que são características da relação com os objetos percebidos objetivamente, se veem em prejuízo. Isso pode pesar sobre elas como uma ameaça "da perda da capacidade de se relacionar" (WINNICOTT, 1988), descrita como uma questão de vida ou de morte, ligada ao conflito entre a busca do amor e a necessidade de manter algum isolamento . Separar o si mesmo dos objetos e o si mesmo do ambiente total são conquistas muito sofisticadas que podem ser temidas quando o ambiente não é assegurado para o bebê, gerando uma vivência de ameaça na continuidade de ser total e profundo desamparo e desproteção. "O indivíduo encontra-se em condições bem melhores, se o ambiente comporta-se de modo coerente" (WINNICOTT, 1958, p. 312).

 

O mundo compartilhado do casal

A vivência satisfatória da capacidade de estar só é o que possibilita ao sujeito descobrir uma vida pessoal própria, íntima, na qual se possa usufruir de um sentimento de si mesmo genuíno e, ao mesmo tempo, é o que possibilita ser casal. Lejarraga (2012) afirma que a pessoa que não conquistou essa capacidade, por não ter experienciado a solidão acompanhada, a "solidão com", vive o estar só como "solidão sem", em uma vivência de vazio afetivo, que a faz buscar incessantemente a interação com os outros.

Winnicott (1971) considera que a capacidade que os sujeitos têm de permanecerem sós em um estado de tranquilidade é desenvolvida nos primeiros momentos da vida através da vivência satisfatória transicional. A experiência de ilusão é uma ponte para a realidade. Tendo uma sólida experiência de ilusão e onipotência, o bebê pode, aos poucos, ir se frustrando com falhas ambientais e aproximando-se do processo de aceitação da realidade objetiva.

É preciso haver uma extrema adaptação materna, possibilitada pelos cuidados ambientais, para que o bebê tenha o primeiro contato com a realidade, que inicialmente é subjetiva. O bebê vive a ilusão de ter criado a própria realidade. Quanto mais iludido o bebê esteve, terá condições melhores de se desiludir e reconhecer a existência da realidade objetiva, desenvolvendo assim, as experiências da transicionalidade. É importante ressaltar que a característica fundamental dos objetos subjetivos é a de serem confiáveis. O objeto chega ao bebê no momento preciso de sua possibilidade de recebê-lo e assimilá-lo, como parte de si naquele instante. "A adaptação ao princípio da realidade deriva, espontaneamente, da experiência de onipotência dentro da área que faz parte do relacionamento com objetos subjetivos" (WINNICOTT, 1965, p. 164).

Uma importante contribuição de Winnicott está em sua postulação acerca de uma ausência na separação nítida entre eu/outro e interno/externo. É inconclusa a tarefa humana de fazer tais distinções. Esse tipo de paradoxo é compreendido como constituinte do psiquismo humano. Desde o início, e ao mesmo tempo, a realidade é criada e também achada, ou seja, o bebê só cria a partir daquilo que encontra. Assim, a vivência de estar só na presença do outro é adquirida através do processo de apreensão da realidade ao longo do desenvolvimento psíquico. Esse processo começa na relação com o objeto subjetivo, passando pelo espaço transicional e pelo uso do objeto, havendo uma indispensabilidade do outro, o que ratifica que o ser humano só pode ser concebido dentro de uma esfera ambiental.

Winnicott (1971), também destaca que a área intermediária é o espaço em que é possível viver a sensação de estar verdadeiramente presente, tendo experiências pessoais e propiciando o repousar. É preciso uma base de confiança na vivência das primeiras experiências de ilusão para que a relação entre o que é objetivamente percebido e o que é subjetivamente concebido conduza a uma internalização do paradoxo constituinte e à aceitação de diferenças e similaridades.

Quanto ao paradoxo constituinte, compreendemos que a capacidade de desfrutar a solidão dialoga com a capacidade de estabelecer contato afetivo, o que pressupõe ter havido uma vivência de relação com alguém que foi presente, mas soube se ausentar na presença. Sendo assim, o laço afetivo e, particularmente, a conjugalidade, quando embasado na autêntica capacidade de estar só, propicia momentos de fusão e de diferenciação não sendo necessária uma vivência ininterrupta com o outro. O mundo objetivamente real, compartilhado, tem muito a oferecer desde que para estar integrado nesse mundo não haja uma perda da realidade do mundo pessoal imaginativo.

