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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.38 no.35 Rio de Jeneiro dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Dos matizes azuis à melancolia: um caminho na constituição do feminino

 

From blue hues to melancholy: a path in the female constitution

 

 

Alice Queiroz Telmo*

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS - Brasil
Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre - CEPdePA - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo propõe-se a investigar a ligação entre os conceitos psicanalíticos 'sexualidade feminina' e 'melancolia'. Como ilustração, utiliza-se o filme Azul é a cor mais quente (2014), que conta a história do relacionamento amoroso de duas mulheres. O estudo aborda, a partir da perspectiva freudiana, a fase pré-edípica na menina e como este período pode marcar profundamente a constituição do feminino na mulher.

Palavras-chave: Sexualidade feminina, Melancolia, Identificação.


ABSTRACT

This paper proposes to investigate the link between the psychoanalytical concepts of female sexuality and melancholy. As an illustration, we use the film Blue is the warmest color (2014), which tells the story of two women and their love affair. The study approaches from Freudian perspective the preoedipal phase in girls, and how this period can profoundly mark the constitution of the feminine in women.

Keywords: Female sexuality, Melancholy, Identification.


 

 

Introdução

O tema da sexualidade feminina desperta reflexões na clínica. Ao observar formas de se relacionar, marcadas pela indiferenciação entre o Eu e o outro, podemos nos questionar: qual teria sido a qualidade das primeiras experiências do Eu a advir? Que marcas mnêmicas consolidaram o psiquismo? A importância das primeiras marcas e vivências da criança para a constituição do psiquismo é consenso na psicanálise. Assim, estas questões foram pontos norteadores na elaboração do tema deste estudo. Estados de indiferenciação podem ser encontrados em qualquer sujeito, no entanto, cabe investigar como isto ocorre para a menina, que tem como primeiro objeto de amor a mãe.

Para a realização deste trabalho tomarei o filme Azul é a cor mais quente (2014) como ilustração clínica. Nele, vemos a história de Adèle, uma adolescente que vive uma intensa relação amorosa com outra mulher. O filme mostra o desenrolar desta relação, desde os primeiros encontros, o envolvimento, as brigas, até o término. O que representa esta relação na sexualidade de Adèle? A história também possibilita pensar sobre o significado da descoberta da paixão e do amor vividos na relação com outra mulher. Talvez da redescoberta, se considerarmos a fase pré-edípica da menina e a intensa relação com a mãe que nela ocorre. Mas, o que acontece quando termina? No filme, a começar pelo título, há inúmeras referências à cor azul. E, na cultura, não faltam associações que liguem esta cor à tristeza ou a estados melancólicos. A introdução abre caminho para a seguinte investigação: quais aproximações poderiam ser feitas entre os conceitos de sexualidade feminina e melancolia?

 

A vida de Adèle

O filme pode ser dividido em três partes. Na primeira, vemos a rotina de Adèle, o que ela faz, a escola, os estudos, os amigos. Logo no início, há uma cena, onde, na aula de literatura, discutem a respeito de um livro, A vida de Marianne. A seguinte passagem é lida: "eu sou mulher e estou contando a minha história." Entendo que, como no filme, o livro trata da vida de uma mulher. Mas, que mulher é esta que observamos nestas duas histórias? A personagem Marianne desperta o interesse de Adèle e assim vemos uma adolescente atenta para a vida de uma mulher, como se quisesse descobrir algo. Duas mulheres e suas histórias, que feminino se constrói aí? Na sequência da leitura, a personagem (Marianne) relata que olhou para um rapaz, tinha prazer em olhá-lo e ele também a olhava com atenção. Ao sair do recinto onde estava este jovem, Marianne sentiu um arrependimento, sentiu que algo faltava no seu coração e não sabia o que era. O professor pergunta: "Como explicar que a ela faltou algo no coração?" Os alunos se olham, ninguém parece saber a resposta. O professor insiste: "Quando se encontra alguém, como no amor à primeira vista, se parte com algo a mais ou a menos no coração?".

Até aí o coração de Adèle parece ir bem, até o momento em que encontra Emma. Na cena deste encontro, Adèle vai atravessar uma rua e do outro lado está Emma, uma mulher de cabelos azuis que está abraçada a outra, rindo e conversando. Na troca de olhares, Adèle fica perturbada, para no meio da rua, esquece para onde ia, esquece-se de andar, esquece-se dos carros. Parece, que deste encontro, Adèle parte com algo a menos no coração. À noite, ela tem um sonho erótico com Emma, começa a se masturbar, enquanto dorme, e acorda assustada. O que será que pode tê-la assustado? O sonho erótico com uma mulher parece ter revelado o desejo que sente por outro igual a ela.

Adiante, no filme, há outra cena na sala de aula, onde uma professora leciona sobre o mito de Antígona, diz que "pequeno" e "pequena" são palavras que aparecem com frequência na obra, pois estes são adjetivos que caracterizam a infância, época da vida marcada pela impotência, onde ainda se é fraco e imaturo. Não cabe aqui fazer uma análise do mito, mas sim o que esta aula está mostrando da vida de Adèle. Embora, cronologicamente, não seja mais uma criança, penso que, nesta primeira parte do filme, Adèle ainda é pequena, brinca com seus amigos, vai à aula, namora. Até o momento em que surge um encontro, uma troca de olhares, e, nesta troca, algo muda, parece que o que é pequeno e impotente vai ficando para trás e Adèle vai à busca de mais.

