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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.38 no.34 Rio de Jeneiro jun. 2016

 

ARTIGOS

 

O estatuto ético do inconsciente e a presença do analista

 

Ethical status of the Unconscious and the psychoanalyst's presence

 

 

Ingrid Vorsatz*

Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo discute, a partir da conceituação do inconsciente por Freud e sua retomada por Lacan, suas implicações éticas. Procede a um breve exame da démarche lacaniana que propõe considerar o conceito freudiano de inconsciente (das Unbewusste), fundador do campo psicanalítico, enquanto um conceito fundamental (Grundbegriff). Destaca a formulação de Lacan a propósito do conceito de inconsciente enquanto conceito da falta, ressaltando seu estatuto ético e propondo que este, de um lado, convoca o sujeito numa dimensão de responsabilidade perante o desejo inconsciente, e, de outro, exige o psicanalista em presença.

Palavras-chave: Inconsciente, Desejo, Ética, Sujeito, Presença do analista.


ABSTRACT

Considering Freud's conceptualization of the Unconscious and its review by Lacan, the author discusses the ethical consequences of this proposition. Lacan's statement on Freudian concept of the Unconscious (das Unbewusste) is briefly described as a fundamental concept (Grundbegriff) of the psychoanalytical field. The paper highlights Lacan's proposition of the Unconscious as a concept of lack, emphasizing its ethical status and proposing that this, on one hand, summons the subject to take responsibility towards the Unconscious' desire. On the other hand, the psychoanalyst's presence is required.

Keywords: Unconscious, Desire, Ethics, Subject, Psychoanalyst's presence.


 

 

A invenção freudiana consiste na formulação do conceito de inconsciente (das Unbewusste), marco conceitual fundador do campo psicanalítico, com a publicação de A interpretação dos sonhos (1900). Assim, as formulações teóricas extraídas da clínica da histeria entre os anos de 1893 e 1895 passaram a ser consideradas como sendo, a rigor, pré-psicanalíticas. Cerca de sessenta anos depois, Lacan (1964/1988) efetuou a retomada conceitual do inconsciente freudiano a título de conceito fundamental (Grundbegriff) da psicanálise, indo de encontro à apreensão que o reduzia a uma dimensão obscura, como se fora um sítio arqueológico soterrado pelo pó dos tempos.

O inconsciente freudiano nada tem a ver com as formas ditas do inconsciente que o precederam, mesmo as que o acompanhavam, mesmo as que o cercam ainda. A todos esses inconscientes, sempre mais ou menos afiliados a uma vontade obscura considerada como primordial, a algo de antes da consciência, o que Freud opõe é a revelação de que, no nível do inconsciente, há algo homólogo em todos os pontos ao que se passa no nível do sujeito - isso fala e funciona de modo tão elaborado quanto o do nível consciente, que perde assim o que parecia ser seu privilégio (LACAN, 1964/1988, p. 29).

Vemos que o inconsciente freudiano se demarca de um puro "algo antes da consciência" primitivo e/ou involuntário. Não obstante, Freud afirma seu caráter primário; mas se o inconsciente justamente não é obscuro, irracional, ou ainda o substrato mais primitivo da consciência, então isto significa que o inconsciente é primeiro, vale dizer, é determinante na ordem psíquica, ao passo que consciência é apenas secundária - isto é, coadjuvante e também menos importante. Trata-se de afirmar a primazia do inconsciente e não de situá-lo nas profundezas do inacessível ou ainda do inefável. Se assim fosse, a interpretação psicanalítica seria formulada em termos de uma hermenêutica, da mesma forma que o texto freudiano seria objeto de uma exegese reverente; numa palavra, a psicanálise se encontraria referida ao registro religioso. Lacan, ao contrário, interroga se a psicanálise é uma ciência - menos para responder afirmativa ou negativamente, mas para situá-la em relação à ciência moderna (LACAN, 1964/1988, p. 15), a exemplo do que fizera Freud ao alinhar a psicanálise à Weltanschaaung científica no que esta apresenta um caráter parcial (FREUD, 1933[1932]/1976, p.211).