Propomos considerar que, na formação do casal, as nuances do paradoxo "estar junto e separado" em cada um dos parceiros e a necessidade de reinvenções inerentes à formação do laço entrarão continuamente em jogo. Winnicott (1987) afirma que o casamento pode ser uma forma adulta de experienciar o viver criativo, já que os membros do par conjugal podem trocar experiências e divertir-se juntos. Argumenta que é possível desenvolver um espaço de brincar no casal, espaço de preservação dos verdadeiros selves dos parceiros, considerando que qualquer interação humana comporta certa concessão de parte de si. Magalhães e Féres-Carneiro (2003) e Magalhães, Féres-Carneiro e Gorin (2013) ressaltam que a conjugalidade deve ser compreendida como espaço de transicionalidade, propiciador da afirmação das subjetividades dos parceiros, considerando-a em uma dimensão criativa e produtiva. Entendendo que as relações amorosas possuem uma ligação indissociável com o brincar, podemos afirmar que em relações suficientemente saudáveis o espaço potencial é bem desenvolvido. A trama psíquica subjetiva se constitui na intersubjetividade desde os primórdios, as experiências primitivas de intimidade e de cuidado ambiental são necessidades intrínsecas dos processos de maturação. Essa trama infantil e primitiva será o protótipo das relações amorosas que o indivíduo terá futuramente.

No espaço transicional, os objetos são ao mesmo tempo criados e encontrados. Na construção do espaço transicional conjugal, ocorre a descoberta de um parceiro que existe na realidade e de um parceiro subjetivamente construído. A experiência subjetiva se apresenta nesse paradoxo. O parceiro é entendido e vivido como um diferente e como parte de um mundo concebido. A conjugalidade seria um interjogo contínuo entre intrapsíquico e interpessoal, das imagens internas e das relações objetais compartilhadas (EIGUER, 1985). Os parceiros encontram na conjugalidade um lugar de reencenações de seus repertórios subjetivos, onde o mecanismo de identificação projetiva atua amplamente.

A possibilidade de cada cônjuge se surpreender com sua própria criação, quando a diferença que desponta do outro começa a se apresentar, pode ser vivida de forma excitante. Em uma relação saudável, o parceiro é criado ao mesmo tempo em que é descoberto e é possível vivenciar o sentimento de si mesmo através do outro. Nesse jogo do espaço potencial, entre ausência e presença, é estabelecida uma correspondência entre a própria criação e a percepção do outro, da exterioridade, nos momentos de intimidade, fusionalidade e de singularidade. O movimento de ilusão-desilusão propicia uma recriação do vínculo emocional conjugal e das próprias identidades dos parceiros.

Se o brincar e o criar são aquisições advindas da ordem do prazer, entendemos que a relação saudável precisa se estabelecer de forma suficientemente prazerosa, ainda que existam conflitos, angústias e estranhezas decorrentes da marca da alteridade na relação. Magalhães (2003) e Magalhães, Féres-Carneiro e Gorin (2013) afirmam que a ilusão e os ideais possuem papéis estruturantes na conjugalidade, sendo responsáveis pela manutenção da relação amorosa e das transmutações subjetivas nos membros do casal. Ressaltam que a conjugalidade favorece a oscilação entre dependência-independência, diferenciação-indiferenciação, na medida em que o objeto amoroso não é realidade nem fantasia, é constituído na transicionalidade.

