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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.39 no.36 Rio de Jeneiro Jan./June 2017

 

ARTIGOS

 

A monogamia na obra de Freud

 

Monogamy in Freud's work

 

 

Patrícia Mafra de AmorimI*; Fábio Roberto Rodrigues BeloI**

IUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho parte da ausência do tema da monogamia como causa de investigações no campo da Psicanálise. Consideraremos a possibilidade de tal ausência constituir uma defesa contra a angústia gerada pelos estados primários de passividade, aos quais as relações amorosas nos remetem. Tomando por base os apontamentos laplancheanos acerca do inconsciente, questionamos como o tema da monogamia aparece em Freud. Pensamos na monogamia como uma via facilitada por sua relação com nossa cultura, atentando para o fato de que independente da forma de relacionamento escolhido, o conflito jamais cessará de existir devido à cisão constitutiva do sujeito.

Palavras-chave: Monogamia, Psicanálise, Identificação feminina primária, Conflito, Abordagem histórico-estrutural.


ABSTRACT

This study departs from the absence of monogamy as a research subject in the field of psychoanalysis. We consider the possibility of such absence a defense against the anxiety generated by the primary states of passivity, to which romantic relationships take us. Based on the laplanchean notes about the unconscious, we question how the theme of monogamy appears in Freud's work. We think monogamy as an easy path because of its relevance in our culture, appointing to the fact that, ultimately, regardless of the form of relationship chosen, the conflict will never cease to exist due to the constitutive split of the subject.

Keywords: Monogamy, Psychoanalysis, Primary Feminine Identification, Conflict, Historical-structural approach.


 

 

Introdução

A monogamia, suas possíveis origens e implicações, foi e é discutida por diversas áreas do conhecimento como a sociologia, a antropologia, a literatura e o direito. No entanto, apesar do tema ter relevância em termos culturais e clínicos, na medida em que é um arranjo, praticamente hegemônico, no qual os sujeitos envolvidos podem tanto desenvolver suas capacidades criativas, quanto tomá-lo como uma fuga da incompletude, nota-se que há poucas referências explícitas no campo da psicanálise sobre o assunto, onde ela tem aparecido mais, enquanto um pressuposto estrutural, a partir do complexo edípico, do que como causa de investigações. Apesar das contribuições de psicanalistas como Jessica Benjamin (1988), Nancy Chorodow (1989) e Juliet Mitchell (2006/1967) terem sido importantes para repensar os papéis ocupados por homens e mulheres, a questão da monogamia parece não ter sido discutida no contexto histórico epistemológico da psicanálise1. Pensando psicanaliticamente, não podemos supor que essa ausência do tema como causa, seja mera coincidência.

Apesar de considerar-se que a monogamia, enquanto instituição não é, nem poderia ser, assimilada de maneira homogênea em todas as épocas por todos os sujeitos que nela se inserem, iremos privilegiar a análise do formato prescrito de sua constituição, ou seja, aquele em que vigoram a fidelidade e a exclusividade, em relação ao parceiro ou parceira amorosa e, de maneira geral, fortemente ligada à instituição do casamento. Tendo isso em conta, podemos dizer que a monogamia apresenta relação direta com dois afetos, discutidos de forma mais abrangente por Freud, quais sejam o amor e o ciúme, na medida em que se constitui como um arranjo afetivo, cuja principal característica é a exclusividade. Não podemos deixar de observar que tais afetos se encontram presentes em nossas primeiras relações objetais e, portanto, constituem base importante da formação de nossas personalidades e da orientação de nossos desejos. No que tange o amor, Belo e Marzagão (2011/2006) consideram que é preciso lançar mão de um paradoxo para compreender as origens desse afeto, uma vez que "não há eu para sentir o amor que se dá e o que se recebe e, no entanto, isso acontece" (BELO;

MARZAGÃO, 2011/2006, p. 22). Os autores sugerem que, na medida em que o eu surge - a partir do recalcamento originário - perde-se o contato direto entre a pulsão e o objeto, inaugurando-se assim, um outro tipo de relação com o objeto, barrada pelo eu. Dessa forma, "o encontro do objeto é, na verdade, um reencontro" (FREUD, 2006/1905, p. 210) na medida em que reativa as excitações originárias, seja de forma demoníaca, como no ciúme, seja gerando estados positivos, como no enriquecimento narcísico.

