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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.39 no.36 Rio de Jeneiro jan./jun. 2017

 

ARTIGOS

 

Considerações sobre a noção de nome próprio em Lacan: entre o significante e a letra

 

Considerations about the notion of proper name in Lacan: between the signifier and the letter

 

 

Lívia Campos e SilvaI*; Isalena Santos CarvalhoII**; Daniela Scheinkman ChatelardI***

IUniversidade de Brasília - UnB - Brasil
IIUniversidade Federal do Maranhão - UFMA - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse trabalho tem o objetivo de investigar o modo como a noção de nome próprio é trabalhada por Lacan a partir do tema da Identificação. Segundo Lacan, o nome próprio não é definido como a designação de um elemento particular. Tampouco é entendido como um significante de combinação sonora especial. Ele está intimamente vinculado ao fenômeno da escrita e à noção de letra, enquanto suporte do significante. Argumenta-se que a identificação ao nome próprio inclui a necessidade de um ato de leitura, capaz de implicar uma tomada de posição subjetiva. Faz-se importante destacar que a linguagem que o estrutura não se reduz a uma função representacional, mas adquire estatuto de um ato.

Palavras-chave: Nome próprio, Identificação, Letra, Significante, Ato.


ABSTRACT

The aim of this article is to investigate how Lacan addresses the notion of proper name within the Identification theme. According to Lacan, a proper name is not defined as the designation of a particular element. Neither it is understood as a signifier of a special combination of sounds. Instead, it is intimately linked to the phenomenon of writing and to the notion of the letter as a support for the signifier. This study argues that the identification to the proper name includes the need for an act of reading capable of implying in one taking a subjective position. It is important to highlight that the language structuring the proper name cannot be reduced to a representational function, since it acquires the very status of an act.

Keywords: Proper name, Identification, Letter, Signifier, Act.


 

 

I. Introdução

No Seminário 9: a identificação, Lacan (1961-62/2003) inclui como uma preocupação teórica a elaboração de uma noção de nome próprio, que permita orientar a experiência da clínica psicanalítica. Diz Lacan:

Vocês sabem, como analistas, a importância que tem em toda análise o nome próprio do sujeito. Vocês têm sempre que prestar atenção em como se chama o seu paciente. Nunca é indiferente. [...] O que é um nome próprio? (LACAN, 1961-62/2003, p. 83).

Como explicar, neste momento de seu ensino, a necessidade de tematizar o nome próprio e de se questionar acerca de sua definição? A investigação teórica sobre essa noção pode ser entendida, neste contexto, como uma tentativa de fazer avançar os desenvolvimentos acerca da temática da identificação. O nome próprio serve como um elemento privilegiado para mostrar a relação de identificação que o sujeito estabelece com um traço. Isto é, a relação que o sujeito estabelece com seu nome próprio revela um tipo específico de identificação. Assim, Lacan trabalha a identificação - entendida como uma operação estrutural da constituição do sujeito do inconsciente, em sua relação com o significante - vinculando-a ao conceito de traço unário. Trata-se, portanto, de uma elaboração sobre a identificação do sujeito "ao traço unário do Outro" (LACAN, 1961-62/2003, p. 95).

Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo investigar o lugar que Lacan atribui à noção de nome próprio, no interior da temática da identificação. Para tanto, será preciso examinar o percurso que o permitiu estabelecer uma relação entre o nome e o traço unário, enquanto o suporte do significante, em seu vínculo com a noção de letra:

Chegamos agora, com essa largada que fizemos a partir da função do traço unário, a algo que vai permitir-nos ir mais longe. Digo que não pode haver definição do nome próprio senão na medida em que nós nos apercebemos da relação da emissão nomeadora com algo que, em sua natureza radical, é da ordem da letra (LACAN, 1961-62/2003, p. 90).