Quando esse cenário transicional é marcado por dificuldades em viver a etapa de desilusão, na conjugalidade, prepondera a relação com objetos subjetivos, os quais se caracterizam por excluir qualquer separação entre o sujeito e o objeto, apontando para um sentido de realidade anterior à representação. Nesses casos, o encontro é marcado preponderantemente por sua qualidade narcísica, que aponta para prejuízos na passagem do princípio de prazer para o princípio de realidade. Nicolò (1991) ressalta a preponderância da qualidade narcísica nas relações nas quais o mecanismo de idealização prepondera, havendo grande possibilidade de uma decepção futura passar a figurar no cenário. Nesses casos, um dos parceiros, ou ambos, pode viver uma adaptação passiva e empobrecida ao mundo do outro ou à relação. A criatividade passa a dar lugar a um falso si mesmo e gera um entendimento deturpado do outro, artificializando a relação e esvaziando as experiências do espaço potencial.

Como alerta Winnicott (1965), o casamento e a constituição de uma família nem sempre são sinais de maturidade. O autor lança a seguinte questão: "Devemos preferir que homens e mulheres esperem até estarem ricos e confortáveis para casar?" (p. 65). E responde que homens e mulheres têm necessidade de estabelecer o que chamou de plataforma, para se lançarem em direção a crescimentos posteriores. Devido à imaturidade de cada um do casal, muitas vezes observamos prejuízos na criação de um espaço potencial na relação. Nesses casos, a relação amorosa não se caracteriza como satisfatoriamente ilusória e transicional, pois ambos não internalizaram a confiança no mundo e em si mesmos. No texto intitulado "Vivendo de modo criativo" (1989), Winnicott afirma que nem todos os casais sentem que podem ser criativos e permanecer casados. Em alguns casos, um dos integrantes do par se encontra envolvido em um processo que poderia terminar na vivência de um mundo criado pelo outro, apresentando um tamponamento da vida criativa. A hipótese sobre a qual nos debruçamos é a de que tal esvaziamento conjugal estará na base do ambiente familiar no qual o filho se inserirá.

Quando a relação amorosa não se torna ilusória e transicional, porque um dos integrantes do casal - ou ambos - não internalizou a confiança no mundo e tende a renunciar à própria criatividade, ou a idealizar e se decepcionar com o parceiro, desenvolvem-se modalidades patológicas da relação, que vão desde o banal tédio conjugal até as formas mais violentas de submissão e dominação (LEJARRAGA, 2012, p. 97).

Concordamos com Eiguer (1989) quando o autor observa que é comum a conjugalidade ser construída a partir do que há de mais infantil e regressivo em cada um dos parceiros. Ainda que formas arcaicas de relações objetais sejam reeditadas na relação conjugal, ou seja, uma certa fusionalidade seja esperada, um encontro de duas subjetividades saudáveis também é lugar para a renovação. Quando esse fator de criação se encontra despotencializado, os conflitos intrapsíquicos podem encontrar no parceiro um terreno frutífero para atuações. Verificamos que o encontro conjugal pode evidenciar falhas nos processos de individuação de cada parceiro, propiciando que o outro seja investido como suporte do eu, funcionando como um reforço de seu sistema defensivo, com a expectativa que esse fique cristalizado na posição para a qual fora designado e na qual se colocou. Muitos casais mantêm esse arranjo conjugal como forma de gratificação parcial de seus desejos infantis e ilusórios, como forma de reasseguramento narcísico.

Gomes (1998) e Gomes e Paiva (2003) destacam que uma das formas de o casal entrar em contato com seus conflitos é através do sintoma de seus filhos. Em muitos casos, o sintoma de um filho pode expressar um conflito conjugal e/ou familiar ou ainda uma desestruturação destas relações, ou seja, o sintoma do filho pode deflagrar um ambiente conjugal que não pôde funcionar de forma suficientemente boa. Nesses casos, as crianças funcionam como bodes expiatórios. Como já apontara Winnicott (1965), dentre homens e mulheres imaturos que se casam, muitos encontram na família motivos para grande alegria e alívio. Por outro lado, ressalta que o crescimento dos filhos, sobretudo durante a adolescência, pode desafiar a continuidade do próprio crescimento dos membros do casal.