Analisaremos como ambos os afetos se apresentam na obra de Freud, por entendermos que, por pertencer ao campo das discursividades, a psicanálise avança através do retorno à obra inaugural (KUPERMANN, 2009), o que não significa que ela seja um tipo de conhecimento estático e estável, mas que o próprio retorno pode levar a modificações na teoria, deslocando seu foco e propondo novas organizações e interpretações, nos limites da obra e seu contexto.

Assim sendo, verificaremos quais são as relações estabelecidas entre o amor, o ciúme e a monogamia, para o Freud. Partindo, para tanto, do que Laplanche (1992), em suas Problemáticas IV: o inconsciente e o id, chamou de "ortodoxia freudiana" (p. 37), ou seja, pontos dos quais não se pode abrir mão se quisermos manter nossas investigações e elaborações no campo da psicanálise. O primeiro desses pontos e talvez o mais importante, seria a noção de conflito. O conflito, de acordo com a psicanálise, é constitutivo do sujeito em diversas perspectivas, como entre as instâncias psíquicas, entre o desejo e a defesa ou mesmo entre pulsões (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001). A suposição de que, no inconsciente, os contraditórios coexistem, demonstra-se nos conflitos manifestos (entre sentimentos opostos, por exemplo) e nos conflitos latentes, como na formação de sintomas.

Percebe-se, claramente, a tentativa de Laplanche (1992) de evidenciar o caráter individual do inconsciente. Posicionando-se não apenas teórica, mas também politicamente, o autor recusa suposições de elementos transindividuais e reduções linguísticas do inconsciente. Não havendo, no inconsciente, um código, não há nada que comunique o que há são representações-coisa ou representações-palavra "sem respeito pela estrutura linguageira" (p. 95). Dessa forma, o mérito do método freudiano seria, justamente, o de fazer o inconsciente

"falar", nem que por apenas um instante, antes de se fechar novamente à comunicação. Esse movimento de fechamento, inerente à própria constituição do inconsciente, impede-nos de capturá-lo e torna o trabalho analítico uma reserva antitotalitária, devido ao reconhecimento desta inapreensibilidade. Em outras palavras, se mantivermos o posicionamento freudiano de que o inconsciente é, por definição, impossível de ser conhecido, o que implica que, mesmo que tenhamos acesso às suas manifestações, jamais seremos capazes de

chegar ao próprio inconsciente, torna-se evidente que o campo interpretativo mantém-se aberto indefinidamente, sempre podendo ser reformulado. Portanto, tomaremos por base os apontamentos laplancheanos acerca do inconsciente, principalmente no que diz respeito ao seu caráter singular, individual e conflitivo, na tentativa de apresentar como o tema da monogamia aparece na obra de Freud, buscando, como Laplanche (1995),

sempre olhar ao menos duas vezes, a fim de discernir, mesmo nos textos mais conhecidos, o detalhe, a contradição negligenciada, ou as reconsiderações de Freud à medida que surgem entre poucas linhas, parágrafos ou anos, e de considerar tais 'acidentes' como os equivalentes textuais de lapsos de língua e atos falhos no decurso de uma sessão analítica (SCARFONE, 2013, p. 547, tradução nossa).2

Partimos, portanto, da concepção de que o texto tem um conteúdo manifesto e um conteúdo latente e buscaremos explicitar estes conteúdos na obra de Freud. Apesar de, como foi dito anteriormente, Freud não ter dedicado nenhum ensaio exclusivo ao tema da monogamia, podemos supor que o tema possuía, e ainda possui, relevância teórica e clínica na psicanálise, não apenas pela frequência com que aparece nos textos freudianos, mas também pelo lugar que ocupa na economia psíquica. Importante salientar que em Freud, dado seu contexto, final do século XIX e início do XX, monogamia e casamento se encontram fortemente atrelados.