A contrapelo de uma abordagem do inconsciente freudiano como um baú; repleto de conteú;dos arcaicos e primitivos, Lacan estabelece uma homologia entre inconsciente e sujeito, o que lhe permite cunhar a expressão "sujeito do inconsciente". "Sujeito", nesse caso, é aquele subordinado (sujeitado) ao funcionamento inconsciente - que, conforme afirmamos, é a instância primeira (ou primária). Mas se esta fosse uma determinação estrita, como falar de ética? Estão dados os termos do paradoxo: o funcionamento inconsciente impõe, mas não vai por si: cabe ao sujeito - se assim ele se decidir - fazer valer a sua determinação.

Com efeito, o inconsciente não se situa nas profundezas, mas - como atesta Freud, sem positivá-lo - tem um caráter emergencial (isto é, caracteriza-se pela emergência do insensato, e não de um sentido profundo ou inacessível); não é o oposto ou mesmo o negativo da consciência, mas o seu Outro, isto é, alteridade radical. Trata-se de afirmar a operatividade de algo que se apresenta com falha, tropeço, ausência, ou seja, de uma negatividade operativa que produz efeitos e acarreta consequências.

 

O estatuto ético do inconsciente

Freud inferiu o inconsciente a partir de fenômenos aparentemente corriqueiros: o esquecimento de nomes, os lapsos de língua, os chamados Witz (ou ditos espirituosos) e os sonhos. Na claudicação da consciência, viu mais do que simples fenômenos aleatórios ou sem importância: havia ali algo a ser explorado. Retomando o conceito de inconsciente enquanto um conceito fundamental (Grundbegriff) do campo psicanalítico, Lacan sublinha o caráter de descompasso pelo o qual o inconsciente se manifesta:

No sonho, no ato falho, no chiste - o que é que chama atenção primeiro? É o modo de tropeço pelo qual eles aparecem. Tropeço, desfalecimento, rachadura. Freud fica siderado por esses fenômenos, e é ali que vai procurar o inconsciente. O que se produz nessa hiância, no sentido pleno do termo produzir-se, se apresenta como um achado. Aquilo pelo qual o sujeito se sente ultrapassado, pelo que ele acaba achando ao mesmo tempo mais e menos do que esperava. Ora, esse achado, uma vez que ele se apresenta, é um reachado, e mais ainda, sempre está prestes a escapar de novo, instaurando a dimensão da perda (LACAN, 1964/1988, p. 29-30, grifos do original).

O inconsciente não é inferido por Freud a partir da consciência (ou de uma consistência), mas de uma hiância. Algo se produz enquanto presença fugaz, evanescente, impossível de ser apreendido, pois mal faz sua aparição e logo escapa. O inconsciente se produz enquanto perda, instaurando a própria dimensão da perda. O achado - o termo utilizado por Lacan é trouvaille -, sempre em desalinho em relação ao esperado, parece estar referido ao tema do encontro, em relação ao qual Lacan cita a célebre frase de Picasso: "Eu não procuro, acho" (LACAN, 1964/1988, p. 14). A visada da procura implica em que se saiba (ou ao menos se suponha) de antemão o que se espera encontrar; já a dimensão do encontro porta o novo, a surpresa, o inesperado, e implica no reconhecimento de uma verdade, que não estava lá antes. De acordo com Lacan, "procurar" supõe uma afinidade entre a pesquisa científica e o registro religioso; já "encontrar" é de ordem ética (cf. LACAN, 1964/1988, p. 15).

A primeira característica atribuída ao inconsciente freudiano por Lacan é o caráter descontínuo por meio do qual ele se apresenta. Assim, se o inconsciente pode ser apreendido como presença, é apenas enquanto presença de uma falta. Acompanhemos seu encaminhamento:

A descontinuidade, esta então a forma essencial com que nos aparece de saída o inconsciente como fenômeno - a descontinuidade, na qual alguma coisa se manifesta como vacilação. Ora, se essa descontinuidade tem esse caráter absoluto, inaugural, no caminho da descoberta de Freud, será que devemos colocá-la sobre o fundo de uma totalidade? Será que o um é anterior à descontinuidade? (LACAN, 1964/1988, p. 30, grifos do original).