Na segunda parte do filme, Adèle inicia um relacionamento com Emma. Em um encontro no parque, Emma, que estuda Belas Artes, faz um desenho do rosto de Adèle. Quando Adèle vê sua imagem, estranha-se e diz que o desenho se parece com ela, ao mesmo tempo em que não tem nada a ver. Uma bela cena e me faz pensar: quem é ela aos olhos de Emma? Quem é ela diante de seus próprios olhos? Nesta segunda parte, tentarei fazer algumas aproximações com o processo de identificação, onde prevalece o estado de fusionamento e o Eu parece misturar-se com o outro. E isto fica claro na cena da primeira relação sexual do casal. O sexo em si pode ser considerado um momento de fusão entre dois corpos, mas o que se passa aí é uma fusão de dois corpos femininos, dois corpos iguais. Tal qual a fusão inicial do corpo da menina e da mãe, onde tudo parece um só.

Em determinado momento, a cor dos cabelos de Emma muda, não são mais azuis e isso marca uma mudança na relação. Ambas agora vivem juntas, Adèle trabalha como professora e Emma, como artista. Em uma cena, vemos Adèle fazendo preparativos para uma festa. As pessoas começam a chegar, todos são amigos de Emma e, como ela, são eruditos e conhecedores da arte. Adèle pouco interage, caminha pela casa atenta, observando se as pessoas estão bem servidas ou se necessitam de algo. Após a festa, deitadas elas conversam e Adèle diz ter achado os amigos de Emma cultos e se sentiu um pouco deslocada. Emma diz que eles gostaram dela, mas pensa que Adèle poderia fazer algo que goste. Nesse ponto, salta uma diferença que já havia aparecido antes, Adèle tinha como aspiração profissional ser professora, com o objetivo de trabalhar e ter algum sustento. Dizia não se imaginar estudando 15 anos, obter um diploma para depois não ter um emprego. Emma, por outro lado é artista e, como sua família, pensa ser importante estudar e exercer alguma atividade do seu interesse. Adèle diz que trabalha e se sente realizada com Emma. Mas, Emma insiste e diz que gostaria que ela se envolvesse em algo que a fizesse feliz. Adèle rebate dizendo que é feliz com ela e se chateia com a insistência de Emma. A cena me fez refletir: o que é Emma para Adèle? Seu investimento libidinal parece massivo em Emma. Será como no apaixonamento, onde o objeto toma o lugar do ideal do Eu? Ou como na estrutura melancólica, onde a identificação toma o lugar da relação de objeto?

Por fim, a terceira parte do filme: o rompimento. Adèle passa a sentir-se só e acaba por envolver-se com um colega de trabalho. Emma descobre e o relacionamento termina com uma briga explosiva, onde Adèle é expulsa de casa. Nas próximas cenas, vemos Adèle ou trabalhando ou em casa chorando e fumando sozinha. Parece não haver mais nada em sua vida, além do trabalho e da tristeza. Em um passeio à praia com os alunos, Adèle caminha em direção ao mar, mergulha e boia na imensidão azul. Como que fundida ao oceano, seus cabelos parecem azuis. O que é este azul onde ela boia? Parece estar num estado de completude e, com os mesmos cabelos azuis de Emma, é como se dissesse: "Eu sou ela.". Na última cena do filme, Adèle vai à exposição de Emma. Ao entrar na galeria, ambas se cumprimentam e conversam um pouco. Adèle anda a esmo, parece aturdida, como se tivesse perdido algo, mas não sabe o quê. Vai embora e, andando sozinha pela rua, vemos o azul do seu vestido, de sua alma, de sua tristeza.

Ao longo do filme, acompanhamos Adèle em sua trajetória de vir a ser uma mulher, que é marcada, fortemente, pelo relacionamento com outra mulher. Essa intensa relação me fez pensar na relação da menina com a mãe e que marcas a menina carrega desta fase pré-edípica. Qual o caminho percorrido até se chegar à feminilidade? Outro aspecto que chama a atenção é que todo o filme é marcado pela cor azul, nos cabelos, nos cenários, nas roupas e isso me fez questionar: que relação é possível estabelecer dos mecanismos da melancolia, tais como a indiferenciação e a introjeção do objeto, com a paixão? Assim, aliando estes dois pontos levantados, o trajeto de Adèle até a feminilidade madura e o azul da melancolia, do rompimento, pode-se questionar: de que forma as identificações da menina podem levar a estadosmelancólicos?

 

A sexualidade feminina na teoria freudiana

Em os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), Freud nos diz que a ativação autoerótica das zonas erógenas é a mesma em ambos os sexos, ou seja, em termos pulsionais, a constituição da sexualidade de um menino e de uma menina são iguais. Apenas na puberdade surgirão diferenças na constituição da sexualidade, entre os dois sexos. Neste momento inicial, as manifestações autoeróticas e masturbatórias da menina possuem caráter inteiramente masculino, haja vista que a pulsão possui sempre meta ativa.