Para nossa análise, tomaremos alguns textos do autor, nos quais o tema da monogamia é abordado, seja enquanto elemento explícito ou implícito, colocando no mesmo plano o insignificante e o que é constantemente repetido (LAPLANCHE, 1978/1968), para que fiquem claras a quais funções ou desejos inconscientes, as elaborações acerca da instituição monogâmica serviram na obra do pai da psicanálise. Sendo assim, propomos colocar o arranjo monogâmico como objeto central de análise, tirando-o do lugar naturalizado em que é posto, inclusive pela própria psicanálise e investigando sob quais nuances ele aparece em meio às teorizações psicanalíticas. Obviamente, este artigo não encerrará ou abordará de forma completa todo o tema na obra de Freud, não apenas pela extensão do objeto em questão, mas também por considerarmos a impossibilidade da apreensão total do mesmo.

Para que consigamos apresentar ao menos uma amostra representativa, algumas obras significativas de Freud foram escolhidas, partindo, a princípio, de uma "abordagem histórico-estrutural" (Laplanche, 1985, p. 9), no sentido laplancheano:

A história ou o 'histórico' do pensamento psicanalítico tal como nós a entendemos, só pode ter como ponto de referência coordenadas que pertençam à própria psicanálise. Isso significa que, além de uma história manifesta ou oficial (a que o próprio Freud quer às vezes escrever), a psicanálise contém uma história latente, em parte inconsciente, subentendida por temas repetitivos (LAPLANCHE, 1985, p. 9).

Propõe-se, portanto, uma interpretação dialética das contradições do pensamento acerca do objeto, no caso, a monogamia, que se coloca na obra de Freud ao mesmo tempo enquanto pressuposto universal, quase natural, das relações amorosas, assim como arranjo particular de sujeitos. Partindo da metodologia analítica, que tem como regras a livre associação, não cronológica e a atenção livremente flutuante, procuramos fazer uma leitura analítica dos textos freudianos, buscando as linhas de força inconsciente presentes no mesmo (LAPLANCHE, 1985), a fim de avançar a teorização sobre este tema, no nível da exigência. Entendemos o nível de exigência por um guia de interpretação de uma obra que considera, ao mesmo tempo, seus aspectos formais, como conteúdo e contexto, mas que não deixa de levar em conta o ponto de desvelamento, ou seja, o desejo inconsciente do autor que se faz transmitir pelas linhas de seu texto (LAPLANCHE, 1992).

Foram, portanto, selecionados textos clínicos, teóricos e sociológicos a fim de explicitar que este tema se repete em inúmeros momentos na obra de Freud, principalmente, enquanto pressuposto. A monogamia, em alguns momentos, é colocada como uma escolha natural, como veremos na análise do texto "Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo" (FREUD, 2006/1922), evidenciando um desvio naturalista, ao supor o ciúme como defesa automática, presente em absolutamente todos os sujeitos, como é colocado: "Se alguém parece não possuí-lo [o ciúme], justifica-se a inferência de que ele experimentou severa repressão e, consequentemente, desempenha um papel ainda maior em sua vida mental inconsciente" (p. 237).

Veremos, por outro lado, como Freud, em diferentes momentos, principalmente em seus textos sociológicos, aponta para a monogamia como construção histórica e política, que serve aos mecanismos do recalcamento. Em Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor, Freud (2006/1912) ainda adota uma postura que estaria, de acordo com Laplanche (1992), mais próxima ao nível da exigência, quando coloca, por exemplo, a respeito dos arranjos amorosos, que a psicanálise não está isenta de tendenciosidades, mas que visa "derramar alguma luz" (p. 192) sobre os acontecimentos psíquicos, podendo suas descobertas ser utilizadas na construção de novos modos de relacionamento. Da mesma forma, o presente trabalho não se pretende asséptico, mas buscaremos explicitar qual é o estatuto da monogamia na obra de Freud, dando destaque à dimensão hierárquica, que a instituição monogâmica apresenta, dado que, aparentemente, constitui-se, em grande medida, como dispositivo de defesa da masculinidade em relação à passividade.

