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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.38 no.34 Rio de Jeneiro jun. 2016

 

ARTIGOS

 

Superestimulação na infância: uma questão contemporânea

 

Childhood overstimulation: a contemporary issue

 

 

Nancy Mendonça Assemany*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo objetiva discutir a infância na perspectiva das ações voltadas para o desenvolvimento das crianças na contemporaneidade. Ao abordarmos este tema, devemos considerar o contexto e a cultura onde o fenômeno ocorre. Como forma de facilitar a compreensão será apresentado o enfoque dado à infância como categoria histórica e sua apropriação como categoria psicanalítica. A trajetória clínica do acompanhamento das famílias com crianças contribuiu para que questionássemos a situação atual da infância frente à superestimulação, entendida como a pressão para que as crianças respondam o mais cedo possível a demandas externas visando o seu desenvolvimento. A leitura e análise de publicações, livros, discussões atuais sobre como a infância está sendo constituída nas famílias contemporâneas, fundamentaram a formulação das questões abordadas.

Palavras-chave: Infância, Superestimulação, Educação, Tecnologia, Infância abreviada, Contemporaneidade.


ABSTRACT

The aim of this article is to discuss childhood from the perspective of actions oriented to children development in contemporaneity. When discussing this subject, context and culture in which the phenomenon occurs have to be taken into account. In order to facilitate understanding, the article will focus childhood as a historical category and its appropriation as a psychoanalytic category. The clinical follow up of families with children has led us to question the current situation of over stimulating childhood, where there is pressure for children to respond as early as possible to external demands aiming at their development. The reading and analysis of publications, books and current discussions on childhood development in contemporary families were the bases for the elaboration of the issues examined in this article.

Keywords: Childhood. Overstimulation, Abandonment, Technology, Shortened childhood, Contemporaneity.


 

 

Introdução

Este artigo não tem como objetivo discutir a construção teórico-histórica dos conceitos que informaram as questões aqui abordadas. O objeto de nossa reflexão é a nova forma de situar essa criança na relação contemporânea com os pais frente à sociedade e o ambiente em que vive.

O artigo se estrutura em dois eixos: um breve enfoque histórico da evolução do conceito de infância e sua interpretação pela psicanálise freudiana e a discussão de situações atuais como a superestimulação, os substitutivos, a infância abreviada.

Depois do clássico Ariés (1981), começou-se a entender a infância como instituída pelo contexto sociocultural de cada época. O conceito "infância" remeteria a variações históricas, temporais e sociais diferenciadas, mesmo conservando o aspecto biológico da imaturidade reconhecido universalmente.

Estudos com relação ao desenvolvimento infantil são bastante recentes na história da humanidade. As crianças, nos séculos anteriores ao século XX, eram tratadas como pequenos adultos. Recebiam cuidados especiais apenas em idade muito precoce e a partir dos três ou quatro anos participavam das mesmas atividades que os adultos. No início do século XX, a partir das revelações de Freud sobre a importância dos primeiros anos de vida na estruturação do psiquismo do indivíduo adulto, o reconhecimento do tratamento de crianças adquire bases mais sólidas.

Observando as práticas no dia a dia das famílias contemporâneas, propomo-nos a interrogar em que medida nossa cultura atual, constituída por suplências materiais, tem produzido conflitos e dificultado o momento de constituição da infância, ocasionando o que podemos chamar infância abreviada.

Historicamente, a publicação em 1960, de A história social da criança e da família, de Philippe Ariés, embora cercada de questionamentos, marca um novo modo de olhar para infância, não mais como uma experiência natural, mas como uma construção das sociedades. A perspectiva histórica foi fundamental para os estudos de infância porque situa sua construção social, tornando possível sua desnaturalização. Concepções de infância são construídas e modificadas socialmente ao longo dos anos, considerando o momento histórico em que se vive, ou seja, "a infância pode apresentar variações impressionantes, de uma sociedade ou de um tempo a outro" (STEARNS, 2006, p. 12). Segundo Stearns (2006), a infância não deixa de ser um conceito definido pelos adultos, para os adultos e por instituições também adultas.