A partir de suas investigações, Freud pontua que a zona erógena da menina situa-se no clitóris e não na parte externa da genitália, esta apenas, posteriormente, será significativa à função sexual. A fim de tornar-se mulher, a menina precisa redirecionar a excitabilidade do clitóris para a vagina e este não é um caminho fácil. A puberdade da menina é marcada por um novo período de repressão, durante o qual a sexualidade do clitóris é afetada por inibições sexuais e sensações anestésicas. Na sequência de seu desenvolvimento sexual, cabe ao clitóris transmitir a sua excitação para as áreas vizinhas, um trabalho que requer tempo.

Quando se consegue transferir a excitabilidade erógena do clitóris para vagina, significa que a mulher mudou sua zona diretora para a prática sexual posterior. Esta troca de zona erógena diretora e a onda de repressão vindas, na puberdade, resultam na extinção da virilidade infantil e também estão entre os principais fatores que levam a mulher à neurose, em particular à histeria. Estas condições se enlaçam de maneira íntima com a natureza da feminilidade.

Em "A organização genital infantil", Freud (1923) descreve que a principal característica da organização genital infantil está no fato de que para ambos os sexos existe apenas um genital, o masculino. "Não há, portanto, uma primazia genital, mas uma primazia do falo" (p. 171). Nesse momento, Freud teoriza a respeito do ponto de vista do menino e, ao discorrer sobre as observações feitas pela criança neste período, diz: "Em tudo isso o genital feminino não parece jamais ser descoberto" (p. 175). Talvez, na teoria psicanalítica, ele ainda estaria por ser descoberto, já que até então pouco havia sido pesquisado a respeito da sexualidade feminina e do complexo de Édipo na garota.

Em Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925), Freud, por fim, dará atenção ao tema do complexo de Édipo na menina, propondo que este possui uma longa pré-história no seu psiquismo.

Na menina o complexo de Édipo é uma formação secundária. Os efeitos do complexo de castração o precedem e o preparam. No que toca à relação entre complexo de Édipo e complexo de castração, surge um contraste fundamental entre os dois sexos. Enquanto o complexo de Édipo do menino sucumbe ao complexo de castração, o da menina é possibilitado e introduzido pelo complexo de castração. (1925, p. 296, grifo nosso).

A castração introduz a menina na conflitiva edípica. Isto ocorre quando ela descobre a zona genital e se depara com a ausência do pênis, neste momento ela já sabe o que não tem. Aqui, pode se dar o início de um período de recusa à castração, onde a menina ainda crê poder ter o pênis. Esta fase, também conhecida como complexo de masculinidade, se não for superada logo, pode acarretar sérias dificuldades para o desenvolvimento da feminilidade.

Todavia, superada esta fase, a menina passa a sentir inveja e a desejar o pênis para si. Como consequência, a relação com a mãe ganha tons de hostilidade, pois a menina vê a mãe como a responsável pela falta do pênis. A inveja do pênis ocorre, juntamente, com a descoberta da inferioridade do clitóris, o que leva Freud a entender o motivo pelo qual as mulheres utilizam menos a prática da masturbação do que os homens. A explicação reside no fato de que a masturbação do clitóris seria uma prática masculina, desta forma, para que a feminilidade seja desenvolvida é preciso eliminar a sexualidade clitoridiana. A masturbação fálica teria seu prazer estragado pela humilhação narcísica relacionada à inveja do pênis. De tal modo, quando surgem os primeiros indícios de inveja do pênis, passa a existir também uma intensa corrente contrária à masturbação e este impulso é o prenúncio de uma onda repressiva, que irá remover boa parte da sexualidade masculina na época da puberdade, para abrir espaço ao desenvolvimento da feminilidade.

No momento em que a inveja do pênis não é assimilada como formação reativa no complexo de masculinidade, inaugura-se uma nova fase onde a menina passa a entender a universalidade de sua situação e a alimentar certo desprezo por sua condição. "Com o reconhecimento da ferida narcísica, produz-se na mulher - como uma cicatriz, por assim dizer - um sentimento de inferioridade" (FREUD, 1925, p. 292). Na sequência, surge no psiquismo da menina a equação simbólica pênis = criança. Desta forma, a menina toma o pai como objeto amoroso com a intenção de ter um bebê e isto torna possível abandonar o desejo de possuir um pênis.

O que Freud conclui do complexo de Édipo na menina é que faltam motivos para a sua destruição, pois, ao contrário do menino, a castração produziu o efeito de entrada na conflitiva edípica. Quanto à saída, Freud nos diz que o complexo de Édipo "[...] pode ser lentamente abandonado, liquidado mediante repressão ou seus efeitos podem prosseguir até bem longe na vida psíquica normal da mulher [...]" (FREUD, 1925, p. 298).

A percepção da castração faz a menina entrar no complexo de Édipo pensando estar em desvantagem, que está "pequena", como a Antígona referida no filme. E, novamente, situo a Adèle da primeira parte aqui, pois, diante de Emma, ela também parece "pequena", por ser mais nova, por estar no colégio, por ser inexperiente. Similar à busca da menina pelo falo, Adèle busca em Emma esta mulher "maior" e mais forte. Como um bebê, que, por ser fraco e dependente, não pode se ver como um ser à parte da mãe.