 

2. A função do traço unário em meio ao problema da identificação

Para Lacan, o sujeito é, inevitavelmente, dependente da linguagem para se constituir. É a partir de uma ordem simbólica externa e já instituída, prévia a seu advento, que o sujeito encontra um lugar através do qual se inscrever. Essa ordem simbólica é entendida a partir da noção de (grande) Outro, enquanto o tesouro dos significantes (LACAN, 1960/1998). Chama atenção que, para Lacan, um desses lugares oferecidos pelo Outro é inscrito no discurso pelo nome próprio, isto é, o nome opera a inscrição de um lugar para o sujeito, no universo de um discurso:

Também o sujeito, se pode parecer servo da linguagem, o é ainda mais de um discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito em seu nascimento, nem que seja sob a forma de seu nome próprio (LACAN, 1957/1998, p. 498).

Antes de se constituir como sujeito, o infans já recebeu a marca de um nome dado pelo Outro. Contudo, o momento da constituição do sujeito parece ser o momento em que a relação com o nome próprio necessita de uma tomada de posição, por meio da qual o sujeito realiza uma leitura sobre esta marca.

Lacan (1961-62/2003) pensa a constituição subjetiva a partir de uma operação de identificação simbólica, que coloca o sujeito em uma relação de dependência ao significante. Diferentemente da identificação imaginária, caracterizada como o efeito transformador da assimilação de uma imagem especular, na identificação simbólica, o sujeito advém a partir do efeito de um significante. Trata-se de uma "identificação de significante" (p. 25), em que o significante, sendo, desde Saussure, distinto do significado, é caracterizado por "ser o que os outros não são" (p. 28). Isto é, o que caracteriza a unidade do significante é ser pura diferença, ele se constitui por oposição aos outros elementos significantes da cadeia.

Há, por outro lado, um elemento que sustenta e permite essa diferença que caracteriza o significante: seu suporte é dado pela função do traço unário. A importância do conceito de traço unário se destaca, neste momento, na medida em que é por seu intermédio que Lacan vai dar justificativas do porquê o significante não se reduz ao signo. É ele que vai permitir manter a distinção entre os dois e será o elemento fundamental para avançar no problema da identificação. Lacan (1961-62/2003) trabalha a noção de traço unário relacionando-a a duas dimensões. A primeira delas refere-se ao significante, em que o traço unário aparece como "o que tem de comum todo significante, de ser, sobretudo, constituído como traço, de ter esse traço por suporte" (p. 35). A segunda é a dimensão do objeto, em que a função do traço se refere a "algo do objeto que o traço retém, justamente sua unicidade" (p. 101). Falaremos mais adiante sobre esta segunda dimensão.

Em sua relação com o significante, o traço não é a marca da singularidade exclusiva de cada um deles (o que condiz mais com sua combinação fonemática diferencial), mas, sim, o que há de compartilhado entre os significantes de uma cadeia. O que há de comum entre eles é, justamente, o fato de serem definidos por sua diferença em relação aos outros. O traço diz respeito ao que há de invariável. Cada significante, em sua singularidade, é diferente e pode ser substituído por outro. Mas, ao mesmo tempo, cada um deles possui a característica comum de ser um significante. Cada significante adquire sua essência singular a partir da diferença que estabelece com os outros; mas o fato de serem cada um deles singulares é um componente que os universaliza, que os tornam elementos de um conjunto de significantes. O que os significantes têm em comum é, paradoxalmente, o que eles têm de mais singular. Ou seja, o que os torna comuns, e, portanto, merecedores do nome "significantes", é o fato de serem, cada um em sua singularidade, incomuns. A diferença é o que os caracteriza enquanto únicos, mas é também o que os caracteriza enquanto semelhantes (LACAN, 1961-62/2003).

É em relação a esse traço unário, o um, que Lacan vai aprofundar a questão da identificação. Faz-se importante notar, aqui, que Lacan (1961-62/2003) sinaliza que a identificação, embora insinue de maneira intuitiva a ideia de idêntico, não significa fazer um, no sentido de efetuar uma fusão entre dois elementos. A identificação não é um processo por meio do qual o sujeito se igualiza a um significante. Isto é, não se trata do estabelecimento de uma relação de identidade com o significante, em que este teria a função de permitir ao sujeito totalizar seu ser a partir de uma determinação. Citando Lacan (1961- 62/2003): "A identificação não tem nada a ver com a unificação. Somente distinguindo-a desta é que se pode dar-lhe, não somente seu destaque essencial, como suas funções e suas variedades" (p. 49).

