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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.38 no.35 Rio de Jeneiro dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Sublimação: morte e vida em movimento

 

Sublimation: death and life on the move

 

 

Rafaela Brandão AlvesI, II*; Marcela Toledo França de AlmeidaI, II**

IUniversidade Federal de Goiás - UFG - Brasil
IICorpo Freudiano Escola de Psicanálise - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O processo sublimatório guarda questões insondáveis, mas através da criação se tem acesso à ética do desejo. Ética que advém de um percurso estético para a psicanálise, que comporta e tensiona as faces antitéticas da experiência entre Eros e Thanatos, o Belo e o Horrível e o estranho familiar. Neste artigo, ética e estética se encontram com os textos de Hilda Hilst que nos convidam a acompanhar a escrita de uma posição subjetiva, dissolvendo o distanciamento imaginário do outro e causando a proximidade pelo Outro, mantendo o leitor numa tensão estranhamente familiar.

Palavras-chave: Sublimação, Belo, Pulsão de morte, Desejo, Sujeito.


ABSTRACT

The sublimation process holds unfathomable issues however. However, through creation, the desire ethics can be accessed. Ethics that comes from an aesthetic path to psychoanalysis, which holds and tightens the antithetical faces of the experience between Eros and Thanatos, Beautiful and Hideous, and the familiar stranger. In this article, ethics and aesthetics meet Hilda Hilst's texts, which invite us to follow the writing from a subjective position, dissolving the imaginary detachment from the other and generating proximity to the Other, keeping the reader in a strangely familiar tension.

Keywords: Sublimation, Beauty, Death drive, Desire, Subject.


 

 

Que pretensões de um sentir
Tão excedente, tão novo
São questões para o divino
E ao mesmo tempo um estorvo
Pra quem nasceu pequenino
Tu e eu. Humanos. Limite mínimo
(Hilda Hilst, Cantares).

A sublimação é considerada, aqui, como uma experiência, vivida tanto pelo artista, quanto pelo espectador, é uma experiência estética que está para além das significações comportadas na palavra. É, portanto, isso que escapa ao campo do simbólico e acomete o sujeito descentrando-o do suposto lugar de tudo saber, o que incita a escrita deste trabalho. Assim, o que faz margem, é enigma, está alhures e resta incompreensível em seu âmago é, pois, o horizonte que movimenta a presente elaboração. Nesses termos, frente à fenda que deixa entrever o que não se sabe e nunca se saberá, este trabalho será uma tentativa a mais de fazer borda ao processo sublimatório. Tentativa que não se propõe a estabelecer conclusões, mas, justamente, a chamar atenção para a tensão produtiva que resta por trás do não saber. Aquilo que, inicialmente, amedronta, pode sim, ser efeito de belas produções.

Versar sobre o processo sublimatório implica pensá-lo em três instantes: o antes, o durante e o depois. O presente texto se propõe a penetrar no terceiro deles, aquele do qual se tem notícia por seus efeitos no Outro. Para isso, será trazido, em especial, a estética do desejo para a psicanálise, via a noção de Belo.

Pensar o conceito de Belo implica, antes, não separá-lo de das Ding, a Coisa, já que é por meio de sua mediação, tal qual um véu, que se torna possível ao sujeito aproximar-se - ressalta-se bem esse termo, já que permanece sempre certa distância - do vazio de objeto, de das Ding. Portanto, o encontro a olho nu com esse objeto radicalmente perdido é da ordem do horror e da angústia, e por isso tão necessária a veste desse véu. O efeito do Belo é brilho, pois ao mesmo tempo em que disfarça também demarca os contornos do que resta por trás, fazendo brilhar isso que ali resta.

Dessa forma, das Ding é apontada em sua ausência-presença, sendo, pois, as tentativas de elaboração sobre ela os agentes de confirmação sobre o seu comparecimento, ainda que em negativo. O véu referenciado é efeito criativo, é o que se dá a ver após o processo artístico, é aquilo que brilha e dá notícia do que se passou no processo de criação, que teve como antecedente o encontro com a morte, morte das identidades narcísicas: "[...] o belo é proposto como o último véu sobre a morte, e esta não é senão a pura natureza desprovida de sentido. Este último véu torna possível o máximo de proximidade à morte, e ao mesmo tempo, enquanto véu deixa ver o que esconde" (MELLO, 2001, p. 164).

O Belo se constitui como o princípio estético do qual a psicanálise parte para percorrer a experiência fronteiriça da emoção e que, ao permitir proximidade máxima com a morte, distancia-se dos discursos que se referem ao objeto, vinculando-o a uma verdade graciosa e harmônica. Embora sua satisfação não esteja apoiada em nenhum conceito, como nos lembra Mello (200, p.55) da lição kantiana, ao dizer que "[...] o belo não depende de um interesse racional. A satisfação por ele propiciada não é apoiada em nenhum conceito". Dessa forma, o belo, para a psicanálise, pode ser pensado a partir do desejo, pois é no movimento de ascensão após a queda narcísica que se dá a impulsão desejante para a criação.