Acentuando o caráter descontínuo sob o qual o inconsciente aparece como fenômeno - curioso fenômeno este que se apresenta de modo assaz negativo - Lacan parte do próprio termo utilizado por Freud para designar o inconsciente: das Unbewusste. Primeiramente, coloca-se a seguinte questão: tratar-se-ia de afirmar que há um campo perfeitamente constituído, contínuo, totalizado (por exemplo, a consciência), em relação ao qual algo emerge sob a forma de falha, ou ainda de erro?

Na contramão dessa concepção, Lacan irá dizer que o Un do Unbewusste1 (o 'in' do inconsciente) não constitui uma partícula de negação, privativa. O inconsciente não é o oposto ou o negativo da consciência: não significa inconsciente como algo não consciente. Ou seja, não designa apenas a qualidade ou atributo daquilo que não é consciente, pois de acordo com essa acepção do termo - e também do conceito - a referência maior seria a consciência enquanto totalidade (anterior à descontinuidade). Tampouco o conceito de inconsciente (Unbewusste) seria um não conceito (Unbegriff ou inconceito), mas, sim, o conceito da falta, vale dizer, a positividade operativa de algo que se apresenta como descontinuidade, ruptura, hiância - lembrando que aqui Lacan está tratando dos conceitos fundamentais - Grundbegriffen - da psicanálise. Acompanhemos sua argumentação:

O um que é introduzido pela experiência do inconsciente é o um da fenda, do traço, da ruptura. Aqui brota uma forma desconhecida do um, o Un do Unbewusste. Digamos que o limite do Unbewusste é o Unbegriff - não o não-conceito, mas o conceito da falta (LACAN, 1964/1988, p. 30, grifos do original).

Com efeito, o que está em jogo é uma apreensão radical do conceito de inconsciente, pois não se trata de dizer que este é descontínuo em relação a uma suposta continuidade (podemos chamá-la consciência, pensamento ou representação), ou ainda que houvesse uma positividade em relação ao qual o inconsciente aparece como ausência. Nesse caso, seu estatuto seria o de um erro, de uma falha, no sentido pejorativo ou ainda patológico. Tampouco o Un do Unbewusste refere-se à existência de uma unidade (um) - psicológica ou psíquica - que consistiria assim numa espécie de reflexo, em outro nível ou patamar (por exemplo, o mental) da unidade biológica (explicitada pelo termo "organismo" enquanto conjunto de órgãos funcionando, de forma harmônica, vale dizer, uma totalidade).

 

Das Unbewusste: o conceito da falta

Se Lacan afirma que "o limite do Unbewusste é o Unbegriff - não o não conceito, mas o conceito da falta" (LACAN, 1964/1988, p. 30) deriva do fato de que o conceito de inconsciente levado ao limite o que surge não é o conceito de limite (por exemplo, o inconsciente como fronteira da consciência), mas o limite do conceito, ou seja, o inconceitual: o próprio conceito se apresentando sob a forma de corte. Contudo, não se trata do inconceituável (em que pese o neologismo) - o inconsciente como sendo da ordem do indizível ou inefável - já que todo o esforço empreendido por Lacan é justamente o de conceituar aquilo que se apresenta de modo negativo, formulando o conceito da falta em perfeita consonância com o próprio estatuto do objeto que trata de abordar.

O inconsciente não é o corte com o conceito, mas o próprio conceito de corte; ele não é o 'inconceito' ou ainda não conceito, isto é, ausência ou falta de conceito, mas o conceito da falta. Assim, a falta deixa de ser considerada enquanto falha ou simples tropeço da razão e ganha estatuto conceitual: inconsciente. Por sua emergência, "cria", por assim dizer, tudo aquilo que não é inconsciente, o que é diferente de dizer que ele é o "furo" em um campo já constituído. Quanto a esse ponto, a formulação lacaniana é clara: Onde está o fundo? Será a ausência? Não. A ruptura, a fenda, o traço da abertura faz surgir a ausência - como o grito se não se perfila sobre um fundo de silêncio, mas ao contrário, o faz surgir como silêncio (LACAN,1964/1988, p. 31).