 

Prejuízos no ambiente conjugal e as repercussões na parentalidade

Pesquisas fundamentadas nas teorias psicanalíticas de família e casal discutem a relação entre a instauração e a vivência da conjugalidade e seus desdobramentos na vida familiar. Pincus e Dare (1978) descrevem que os sujeitos que não se individuaram suficientemente tendem a expressar essa dificuldade no tipo de conjugalidade que formarão e nos padrões relacionais que desenvolverão com seus filhos. Os conflitos na conjugalidade permeiam o campo da parentalidade, interferindo no desenvolvimento do vir a ser do filho (MAGALHÃES; FÉRES-CARNEIRO, 2005; GOMES; PAIVA, 2003). Winnicott (1958) amplia o conceito de ambiente, incluindo a esfera conjugal. Ao desenvolver o tema dos fenômenos transicionais, o autor propõe que, nas primeiras fases de desenvolvimento, o ambiente tem um papel vital para o bebê, que precisará sair do estágio de dependência absoluta e viver uma gradativa separação entre o eu e o não-eu. É preciso haver um cuidado maternal e paternal, que se estenderá à família.

No texto Crescimento e desenvolvimento na fase imatura (1965), Winnicott ressalta que, nos primeiros estágios do desenvolvimento instintivo, encontram-se as falhas básicas que poderão paralisar a vida de muitos adultos. Ressalta o quanto são necessárias a estabilidade e a continuidade do ambiente nos aspectos, tanto físicos quanto emocionais. O cuidado que proporciona condições consistentes de elaborar os conflitos excitatórios inerentes ao processo de maturação formará a base das brincadeiras e dos sonhos. Destaca o fato de os adultos saberem, de modo intuitivo ou por meio dos ensinamentos transmitidos pela cultura, que os melhores prazeres da vida podem ser estragados pela intromissão da excitação corporal.

Grande parte da técnica de viver consiste em encontrar modos de evitar os excitamentos corporais que não tem condições de atingir seu clímax no momento apropriado. Este controle, naturalmente, é mais fácil de ser obtido por aqueles cuja vida instintiva é satisfatória dos que que são obrigados a tolerar um alto grau de frustração em seus relacionamentos sexuais (WINNICOTT, 1986, p. 37).

Winnicott (1965) afirma que a criança precisa de um ambiente que suporte o despejo de suas excitações altamente destrutivas que acompanham a experiência instintiva. Com isso, o bebê vai descobrindo que o objeto atacado na fantasia é o mesmo que é amado e necessitado. Portanto, a mãe precisa estar presente e sobreviver, viabilizando a transformação da culpa infantil em responsabilidade. É interessante assinalar que, ao encontrar um ambiente capaz de acolher sua agressividade ligada à motilidade e à força vital, o bebê encontrará as fontes potenciais de criatividade e vitalidade. Não havendo um holding que contenha o excesso de excitação no bebê, este poderá ter comportamentos psicóticos típicos.

Indo ao encontro da nossa proposta de considerar a conjugalidade como ambiente, o texto de Winnicott (1965) "Fatores de integração e desintegração na vida familiar" elucida que o bebê precisa vir ao mundo depois de um estágio, no qual os cônjuges se sintam suficientes como casal conjugal. A existência da família e a preservação de sua atmosfera resultam do relacionamento dos pais no quadro do contexto social em que vivem e da relação íntima do próprio casal.

Singly (2007) considera que o casamento é um evento existencial decisivo, do ponto de vista da identidade pessoal, na medida em que a comunicação entre os cônjuges propicia permanentes trocas, pelas quais novas visões de mundo possam ser validadas. A autonomia do casal conjugal em relação à parentela é delineada pelas trocas verbais entre os parceiros. Referindo-se a um "eu conjugal", diz ser o casamento uma das relações sociais que mais contribui para criar um nómos, que permite que inúmeras experiências de realidade possam existir. Sendo assim, os parceiros podem constituir um suporte que venha a garantir a possibilidade e a estabilidade do mundo socialmente definido; uma perspectiva indentitária. O autor diz que o ambiente conjugal pode deteriorar as condições de socialização infantil, de modo a inscrever no corpo desse futuro jovem, uma história infeliz familiar; o adoecimento é expressão da forma pela qual o afeto se encontra em sua organização subjetiva.