Não sendo uma operação de identidade e, portanto, de unificação, Lacan (1961-62/2003) afirma que o que a identificação produz é uma diferenciação. Para explicar como essa diferenciação ocorre, ele põe em questão o princípio de identidade da lógica clássica, que postula a existência de uma relação de identidade entre dois termos iguais, idênticos a si e que permanecem sendo o mesmo (A = A). A interrogação crucial que se coloca é: se os dois termos são iguais, por que então é preciso separá-los para estabelecer a igualdade? Ora, por que é preciso basear uma igualdade em uma relação de diferença, introduzindo outro A? Esse impasse parece revelar que o elemento A, por precisar de uma duplicação para se definir, não é autossuficiente para se fundamentar. De modo a contornar este impasse, Lacan propõe que A seja tomado como um significante e não como um signo. O princípio de identidade só manteria sua validade para sustentar a operação de identificação, se os elementos da relação fossem tomados como signos. Falar de identificação enquanto uma relação de identidade não é uma possibilidade, caso se atente para a necessidade de tomar cada termo da igualdade como um significante:

Um signo - dizem - nos - é representar alguma cois a para alguém, a alguém que está lá com o suporte do signo. A primeira definição qu e podemos dar de um alguém, é que alguém que está acessível a um signo. É a forma, a mais elementar, se podemos nos exprimir as s im , d a subjetividade. Não há objeto algum aqui ainda, há outra coisa, o signo, que representa esta alguma coisa para alguém. Um significante se distingue de um signo, primeiramente por aquilo que tentei fazer vocês sentirem, é que os significantes não manifestam se não a presença, em primeiro lugar, da diferença como tal e nada mais. A primeira coisa, portanto, que ele implica é que a relação do signo com a coisa está apagada (LACAN, 1961-62/2003, p. 63).

Segundo essa distinção, enquanto o signo teria como função trazer à tona a presença da coisa, o significante, por outro lado, presentifica a diferença. Lacan marca sua posição diferencial em relação à linguística a partir da primazia que confere à função do significante, ao afirmar que é ela que está no cerne de toda "realização do sujeito. " (LACAN, 1961-62/2003, p. 26). Dar primazia ao significante, em detrimento do signo, implica um apagamento da relação ao objeto empírico, referenciado pelo signo. Para Lacan, ao contrário do signo, o significante não é definido por uma referência representacional a uma coisa no mundo, mas sim por sua diferença no contexto de outros significantes e por sua diferença em relação a si mesmo. Isto é, ao contrário da representação imediata de uma coisa para alguém, o significante é em si o que os outros significantes não são e é em si mesmo não idêntico a si.

[...] A, como significante, não pode, de nenhuma maneira, se definir senão como não sendo o que são os outros significantes. Do fato de ele não poder se definir senão justamente por não ser todos os outros significantes, depende essa dimensão, igualmente verdadeira, de que ele não poderia ser ele mesmo (LACAN, 1961-62/2003, p. 57).

O significante parece interessar a Lacan por ser um elemento que revela em si uma falta, na medida em que sua definição não se basta em si mesma. Ele, em si, não possui uma consistência autossuficiente e traz consigo um vazio, necessitando da oposição de outro termo que demarque sua posição. É justamente por sua unidade se constituir enquanto pura diferença, a partir do apelo a outros até então indeterminados, que a identificação, que o sujeito com ele efetua, não diz respeito à produção de uma unificação, mas sim de uma diferenciação. É por meio da identificação ao significante que o sujeito passa a se diferenciar: tanto daquilo de que ele não é, quanto de si mesmo, tornando-se cindido por excelência. Contudo, é o traço unário do significante que permite que ele funcione como diferença, porque o significante só pode ser definido como diferente pelo contraste que ele estabelece com algo que é não diferenciado, que é idêntico, que é invariável. Tal parece ser a relevância do traço unário, do ponto de vista da constituição subjetiva.