O que a priori poderia ter um sentido de exclusão, de um paradoxo inconciliável pelo par queda/elevação, contém a lógica antitética tão cara à psicanálise, onde duas palavras opostas convergem entre si, provocando o efeito de uma única. Lógica que dá a ver a insistência de inscrição de algo como objeto, como representação única, que nunca o será completamente, sempre dando sinais da presença ausente de das Ding. A tensão antitética insiste em apontar para a não resolução da realidade em uma única face como a verdadeira, ou a absoluta. Nesse sentido, o sujeito de linguagem é efeito de queda na não pregnância imaginária. Em sua queda narcísica, a subsequente elevação dá notícia da passagem de um ser falante à tomada da dignidade de sujeito de desejo. Dessa forma, consoante e completamente dependente da noção de incompletude está o conceito de desejo.

Desejo, aquele que destoa fortemente das intenções conscientes representadas no querer, da mesma forma que dos objetos especificados nas frases em que se pensa as necessidades. Quem tem necessidades, enquanto apaziguamento das funções do corpo - fome, sede, cópula -, são os animais, e à satisfação destes cabem objetos inscritos geneticamente. Já para o homem, aquilo que seria uma necessidade física do organismo é desde o princípio demanda por estar endereçada ao Outro. Diana Rabinovich (2009) em O conceito de Objeto na teoria psicanalítica acrescenta que: "A demanda é, pois, demanda não de satisfação da necessidade, mas da presença-ausência do Outro como agente" (p. 127).

O que o sujeito pede não é leite ou água, é quem sabe um leite morno. Que este não venha sempre, mas que vá e volte, marcando o compasso do par presença-ausência. Esse intervalo é fundamental, pois somente quando o Outro não aparece que o lugar de desejante, até então ludibriado, é por fim desvendado pelo sujeito. No momento em que a falta no Outro se apresenta e não pode mais ser negada, o sujeito sai do lugar daquele que demanda, para aquele que deseja.

Na demanda há sempre o pedido de reconhecimento que pode vir através dos significantes e do olhar Outro a ele direcionado, inserindo, assim, o infante na ordem do ser: "A demanda como tal é articulação significante, articulação articulável cujo para além é o desejo, como metonímia do que a demanda mesma formula" (RABINOVICH, 2009, p. 167). O desejo e a demanda são encadeamento significante, já que enunciados no campo do simbólico. A diferença é que, na demanda, há a espera pela resposta do Outro, esperando que este lhe dê a verdade sobre a questão do ser ou não ser. E no desejo essa espera deixa de ser a força principal, pois a aceitação do não-ser prepondera sobre a crença fantasiosa de ser completo.

Quando se dá o deslocar do lugar de demandante para desejante, o sujeito coloca-se como ativo na procura pelas suas próprias verdades, que não serão também acertadas, mas ao menos inventadas por si próprio. A questão permanecerá, o furo se manterá aberto, contudo, ainda que não preenchido, será bordejado pelos significantes do Outro, "Isto quer dizer que não há no Outro nenhum significante que possa verdadeiramente responder sobre isto que eu sou. A essência da verdade atribuída ao Outro não é se não, suposta, nada a garante" (MELLO, 2001, p. 90).

Da demanda ao desejo, da alienação à elaboração de respostas próprias, são estas mudanças de posição que assinalam a estética do desejo. Que não é a do bem-estar, mas a do desconforto em vias de elaboração: queda e assunção, paralisia e movimento. O que dá notícia da relação tensionada entre a vida e a morte. Dessa forma, Mello (2001) dispõe sobre esse efeito de criação como sendo o que "[...] possibilita que a morte se torne ainda mais tangível para o homem. Só que a morte é aí indicada numa dimensão de resplandecimento, encontrando abrigo na expressão lindo de morrer, e apontando o belo como instrumento da exaltação, para o franqueamento desse limite" (p. 53).

O presente artigo se aproxima da experiência dessas mudanças de posição pela letra de Hilda Hilst (2013), que por meio da sua escrita franqueia tal limite: "A verdade é que, diante da morte, a gente nunca está realmente conformada. É por isso que penso que o que me leva a escrever é uma vontade de ultrapassar-me, ir além da mesquinha condição de finitude" (p. 30).

Com a fala do poeta fica evidente a potência da criação como uma via que permite fazer algo ante o inconformismo da finitude. A sublimação, assim, é concebida como um processo pelo qual o sujeito dá borda ao excesso que impossibilita o saber, sendo, pois, os significantes aquilo que sustenta o sujeito sem deixar de apontar para o real. Hilda Hilst (2001) através de sua personagem Hillé do romance, A obscena senhora D, problematiza as angustiantes questões que cercam a existência humana.

Hillé é a representação dos inquietos, aqueles que estão à procura de algo, que caminham duvidando: "Vi-me afastada do centro de alguma coisa que não sei dar nome. [...] eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas" (HILST, 2001, p. 17). E com essas palavras começa o romance da Senhora D, romance composto por 352 questões, escrito sem pontos, onde são as vírgulas que dão o movimento, pois se os pontos definem e encerram as frases, as vírgulas animam a criação de sentido. A procura por respostas sobre o ser, a morte, o corpo e a inquietação inerente ao sujeito podem ser entrevistas nas palavras da personagem Hillé:

Senhora D, querida Hillé, murmuras hen? Os segredos da carne são inúmeros, nunca sabemos o limite da treva, o começo da luz, olhe, Hillé, não gostarias de me fazer um café? Os intrincados da escatologia, os esticados do prazer, o prumo, o todo tenso, as babas, e todas as suas escamosas escatologias devem ser discutidas com clérigos, confrades, abristes por acaso hoje o jornal da tarde (p. 46)?