Winnicott (1965) afirma que existem forças poderosas de criação e de conservação da família que resultam da própria relação entre os membros do casal, forças estas ligadas à complexa fantasia sexual. O sexual, nesse contexto, abarca a satisfação física do casal, como também a noção de gozar da potência criativa que deriva da maturidade emocional individual. Acentua que todos na família tendem a lucrar quando pai e a mãe gozam desta vivência interna satisfatória. Seria difícil compreender a atitude dos pais em relação a seus filhos sem considerar o modo pelo qual os filhos se inserem nas fantasias conscientes e inconscientes dos mesmos. Como afirma Lebovici (2004), o narcisismo primário é a base para a parentalidade, sendo fundamental demonstrar aos filhos que foram desejados.

Sublinhamos que a parentalidade é atravessada pela conjugalidade. A construção da parentalidade pressupõe uma nova fase na qual os parceiros são confrontados com transformações identificatórias profundas, em um processo complexo de "torna-se pais", envolvendo níveis conscientes e inconscientes do funcionamento mental. O psicanalista Paul-Claude Racamier, em 1961, debruçado em seus estudos sobre as psicoses puerperais, propôs o termo maternalidade para discutir um conjunto de processos psicoafetivos, dinâmicos e processuais, vivenciados pela mulher ao passar pela maternidade. O termo parentalidade é um desdobramento dessa teorização, que designa que "torna-se pais" requer um processo complexo que implica níveis conscientes e inconscientes do aparelho psíquico.

Considerando que a família permite a inscrição da criança em uma genealogia e em uma filiação indispensáveis à constituição de seu processo de humanização, de encontro e pertencimento geracional, pensar sobre a função parental se torna fundamental. Freud, já em Totem e tabu (1912), analisa os princípios do funcionamento inconsciente que estariam na origem da parentalidade, ressaltando que o parentesco e a cultura são organizadores fundamentais da subjetividade. Respaldado na tese da incompletude, do desamparo fundamental, afirma que a criança constrói representações mentais de ordem parental a partir da alternância entre presença e ausência. O desejo da mãe por seu filho é a fonte do narcisismo primário, é o que dá sentido próprio à criança e permite que esta se sinta viva na ausência materna. O narcisismo primário encontra abrigo no corpo da criança e, segundo Lebovici (1997), é o que permite que o ego da criança se desenvolva, aderindo à vida.

Missonier (2004), ao abordar a interação dos pais com a criança desde o período pré- natal, afirma ser pertinente considerar uma base narcísica conjugal para além da base narcísica de cada um dos pais. Ressalta que há algo em particular na escolha narcísica dos objetos conjugais que pode repercutir em uma fusão na formação do que chama de "pais aprendizes", de tal forma que o lugar da criança é posto à distância, sentido como uma ameaça à homeostase conjugal. Entendemos ser necessário que a ligação parental seja marcada por um ato de reconhecimento intersubjetivo que tenha em sua origem um espaço de trocas corporais e imaginárias entre o ambiente e o bebê. A parentalidade é uma vivência para além de ter um filho. Na linguagem winnicottiana, diríamos que a fragilidade dos vínculos iniciais, ou mesmo uma falha significativa no suporte ambiental, pode deixar o bebê absolutamente sozinho, sendo o contraponto da experiência fundante de ficar só.

O bebê, desde a sua vivência intrauterina, vê-se diante das descontinuidades ambientais e tornar-se apto a administrá-las, exceto quando essas quebras se apresentam excessivas ou demasiadamente prolongadas. A relação objetal é imprescindível, ainda que cause danos. O hiato entre a adaptação total e incompleta é enfrentado por meios intelectuais pelo indivíduo, quando o ambiente se comporta de forma coerente. Quando o ambiente é por demais distorcido e confuso para o bebê, ele desenvolve uma organização defensiva.

Precisamos conhecer o que ocorre à criança quando um bom ambiente é destruído, ou quando esse bom ambiente nunca chegou a existir; esse conhecimento envolve um estudo de todo o desenvolvimento emocional do indivíduo. Alguns fenômenos já são suficientemente conhecidos: o ódio é reprimido, ou a capacidade de amar outras pessoas é perdida. Várias organizações defensivas cristalizam-se na personalidade da criança (WINNICOTT, 1965, p. 198).