Em Sobre a sexualidade feminina (1931), Freud aprofunda questões referentes ao tema que já haviam sido expostas ao longo de sua obra, incluindo novos questionamentos acerca do estudo. Ele inicia ressaltando algo muito importante sobre a sexualidade da menina: seu primeiro objeto de amor é a mãe. Assim, posteriormente, além da troca de zona erógena, a menina também terá de passar por uma troca de objeto amoroso, da mãe para o pai. Acrescenta que a análise de mulheres mostrou que, quando havia uma forte ligação com o pai, havia também uma intensa e apaixonada ligação com a mãe, e que, com exceção da mudança de objeto, não houve adição de nenhum traço novo à vida amorosa destas mulheres. Freud coloca também que a relação entre a menina e a mãe pode se estender por grande parte da atividade sexual infantil. Em muitos casos, esta relação primária com a mãe iria até os quatro anos de idade. Deste modo, algumas mulheres ficariam retidas na ligação original com a mãe, não realizando a troca de objeto amoroso. Com estas observações, Freud já percebe que a fase pré-edípica da menina possui uma importância, que até então não lhe havia sido conferida pela psicanálise.

A fim de descrever mais profundamente a sexualidade feminina, Freud (1931) retoma alguns pontos de suma importância para compreender melhor em que contexto ocorre este desenvolvimento na menina. O autor percebe que a bissexualidade na mulher aparece de forma bem mais nítida do que no homem, e isto talvez pelo fato de que a intensa relação com o pai é apenas herdeira da ligação igualmente forte que teve com a mãe. Na primeira parte do filme, Adèle inicia um relacionamento com um rapaz, parece fazer isso mais por pressão das colegas do que por vontade própria. A relação logo termina e por iniciativa de Adèle, que não estava apaixonada. No entanto, com Emma o relacionamento sucedeu de forma bem diferente, revelando-se muito mais intenso desde o começo. Penso que estas cenas ilustram bem a bissexualidade feminina descrita por Freud. A partir disso, compreendo que a relação de Adèle com Emma esteja reeditando a intensa ligação pré-edípica de Adèle com sua mãe.

Em Novas conferências introdutórias à psicanálise (1933), na conferência "A feminilidade", Freud irá retomar o tema da sexualidade feminina. Ele menciona o trabalho de algumas colegas que investigaram a fase pré-edípica em casos de neurose. E diz que uma delas (Helene Deutsch) afirma que em atos amorosos de mulheres homossexuais é possível ver a reprodução das relações mãe-filha.

Ainda, na revisão acerca do que já foi visto sobre a sexualidade da menina, Freud (1931) explana sobre as consequências do complexo de castração na mulher. Embora ela admita sua castração, há uma revolta contra este fato e, a partir disso, três caminhos podem ser tomados: (1) um afastamento da sexualidade em geral, pois, ao se deparar com a inferioridade de seu clitóris, a menina acabaria renunciando à sua atividade fálica e, por consequência, à sexualidade; (2) a esperança de voltar a ter um pênis é mantida por mais tempo, dando início ao "complexo de masculinidade"; (3) a escolha do pai como objeto amoroso, o que fará com que a menina dê os primeiros passos rumo à feminilidade definitiva.

Posto isso, Freud (1931) considera importante investigar mais profundamente esta fase pré-edípica na menina e o que pode ser encontrado neste período de intensa relação com a mãe. Com isso se pergunta: o que a menina solicita à mãe?

Ao observarmos as primeiras vivências que a criança tem com a mãe, percebemos que estas possuem caráter pulsional passivo, pois ela é amamentada, limpada, vestida e, enquanto parte de sua libido se satisfaz, outra parte tenta converter estas experiências em atividade. Desta forma, é possível perceber que a dinâmica pulsional entre a mãe e a menina é bem mais complexa do que aparenta. De acordo com Freud, as metas sexuais da menina para com a mãe podem ser de natureza, tanto ativa como passiva, sendo determinadas pelas fases da libido que a criança atravessa. "É fácil observar que em todo âmbito da vida psíquica, não apenas no da sexualidade, uma impressão recebida passivamente pela criança suscita a tendência a uma reação ativa. Ela procura fazer o mesmo que antes foi feito nela ou com ela" (FREUD, 1931, p. 387).

A atividade sexual da menina se manifesta, desde cedo, em relação à mãe;passando pelas fases orais, sádicas, abre-se caminho até a fase fálica. Freud compreende isto observando que é, a partir dos primeiros cuidados de higiene, que a menina irá sentir as primeiras sensações genitais, as quais serão experienciadas como prazerosas pela criança, que solicita à mãe que aumente com toques e fricções. Embora seja o pai que apareça como sedutor sexual nas fantasias subsequentes, é inegável que quem inicia a criança, na fase fálica, é a mãe. Freud (1933) retomará isto mais claramente na conferência A feminilidade, quando diz que a mãe é a sedutora na fase pré-edípica e a fantasia de sedução tem, como base, estes primeiros cuidados.

Freud (1931, p. 391) dirá, ainda, que: "[...] na fase fálica também surgem intensos desejos de natureza ativa em relação à mãe. A atividade sexual dessa época culmina na masturbação no clitóris, durante a qual provavelmente a menina pensa na mãe [...]". No sonho de Adèle com Emma, quando ela acorda se masturbando, poderia ser a repetição desta cena da infância, onde a menina se masturba pensando na mãe. Os desejos incestuosos que Adèle (criança) tinha em relação à sua mãe, agora podem ser realizados na relação com Emma.