O diálogo acima proporciona ao leitor a experiência estética de através do Outro ter notícia da própria fissura, e assim, sem resquícios de qualquer racionalização, sentir em si mesmo a inquietação que, até poucos segundos, estava no outro. Posições distintas são ocupadas pelos personagens, as quais apontariam para o modo particular de cada um assumir o lugar diante do desejo. Enquanto Hillé continua, após seus sessenta anos, atormentada pelos segredos sobre a existência, seu interlocutor se desvia de suas perguntas. Isto é, enquanto uns se questionam e procuram, "[...] entender de nós todos o destino, um dia vou compreender, Ehud compreender o quê? Isso de vida e morte, esses porquês" (HILST, 2001, p. 18), outros perguntam pelo café, pelo jornal da tarde. Logo, uns dão movimento às questões que, impreterivelmente, assombram e outros optam por diante delas esquivar-se e manter-se assombrado. Não que o assombro um dia venha a cessar, mas dele é possível vislumbrar respostas, incertas por certo, mas respostas de autoria.

Coutinho Jorge (2010) aborda também, poeticamente, o caminhar sustentado na dúvida deste personagem que é o sujeito em si mesmo:

Ir mais além, 'perto do coração selvagem' da vida, ver o essencial no mais banal, recusar as certezas em prol do espanto, não se deixar obscurecer pela trivialidade à qual o dia a dia convida incessantemente, pressentir o mistério onde o óbvio parece se estampar, desejar algo a mais quando a satisfação se mostra aparentemente total, indagar os fatos cuja eloquência adquire o status da suficiência: em suma, desfazer o sentido onde ele se quer mais cabal, aspirar obtê-lo onde ele resiste, opaco (p. 221).

O autor, na citação acima, acentua o que a personagem de Hilda Hilst (2001) exibe sem rodeios, o contínuo estado de espanto e afetação pela vida. A vida não é significada com pontos finais, mas com vírgulas, Hillé sustenta o mistério inerente ao que seria o viver e, dessa forma, dá-se todo seu incômodo com as estranhezas de cada dia. Jorge (2010) incita o sujeito a desfazer os sentidos, muitas vezes cristalizados pela fala do Outro, para que, ao deixá-los cair, possa aceder um novo sentido, sentido criado por ele, e não por outro que tenha lhe ditado. Nestes termos, as referências e os diálogos retirados da obra do poeta são ilustrativos de um sentir na carne, de uma perturbação que vai além do campo do saber, que diz da experiência estética para a psicanálise, experiência com o desvelar do desejo.

A experiência estética deixa ver e sentir aquilo que é familiar como estranho e o que é estranho como familiar, é o Unheimlich do desejo, tido como o que é mais radical do sujeito, que lhe assombra e lhe surpreende com o afeto angústia. O texto freudiano intitulado O estranho (1919/2006) é considerado como aquele que traz para o âmbito da psicanálise as experiências estéticas que despertam os mais estranhos sentimentos. Freud (1919/2006) inicia a apresentação esmiuçando os diversos sentidos atribuídos à palavra 'estranho', bem como ao seu antônimo o familiar. No decorrer dessa pesquisa, o autor conclui que no alemão aquilo que é designado como estranho, guarda em si uma proximidade com o que é mais familiar, "Dessa forma, heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que, finalmente, coincide com o seu oposto, unheimlich é, de um modo ou outro, uma subespécie de heimlich" (p. 244).

O sentir ambivalente daquilo que é íntimo, mas ao mesmo tempo estranho, assim como, o par amor e ódio suscitado nas relações cotidianas, remete à barreira que introduziu a diferença e, por isso, o sentido antitético visto, tanto nas palavras, como nas experiências do sujeito em amódio, neologismo cunhado por Lacan para dizer dessa dupla face que não se apresenta isolada, mas sempre acompanhada. A barreira da qual se fala é o recalque. Força cortante que diz não à passagem de conteúdos censurados e que dessa forma, cerceia o que de mais familiar diz do sujeito, ou seja, a condição de que algo seja estranho é efeito da força recalcante que assim o qualifica. A partícula negativa presente no "Un" da palavra Unheimlich, portanto, refere-se à negação primordial instaurada pelo recalque, quando este tenta inscrever, subjetivamente, a diferença que já vinha se operando nos pares presença-ausência.

O que significa dizer que o recalque opera na tentativa de esconder o objeto como pura perda, já que nesses instantes a falta se revela em toda sua potência. Nas experiências estéticas do Unheimilch o recalque fica suspenso. O duplo não, marcado no prefixo Un, como foi exposto, deixa entrever o duplo da constituição subjetiva. Ou seja, é quando o recalque falha que se dá a perda do sentido, o descentramento, pois é neste instante que o duplo se apresenta, com o Outro em si e, por conseguinte, a condição de desamparo primordial do sujeito. Desamparo este que vem à tona nas repetidas experiências de perda do objeto.