 

Um pouco de história

Todo período histórico possui variações sobre a definição de infância. A nova percepção da infância, no século XVII, consolidando o lugar da criança como merecedora de afeto em sua singularidade e lhe dando um papel especial, não foi bem aceita por muitos que a criticavam e achavam insuportável a atenção excessiva, que se dispensava a elas. Em seus Ensaios, diz Montaigne: "Não posso conceber essa paixão que faz com que as pessoas beijem as crianças recém-nascidas, que não têm ainda alma, nem forma no corpo pela qual possam se tornar amáveis". Tanto o sentimento da infância quanto a exasperação que esse sentimento provocava eram novos e estranhos à promiscuidade indiferente da convivência entre o mundo infantil e o mundo adulto da sociedade medieval. É com os moralistas e os educadores do século XVII que veremos se formar outro sentimento da infância vigorando até o século XX. Surgem textos com observações sobre a Psicologia Infantil, voltados para a adaptação dos métodos educacionais aos diferentes níveis de compreensão infantil. No século XVIII, a educação da criança assume lugar central dentro da família provocando a separação destas da convivência com os adultos.

Teresinha Costa, ao analisar esta questão, resumindo o trabalho de Ariés (2010, p. 76) diz que "para este período de final do século XIX com a ascensão do capitalismo e dos ideais da burguesia, os valores individuais ganham cada vez mais importância". Esse sentimento de responsabilidade pela formação da criança também passa para a vida familiar. A família começa a se ocupar de tudo que diga respeito à vida de seus filhos, desde as brincadeiras até a educação, incluindo um elemento novo que é a preocupação com a higiene e a saúde física. Já, no século XIX, observamos uma preocupação mais ampla e sistemática com o estudo da criança e a necessidade de uma educação mais formal.

Neste mesmo período, as crianças foram exploradas como trabalhadoras em fábricas e indústrias, diante de uma sociedade que necessitava de mão de obra barata. O trabalho infanto-juvenil extenuante de até 16 horas diárias, ocasiona a reflexão social e legal a respeito da necessidade de proteção a essa faixa etária e a educação passa a ser privilegiada com a instalação de várias unidades de ensino. Apesar da concepção vigente, de que as grandes instituições educacionais são um ambiente de proteção e de extremo cuidado, percebeu-se que em seu núcleo também poderiam ocorrer situações que demandassem intervenção social, política, legal e, muitas vezes, médica e hospitalar. Crianças eram negligenciadas, quando não maltratadas dentro de alguns desses espaços, muitas vezes pelos próprios educadores. No final dos séculos XIX e XX, observamos que a pedagogia, a pediatria e as especializações em torno da criança desenvolvem-se rapidamente. O discurso psicológico destaca-se como aquele capaz de produzir um discurso científico sobre a infância no qual a pedagogia, cada vez mais, vai se ancorar para produzir práticas educativas e saneadoras.

Os pais tornaram-se submissos aos ditames da ciência, esta sim, capaz de instruí-los quanto à forma correta de conduzir a educação das crianças, o que resultou na desqualificação da família como aquela que poderia gerir sozinha a educação dos filhos.

Em uma perspectiva histórica observamos que, a partir de um período (Idade Média) de total desconhecimento da infância enquanto etapa específica do desenvolvimento humano, passa a vigorar o discurso científico sobre a criança, um ser assexuado, sem desejo próprio, imaturo, portadora de uma natureza a ser corrigida pelo adulto. Essa ideia imperou por muito tempo e foi somente a partir de Freud que tal concepção se modificou. Diana Myriam Lichtenstein Corso (1998), ao discutir o aporte de Freud para a compreensão da infância, afirma que:

Freud não descobriu a infância, ele apenas a "complicou", desvendando o caráter interno deste processo, fazendo da moral a herdeira do amor dos pais (constituição do superego), colocando os desejos parentais no lugar de molde do ideal, a fôrma com a qual o sujeito se mede, e fazendo de tudo isto um imprevisível processo inconsciente sujeito a suscitar a neurose e outros sofrimentos (CORSO, 1998, p. 2).

É nesse momento, quando Freud não se deixa influenciar pelas teorizações que viam a criança enquanto natureza passível de ser "moldada" pela educação ou pela psicologia, que um novo olhar é dirigido a ela. No Projeto para uma psicologia científica, Freud (1895) atribui às experiências infantis valor determinante e fundante do psiquismo. Estabelece o desamparo infantil e a busca de satisfação como elementos constituintes da subjetividade.

Esse foi um momento teórico muito importante no desenvolvimento da teoria psicanalítica, no qual o relevante não é mais os fatos da infância, mas a realidade psíquica, constituída pelos desejos inconscientes e pelas fantasias a ela vinculadas, tendo como pano de fundo a sexualidade infantil.