Outra questão importante que Freud (1931) se coloca, no que tange à vida pré-edípica da menina, seria: o que motiva a menina se afastar da mãe? O sentimento de ciúmes em relação ao pai e aos irmãos poderia incrementar este afastamento, mas o que Freud percebe é que este é um amor sem meta, ou seja, incapaz de alcançar sua plena satisfação, e, portanto, estaria fadado a acabar, cedendo espaço para a uma atitude hostil. Contribuiria também para este afastamento a relação ambivalente da menina com a mãe. Freud coloca que, nas primeiras fases da vida amorosa, a ambivalência pode ser considerada uma regra, afinal é característica da sexualidade infantil. Assim, a intensa relação da mãe e da menina, marcada pela ambivalência, teria um fim próximo. Freud (1931, p. 385) coloca que "[...] talvez a ligação à mãe tenha mesmo de acabar, justamente por ser primeira e de tão grande intensidade [...]".

O relacionamento termina tão intenso como começou, com uma dolorosa briga entre Adèle e Emma. O motivo do término foi traição, Adèle estava tendo um caso com um colega de trabalho.

Ela tenta negar, tenta se justificar, mas a ira de Emma é implacável. As cenas anteriores à briga mostram como, desde a festa, Adèle parecia estar insegura, talvez com medo de ser abandonada por Emma. Mas, por que Adèle a trai com um homem? Pensando na conflitiva edípica da menina, o que significaria esta escolha de Adèle? Uma hipótese é que esta cena represente aquele momento onde a menina percebe-se castrada e não cuidada pela mãe. Voltando-se então para o pai, na expectativa de que ele possa lhe dar o falo/bebê.

Isso nos leva à causa mais determinante para o afastamento da menina em relação à mãe, o efeito do complexo de castração. A queixa é de que a mãe não lhe proveu de um genital verdadeiro e, muitas vezes, esta mesma queixa aparece distorcida como: a mãe não lhe deu leite suficiente, ou não lhe cuidou bem. Com a percepção da castração ocorre uma grande desvalorização da feminilidade e, consequentemente, da mãe também. Concomitante a isso a menina passa a ser repreendida ao se masturbar, o que aumenta mais ainda o rancor em relação à mãe.

Através de uma influência mútua, o afastamento da mãe acaba também por contribuir para o fim da masturbação clitoridiana. Este afastamento termina por significar não apenas uma mudança de objeto, mas contribui para a diminuição dos impulsos sexuais ativos e um aumento daqueles passivos, sendo um importante passo rumo à feminilidade definitiva. Freud (1931, p. 392) descreve assim: "O caminho para o desenvolvimento da feminilidade fica aberto para a menina, desde que não seja limitado pelos resíduos da superada ligação pré-edípica com a mãe".

Que resíduos traz Adèle de sua fase pré-edípica? Na cena onde encontra Emma pela primeira vez, considero importante atentarmos para fato de que essa estava abraçada a outra mulher e isto pode ter sido um fator importante para o apaixonamento. O que será que Adèle viu nesta cena de duas mulheres abraçadas? Duas que se completam, duas que, na verdade, são uma.

Possivelmente, os resíduos da sua relação pré-edípica com a mãe impulsionaram esta fusão com outra igual a ela. Como já citado, talvez pela intensidade, esta relação estivesse fadada a acabar e, com o rompimento, vem a dor e o luto pela perda do objeto. No entanto, é preciso avaliar qual tipo de relação objetal vemos aqui, como se estabeleceu o processo identificatório neste psiquismo? Este, entre outros fatores, irá diferenciar o luto do estado melancólico.

 

Identificação

Mayer (1982), com base na teoria freudiana, coloca que a repressão primária possui diferentes aspectos, há a repressão que funda o inconsciente e trabalha no nível das representações coisa. E, existe também outra faceta, poderíamos qualificá-la como mais primitiva, a qual teria contato com as marcas mnêmicas que jamais alcançam o nível representacional. Estas marcas estariam, além da repressão primária e além do princípio do prazer, são marcas mnêmicas de um tempo primordial e podem ser chamadas de identificações primárias narcisistas. É possível perceber a força destas identificações, haja vista que elas estão localizadas para além dos grandes balizadores do psiquismo, repressão primária e princípio do prazer.

O conceito de identificação primária também encontra seu lugar na nova ação psíquica, que será responsável por constituir o narcisismo do bebê. Freud (1914) coloca que, no início da vida, não existe ainda uma unidade comparável ao Eu; este precisa ser desenvolvido. Isto ocorrerá quando às pulsões autoeróticas for acrescentada a nova ação psíquica, que deixará marcas mnêmicas (identificações primárias). Elas se unificarão para a formação do Eu, tornando-o uma organização integrada nas suas pulsões e representações (MAYER, 1982).

A cena já descrita, do desenho do rosto de Adèle, pode ser vista como uma metáfora do processo de identificação. Como um bebê, que passa pela integração do Eu gradualmente, através do olhar da mãe. Este processo se repetirá pela vida inteira, a cada etapa, a cada mudança, como ocorre com Adèle, onde o reconhecimento e o não reconhecimento de seu rosto marcam a transição da adolescência para a vida adulta.