Lacan procura circunscrever a "função da causa" introduzida pelo conceito de inconsciente: trata-se de uma hiância operativa, que produz efeitos, põe em marcha, afirmando:

Estou certamente, agora, em posição de introduzir no domínio da causa a lei do significante, no lugar onde essa hiância se produz. Nem por isso deixa de ser preciso, se queremos compreender o de que se trata na psicanálise, tornar a evocar o conceito de inconsciente nos termos em que Freud procedeu para forjá-lo - pois não podemos completá-lo sem levá-lo ao seu limite (LACAN, 1964/1988, p. 28-29).

Ora, "completar" o inconsciente seria uma contradição em termos, já que o próprio Lacan afirma-lhe o caráter de fenda, corte, falha. Sabemos que não se trata de uma falha no sentido de defeito, mas de uma negatividade operativa, ou seja, de uma incidência que opera sob o modo de uma perda. Então, "completar" o conceito freudiano de inconsciente só pode ser compreendido se pensarmos que o termo "completar" não se refere a "tornar completo", mas ao contrário, implica dizer que levado ao limite o conceito de inconsciente revela sua dimensão de incompletude.

O paroxismo do conceito de inconsciente é o inconceitual, Unbewusste, conceito da falta. Vale ressaltar que a causalidade em jogo a partir da conceituação do inconsciente é aquela que introduz a dimensão do inconceitual. Entre a causa e o efeito, Lacan situa a hiância do inconsciente enquanto conceito da falta: Cada vez que falamos de causa, há algo de inconceitual, de indefinido. (...) Em suma, só há causa para aquilo que manca. (...) Muito bem, o inconsciente freudiano (...) ele se situa nesse ponto em que, entre a causa e o que ela afeta, há sempre claudicação (LACAN, 1964/1988, p. 27).

Assim, podemos dizer que o estatuto anticonceitual - por assim dizer - atribuído à "função da causa" (no dizer de Lacan) se realiza no conceito de inconsciente - o Unbegriff tomado, não como o não conceito (negação), mas como o próprio inconceitual, e o Unbewusste compreendido, não como o não consciente, mas como conceito da falta (negatividade operativa). Com efeito, o inconsciente não é ausência em relação a uma presença: ele se afirma enquanto presença de uma negatividade que opera enquanto tal.

A hiância por meio da qual o inconsciente se apresenta, Lacan a denomina "pré-ontológica": não está referida à ordem do ser (tampouco do não ser, seu oposto simétrico), pois lhe é anterior. Não se trata de uma anterioridade cronológica, mas lógica: como afirmar, na ordem do ser (ontologia) um suposto "ser" que se apresenta sob a forma do não ser? Impossível fazê-lo, uma vez que, desde Parmênides, do ser só é possível dizer que ele é, e do não ser que ele não é.

Por esta razão, Lacan afirma que o inconsciente não se presta a nenhuma forma de ontologização. Então, qual é o estatuto conceitual do inconsciente, já que ele não pode ser definido enquanto ser (positividade e consistência) e tampouco como não ser (ausência, puro nada)? Se o inconsciente não possui estatuto ontológico (nem como ser, nem como não ser), seria então o caso de dizer que o inconsciente freudiano tem, de fato, estatuto conceitual? Seria ele apenas um sonho da razão - ou delírio - de Freud?

Eis o salto empreendido por Lacan: "ao que é propriamente da ordem do inconsciente, - é que ele não é ser nem não ser, mas, é algo de não-realizado" (LACAN,1964/1988, p. 33-34). Portanto, se o conceito de inconsciente é, no limite, presença do inconceitual enquanto não realizado, seu estatuto é ético uma vez que ele só se realiza - apenas pontualmente, como corte, fenda - por intermédio de um ato do sujeito. Isto é, para que o inconsciente 'tenha sido' (já que ele não é ser) de acordo com a temporalidade própria ao campo psicanalítico, exige o sujeito em ato: Wo es war, soll Ich werden. Trata-se de advir, na dimensão de responsabilidade - portanto, ética - ali onde a hiância do inconsciente se abriu apenas para tornar a se fechar (LACAN, 1964/1988, p. 136).