Desse modo, após a investigação linguística do termo Unheimlich e sua partícula negativa, o autor passa a abordar as vivências de desamparo que desafiam a lucidez do sujeito, tais como encontros com autômatos, com a morte, com animismos, com fenômenos do duplo, tentando desvendar o que é comum a essas experiências. O que Freud já anuncia nesse texto e que será mais profundamente desenvolvido no ano seguinte em Para além do princípio do prazer (1920/2006), é que aquilo que deveria ter resistido, mas atravessa as defesas psíquicas e advém causando aflição é o que, prioritariamente, diz do sujeito e é singular. Ou seja, ao abordar a estética se prenuncia aquilo que é da ordem da compulsão à repetição, o que fica claro na fala de Freud (1919/2006): "Todas essas considerações preparam-nos para a descoberta de que o que quer que nos lembre esta íntima 'compulsão à repetição' é percebido como estranho" (p. 256).

Começam a se aproximar, neste momento, dois importantes campos para se pensar a sublimação, a estética do desejo e a pulsão de morte, donde entender a implicação entre ambas faz-se, pois, ponto relevante para esta discussão. A pulsão de morte é intensidade, força abrupta que opera cortes e atropela as contenções de sentido, trazendo à tona o que é mais íntimo e, por isso mesmo, negligenciado pela consciência. No instante em que o sujeito vive tais experiências, aquilo que estava enterrado retorna com força, é a morte em vida, pois na exposição da fratura constituinte um tanto do ser ali se esvai, a saber, suas construções imaginárias. Nesse sentido, o que o instante relâmpago do Unheimlich desvela é o tempo original de constituição marcado pela ambivalência nos pares vida/morte, dor/prazer/, Eros/Thanatos. Diante dessa marca radical, França (1997) situa a estética do desejo no campo de uma experiência limite com o afeto angústia:

Entendemos que é o umbral angustiante de uma conjunção do familiar e do estranho que se dá a ver para logo depois escapar. Esta conjunção - de Eros e Thanatos - remete o sujeito a uma ambivalência pulsional originária. Ao ser enviado a este tempo de coexistência de tendências ambivalentes, o sujeito se vê colocado momentaneamente em um lugar indeterminado, abissal. A violência pulsional que se manifesta lança o sujeito em um para-além-de-sua-estruturação [...]. (p. 139).

Os momentos de perda dos sentidos e de descentramento são aqueles em que o sujeito é atravessado pela tendência ambivalente de sua estrutura, são, pois, nos instantes de queda do objeto escolhido que eles se mostram como não mais desejáveis. Assim, no lapso da imagem de completude, o buraco do ser vem à cena e o Eu é afetado por um transbordamento pulsional que o inquieta, estranha e confunde. O efeito Unheimliche é expressão, portanto, da erótica traumática do Outro sobre o sujeito, implicando nele uma alteridade libidinal e mortífera. A experiência do duplo é exemplar dessa alteridade violenta, é a causa do estranhamento, e se relaciona com os momentos em que as primeiras identificações são postas em questão: eu sou o outro, ou ele sou eu? França (1997) expõe sobre o atordoamento advindo do duplo:

A experiência do Unheimliche, desse modo, é fascinante, porque lança o eu em um lugar duplo, que é especular, atração narcísica, e o horror alteritário, repulsa à exterioridade. Por um lado, o eu vive o outro como o mais familiar e, por outro lado, o eu se experimenta como o mais estranho para ele próprio (p. 108).

Viver a estranha familiaridade vai além de uma expressão adornada de palavras que se harmonizam. O que não há nessa experiência é tranquilidade, visto que, por debaixo do que se pensa, o viver a experiência, está a morte do ser, a fratura da imagem narcísica reveladora do real. Nesses termos, para França, o princípio da estética como experiência perceptiva é o Belo, que não exclui o Horrível, pelo contrário, com ele existe. O Unheimliche e o Belo são, pois, instantes transitórios e inapreensíveis que dizem do atropelamento pulsional diante do qual há a possibilidade de resplandecimento frente ao horror da angústia. Assim, em decorrência da criação de sentido , o horror angustiante é posto em movimento, animando o movimento do desejo:

É o belo-comovente do desejo que faz a dor participar do enigmático e inacessível bem, o vazio constituinte sempre a ser descoberto. O que se revela e se esconde é brilho, é luz resplandecente que emana do objeto causa do desejo e, justo por isto, o belo estranhamente nos indica nossa relação com a própria morte, nossa transitoriedade (FRANÇA, 1997, p. 193).

A estética promulgada pela psicanálise, portanto, é aquela que manifesta a ancoragem da significação na emoção, e que diz, por fim, de um sentir que está para além do sensível fenomênico, pois aponta para a fronteira entre o impacto pulsional e o seu valor afetivo (FRANÇA, p.65, 1997). Seria, pois, um sentir não traumático por que palavreado, mas que, ao mesmo tempo, denuncia a rasura estruturante do eu.