Mayer (1982) descreve uma etapa, anterior à relação objetal, na qual o Eu incipiente realiza uma discriminação parcial do objeto. Este momento intermediário é conhecido por escolha objetal homossexual e forma-se aí uma relação narcísica com o objeto. Em Introdução ao narcisismo (1914), Freud escreve que grandes quantidades de libido homossexual formarão o ideal narcísico do Eu. Mayer (1982) acrescenta que esta libido corresponde à relação narcísica, onde para o Eu não houve reconhecimento da diferença sexual. Neste período, as relações são diádicas e de fusão com o objeto idealizado, para compensar o sentimento de menos valia do narcisismo do Eu.

A cena de sexo entre Adèle e Emma ilustra, perfeitamente, a relação fusional que tem início entre elas, talvez como seja toda paixão no começo. Mas, aos poucos algumas diferenças aparecem, vemos os amigos de Emma, como uma ligação dela ao mundo externo. E as outras relações de Adèle? Não vemos amigos, surgem alguns colegas de trabalho com quem tem pouco contato. Emma insiste para que busque algo que lhe interesse, mas Adèle se diz feliz e completa com Emma. Adèle parece estar em uma relação de escolha objetal homossexual, em que tenta se fundir com este objeto idealizado. Mayer (1982) expõe que a eleição homossexual de objeto corresponde a um amor idealizado pela mãe. Onde se quer ser e ter o objeto, o qual se concebe como parecido com a própria imagem. O rosto do desenho, os corpos, tudo fundido para a pequenez de Adèle ficar escondida.

Na cena da festa, Adèle faz todos os preparativos para que tudo esteja impecável, quando os amigos de Emma chegarem. No entanto, quando aparecem os amigos, Adèle sente-se deslocada.

Aí, vemos a idealização que Adèle tem para com Emma, seu grupo e seus ideais. Em um momento da festa Emma conversa com outra mulher, artista como ela, as duas parecem bem próximas. Adèle começa a se sentir excluída, talvez com ciúmes. Quando os amigos vão embora, Adèle disse que os achou muito cultos e que se sentiu deslocada e Emma diz que não, que eles gostaram muito dela. E nesse momento retoma o assunto, que Adèle deveria fazer algo de que goste. Por que Emma insiste? Talvez ela perceba Adèle muito aderida e ela. E parece ser de fato o que acontece, pois, em reposta, Adèle diz que não quer fazer algo, Emma a faz feliz. Neste ponto, considero importante o que Freud escreve em Psicologia das massas (1921), no capítulo Enamoramento e hipnose, que no enamoramento o Eu se entrega ao objeto de tal forma, que as funções do ideal do Eu deixam de operar e tudo o que o objeto demanda é aceito. Isso é descrito por Freud na seguinte fórmula: "O objeto se colocou no lugar do ideal do Eu" (1921, p. 72).

Em Psicologia das massas (1921), capítulo "A identificação", Freud escreve que a identificação desempenha um papel importante na pré-história do complexo de Édipo. Ela pode ocorrer de duas maneiras, através de uma ligação, onde o objeto é tomado por modelo (aquilo que gostaria de ser) e na forma de um investimento objetal direto (aquilo que gostaria de ter).

Ambas podem coexistir por um tempo, mas o que marca a identificação é a sua ambivalência. Nela, pode ser expresso tanto um desejo de ternura quanto de eliminação, pois a identificação deriva da fase oral, onde o sujeito, ao passo que incorpora, comendo o objeto desejado, também o aniquila.

Nesse mesmo texto, Freud (1921) expõe que, pela via regressiva, a identificação pode tornar-se substituta para uma ligação objetal libidinosa, como acontece na melancolia com a introjeção do objeto no Eu. Nesta afecção, o Eu apresenta-se dividido em dois pedaços. Uma dessas partes, com frequência, se enfurece com a outra; este pedaço encolerizado foi transformado pela introjeção e contém o objeto perdido. A esta parte, Freud dá o nome de ideal do Eu, dito herdeiro do narcisismo original.

Ainda em Psicologia das massas (1921), Freud irá diferenciar estes dois processos, enamoramento e identificação, da seguinte forma:

No caso da identificação o objeto foi perdido ou renunciou-se a ele; então é novamente instaurado no Eu, e este se altera parcialmente conforme o modelo do objeto perdido. No outro caso o objeto foi conservado, e como tal, é sobreinvestido por parte e à custa do Eu (FREUD, 1921, p. 73).

Porém, no caso do enamoramento, o objeto é posto no lugar de ideal do Eu e, na identificação, o objeto é posto no lugar do Eu. Para concluir este subtítulo, Freud (1923) irá postular, em O eu e o id, que a identificação não incide apenas na melancolia, também é o processo que ajuda a configurar o Eu. Isto ocorre quando um objeto sexual precisa ser abandonado, neste caso a introjeção deste objeto facilitará que o Eu o abandone. Freud (1923, p.36) diz: "Talvez essa identificação seja absolutamente a condição sob a qual o Eu abandona seus objetos". Estes objetos farão parte do caráter do Eu. Como quando a criança passa pelo complexo de Édipo, onde precisa desistir do investimento objetal nos pais, para identificar-se com o pai ou com a mãe, permitindo que a relação terna se conserve. Destas identificações com os genitores, surgirá um precipitado do Eu a que Freud dará o nome de Super-Eu.