Ocorre também, com a contribuição de Freud, uma modificação no conceito de infância, que deixa de ser vista a partir de um registro genético, social e cronológico, para ser abordada pela lógica do inconsciente. Nos Extratos dos documentos dirigidos a Fliess (FREUD, 1950) já havia a compreensão de que na reconstrução dos primeiros anos de vida feita em análise, estão contempladas tanto as recordações de infância proferidas ao analista, como a infância esquecida. (ZAVARONI, 2007. p. 65-70). No início do século XX, a partir das revelações de Freud sobre a importância dos primeiros anos de vida na estruturação do psiquismo do indivíduo adulto, o reconhecimento do tratamento de crianças começou a adquirir bases mais sólidas, e, através da descoberta dos processos inconscientes, as relações familiares ganham nova importância.

Instaura-se a infância como lugar privilegiado da família moderna com a valorização da intimidade/proximidade/identidade entre seus membros informando as novas práticas derivadas das formulações teóricas. Esse núcleo familiar se une por sentimentos, costumes, crenças e anseios comuns. Do século XX até o século XXI, cada vez mais o sentimento de infância atribui às crianças papel preponderante no cerne das relações familiares. Estas se tornam protagonistas centrais no núcleo familiar, que passa a funcionar em torno delas. Marcia Neder alerta:

As atividades da família são definidas em função dos filhos, assim como o cardápio de qualquer refeição. As músicas ouvidas no carro e os programas assistidos na televisão precisam acompanhar o gosto dos pequenos, nunca dos adultos. Em resumo, são as crianças que comandam o que acontece e o que deixa de acontecer em casa. Quando isso acontece e elas já têm mais de dois anos de idade, é hora de acender uma luz de alerta. Eis aí um caso de infantolatria (NEDER, 2014, p. 32).

Observa-se, portanto um novo momento onde é reiterada a importância da criança enquanto centro das atenções e ações familiares.

 

Uma questão da atualidade

Contemporaneamente, diversas correntes de pensamento atribuem ao recém-nascido capacidades e características próprias. A exacerbação deste tipo de informação tem como decorrência estímulos aplicados cada vez mais cedo. A antecipação de respostas exigidas na primeira infância, por meio destes estímulos excessivos, voltados para as crianças nesta fase de sua constituição é considerada superestimulação. É necessária mais cautela na introdução da tecnologia na vida das crianças. Os pais justificam a inserção da tecnologia cada vez mais precocemente tanto como um auxiliar na ocupação dos filhos em casa, quanto para que tenham tempo de desenvolver suas próprias atividades. Por isso, observam-se crianças que passam horas fixadas na frente da TV e bebês de menos de seis meses que passam o dia assistindo a desenhos

O que vemos, desde o nascimento, é a preocupação em dar aos recém-nascidos uma multiplicidade de brinquedos e equipamentos educativos, objetivando estimular ao máximo o desenvolvimento do bebê. Estes vão desde móbiles multifacetados de berço, artefatos sonoros que não deixam as crianças sozinhas um instante entre outros, quando o importante seria o tempo vivenciado com a mãe. A natureza de um bebê e explorar seus corpos e reconhecer o mundo pelos olhos da mãe. Ela só precisa que a mãe cante, brinque de aparecer e sumir e com as mãos, e lhe dê colo e peito. A natureza da criança é movimento e exploração. Mas os adultos acreditam que isso é desordem. O cuidar de uma criança deve ser norteado, não pelo desejo de fazê-la aprender antecipadamente, com excesso de estímulos (superestimulação), mas pelo empenho em seguir o desenvolver de sua inteligência e curiosidade natural, permitindo que os bebês apresentem o próprio ritmo de seu aprendizado. Isto é obtido pelo simples brincar, que vem a ser um dos componentes mais importantes da fala e traz novos estímulos para a vida da criança.

Segundo Sarah Ockwell-Smith (2014), os bebês podem aprender simplesmente ficando no colo: aprendem sobre movimento, se fortalecem quando colocados sobre a barriga da mãe e não só deitados no berço. Aprendem sobre o ambiente a sua volta tendo como base segura o contato humano. Imaginemos um bebê colocado na cadeirinha em frente à televisão, com seu corpo forçado a ficar numa posição para a qual seus músculos e articulações não estão preparados, impossibilitado, portanto, de sair da frente de um aparelho que emite sons altos e cores brilhantes. Seu instinto de proteção fica comprometido, sua iniciativa de mudar de foco e sua capacidade de alterar a situação desagradável não ocorrem.