Completando o sentido aqui proposto para o campo da estética, Jacques Ranciére (2009) em, O Inconsciente estético, diz que no regime estético há "[...] a identidade de um saber e de um não-saber, de um agir e de um padecer, que radicaliza em identidade de contrários a claridade confusa" (p. 28). Ou seja, prevalece na arte e em sua estética o regime do antitético, saber e não-saber, fixar e mover, identidade e diferença, pares opostos que não se excluem. A arte seria, nesse ponto, construção de um sentido diferente para aquilo que, ao escancarar o buraco que habita o sujeito, o faz sair do lugar narcísico que estava até então. Neste ponto, França (1997) contribui dizendo:

O produto deste processo é uma transgressão com sentido, um efeito sublimatório que implica colocar em jogo o choque da ausência de forma, da fragmentação, com a capacidade plástica e de polimorfismo da pulsão, o que gera intensa angústia, motor afetivo que mediatiza a passagem para uma nova reunião dos fragmentos, o que significa uma metamorfose (p. 153).

A pulsão de morte é a força operante nesse processo, que suscita a transgressão criativa e o corte com o que estava posto, já foi anunciada no decorrer do texto, mas devido à sua magistral importância ao tema desta pesquisa ela será mais bem elucidada à frente.

O surgimento do conceito de pulsão de morte promoveu rupturas tanto na teoria psicanalítica, quanto na prática clínica. Mas, talvez , sua maior evidência tenha se dado na última, até mesmo porque o que se dá na prática convoca mais fortemente os olhares dos interessados. A mudança causada pela noção da pulsão de morte pode ser vista no fazer clínico, pois não estaria orientado somente para o que o sujeito diz, mas também, para aquilo que o sujeito não pode dizer, porque da ordem do impossível e inatingível ao aporte da linguagem. Tais apontamentos clínicos não serão objeto de discussão no presente texto, o que não impede, porém, que recebam o devido destaque, como fora desde o início para a psicanálise.

É no seio da clínica, ao escutar seus pacientes, que Freud (1920) começa a indagar-se sobre alguns fenômenos para os quais a tendência do princípio de prazer não opera. Fenômenos, tais como os sonhos de angústia, que em nenhum momento teriam proporcionado qualquer prazer, nem mesmo antes de ter sido alvo das defesas recalcantes, são, assim, da ordem da compulsão à repetição, o que: "[...] nos parece ser mais arcaica, mais elementar e mais pulsional do que o princípio do prazer, o qual ela suplanta" (FREUD, 1920, p.148). Algo, portanto, estaria além das intenções do princípio de prazer, aquém dos seus enlaces, operando, inclusive, independente dele. O ponto para o qual o autor direcionou seu olhar a fim de desvendar a questão foi para o que estava na origem de sua teorização: a pulsão. Freud (1920/2006) em Além do princípio de prazer, acrescentou a natureza conservadora da pulsão, que se engendraria para restabelecer o sujeito a um estado anterior e diz ainda que:

Se o objetivo da vida fosse chegar a um estado nunca alcançado anteriormente, isso estaria em frontal contradição com a natureza conservadora das pulsões. Portanto, esse objetivo deve ser muito mais de alcançar um estado antigo, um estado inicial, o qual algum dia o ser vivo deixou para trás e ao qual deseja retornar mesmo tendo de passar por todos desvios tortuosos do desenvolvimento (p. 161).

O estado antigo, que anima a pulsão, pode ser pensado, não como o inanimado, pura e simplesmente,, mas aquele tempo mítico da espécie em que o primeiro corte operou cingindo o ser, fazendo-o, desde então, ser de parcialidades. O que se visa, portanto, é a descontinuidade, pois só assim, o humano pode existir e o sujeito acontecer. Já, a pulsão de vida é descrita por Freud (1920/2006) como ainda mais conservadora que aquela, por se mostrar mais resistente às forças externas e mantenedoras dos vínculos.

É nesse sentido, que Garcia-Roza (1995) acrescenta que, enquanto Eros trabalha em prol da indiferenciação, Thanatos opera buscando a pura diferença. Sobre a função de imprimir cortes, Lacan (1959-1960), no Seminário sobre A ética da psicanálise, pontua que a pulsão é de destruição e que deve estar para além da tendência ao retorno do inanimado. Mas, destruição do quê? Ainda com Lacan, essa vontade seria senão de "[...] recomeçar com novos custos. Vontade de Outra-coisa, na medida em que tudo pode ser posto em causa a partir da função do significante" (p. 259).

A pulsão de morte, portanto, é pensada para além do seu teor de destruição, da morte da carne, já que referente à dissolução dos vínculos imaginários e à potência criativa. É força que faz corte com o objeto e vai para além do princípio do prazer apontando para o gozo que contém um tanto de vida e um tanto de morte, por não se satisfazer com objetos parciais, permanecendo em busca de Outra-coisa.

A sublimação é um criacionismo, o conceito criado por Freud e a lógica do conceito. Cria-se sobre o intransponível, por isso Lacan toma a pulsão de morte como suspeita, pois ela não está dada, ela é uma criação sobre o intransponível, que permanece enquanto tal. Mas, por ela algo se projeta para além da cadeia significante, "[...] lugar onde tudo o que é lugar do ser é posto em causa, lugar eleito onde se produz a sublimação [...]" (LACAN, 1959/1960, p. 262).