 

Melancolia

Em Luto e melancolia (1917), Freud irá descrever esta patologia como um doloroso abatimento, no qual ocorre a perda da capacidade de amar. O melancólico sofre desinteresse pelo mundo externo, inibição e diminuição da autoestima, que percebemos através das recriminações e ofensas a si próprio. As decorrências da melancolia são duras, mas gostaria de atentar aqui para a primeira citada: a perda da capacidade de amar. O que sobrevém ao Eu para que esta perda venha a suceder?

Retomo a história de Adèle. Ela se apaixonou profundamente e este amor ruiu. No final do filme, três anos após o rompimento, Adèle e Emma se reencontram. Emma está em novo relacionamento, mas Adèle lhe diz que não consegue se envolver com alguém. Como se tivesse perdido a capacidade de amar. O que se atualizou no final de seu relacionamento com Emma?

Ela sabe que perdeu Emma e seu relacionamento com ela, mas será que sabe o que perdeu nesse rompimento? Ao melancólico é exatamente isso que se passa, ele sabe quem perdeu, mas não sabe o que perdeu nesse alguém. De acordo com Freud (1917) trata-se de "uma perda de objeto subtraída à consciência" (p. 175).

Esta perda descrita por Freud (1917) acontece precocemente para o Eu. Em um momento , onde já ocorreu a escolha objetal, o sujeito sofre uma ofensa real ou decepção vinda da pessoa amada, que provoca um abalo na relação objetal. Como reação, a libido é retirada desse objeto e, ao invés de ser realocada para outro, ela retorna para o Eu, onde estabelece uma identificação do Eu com o objeto abandonado.

Assim, a sombra do objeto caiu sobre o Eu, e a partir de então este pôde ser julgado por uma instância especial como um objeto, um objeto abandonado. Desse modo a perda do objeto se transformou numa perda do Eu, e o conflito entre o Eu e a pessoa amada, numa cisão entre a crítica do Eu e o Eu modificado pela identificação (FREUD, 1917 p. 181).

Pela via da regressão, o sujeito volta ao narcisismo original, fazendo com que, juntos, a identificação narcísica e o objeto se tornem um substituto do investimento amoroso. Desse modo, a relação amorosa não precisa ser abandonada, apesar do conflito com a pessoa amada (FREUD, 1917).

Em algum momento de sua história com Emma, Adèle passa a idealizá-la, talvez desde o começo, e com o tempo, essa idealização se intensifica, Adèle passa a sentir-se excluída e insegura. Uma fragilidade narcísica, que teria ocorrido durante seu processo identificatório com a mãe, parece vir à tona nesse momento. Ao idealizar Emma e colar-se nela, Adèle protege seu narcisismo, pois desta forma ela é o seu ideal através do outro.

A história deste relacionamento permite, talvez, considerarmos a melancolia também como uma fase constitutiva para aceder à feminilidade. Farias (2012) realiza um estudo, no qual observa que, em algumas mulheres, o aparecimento da melancolia se dá em um dado momento de suas vidas, quando algo da ordem do feminino é chamado a responder no lugar do amor outrora idealizado. Cita como exemplo a maternidade e a vivência ou o sentimento de perda de um objeto de amor. Com isso, a autora questiona se a melancolia não poderia ser pensada como uma das modalidades da relação do feminino com o objeto.

Neste estudo, para melhor compreendermos como a melancolia pode estar relacionada ao feminino, proponho um olhar mais atento para a constituição do Super-Eu. Cardoso (2002) coloca que, na melancolia, pode-se observar uma importante fonte clínica de conceituação do Super-Eu. Esta aproximação ocorre, pois de acordo com a autora: "As noções de perda de objeto, de identificação com o objeto perdido e de ambivalência - base da formação dos sintomas melancólicos - parecem também ancorar a gênese do superego" (2002, p. 34).

Com o fim da relação, a instância crítica do Eu (Super-Eu1) age de forma impiedosa com a parte do Eu modificada pela identificação. O anterior conflito com a pessoa amada agora está nesta cisão do Eu. No final do filme, vemos Adèle conversando com Emma, aparentemente sem problemas. No entanto, em sua vida, vemos Adèle apenas chorando e trabalhando, um Eu que parece ter ficado mais empobrecido. O conflito, que antes estava na relação, fora introjetado, e agora consome as energias do Eu. Percebe-se, como destaca Cardoso (2002), que esta instância crítica possui um caráter onipotente e o exerce de forma a dominar e a culpabilizar uma parte do Eu.

Freud (1937), em Análise terminável e interminável, coloca que a cura analítica seria mais difícil de ser alcançada nas mulheres por causa do seu desejo pelo falo, do qual poderiam decorrer episódios de depressão grave. E, como vimos no primeiro subtítulo deste trabalho, a menina entra no complexo de Édipo ao se deparar com a castração, a partir daí passará um bom tempo, até aceitar que não possui o pênis.