 

O ciúme e a monogamia

Apesar de haver, na obra freudiana, inúmeras referências à monogamia, explícitas e implícitas, é notável que a mesma não tenha sido objeto de investigações mais profundas, sendo, muitas vezes, tomada como arranjo mais desejável, mais natural de escolha amorosa. Nesta seção, tentaremos apontar como alguns conceitos e desvios operaram para mantê-la como pressuposto. Sendo assim, impõe-se a análise de alguns textos clássicos sobre o ciúme, tendo em conta a prescrição fundamental da monogamia que seria a exclusividade, a fim de que se explicitem esses desvios.

No artigo Sobre o mecanismo da paranoia, Freud (2006/1911) ressalta o componente homossexual ao qual esta última está atrelada, assim como seu caráter projetivo. A fim de explicitar as origens deste desejo homossexual, Freud remete ao caminho que a pulsão faz do autoerotismo à escolha objetal, que passa, invariavelmente, pelo narcisismo, ou seja, escolha de si próprio, do próprio ego, como objeto de amor. Sendo assim, Freud deriva da proposição "Eu o amo" três saídas diferentes para o recalcamento do desejo homossexual. A primeira delas se daria enquanto um delírio de perseguição: "Eu não o amo - eu o odeio, porque ele me persegue". A segunda seria pela via da erotomania: "Eu não o amo - eu a amo, porque ela me ama." Enquanto que a terceira derivação, que mais nos interessaria, seria pela via do ciúme: "Eu não o amo - ela o ama". Percebe-se, neste caso, que a escolha narcísica e a projeção inibem o caráter alteritário do ciúme.

Ribeiro (2012), neste sentido, aponta para a insuficiência teórica do conceito de projeção, na explicação dos fenômenos do ciúme e da paranoia. O autor aponta para o desvio de Freud, ao deixar de lado o caráter identificatório, presente no ciúme. De acordo com ele, "separar identificação de investimento libidinal atende à necessidade de proteger a suposta masculinidade primária do menino contra a possibilidade de uma feminilidade primária, resultante da identificação também primária com a mãe." (RIBEIRO, 2012, p. 448). Percebe-se, portanto, que há uma supressão da identificação feminina primária, que seria resultado dos primeiros cuidados do bebê pela mãe.

Em Alguns mecanismos neuróticos no ciúme, na paranoia e no homossexualismo, Freud (2006/1922) parece, novamente, negar o aspecto identificatório do ciúme, descrevendo-o em três níveis, ou graus, que podem ser descritos como ciúme competitivo ou normal, ciúme projetado e ciúme delirante. Neste artigo, Freud descreve que o ciúme, neste primeiro grau é, assim como o luto, um estado emocional normal, originado a partir do Édipo e das relações entre irmãos. O segundo nível de ciúme, o projetado, derivaria dos próprios impulsos do sujeito, seja ele homem ou mulher, à infidelidade, sendo a projeção desses impulsos uma defesa egoica. Já o ciúme delirante seria o resquício de tendências homossexuais que, seguindo seu curso, tomam a forma de uma paranoia clássica, como já foi colocado anteriormente: "Eu não o amo - ela o ama".