Caso se desconsiderasse esse elemento invariável, que dá ancoragem, enraizamento para o sujeito, surgiria o impasse de explicar como seria possível que o sujeito, uma vez cindido - o que implica dizer que não há um significante que baste em si mesmo para dizer de seu ser - pode se constituir, reconhecendo-se como alguém que, apesar das mudanças, apesar de poder ser representado de um significante para outro, mantém-se relativamente o mesmo. Para que seja possível que o sujeito seja representado pelo significante, que é pura diferença, é preciso que haja algo que permaneça insubstituível, dotando-o de certa consistência, ainda que aparente. É a esse impasse que o traço unário, em seu vínculo com a estrutura da letra, parece surgir como resposta. E, é nesse âmbito que se situa o nome próprio na constituição do sujeito para Lacan:

[...] é nesse sentido que ele é insubstituível, isto é, que ele pode faltar, que ele sugere o nível da falta, o nível do buraco, e que não é como indivíduo que me chamo Jacques Lacan, mas como alguma coisa que pode faltar, mediante o que esse nome vai em direção do que? Recobrir uma outra falta. [...] Ele é feito para ir preencher os buracos, para lhe dar sua obturação, para lhe dar seu fechamento, para lhe dar uma falsa aparência de sutura (LACAN, 1964-65/2006, p. 73-74).

Inaugurada no Seminário 9, a noção de traço unário remonta à noção de traço único apresentada por Freud em Psicologia das massas e análise do eu1.

Dentre os três tipos de identificação que Freud estabelece, há a identificação regressiva, na qual o sujeito, ao abandonar ou perder o objeto de investimento libidinal, vai substituí-lo por um traço com o qual estabelece uma identificação. Para além de ser um suporte do significante, Lacan parece apresentar uma segunda dimensão do traço unário: ele é um caractere despersonalizado, sem conteúdo e que traz a marca do que permanece o mesmo no objeto, ao qual ele se refere. Isto é, ele diz respeito a algo que, no objeto perdido, se mantém invariável. O traço se refere à unicidade do objeto, que permanece a despeito de toda variação, de toda diversidade.

O traço parece ser, portanto, um desdobramento da noção de letra. Freud (1900/2015), ao inaugurar a investigação psicanalítica dos fenômenos oníricos, compara-os a um rébus, um sistema de escrita semelhante aos hieróglifos egípcios. A analogia serve para que Freud sustente a tese de que o sonho, enquanto uma manifestação inconsciente, é um fenômeno simbólico dotado de sentido. A defesa desta tese implica a possibilidade de que a estrutura simbólica do sonho seja interpretada. Retornando a Freud, Lacan teve o mérito de salientar o vínculo entre o fenômeno onírico e o funcionamento da linguagem em sua estrutura significante. Ao ler Freud com as óticas da linguística, Lacan faz avançar a tese de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, articulando os mecanismos da metáfora e da metonímia de modo análogo aos processos de condensação e deslocamento, próprios ao trabalho do sonho (LACAN, 1957/1998).

Ao dotar o sonho de um valor significante, Lacan indica que o discurso onírico está relacionado não ao significado, mas à letra enquanto "o suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem" (LACAN, 1957/1998, p. 498). O sonho é um escrito que implica a necessidade de uma operação de leitura, isto é, de um trabalho de decifração. Sua insistência na ideia de fazer uma leitura literal do sonho sugere a necessidade de identificar, no discurso inconsciente, a dimensão da letra. É necessário interpretar o fenômeno onírico inconsciente ao pé da letra, diz Lacan (1957/1998), pois o significante, revelado por ele, articula-se por meio de uma estrutura literante. Dito de outro modo, tecer uma relação entre sonho e letra implica dizer que o significante, que advém na narrativa do sonho (e no conteúdo inconsciente em geral), não oferece em si mesmo um significado pronto e pré-estabelecido. Para extrair do sonho alguma significação, segundo Lacan, é imprescindível operar uma leitura sobre essa estrutura de linguagem, que se revela literal. O significado surge, apenas e tão somente, como resultado dessa intervenção na letra do sonho.