Curiosamente, Lacan (1964/1988) não parece negar uma espécie de estatuto ôntico à função do inconsciente. Este ("ôntico") é um termo tomado de empréstimo à filosofia heideggeriana e diz respeito ao que se apresenta como existente, factual, e, contrariamente à ontologia propriamente dita, não remete a uma essência ou substância.

O que é ôntico na função do inconsciente é a fenda por onde esse algo, cuja aventura em nosso campo parece tão curta, é por um instante trazido à luz - por um instante, pois o segundo tempo, que é de fechamento, dá a essa apreensão um caráter evanescente. Reencontramos aqui a estrutura escandida desse batimento de fenda. O aparecimento evanescente se faz entre dois pontos, o inicial e o terminal, desse tempo lógico - entre o instante de ver em que algo é sempre elidido, se não perdido, da intuição mesma, e esse elusivo em que, precisamente, a apreensão do inconsciente não conclui, em que se trata sempre de uma recuperação lograda. (...) Ônticamente, então, o inconsciente é o evasivo (LACAN, 1964/1988, p. 35-36).

Lacan conclui, por uma existência (caráter ôntico) que é, por natureza, - estranha natureza, porém - essencialmente fugidia, ou seja, que se apresenta esquivando-se, quando afirma que "ônticamente o inconsciente é o evasivo". Entretanto, cabe ressaltar que ele não diz que o inconsciente é evasivo - 'evasivo' não é, aí, predicado, qualidade ou atributo do inconsciente, de modo que este fosse inapreensível ou inefável -, mas que ele é o evasivo: "existente" que comparece furtando-se a toda e qualquer apreensão integral. O inconsciente só "existe" assim, mediante uma existência singular, subtraindo-se à tentativa de positivá-lo - por exemplo, através de uma conceituação exaustiva.

Dessa forma, a existência - isto é, o caráter ôntico pelo qual o inconsciente se apresenta - torna-se ex-sistência, uma vez que o ú;nico que "existe" é a estrutura de fenda, de escansão, de evanescência. A apreensão do inconsciente é sempre lograda, ou, melhor dizendo, ele só pode ser apreendido em sua dimensão de logro: algo se realiza - não há como negar - todavia, essa realização é da ordem do não realizado, isto é, marcada pelo signo da incompletude e da parcialidade. Mas, convém atenção: não se trata de dizer com isso ele é parte em referência ao todo (tampouco o incompleto faz menção à completude). O modo parcial por meio do qual o inconsciente se apresenta é aquilo mesmo que ele é (se fosse alguma coisa); o inconsciente não é um todo que se apresenta por/em partes, mas a própria parcialidade.

 

Wo Es war, sol Ich werden: responsabilidade do sujeito e presença do analista

Retomemos, pois. Lacan está empenhado em estabelecer os conceitos fundamentais do campo psicanalítico, a começar pelo primeiro e o mais importante, o inconsciente. Para que o campo possa estar solidamente fundamentado, é preciso determinar o estatuto de seu conceito fundador. Ora, já vimos que o conceito fundamental do campo psicanalítico (o inconsciente) não tem estatuto ontológico, uma vez que não é da ordem do ser (nem do não ser), mas do não realizado. Tampouco se pode afirmar plenamente que seu estatuto é ôntico (existente), já que ele só "existe" pelo próprio movimento de furtar-se - inclusive toda e qualquer tentativa de conceituação exaustiva. Como então conferir-lhe um estatuto conceitual, e qual seria ele?