Com a pulsão de vida, a história é diferente, ela é escandalosa. Os significantes estão aptos a habitá-la, melhor dizendo, o trabalho psíquico de efetuar inscrições é todo direcionado a representar Eros. No lado oposto, está a pulsão de morte, impossível de ser inscrita, já que excessiva ao suporte psíquico, sendo justamente esse excesso, a força que o desordena. Fala-se aqui da silenciosa pulsão de morte. Silenciosa, mas não morta. Ela atuaria, nesse sentido, efetivando cortes nas identidades imaginárias e nas representações fixas.

Ao promover tais rasgos, o sujeito teria que se haver com novas construções, com recomeços, seria oferecido ao sujeito a possibilidade de ser "[...] livre para se assemelhar a tudo aquilo que não é ele no universo" (BATAILLE, 2013, p. 12). Voz concedida aqui ao escritor devasso da literatura, Bataille no livro O Erotismo, no qual sem dizer da pulsão de morte diretamente, convoca-a nos variados momentos em que se refere ao movimento rumo ao excesso executado pelos seres descontínuos. A pulsão de morte, conceituada como destrutiva é desdobrada por Safatle (2006) ao abrir o conceito de morte com o qual a sublimação compartilha:

Freud falava de uma autodestruição da pessoa própria a satisfação da pulsão de morte. Digamos que, para Lacan, a morte procurada pela pulsão é realmente a autodestruição da pessoa, mas à condição de entendermos por pessoa a identidade do sujeito no interior de um universo simbólico estruturado. Essa morte é, pois, o operador fenomenológico que nomeia a suspensão do regime simbólico e fantasmático de produção de identidades. Ela marca a dissolução do poder organizador do Simbólico que, no limite, nos leva à ruptura do eu como formação imaginária (p. 277).

A estética do desejo faz ver, então, o resplandecimento do sujeito pelo efeito do Belo, transgressor e criador do novo, que guarda em si o Horrível subsistente. Seria o Belo, então, a verdadeira barreira, que mantém o sujeito um passo atrás do inominável, deixando-o mais perto como uma cobertura, que ao mesmo tempo protege e denuncia a nada graciosa verdade que resta por detrás (LACAN, 1959/1960). Este efeito e o consequente feito no Outro se desenrolará a seguir. Emoções e afetos tocam o espectador de uma obra artística, ou seja, aquele é convocado a participar dos efeitos criativos da obra. Sobre este alcance no outro Bataille (2013) anuncia, "E, por deslocamento, o que é este texto, para mim, que o leio? Resposta: é o texto que eu desejaria ter escrito" (p. 20).

Tal como outros conceitos psicanalíticos que se compõem em pares antitéticos, o Horrível é a face outra do Belo. O que pode ser visto na inquietação incitada naquele que vive certa experiência com uma obra de arte, pois esta tem a potência de despertar afetos tanto de repúdio e asco quanto de acalento. Contudo, o que daria a esse objeto tamanho poder? O vazio que lhe subsiste, já que o objeto criado seria a modelação significante empenhada em contornar a ausência de objeto, indicada por das Ding. É justamente esse vazio operador da produção significante que aproxima artista e público por ser condição estruturante e, portanto, familiar a ambos.

Dessa forma, para além do que vive o artista no instante de criação, o encontro artista observador também se faz objeto de investigação, pois o que se apresenta aos sentidos é o arrebatamento, o incômodo, o assombro diante da obra. Afeta o público, porque num tempo antes fez dor em seu criador. O artista, assim, oferece o Belo com sua face horrível ao Outro, transmitindo aquilo que não é enquadrado pela linguagem, pois resta sempre algo da arte que não se comunica completamente. Fala-se, portanto, de um encontro marcado pelo desencontro do real da comunicação, onde ambos ainda que separados pelo o que não se representa de um para o outro, se encontram numa compreensão muda e gozam em tal posição, gozam diante do Horrível/Belo que os une, pois como Lacan elucida, "gozo é dom" e na sublimação o dom é causar desejo no outro (FRANÇA, 1997).

O efeito do Belo, por fim, provoca a criação de novos sentidos naquele que é afetado pela criação artística, o desejo fica, pois em suspenso, já que o que opera ali não é a prevalência do objeto criado, pelo contrário, o vazio de objeto. Por isso, a sublimação não pode ser desligada de seu efeito no Outro, não havendo, pois, existência desse processo sem pensá-lo no endereçamento à cultura e, portanto, em suas ressonâncias nos sujeitos. Hilda Hilst (2013), a voz escolhida neste trabalho para ecoar os meandros da criação artística, fala claramente sobre o horror que impele a sua escrita, bem como, sobre o endereçamento de sua obra ao Outro, seu lugar mais êxtimo:

Fala-se muitas vezes da alegria que o ato de escrever dá. Para mim escrever me provoca mal-estar, medo mesmo. [...] Eu fico impressionada quando ouço pessoas que dizem sentir prazer em escrever. Para mim é sofrimento, um sofrimento de que não posso fugir, mas me amedronta. Penso que escrever serve mais para perdurar, para existir fora de nós mesmos, nos outros (p. 29).