 

3. O debate em torno do nome próprio

De modo a conseguir extrair algumas orientações e avanços para o delineamento de sua concepção de nome próprio, Lacan põe em confronto dois autores de perspectivas tradicionais distintas: a linguística de Gardiner e a lógica filosófica de Russell. Tal postura de importação de conceitos de disciplinas externas ao campo psicanalítico é recorrente em seus desdobramentos teóricos. Lacan adota, como estratégia, uma operação complexa de apropriação e manipulação de conteúdos extra-psicanalíticos para, então, fundar um quadro conceitual próprio ao que requer a clínica. Nessa estratégia, não se trata de uma maneira de superação das ideias de tais autores, como o próprio Lacan cuida em dizer, mas de extrair "o máximo de efeitos da utilização dos impasses" (p. 18), isto é, tornar explícitas possíveis consequências de alguns problemas teóricos, que sejam capazes de auxiliar o avanço do discurso psicanalítico, em sua vertente teórica e clínica.

Deriva de Russell um programa filosófico baseado em tendências empiristas, características da filosofia epistemológica moderna. Para Russell, o nome próprio tem a função de indicar um elemento particular dado por uma realidade empírica. "A word for particular" (p. 85), destaca Lacan (1961-62/2003). Essa atitude referencial em jogo, na noção russelliana de nome próprio, revela uma perspectiva nominalista, na qual a linguagem tem a serventia de referenciar coisas (mentais ou mundanas) isoladas e indestrutíveis, tal como se fossem átomos particularizados. O nome, na perspectiva russelliana possui a mesma função dos pronomes demonstrativos este (this), aquele (that) ou isto (it), que é a de designar uma coisa situada em um plano. Trata-se de uma definição ostensiva do nome próprio, cujo significado é provido ao ser desvinculado de qualquer descrição qualitativa mais ampla. Essa definição se mostra muito próxima de uma atitude que, simplesmente, aponta para um objeto no mundo, quase que prescindindo do recurso à mediação da linguagem verbal.

De modo a elucidar sua posição quanto ao tema, Lacan aponta que há uma parcela de desconhecimento, na teoria russelliana, quanto à relação entre o sujeito e à função da letra. Segundo Lacan, Russell acaba ignorando a relação fundamental entre pensamento e letra, vínculo central da problemática do nome próprio: "Bertrand Russell vê tudo exceto isso: a função da letra" (LACAN, 1961-62/2003, p. 85). Quando Russell estabelece que o nome próprio deve ser entendido como uma categoria utilizada para designar coisas particulares no mundo, ele o caracteriza a partir da denotação ostensiva de uma particularidade, que é, facilmente, substituível por outra. Não há nenhum núcleo duro imprescindível que torne um ponto escrito com giz num quadro uma particularidade insubstituível: não há nenhuma singularidade que o torne necessário, que marque sua exclusividade. Para Lacan, essa definição deixa escapar a ideia de que o nome próprio sugere algo que permanece não passível de substituição. Algo da ordem de uma marca indelével, traço cujo conceito lacaniano da letra vem resguardar com seu caráter material invariável.

Após Russell, Lacan (1961-62/2003) insere Gardiner no debate para mostrar que seus desenvolvimentos sobre a questão do nome próprio desembocam em uma teoria que enfatiza a questão da sonoridade fonética. Na obra que escreveu como reação à concepção russelliana do nome próprio, Gardiner demarca seu posicionamento, fazendo conversar uma perspectiva da antiguidade, representada pela figura do gramático Dionísio Trácio (para quem o nome próprio era uma propriedade), com a perspectiva utilitarista de Stuart Mill (nome próprio entendido como marca identificatória do objeto, sendo despossuída de sentido). Segundo Lacan, a linguística, por trabalhar muito genuinamente com as categorias de significante e significado, sensibiliza Gardiner a destacar a importância dos fonemas enquanto sons distintivos que compõem os nomes e denominam os objetos. Três anos depois, ele retoma a perspectiva do linguista e afirma que:

Eu chamo por seu nome uma pessoa presente aqui, na primeira fila ou na última: aparentemente, isso só concerne a ela. Eu só faço denominá-la. E a partir daí definiremos o nome próprio como alguma coisa que intervém na nominação de um objeto, em razão das virtudes próprias de sua sonoridade; fora desse efeito de denotação não há nenhuma espécie de alcance significativo. Assim é que nos ensina o senhor Gardiner (LACAN, 1964-65/2006, p. 85).