Como vimos, o inconsciente não se presta à ontologia, pois é da ordem do não-realizado (LACAN, 1964/1988, p.34); mas ele é alguma coisa, ou seja, não se trata de dizer que ele não é nada - ou ainda, que ele é nada. Será ele um existente? Mas como existente ele se apresenta sob um modo fugidio; entretanto, o inconsciente não é evasivo (inapreensível, inefável, ou ainda inconceito), mas o evasivo (conceito da falta). Assim, Lacan é levado a afirmar que "O estatuto do inconsciente, tão frágil no plano ôntico, é ético" (LACAN, 1964/1988, p.37).

Dizer que o inconsciente é frágil no plano ôntico (isto é, do existente) resulta do fato de que este só "existe" em seu caráter de hiância. Mas dizer isso não exaure a questão, tampouco esclarece porque seu estatuto é ético. Talvez uma forma de encaminhar o problema seja dizer que para que o não realizado não seja nada (tropeço, erro ou falha da razão), ele exige o sujeito para garantir o pouco que lhe é dado ser - se assim podemos nos exprimir. Para que o inconsciente - não realizado - "exista" ele requer o sujeito em ato; assim, só há inconsciente se um sujeito responder fazendo Un (corte) com o inconsciente, redobrando a fenda, situando-se na hiância, ou seja, apagando-se enquanto ser (Eu), "sendo" apenas a marca de seu próprio apagamento ($). O inconsciente só passa da insistência à ex-sistência pela decisão ética de um sujeito (soll Ich werden) em garantir, aposteriori, a sua "realização" pontual (Wo es war).

Também podemos considerar que o estatuto do inconsciente é ético pela própria démarche freudiana, que atribui à falha (sonho, lapso, sintoma, chiste) uma ordem de verdade, ou melhor, de certeza. Freud não chega ao conceito de inconsciente por meio de uma formulação teórica, mas por sua submissão à clínica, assim como por sua chamada "autoanálise". Pelo passo de Freud, o conceito de inconsciente é inseparável da presença do analista, pois ele inventou, por assim dizer, a um só tempo, o inconsciente e o psicanalista. Ambos são tributários da sujeição de seu criador à clínica: Freud não pensou o sujeito - pois não era filósofo - mas o escutou, e através desta escuta refinada deu lugar ao sujeito, elemento banido do campo da ciência. Através do corte epistemológico instaurado pela operação freudiana ao subverter o sujeito essencialista da filosofia, o sujeito do inconsciente - vale dizer, sujeito às suas injunções - emerge, a cada vez, como não idêntico a si mesmo. O campo freudiano é afirmado por Lacan como sendo o de uma práxis, que se definiria como um modo de tratar o real pelo simbólico (LACAN, 1964/1988, p. 14).

Se, de acordo com Lacan, o conceito é algo que se realiza por um salto e não por aproximações sucessivas (LACAN, 1964/1988, p. 25), é porque este salto é o próprio advento do sujeito, que se lança no vazio uma vez submetido ao desejo inconsciente. Portanto, numa análise cabe ao sujeito (re)fundar - a posteriori - o estatuto ético do inconsciente ao submeter-se, a cada vez, às suas injunções.

O estatuto do inconsciente é ético justamente em virtude de seu caráter descontínuo, pontual, evanescente, que não funda de uma vez por todas, o campo que é por ele instaurado, pois ele é perda, corte. O campo do inconsciente se funda em pura perda e, por isso, clama pela responsabilidade do sujeito. E visto que o inconsciente não é apenas a negação da consciência (in-consciente), mas uma negatividade operativa, (pois, conforme já vimos, ele não é "nada", não ser), ele exige o sujeito para acolher e recolher seus efeitos, responsabilizando-se por suas consequências. Eis porque, a nosso ver, foi necessário a Lacan introduzir o sujeito no campo do inconsciente, isto é, não apara penas fazer ressaltar a dimensão de sujeição que o conceito de inconsciente implica, mas, sobretudo, a de responsabilidade, que se encontra articulada à própria formulação de seu estatuto ético.