Para constituir-se psiquicamente, integrando a própria personalidade, o bebê precisará drenar a vivência instintual de modo a reconhecer, de forma crescente, sua própria crueldade e avidez, para que essas possam ser convertidas em atividade sublimada. O ambiente facilitador, aqui também entendido como o casal parental e o conjugal, precisará funcionar de modo a dar sustentabilidade a estas moções internas que demandam um acolhimento que dê contorno ao bebê.

Quando a conjugalidade apresenta pouca capacidade de contenção dos aspectos destrutivos dos próprios parceiros, a falha em acolher a destrutividade do filho tenderá a ocorrer, podendo ser interpretada como ataque pessoal. A vivência empática dos pais dará lugar a mecanismos projetivos massivos que obstruirão a possibilidade de contato com aspectos próprios de si e do outro. Para Prado (2007), as crianças expostas a este tipo de interação com os pais já trazem uma subjetividade carregada de legados de uma história que as antecede e que envolve falhas ambientais, culpas, violências e mágoas, que não dizem respeito a elas e sim aos pais e à própria relação conjugal dos mesmos. Observamos que o surgimento de um sentimentalismo dos pais também pode ser compreendido como um recurso defensivo próprio a essas situações, contendo uma negação inconsciente da agressividade subjacente ao humano, podendo ser devastador para a criança em desenvolvimento. A criança precisará encontrar formas indiretas para expressar sua destrutividade. Winnicott (1971) afirma que "nenhuma manifestação é sentida como valiosa se não implicar agressão reconhecida e controlada" (p. 102).

A realização do impulso individual criativo depende, portanto, de um ambiente que não se sinta atacado, que se ofereça para um espelhamento. A integração, assim como a experiência de personalização e de realização, só ocorre a partir de um ajuste sensível do ambiente, com permissão para internalização do objeto cuidador inicial. Na saúde, o objeto transicional "vai para dentro" sendo gradualmente descatexizado; aos poucos relegado, mas não esquecido. O seu sentido se perde, isto porque se tornará difuso, pertencendo ao interno e ao externo, passando ao campo da cultura. Haverá uma ampliação gradual do âmbito de interesses da criança que não se restringe ao objeto transicional específico. Pode-se dizer que a separação é preenchida pelo espaço potencial, pelo brincar criativo, pelo uso de simbologias e por tudo que se soma à vida cultural. Aqui verificamos a marca da diferenciação, de uma vivência de integração psíquica que abarca a alteridade.

Quando uma base de confiança, para viver satisfatoriamente as primeiras experiências de ilusão, se instaura, a área intermediária é experienciada. Winnicott (1967) afirma que os espaços potenciais entre o bebê e sua mãe, entre a criança e a família, entre o sujeito e a sociedade, dependem do sentimento consolidado de confiança. Winnicott (1965) trata da importância de se ter uma mínima confiabilidade ambiental em torno da criança para que esta não prejudique seu crescimento emocional com distorções. Cita exemplo de famílias em que o casal se vê em estado crítico, tendendo à "implosão", como ambiente propício para entraves em torno do vir- a-ser.

O colapso na área da confiança é aquilo que rompe com a idealização do objeto, é a marca do trauma na teoria winnicottiana, restringindo a capacidade lúdica do sujeito com o empobrecimento das brincadeiras, da vida cultural, gerando vivências de desmoronamento do eu e ativando defesas paradoxais. Se o espaço potencial é o encontro entre as áreas do brincar, do eu e do outro, entendemos que se o outro não comparecer nessa interseção, e se apresentar demasiadamente falho, haverá nítidos prejuízos na constituição do eu.