A experiência do Instituto Lóczy de Emmi Pikler, em Budapest (Hungria), nos anos 40, trouxe alguns paradigmas para a educação de crianças de 0 a 6 anos. Realizada em creches e escolas infantis, mostra que, mesmo em uma situação institucional, o que dá a possibilidade de um desenvolvimento adequado e saudável, é a força do olhar, da palavra, do gesto, seguindo a ética do cuidado amoroso. Os cuidadores aprenderam com Emmi Pikler, que a criança, ao conseguir algo por inciativa própria, adquire uma classe de conhecimentos superior àquela que recebe a solução pronta. O não intervencionismo na atividade independente da criança não significa abandoná-la: algumas trocas de olhares, um comentário verbal, uma ajuda em casos de necessidade, reasseguram que ela é uma pessoa querida e importante. Esta prática remete à importância da autonomia no aprendizado e na descoberta de seu próprio potencial frente à tendência atual da superestimulação.

Piera Aulaigner (1979) reforça este conceito do não intervencionismo em seu livro A violência da interpretação, ao tratar da questão da antecipação dos desejos da criança pela mãe, quando nos primeiros sons emitidos pelo bebê, a mãe se precipita em agir, ação essa que nem sempre corresponde à demanda expressa pelo bebê. Deve-se permitir que os bebês coexistam em paz sem ficar tentando interpretar seus desejos ou dando respostas muitas vezes distanciadas de suas verdadeiras necessidades.

A clínica com famílias, o contato com creches diversas e uma rápida pesquisa na Internet, sobre ofertas de atividades para bebês, mostra uma lista variada de aulas tais como massagem, yoga, jogos, atividades orientadas e até línguas estrangeiras como francês. Ao ampliar a pesquisa para a faixa etária de um a três anos, encontramos teatro, futebol e trampolim. É notório que as crianças, em sua maioria de classe média, estão com todos os momentos da vida agendados e monitorados com várias atividades. Não causa estranheza que os pais estejam sempre em busca de entretenimento para seus bebês/crianças pequenas, preocupados com o possível tédio destes e esquecendo os benefícios do ócio criativo. Quanto maior é o apelo dessas ofertas, mais as mães sentem que deveriam estar fazendo algo externo com seus bebês, internalizando que sozinhas não são suficientes para os filhos. As mães aprendem em cursos que há maneiras especificas de tocar, mexer, falar, cantar com os filhos, e que isto requer uma dose de preparo profissional, sentindo-se, portanto menos confiantes em si mesmas e na sua maneira particular de fazer as coisas. Estão sempre se perguntando "se estão fazendo certo", levando a perda da espontaneidade, muito distantes do conceito de "mãe suficientemente boa" de Winnicott, onde a perfeição não é necessária:

Naturalmente a própria mãe do bebê tem mais probabilidade de ser suficientemente boa do que alguma outra pessoa, já que essa adaptação ativa exige uma preocupação fácil e sem ressentimentos com determinado bebê; na verdade, o êxito no cuidado infantil depende da devoção, e não de "jeito" ou esclarecimento intelectual (WINNICOTT, 1975, p. 25).

Como ilustração deste exagero de estimular as crianças continuamente, vimos um caso onde a professora elogiou o desenho de um aluno de sete anos e a mãe foi de imediato procurar cursos de arte, pensando em um novo Picasso. Enquanto isso, a criança falava "Não quero ter um professor, só quero desenhar".

A educação para a obtenção de resultados, desde muito cedo, é uma antecipação da dotação de ferramentas necessárias para que as crianças, futuramente, tenham êxito no mundo competitivo. Hoje, as práticas sociais cotidianas são implicadas em conceitos de eficácia, eficiência, foco e sucesso, e o que vemos é a infância transformada em uma corrida rumo à perfeição. Observa-se que as escolas também seguem este padrão. Crianças de seis anos sofrem com concursos para o ingresso na rede escolar e levam cerca de dezesseis tarefas para casa, como treinamento no desenvolvimento de responsabilidades precoces.