Para Gardiner, o nome próprio é definido a partir de sua sonoridade especial, tendo em si um conteúdo semântico vazio. Isto é, a partir dos fonemas diferenciais que compõem o nome, e não a partir do sentido. Contudo, Lacan ressalta algo de paradoxal nessa perspectiva. Não é plausível pensar que esses sons fonéticos sejam características exclusivas do nome próprio, uma vez que tais sonoridades diferenciais são, para a linguística, marcas elementares presentes em todas as palavras de uma língua. No interior do campo linguístico, o significante é definido de maneira geral como composto de fonemas distintos; por isso Lacan pensa que o acento dado à questão fonética não pode ser a característica definidora do nome próprio. A questão da ausência de sentido, defendida por Gardiner, também é, enfaticamente, rebatida por Lacan, já que o nome próprio, ainda que não tenha um significado único, traz consigo uma série de efeitos de significação, sendo capaz de acionar nos sujeitos, que com ele interagem, sentidos dos mais diversos, incluindo aspectos contextuais e normativos.

Dizer que um nome próprio, em suma, é sem significação, é alguma coisa de grosseiramente errada! Ao contrário, isso comporta consigo muito mais que significações, toda uma espécie de soma de advertências (LACAN, 1964-65/2006, p. 65).

Além dessa falta de especificidade da noção de nome próprio, em relação à composição fonética do significante, Lacan sublinha em Gardiner um ímpeto de respaldar a definição do nome próprio em uma referência psicológica subjetivista, uma vez que o nome se distinguiria por sons que demandam atenção à faculdade cognitiva do indivíduo. Isto põe a mostra o flerte de Gardiner com tendências mentalistas, que não interessam à concepção de sujeito de Lacan. Essa referência psicológica ao nome próprio não contempla a ideia lacaniana de um sujeito do inconsciente, estruturado por um significante. Trazer a subjetividade para o campo do discurso, em sua estrutura e posições, por meio da ideia de um sujeito que se desdobra a partir da relação que estabelece com um significante advindo de um campo Outro, que lhe é, inicialmente, externo, é abolir qualquer possibilidade de um psicologismo, cuja ênfase é dada às faculdades mentais internas. Trata-se de um sujeito estrutural, que põe em xeque a fronteira rígida entre externo e interno e não de um sujeito centrado em um âmbito psicológico privado. O inconsciente não é, portanto, um âmbito interno à mente individual, mas um efeito que ocorre no interior de um campo discursivo compartilhado.

Seguindo o sentido dos rastros deixados pelo debate, a hipótese de Lacan (1961-62/2003) sobre o que caracterizaria o nome próprio o coloca em vinculação à função da letra. A posição de Lacan defende que o nome próprio traz consigo algo da ordem da letra, definida como "essa essência do significante, por onde ele se distingue do signo" (p. 57). A letra revela o aparecimento de uma escrita, que se manifesta sob a forma de traços e que solicita uma leitura. A justificativa oferecida na tentativa de sustentar seu argumento surge a partir de uma conversa com James Février, autor da obra A história da escrita, de onde Lacan extrai a possibilidade de relacionar a constituição do sujeito ao nascimento da escrita:

Há no material pré-histórico uma infinidade de manifestações de traçados que não tem outro caráter senão serem significantes e nada mais. Fala-se de ideogramas, ou de ideografismo, o que quer dizer isso (LACAN, 1961-62/2003, p. 90)?