Para que assim perdure na história do outro, Freud (1908/2006) aborda a afetação da obra naquele que a aprecia, destacando a relevância da técnica na formalização da fantasia do artista, dizendo que se tal fantasia fosse apresentada cruamente em sua fala, provavelmente não incitaria afetos, porque esbarraria diretamente nas próprias fantasias daquele que observa. Seria, portanto, através da criação que o artista, no momento em que dá forma às suas construções imaginárias, permitiria àquele que está à espreita observando viver o deleite com seus próprios devaneios, sem autoacusações ou vergonha (FREUD, 1908/2006). É, pois, no simbólico que se dá o enlace entre o artista e o público, ambos se identificam naquilo que tenta contornar a falta, ambos vivenciam a estética do desejo.

A criação sublimatória, portanto, causa enlaçamentos sociais. É por meio da sublimação do artista que se promoverá "[...] uma anima-ação que mobiliza a estrutura e possibilita a passagem de uma forma para outra" (FRANÇA, 1997, p. 151). Esse movimento compartilhado é consequente da coisidade atribuída ao objeto, o que quer dizer que, o objeto estético para que afete o Outro tem, necessariamente, que estar "elevado à dignidade da Coisa", ou seja, tem que ser subtraído de toda determinação atributiva e qualitativa (SAFATLE, 2006). Seria por meio da dessensibilização do objeto que sua coisidade singular poderia, potencialmente, fazer-se universal ao desejo do Outro, estando, por fim, destituído das fixações imaginárias. Ressalta-se aqui o cuidado em se pensar a diferença entre as fixações imaginárias e o ancoramento imaginário, já que este persiste nas novas criações simbólicas, porém não mais cristalizados, e sim em movimento.

O objeto artístico é, então, não mais representação de um sujeito particular é, ao contrário, advento da não-identidade e do testemunho de um sujeito descentrado que aponta o descentramento do Outro, os dois sujeitos indeterminados. Desse modo, o caráter de alcance universal do objeto de arte diz da sua potência em elevar o objeto à dignidade da Coisa, o que é apresentado por Lacan (1959-1960/1991) da seguinte maneira:

No nível da sublimação o objeto é inseparável de elaborações imaginárias e, muito especialmente, culturais. Não é que a coletividade as reconheça simplesmente como objetos úteis - ela encontra aí o campo de descanso pelo qual ela pode, de algum modo, engodar-se a respeito de das Ding, colonizar com suas formações imaginárias o campo de das Ding (p. 125).

Nesse engodo da colonização do campo de das Ding via formações imaginárias estariam, por fim, artista e observador colocados no mesmo patamar em referência ao ato de criação artística? Poder-se-ia dizer que, por compartilharem o efeito do Belo, compartilhariam também o mesmo campo diante da ética do desejo? Tais questões são ilustrativas de controvérsias, presentes na forma de enquadrar artista e observador quanto à ética e à estética do desejo. Alguns os colocam em pontos distantes, se não opostos, a começar pela distinção dos significantes utilizados para nomear cada um desses sujeitos, criador/apreciador, artista/observador e personagem/espectador (MELLO, 2001). A singularidade do artista estaria na busca pela verdade que compõe seu ser, pela tentativa de decifrar o enigma em partes significativas. A diferença está, pois, de acordo com Mello (2001) na escolha do percurso a seguir, ela se pauta no termo espectador para dizer daquele que prefere o fechar dos olhos, enquanto o artista daria seus olhos ao trágico caminho rumo ao desejo, ainda que saia dele com os olhos furados.

Distanciar artista e observador faz-se, todavia, uma forma arriscada de se apreender o processo sublimatório. Ao compartilhar o efeito do Belo com o artista por meio da obra, aquele que a observa não estaria também se havendo com a falta que lhe assombra? Seria possível quantificar quanto o público se aproximou do seu próprio buraco? Isso é possível de ser quantificado?

Maria Rita Khel (2002), no texto Sobre ética e psicanálise, problematiza essa questão dizendo que a fruição alcançada pelos que apreciam a obra, seria também da ordem da sublimação, e que a relação do público com a obra seria indissociável da dimensão criativa. Essa divergência de opiniões poderia levar a questões que ressaltam a correlação entre a sublimação e a ética do desejo. Pois, sendo a sublimação um processo que diz, prioritariamente, do destino que cada sujeito dá a seu desejo, diz, portanto, de uma ética singular. A tentativa de melhor dizer o caminho pleiteado por uns em relação a outros não seria uma proposta de universalizar a via da sublimação enquanto uma das mais exemplares?

Não se espera, por fim, que o artista, aventureiro no seu desejo, seja guia de seu percurso, que dê as coordenadas de como circulou das Ding? Ele percorreu sua caminhada sem olhar para trás, sem deixar pegadas na trilha. Sobre o que se passa no processo sublimatório, portanto, muitas vezes nem mesmo o artista consegue dizer, a notícia viria, pois, do seu efeito no simbólico.