E o que ocorre quando algumas famílias não seguem este modelo? Observa-se que existe, atualmente, um estranhamento em relação às crianças sem tantas atividades, como se isto fosse algo errado. Como em todas as épocas, surgem críticas a estes modelos e prega-se a "desaceleração da rotina das crianças". Consideramos que essa correria, com a ausência de momentos de criatividade solitária, impede a descoberta gradual do potencial de cada criança para resolver pequenas questões do cotidiano, gerando, por vezes, situações de estresse. Podem ficar menos criativas e com menor capacidade de se tornarem independentes. Este excesso de estímulos precoces não garante maior aprendizado, mas em muitos casos, apenas a adaptabilidade às pressões e demandas externas a elas. Segundo Belinda Mandelbaum (2014), o aprendizado se daria apenas pela adaptação a horários múltiplos e pela prontidão em dar respostas.

Os pais e familiares têm o hábito de comprar grande quantidade e variedade de brinquedos, o que também faz parte deste mundo de ofertas excessivas às crianças. É claro que não estamos aqui voltados a construir uma argumentação onde nenhuma atividade, nenhum estímulo, nenhum brinquedo seja oferecido, lembrando ainda que as mães que trabalham fora precisam encaminhar os bebês às creches. Nestas, o projeto pedagógico, muitas vezes, é mais adequado às etapas do desenvolvimento das crianças, pois não sofrem a pressão externa imposta aos pais pelas atuais demandas da sociedade.

O que queremos enfatizar é a compreensão de que é preciso respeitar a subjetividade de cada criança e que os estímulos têm que ser mais naturais, em oposição à superestimulação, vigente na contemporaneidade. Estimular as crianças cada vez mais cedo não as torna nem mais inteligentes nem mais aptas a descobrirem respostas para as questões que a cercam

A Academia Americana de Pediatria (AAP) em 2014, com base em estudos científicos, explica os danos ocasionados pela exposição de crianças muito novinhas ao bombardeio do mundo digital para acalmar os bebês. Entre esses danos, destacam a possibilidade de atrasos cognitivos, problemas de atenção, dificuldade de concentração, transtornos de sono e de alimentação com destaque para a obesidade, frente ao uso indiscriminado de tablets, celulares e TV. A AAP orienta que estes aparelhos só deveriam ser apresentados após os 2 anos de idade e recomenda que os pais ofereçam equipamentos educacionais em formatos não eletrônicos, para incentivar o ler, falar, brincar, cantar.

As exigências de ocupação total do tempo das crianças, o acesso aos meios digitais e as alterações nos contos tradicionais de fadas romperam com a possibilidade da criança de se ver e imaginar em outras esferas do seu mundo interior. A interação entre seus sentimentos e a fantasia dos contos de fada pode ser considerada como um refúgio mágico que a protegia e dava significados a seus temores. Os estímulos exagerados também contribuem para a alienação do mundo mágico no universo infantil onde o brincar, a imaginação e a busca de recursos próprios são o motor da criatividade. Sempre é bom lembrar Winnicott (1975) quando ressalta a importância do brincar:

[...] o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros (WINNICOTT, 1975, p. 63).

O processo civilizatório, portanto, foi alterando a maneira como a sociedade concebe a criança e mudando o que chamamos de infância, conceito resultante de produção histórica e do corpo teórico da psicanálise.

O entendimento hoje é bem diverso por estar subordinado às novas leis e formas de convivência. Outro aspecto é a incorporação de paradigmas do mundo competitivo na forma de interagir com estas crianças, obrigando-as cada vez mais a serem treinadas precocemente.

A superestimulação tendo como foco um melhor desempenho desde muito cedo, promoveria o que pode ser chamado de infância abreviada. Este conceito vem sendo tratado por vários autores, que se dedicam principalmente a analisar práticas contemporâneas, que tornam a criança um objeto de consumo imediato na mídia, na propaganda e em concursos. A dicotomia objeto de consumo/consumidora vincula-se a uma "nova autonomia", atribuída como vimos anteriormente, ao protagonismo infantil no cerne das famílias. A leitura destes autores informa que esta questão pode ser entendida de formas diferentes como, por exemplo, que o término antecipado da infância na contemporaneidade faria parte de uma transformação geral da humanidade e não estaria restrita ao universo infantil.

Em consequência disto, como bem diz Lajonquière (2000): "[...] hoje em dia, assistimos à transformação da criança moderna num "adulto em miniatura". Enquanto antes, a quarentena jurídica reservava à criança apenas deveres, hoje, a narcisização desbocada outorga direito sem deveres com vistas ao ganho imediato de uma felicidade" (LAJONQUIÈRE, 2000, p.97).