O ideograma é o exemplo privilegiado para ilustrar a existência de um paradoxo. Lacan quer mostrar como ele, ao mesmo tempo em que se assemelha a uma imagem, só se torna ideograma na medida em que perde sua característica imagética. Tal figura marca a presença de uma composição de traços formadores de uma escrita imagética - cuja função é representar um estado de coisas empíricas. Contudo, o interessante a se notar é que, sua especificidade está no fato de ele ser definido como ideograma apenas no momento em que se torna possível reconhecer um enfraquecimento de seu caráter imagético, o que ocorre com sua nomeação. Isto significa dizer que, no momento em que o ideograma ganha um nome, opera-se algo da ordem de uma perda, de um apagamento da função referencial a que ele, até então, se propunha enquanto representação imagética de coisas. Ao ter sua função figurativa apagada, o que resta no ideograma é algo da ordem da letra.

O que se apaga, portanto, é a relação referencial com o objeto que ele pretendia representar. A partir do momento em que uma escrita não estabelece uma relação direta com uma referência determinada no mundo, mas sim com o significante que a nomeia, há a manifestação de um elemento de indeterminação. Elemento que produz certo efeito de desconhecimento da exata significação originária daquele escrito e que impossibilita um dizer garantido sobre sua origem referencial concreta. Nesse sentido, perde-se a possibilidade de atribuir a esse escrito um significado inequívoco, preciso e absoluto.

Nesse sentido, o ideograma, tal como um significante, torna manifesto de maneira oportuna o que Lacan definiu como traço unário enquanto insígnia distintiva, "marca da diferença pura" (LACAN, 1961-62/2003, p. 64). O ideograma sugere, portanto, que o que se apresenta, tanto na origem da escrita quanto na constituição do sujeito, é a perda da relação direta e imediata que certa imagem estabelecia com as coisas, na medida em que estas são nomeadas. Não se pode mais dizer, com absoluta exatidão e certeza, a que realidade material o ideograma se refere. Há um esvaecimento desse elemento referencial. Lacan se propõe à tarefa de uma formulação teórica da dimensão da linguagem, que vá além da mediação insuficiente de um funcionamento designativo frente aos objetos, como se fossem coisas preenchidas por um significado autoevidente, coisas em direção às quais bastaria apontar de maneira linear para fazê-las se dizerem em totalidade, como queria Russell.

Após esse apagamento referencial, o que sobra para ser encontrado é "o rastro de algo que é significante" (LACAN, 1961-62/2003, p. 60). O significante vem à luz a partir do apagamento promovido pelo traço em relação à coisa. Ele emerge, portanto, como notificador da falta de um objeto ao qual referenciar a linguagem. O que o resgate do fenômeno da escrita parece indicar a Lacan é que seu funcionamento não é sígnico, ou seja, ela não coincide com um objeto mundano, mas põe em funcionamento a lógica do significante que resiste à significação.

O ideograma, ao passar por um procedimento de decifração parcial, uma vez que é nomeado, deixa de se relacionar com um referente e passa a servir como suporte de uma combinação de sons fonéticos, isto é, suporte de elementos significantes. A escrita começa a funcionar como escrita ao ser lida por meio de uma nomeação. Desse processo de discernimento dessa escrita indecifrável, ou seja, como produto dessa operação de leitura, extraem-se determinados sons de estrutura invariável (atrelado à letra). Tais sonoridades se conservam a despeito da multiplicidade das línguas e, por deterem o atributo de marca revelado pela função da letra, são entendidas por Lacan como o que fundamenta a definição de nome próprio.

Há traços significantes isolados que esperam por uma vocalização, esperam ser fonetizados. O nome próprio é caracterizado por sua relação com a escrita, na medida em que esta traz um duplo aspecto. Ela é, ao mesmo tempo, um conjunto de entalhes indecifráveis, mas que só são qualificados de escrita ao serem sonorizados. Isto é, esse conjunto de traços só se torna uma escrita ao serem lidos, ganhando uma dimensão fonética. Assim, o nome próprio se relaciona a uma escrita que é sonorizada, nomeada. Essa sonorização se diferencia do significante, na medida em que se relaciona com a letra, elemento que faz com que a estrutura sonora do nome próprio se conserve, a despeito das mudanças entre línguas, por isso ele é considerado intraduzível. Há uma estrutura sonorizada no nome próprio, que se mantém a despeito de toda diferença.