Não ser possível prever o objeto final a ser criado é a condição intrínseca que o faz brilhar e que lhe dá a potência de se eternizar na história. Poder-se-ia dizer que tal potência estaria na sua condição de ser um ato, onde a vida e a morte se conjugam. Como diz França (1997) há um Eros/mortal que promove a reconstrução significante, já que seria pela ação destrutiva da pulsão de morte, que os sentidos fixos seriam desordenados e pela intrusão de Eros que novos sentidos seriam elaborados. Seriam morte e vida em movimento : "O importante é essa descoberta final, íntima, desesperada, definitiva. Esse caminho do homem, às vezes, para o nada, às vezes em direção a Deus. Mas é, principalmente, a radiografia de um percurso. É isso que eu quero fazer e é isso que eu sei que fiz" (HILST, 2013, p. 125).

Morte e vida, o par, enfim, comparece sem mais rodeios. Os instantes relâmpagos de queda dos objetos estão, como já fora dito, presentes em incontáveis momentos vividos pelo sujeito. Por outra via, o que aqui chama a atenção é a criação de sentido diante de tais instantes-horrores, a utilização do simbólico como via para movimentar e elaborar o que poderia ter tido fins outros, como o esquecimento, e não um saber-fazer diante de tal queda. Dá-se a ver, portanto, que é sob o pulsar da pulsão de morte que novas formas se apresentam pela recusa do mesmo. Assim, o efeito no simbólico por vias da sublimação faz cair a venda a que se refere Bataille (2013) "Com uma venda nos olhos, recusamos ver que só a morte assegura, incessantemente, um ressurgimento sem o qual a vida declinaria" (p. 84).

A arte seria, por fim, como diz Safatle (2006), um meio "(...) de auto-subjetivação do sujeito em sua não-identidade", e operaria através da destruição de modelos e protocolos de identidade e representação. Arte é efeito, é o que se constrói no processo sublimatório e a testemunha do savoir-faire do artista. Dizendo de outra forma, a criação artística é construção imaginário-simbólica que vem colocar algo no buraco, ocupado por das Ding, contornando seu vazio. Há, desta forma, a sinalização de Eros empreendendo novos laços e elaborando outras cadeias significantes; assim, o real que se anunciava na fissura aberta pelo corte da pulsão de morte é, mais uma vez, posto sob o véu da estética do desejo.

Mas, afinal, que real é esse que se anuncia no corte e que se dá a ver somente pelas criações simbólicas e imaginárias que tentam sobre ele dizer algo? A impossibilidade de abarcar algo pela palavra e a condição de não haver letras que se fechem num significado, é o que Lacan nomeou como real. Real este que compõe a realidade, mas que vai além e aponta para um lugar outro desafiante ao sujeito, que tenta alcançá-lo, mas falha em todas as suas tentativas. Essa falha é certa. Todavia, a possibilidade de alcançar o real irrepresentável está sempre aí, mesmo que sob o âmbito da incerteza. O real existe independentemente de se pensar ou falar sobre ele, estará sempre lá: "O real tem por propriedade carregar seu lugar na sola dos sapatos. Podem desarrumar quanto quiserem o real, ainda assim nossos corpos vão continuar em seu lugar depois da explosão de uma bomba atômica, em seu lugar de pedaços" (LACAN, 1956/ 1995, p. 38).

O real lacaniano é trazido no presente texto, em grande parte, para dizer da sua relação com a sublimação. Contudo, se foi possível dizer sobre o que incita o artista a criar e também dizer sobre os efeitos intuídos no Outro, o mesmo não se faz com o processo de criação, este é da ordem do real, é momento que escapa ao regime do cognoscível. Sobre o impossível de se simbolizar em relação à sublimação, Safatle (2006) afirma que: "[...] se o impossível é definido justamente como 'o que não cessa de não se escrever', podemos dizer que a sublimação é um movimento que transforma o impossível a escrever, em uma espécie de escritura do impossível" (p. 281).

O real insiste em não se inscrever é insistência incômoda e desagradável, já que inapreensível ao sujeito. A sublimação é, pois, via pela qual se recobre o real com o véu significante, sem significá-lo, já que, mesmo entre uma palavra e outra, há uma escansão, entre um risco e outro, há o intervalo de dois pontos que nunca se unem, ou seja, o buraco estará sempre ali se apresentando. O que o efeito sublimatório oferece, para tanto, é o colorir de suas bordas.

Há, pois, um tanto que sempre transborda as contenções do sujeito, que o desconcerta e o impele a viver com questões incômodas. Questões sobre o ser, sobre a morte, sobre perdas, sobre o transitório, sobre o tempo. Todavia, diante de tais inquietações o sujeito pode escolher algumas saídas, dentre elas: se calar ou cantar.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 12/09/2015
Aprovado para publicação em: 16/05/2016

Imagem Seta Endereço para correspondência
Rafaela Brandão Alves
E-mail: brandaoalvespsi@gmail.com
Marcela Toledo França de Almeida
E-mail: marcelapsiufg@gmail.com

 

 

*Psicóloga / Universidade Federal de Goiás (UFG), mestra nda Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise - Seção Goiânia.
**Psicanalista, doutorado Psicologia Clínica e Cultura/Universidade de Brasília (UNB), professora adjunta de Processos Clínicos/Curso de Psicologia Universidade Federal de Goiás (UFG), membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise - Seção Goiânia.

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