No entanto, é importante lembrar o que Freud (1926) escreve em Inibição, sintoma e angústia. Neste texto, ele irá colocar que a angústia de castração, na verdade, representa um conflito mais antigo no psiquismo, o medo de ser abandonado pelo objeto. Na situação da menina, vimos que este objeto-mãe possui um grande valor na sua vida pré-edípica. E talvez aí esteja o possível enlace com a melancolia e a feminilidade. A menina, em sua intensa relação com a mãe, posteriormente, passará por perdas dolorosas: a mãe como objeto de amor, a mãe como fálica e protetora, a percepção de que ela própria não possui um falo.

A respeito disso, Cardoso (2002) irá colocar que a ameaça da perda do amor vai além do quadro clínico da melancolia, pois é constitutiva no psiquismo humano. A perda do amor não se limita a uma simples privação, ela implica o risco de um desnudamento da face pulsional inassimilável do outro. "Neste caso, a dimensão de falta - perda da proteção do outro externo/interno - e a de excesso - "ganho" de uma alteridade interna intraduzível - são indissociáveis" (CARDOSO, 2002, p. 36.).

Entendo que nesta "alteridade interna" encontra-se o esboço do que, um dia, virá a ser o Super-Eu. Este só poderá existir quando for reconhecida a dimensão da falta através do Complexo de Édipo. O menino abre mão do amor incestuoso pela mãe por causa da ameaça de castração. A menina também desiste deste amor incestuoso, mas isto ocorrerá por outro caminho, na decepção com a mãe que não a protegeu.

Assim, o Super-Eu na menina, de alguma forma, poderá se constituir marcado pela perda deste amor materno. Dada a íntima relação entre a instância do Super-Eu e a patologia da melancolia, vejo algumas aproximações da constituição psíquica da feminilidade com a melancolia. A dura separação do corpo desta mãe é anunciada pela visão da diferença entre os sexos, com esta separação inicia-se o difícil processo de se individualizar e se diferenciar desta outra igual. Entretanto, talvez a principal tarefa seja o luto a se fazer pelo fim desta relação de imensa completude, que é a relação pré-edípica entre mãe e filha. No caso de Adèle, seu primeiro amor da vida adulta terminou deixando-a em um estado melancólico. Talvez isso fosse necessário, para que daí ela pudesse elaborar a decepção do primeiríssimo amor da sua vida.

 

Considerações finais

Ao final deste estudo, restaram ainda muitas questões que não foram possíveis de serem desenvolvidas. A respeito do Super-Eu da menina: Como este se constitui? Que marcas lhe são impressas? O Super-Eu da menina resultaria, de fato, em uma instância crítica menos severa do que no menino? Freud, em sua obra, escreveu acerca do Super-Eu da menina, logo, em um estudo mais aprofundado, podemos encontrar estas respostas ou talvez mais perguntas. Neste trabalho foi possível rever apenas alguns aspectos do que Freud elaborou acerca do Super-Eu da menina. O que faltou (e sempre falta) ser acrescido ficará de mote para futuros estudos.

Outra questão a ser pensada diz respeito à perda de amor sentida pela menina. Esta perda poderia se desenvolver em um luto patológico; entretanto, reflito se este luto patológico não seria constitutivo na menina. Seria como uma fase melancólica, que precisasse ser superada para aceder à feminilidade. Para esta investigação, encontramos, na obra freudiana, diversas relações entre identificação, luto e melancolia que podem ampliar o estudo da questão posta. O presente trabalho possibilitou o estudo destes temas com maior profundidade, gerando também os questionamentos apresentados. Penso, também, que, para estudar, mais a fundo, a feminilidade e seu enlace com a melancolia, é necessário recorrer a autores pós-freudianos, que trabalharam com a ampliação dos conceitos desenvolvidos pelo pai da psicanálise.

Finalizo com uma citação de Eliane Brum (2014, p. 19), quando ela escreve sobre Ofélia, a noiva de Hamlet, personagem que ilustra como a melancolia, por vezes, pode estar bem perto do feminino:

São muitas as Ofélias que andam por aí nas ruas deste mundo [...]. Meninas que no vir a ser mulher se afogam no rio de desejos e sensações, de excessos do sentir e do querer. Jovens que submergem nesse feminino perturbador sem jamais conseguir voltar à superfície.

 

 

Referências

BRUM, Eliane. Em busca do próprio corpo. In: COSTA, Petra (Org.). Elena. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2014.         [ Links ]

CARDOSO, Marta Resende. Superego. São Paulo: Escuta, 2002.         [ Links ]

FARIAS, Larissa Soares Ornellas. A melancolia no feminino. Estilos da Clínica, v. 17, n. 1, p. 62-75, 2012.         [ Links ]

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MAYER, Hugo. Narcisismo. Buenos Aires: Ediciones Kargieman, 1982.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 07/03/2016
Aprovado para publicação em: 01/08/2016

Imagem Seta Endereço para correspondência
Alice Queiroz Telmo
E-mail: alicetelmo@gmail.com

 

 

*Psicóloga/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), mestranda Psicologia Social/Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), membro provisório Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA).
1Em 1917, Freud ainda não havia nomeado o conceito “Super-Eu”, embora já o anunciasse como "instância crítica" desde 1914.

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