Há um aspecto que merece ser pontuado. Dizer que o nome próprio está relacionado a uma marca poderia gerar a impressão de que ele está relacionado com a designação direta entre significante e objeto. Porém, Lacan adverte que isso não significa compartilhar da posição designativa de Russell, como, aparentemente, poder-se-ia supor, pelo fato de que está contida na ideia de nomeação, e no significante que é inaugurado por ela, a função do sujeito:

O nome, como lhes mostrei, é uma marca já a berta à leitura - eis por que ela será lida da mesma forma em todas as línguas - impressa sobre alguma coisa que pode ser um sujeito que vai falar , mas que não falará de modo algum obrigatoriamente. Prova disso é que Bertrand Russell se enganou quanto a isso, afirmando que se poderia chamar de John um ponto geométrico no quadro. Conhecemos estranhas cabriolas de Bertrand Russell, não sem mérito por sinal, mas é bem certo que em nenhum momento ele interroga um ponto marcado com giz no quadro-negro na esperança de que o dito ponto lhe responda (LACAN, 1963/2005, p. 74).

 

4. Conclusão

Há, no nome próprio, algo que não está dado, que requer um trabalho de interpretação. Como sugere Lacan, ao nome se entrelaça um trabalho de leitura, que implica uma tomada de posição por parte do sujeito. No sentido corrente, o nome próprio é visto como o que de antemão asseguraria a singularidade do sujeito no mundo. O que a psicanálise lacaniana parece sugerir, como novidade, é que o nome próprio contém uma margem de indeterminação, que não dispensa o sujeito da obrigação de sobre ele produzir uma leitura singular. É nesse sentido que Lacan diz que a função do nome próprio, do ponto de vista do campo da experiência psicanalítica, cumpre a função de implicar o sujeito (LACAN, 1964-65/2006). O nome próprio sugere a ideia de um aparente recobrimento da falta. Ele seria, então, o responsável por dar um mínimo de ancoragem para seu ser fundamentalmente faltoso.

Aqui, parece ser imprescindível notar que a noção de nome próprio, em seu vínculo com a letra, promove modificações profundas na noção de significante lacaniano, tal como era entendido como representação da pura diferença em relação aos outros e a si mesmo. O estatuto de linguagem, que fundamenta a noção de nome próprio, não se reduz mais a mera representação (herança linguística), mas, através de seu vínculo com letra, abrange um ato de nomeação que implica o sujeito em seu desejo.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 06/12/2016
Aprovado para publicação em: 07/03/2017

Endereço para correspondência
Lívia Campos e Silva
E-mail: liviacslv@gmail.com
Isalena Santos Carvalho
E-mail: isalenasc@yahoo.com.br
Daniela Scheinkman Chatelard
E-mail: dchatelard@gmail.com

 

 

*Mestranda Psicologia Clínica e Cultura/Universidade de Brasília (UnB).
**Psicanalista, doutorado Psicologia Clínica e Cultura/Universidade de Brasília (UnB), profa. graduação e pós-graduação em Psicologia/Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
***Psicanalista, doutorado Filosofia Université Paris 8, profa. Programa Psicologia Clínica e Cultura/Instituto de Psicologia/Universidade de Brasília (IP/UnB).
1"Ouvimos que a identificação é a mais antiga e original forma de ligação afetiva; nas circunstâncias da formação de sintomas, ou seja, do recalque, e do predomínio dos mecanismos do inconsciente, sucede com frequência que a escolha de objeto se torne novamente identificação, ou seja, que o Eu adote características do objeto. É digno de nota que nessas identificações o Eu às vezes copie a pessoa não amada, outras vezes a amada. Também nos chama a atenção que nos dois casos a identificação seja parcial, altamente limitada, tomando apenas um traço da pessoa-objeto." (FREUD, 1921, p. 49).

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