O conceito de inconsciente introduz um corte na esfera do tempo e do espaço - lembrando que estas categorias dizem respeito às duas formas puras a priori da intuição sensível, introduzidas por Kant. A rigor, o inconsciente é o próprio corte. A dimensão temporal que lhe é intrínseca é a da pontualidade, no duplo sentido do termo: sua incidência pontual não caracteriza uma extensão (o somatório dos pontos não forma um segmento de reta) e tampouco uma sucessão temporal (uma vez que a sua emergência pontual não subsiste no tempo); além disso, sua emergência tem um caráter de precisão: há ali uma verdade re-velada. A cada eclosão do inconsciente, um corte e a série dos cortes não constitui nem uma extensão no espaço, nem uma sucessão no tempo compreendido enquanto cronológico.

O campo do inconsciente é aquele que advém em perda (Lacan, 1964/1988, p.122). Sua temporalidade característica é a do instante: corte com a sucessão, ou, antes, corte tout court, sem referência à sucessão. O Un do Unbewusste se apresenta como um corte, a cada vez: um Un, outro um Un, e ainda outro um Un. Trata-se do serial e não do sucessivo. Assim, exige o analista em presença de modo a garantir sua incidência real, conforme assevera Lacan: "O campo freudiano é um campo que, por sua natureza, se perde. É aqui que a presença do psicanalista é irredutível, como testemunha dessa perda. (...) pois é uma perda seca, que não salda nenhum ganho, se não é sua retomada na função de pulsação" (LACAN, 1964/1988, p. 122).

Logo, garantir que essa perda possa ter consequências - e não ser descartada pelo primado da razão - , sustentar essa perda com "seu" desejo (do analista), ou seja, incidir a partir de uma falta, tudo isso caracteriza um modo de operar cuja incidência ética redobra a hiância inconsciente e convoca o sujeito. Pagando o preço de sua presença enquanto corte (perda de ser e de saber), reduplicando a perda engendrada pela emergência do inconsciente, o psicanalista garante a existência deste campo em sua dimensão ética: ex-sistência.

Quanto ao analista estar incluído no conceito do inconsciente (Lacan, 1964/1988, p.123) e em virtude do estatuto ético deste ú;ltimo, é possível retomar o assim chamado imperativo ético freudiano Wo es war, soll Ich werden. Com efeito, o "isso era" do primeiro termo da oração não indica algo dado - caso em que o estatuto do inconsciente seria ontológico, da ordem do ser: Isso/inconsciente é. Ou tomando a questão pelo seu avesso, mas ainda no plano ontológico: Isso/inconsciente não é (sendo apenas o negativo da consciência, ou ainda um tropeço da razão). O inconsciente 'é' apenas numa anterioridade lógica (Isso era) à medida que o psicanalista, por sua presença situada nessa hiância (fenda, ruptura, corte) realiza o inconsciente - enquanto perda.

Portanto, para que Isso/inconsciente ultrapasse a questão ontológica, para que se possa afirmá-lo como sendo da ordem do não realizado (isto é, nem ser e nem não ser), para que se possa afirmar o seu estatuto ético e dizer, segundo a fórmula freudiana, que "Isso era" é preciso que ali, no momento de sua emergência, haja um analista para recolher os seus efeitos. Um analista que com e por sua presença possa garantir que isso que é da ordem do não realizado seja, opere - ainda que pontualmente - e que, por essa perda que é pura perda, por esse corte que é apenas corte, um sujeito possa aí advir. O desejo do analista pode então ser compreendido como aquilo que causa, a posteriori, o inconsciente, uma vez que o primeiro termo da oração encontra-se subordinado ao segundo: assim, o inconsciente terá sido (Wo eswar) pela incidência do analista em presença (soll Ich werden).

Vemos, portanto, que o estatuto ético do inconsciente, tal como formulado por Lacan, carreia consequências clínicas decisivas, uma vez que implica, necessariamente, os dois termos - digamos assim - da cena analítica enquanto tal: o sujeito e o psicanalista, ou melhor, a posição do sujeito e a presença do analista. O sujeito, na condição de se submeter às injunções do inconsciente e assim fazer valer o desejo do Outro; o analista em garantir que a fenda não seja suturada, e, portanto, possa operar, isto é, que o inconsciente possa se realizar - como corte. Desse modo, afirmar o estatuto ético do inconsciente significa fazer apelo à responsabilidade do sujeito e à função do analista.