Já Postman (2005), arrola evidências que confirmam o seu ponto de vista de que a infância começou a desaparecer na modernidade: "para onde quer que a gente olhe, é visível que o comportamento, a linguagem, as atitudes e os desejos - mesmo a aparência física - de adultos e crianças se tornam cada vez mais indistinguíveis" (POSTMAN, 2005, p. 18). Neste texto, Postman referenda a ideia de invasão abusiva dos conteúdos midiáticos com informações do mundo adulto no universo infantil.

Sem temer o risco de incorrer em um equívoco, pode-se afirmar que nunca se deu tanta voz para as crianças como na contemporaneidade. A infância de fato se consolida como um fenômeno social e as crianças surgem como protagonistas dessa sociedade amparada nos estudos da infância. Estes reúnem um importante, embora recente, ferramental teórico e metodológico para que os fenômenos que tratam da infância possam ser abordados de modo cada vez mais eficaz. Se a infância é ausência de fala como compreender esse novo estatuto de crianças falantes? A infância está de fato menor ou o papel social da criança está passando por processos de ruptura que estão reconfigurando essa experiência? Para Joel Birman (2014), é inegável que as idades da vida estejam sofrendo uma transformação, que de forma alguma deve ser vista como uma simples realocação arbitrária das idades biológicas. Para ele, os deslocamentos das fases supostamente naturais da vida sinalizam alterações no interior da própria cultura: "uma transformação fundamental estaria efetivamente acontecendo na contemporaneidade" e para a qual "se deve ficar bem atento, já que seria pelo percurso sistemático desse fio de prumo que poderia se evidenciar a melhor possibilidade de abordagem, para o que está aqui em causa" (BIRMAN, 2014, p. 2).

 

Concluindo

A abreviação da infância, (causada pela superestimulação precoce) seria um retorno ao mini adulto da sociedade medieval, onde crianças e adultos eram indiferenciados? Acreditamos que não. Na Idade Média, a criança se confundia com os adultos no mesmo ambiente social. Não existia nenhuma especificidade no trato infantil. Na contemporaneidade, a infância tem estatuto próprio e desenvolveram-se saberes específicos voltados para esta fase. A família tem na criança o seu foco central. Pode-se concluir que hoje temos uma situação diferenciada da encontrada em períodos históricos anteriores.

Por que tanto fazer? As expectativas implícitas nas ações voltadas ao crescimento das crianças visando um futuro de sucesso, muitas vezes são reflexo das necessidades e fantasias dos adultos. Reafirmamos os estudos da AAP (Academia Americana de Pediatria) quanto a conclusão de que é possível uma alteração do ritmo de construção dos pensamentos infantis, por meio do excesso de estímulos. Este se traduz como o acesso ilimitado a smartphones, redes sociais, jogos de videogame horas frente à TV e multiplicidade de presentes. Como os pais e crianças estão sempre ocupados, não há tempo de transmitir experiências de vida em narrativas, onde a família compartilha sua historia.

É senso comum que a criança explora o mundo que a cerca: botando o dedo aqui e ali, comendo terra, pegando formiga, trepando em árvore, subindo e descendo a mesma escada dez vezes até desenvolver uma melhor percepção da gravidade e melhorar sua habilidade motora. Para uma criança, a vida é um grande experimento, uma grande aventura de descoberta. É preciso sentir e escutar. Brincar é um patrimônio imaterial da humanidade e quem não brinca não pensa nem aprende. Quanto mais cedo houver a consciência de que o elemento natural para o desenvolvimento da criança é o "brincar", os pais poderão pelo menos limitar o acesso à TV e /ou aos celulares e tablets.

Com o deslocamento das etapas de seu desenvolvimento, sendo super estimuladas a responder às demandas superlativas de um sistema que exige competitividade e eficiência, ocorre o que chamamos infância abreviada. O importante seria uma prática mais constante dos pais em interagir afetivamente e do brincar para além das telas, das mídias e da tecnologia, se contrapondo ao isolamento trazido pelo uso contínuo destes recursos. Criança gosta de atenção, carinho e interatividade para brincar junto. Na verdade, a criança não tem que ser ocupada. Ela sabe gerenciar a sua própria liberdade. É só oferecermos isso a ela.

 

 

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Artigo recebido em: 28/04/2015
Aprovado para publicação em: 12/01/2016

Endereço para correspondência
Nancy Mendonça Assemany
E-mail: nancyassemany@ig.com.br

 

 

*Psicanalista, membro efetivo/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro-CPRJ, especialista Psicologia Clínica/Conselho Regional de Psicologia - CRPRJ (Rio de Janeiro - RJ - Brasil).

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