 

Considerações finais

A teoria winnicottiana destaca que é função da família fornecer o ambiente emocional de que uma criança precisa para ter suas necessidades atendidas. As necessidades de uma criança em desenvolvimento se modificam conforme esta vai internalizando os cuidados recebidos, apropriando-se de si e de seus próprios recursos psíquicos, a partir do diálogo com a realidade. A família satisfaz as necessidades instintivas e para isso é preciso que ela esteja disponível, afinada em sua qualidade humana, para receber a contribuição pessoal do bebê. A efetivação das tendências naturais do sujeito depende um ambiente favorável que proporcione a vivência satisfatória pelos processos de integração, personalização e realização. Essas experiências iniciais são cruciais para a vida humana, levando ao sentimento de ser real, de continuidade da existência. Entendemos que os familiares são personagens imprescindíveis em todo processo vital de constituição subjetiva, na medida em que o sujeito é forjado na intersubjetividade.

Assim, destacamos que a conjugalidade dos pais deve ser considerada como parte do ambiente que é fundamental para a constituição psíquica do filho. Partimos do entendimento de que é função da família proporcionar as bases sobre as quais o sujeito conquistará a maturidade emocional e que é na família de origem que cada membro do casal constituirá sua subjetividade. Ressaltamos que as relações amorosas têm um diálogo com a esfera criativa, do brincar, na medida em que são constituídas com base nas experiências primitivas de relação de objeto. A vivência da paradoxalidade, intrínseca ao campo do transicional, permitirá que os cônjuges possam se relacionar tanto com um parceiro subjetivamente construído quanto com o que existe na realidade. Uma construção deficitária do espaço transicional conjugal marcará a relação pela imaturidade, pela sua qualidade narcísica e projetiva, por um esvaziamento subjetivo, contraposto à dimensão criativa, que possui potencial de reinvenção e satisfação.

Consideramos que a parentalidade suficientemente boa é capaz de auxiliar a criança em sua inscrição na genealogia familiar, na constituição de sua identidade, e no próprio percurso de humanização. Quando os conflitos na esfera conjugal atravessam a esfera parental, os efeitos deletérios no ambiente levam a dificuldades em cumprir a função de sustentação suficientemente boa, necessária ao processo de subjetivação do filho.

Concluímos que quando pais se mostram imaturos, tanto na esfera individual quanto na conjugal, não podendo prover um ambiente que dê suporte afetivo e psíquico ao filho, este se vê exposto à dinâmica da conjugalidade, enredado em uma forma de pertencimento que o invade excessivamente. Face a esse tipo de circunstâncias desfavoráveis, os filhos têm que se esforçar, através de estratégias defensivas, mentais e corporais, para proteger seu sentido de identidade e sua sexualidade. E, dentre as inúmeras consequências deste ambiente, o corpo adoece na medida em que não atinge coesão, se mantendo um corpo vazio, pouco erogeinizado.

 

 

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Artigo recebido em: 26/05/2015
Aprovado para publicação em: 01/12/2015

Endereço para correspondência
Fernanda Ribeiro Palermo
E-mail: fernandapalermo.fp@gmail.com
Andrea Seixas Magalhães
E-mail: andrasm@puc-rio.br
Terezinha Féres-Carneiro
E-mail: teferca@puc-rio.br
Rebeca Nonato Machado
E-mail: recanm@gmail.com

 

 

*Psicóloga/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro-PUC-Rio, mestranda Psicologia Clínica /PUC-Rio, especialista Psicoterapia de Família e Casal - PUC-Rio, m embro em Formação/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro-CPRJ.
**Psicóloga/Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ, profa. adjunta Departamento de Psicologia/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro-PUC-Rio, profa. Curso de Especialização em Psicoterapia de Família e Casal/PUC-Rio.
***Psicóloga / Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro-PUC-Rio, mestranda Psicologia Clínica, profa. titular/Departamento de Psicologia PUC-Rio, coordenadora Curso de Especialização em Psicoterapia de Família e Casal/PUC-Rio.
****Psicóloga/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro-PUC-Rio, mestranda Psicologia Clínica/PUC-Rio, doutorado Psicologia Clínica/PUC-Rio, pós-doutoranda Psicologia Clínica/PUC-Rio, profa. Curso de Especialização em Psicoterapia de Família e Casal/PUC-Rio, membro provisório/Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro-SBPRJ.

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