Por conseguinte, o inconsciente só ex-siste - em sua dimensão própria de perda e de corte - se, de uma parte, o analista faz valer o corte, isto é, garante o inconsciente como não realizado (dizer que o inconsciente é da ordem do não realizado é outro modo de dizer que o Outro é barrado) assegurando a hiância do inconsciente. De outra parte, se o sujeito se responsabiliza por aquilo mesmo que o causa, garantindo com sua castração, isto é, com sua perda (de ser, de saber) o lugar do Outro, ao qual ele se encontra apenso - conforme apontado na formulação "Dedicar sua castração à garantia do Outro" (LACAN, 1962-63/2005, p.56).

Se, a partir de Lacan, podemos considerar sujeito e inconsciente como termos homólogos, afirmar o caráter de não realizado do inconsciente é dizer que a incompletude do Outro - indicada pelo signo da barra - tem a mesma incidência de corte sobre o sujeito ($), sendo que dele se exige ainda um pouco mais: que através de sua própria perda, o sujeito possa dar consistência a este campo ao qual ele deve sua "existência" (também pontual, parcial e evanescente - portanto, ex-sistência). Esta "consistência" só pode ser aquela do inconsciente: a (in)consistência do corte. Assim, a barra incide sobre o Outro e sobre o sujeito.

O inconsciente não tem estatuto ontológico, pois não é ser (positividade) nem não ser (nada), e no plano ôntico (existente) seu estatuto é frágil; logo, é ético, pois exige o sujeito em ato - e o psicanalista - para que se realize (sempre parcialmente) e, assim, possa ex-sistir. Um campo que se perde não pode, por definição, constituir um saber - enunciados consistentes que vêm fundamentar um campo de conhecimento - já que se apresenta como perda. Não obstante, implica numa certeza com valor de verdade. É diante dela que o sujeito deve tomar o seu lugar (soll Ich werden), garantindo, por intermédio de seu ato, um campo que se funda em perda (Wo es war).

Retomar a máxima freudiana, a partir da formulação do estatuto ético do inconsciente, significa dizer que o primeiro termo (Wo es war) não implica necessariamente no segundo (soll Ich werden), mas que este a posteriori engendra o primeiro. Dizer isto é o mesmo que dizer que o inconsciente só "existe" (ex-siste) por um ato do sujeito - que faz com que o inconsciente possa se realizar (enquanto perda). A presença do analista, por sua vez, garante que a perda possa ser "retomada em sua função da pulsação", conforme afirma Lacan (1964/1988, p. 122).

 

 

Referências

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VORSATZ, Ingrid. O sujeito da psicanálise e o sujeito da ciência - considerações éticas sobre o cogito cartesiano. Dissertação (Mestrado em Teoria Psicanalítica).- Instituto de Psicologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2002. Pesquisa financiada pela CAPES.

 

Artigo recebido em: 05/08/2015
Aprovado para publicação em: 05/08/2015

Endereço para correspondência
Ingrid Vorsatz
E-mail: ingrid.vorsatz@uerj.br

 

 

*Psicóloga/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro-PUC-Rio, mestrado e doutorado Teoria Psicanalítica/Universidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ , especialista Saúde Mental/Instituto de Psiquiatria-IPUB, profa. Instituto de Psicologia/Universidade Estadual do Rio de Janeiro-UERJ.
1O idioma alemão discrimina dois usos do termo, a saber: o adjetivo unbewusst em relação ao qual a partícula un designa apenas a negação do que é consciente (da mesma forma em português: inconsciente); e o substantivo das Unbewusste cunhado por Freud, que designa o inconsciente enquanto sistema psíquico. Ainda a esse respeito, reportar-se à distinção efetuada por Freud entre inconsciente descritivo e inconsciente dinâmico (ou sistemático) (FREUD, 1923/1976, p. 77 a 79).

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