Percebe-se, durante as três seções deste artigo, que o ciúme é mais do que uma via facilitada para Freud, derivado das primeiras relações objetais monogâmicas com a mãe, sem que, no entanto, reconheça-se o caráter identificatório desses investimentos:

De fato, a naturalidade com que Freud estabelece que a mãe é o primeiro objeto de investimento libidinal por parte do menino traz todas as evidências de sua crença na força que a determinação biológica exerceria nessa escolha. Embora não tenhamos a intenção de retomar aqui todas as críticas à atribuição de uma força semelhante ao instinto, capaz de assegurar o desejo sexual do menino pela mãe, nem tampouco pretendemos retomar as objeções à atribuição de um valor narcísico inato ao órgão masculino, é imprescindível apontar para a relação desse viés teórico com uma concepção da identificação na qual o investimento libidinal do objeto é nitidamente separado dos processos identificatórios (RIBEIRO, 2012, p. 448).

Ribeiro (2005, 2012) traz significativas contribuições acerca desta indissociação entre investimento objetal e identificação, a qual faz cair por terra a ideia freudiana de uma masculinidade inata nos meninos e de uma maior complexidade em termos de formações identitárias nas meninas3. Esta concepção, acerca das origens das identificações, leva-nos a repensar o lugar do ciúme nas relações amorosas, assim como na obra de Freud. Parece-nos que, em ambos os textos, a naturalidade e universalidade associada ao ciúme se constituem enquanto um desvio que tem inúmeras implicações. Para nosso tema, cabe apontar o estreitamento das possibilidades de relacionamentos futuros dos sujeitos. Uma vez que supor uma natureza implica em traçar um destino, a psicanálise correria o risco de servir a uma normatização das relações, nas quais os papéis encontram-se já definidos desde o nascimento dos sujeitos.

Ora, se o tempo da psicanálise é o passado, ou seja, se aceitamos o fato de que as relações que estabelecemos, assim como nossos comportamentos em geral, são moldados pelas nossas primeiras experiências, poderíamos pensar que, já que, inicial e naturalmente como indica a suposição freudiana acerca da escolha de objeto amoroso, o bebê humano desenvolve uma relação que poderíamos considerar monogâmica com a mãe, com todas as exigências de monopólio e segurança que lhe são típicas, o caminho normal para os relacionamentos amorosos futuros seria o da monogamia. Percebemos, então, que, nesta tentativa, de defesa de uma masculinidade primária do menino o conflito é retirado, poderíamos dizer negado, nessa primeira relação. Em outras palavras, é como se fosse possível a escolha da mãe como objeto de desejo, sem que o menino se identifique com ela. Consequentemente, estabelece-se apenas um caminho para o desenvolvimento normal da sexualidade dos homens neste campo, o que não poderia ser mais avesso à ideia de singularidade proposta pela psicanálise.

Por outro lado, no texto de 1912, "Sobre a tendência universal à depreciação na esfera do amor", Freud retoma sua teoria da sedução, evidenciando o caráter alteritário da constituição psíquica e da origem da sexualidade, ao colocar que:

A afeição demonstrada pelos pais da criança e pelos que dela cuidam, que raramente [nós diríamos, junto a Laplanche, que nunca] deixa de delatar sua natureza erótica ('a criança é um brinquedo erótico'), concorre, em grande parte para erigir as contribuições feitas pelo erotismo às catexias de seus instintos do ego e para incrementá-la numa medida em que se compele a desempenhar um papel em seu desenvolvimento ulterior, principalmente quando algumas outras circunstâncias emprestam seu suporte (FREUD, 1912, p. 186-187).

Neste texto, Freud desenvolve sua hipótese referente à escolha dos sujeitos por objetos sexuais depreciados, na tentativa de conseguirem completa satisfação sexual. O autor pontua que tal satisfação é inatingível, devido às exigências de nossa cultura. Sendo, portanto, o objeto original da pulsão proibido, surge uma série de objetos, infindável, de acordo com Freud (1912, p. 194), para representá-lo, mas que também não proporcionam a satisfação completa.

O pregnante afeto pela mãe tornaria os homens monogâmicos do ponto de vista inconsciente e reiterados poligâmicos insatisfeitos da perspectiva consciente. Belo e Marzagão (2011) lançam mão da seguinte metáfora freudiana para explicitar esta proximidade entre amor e destino: "Impõe-se aqui uma comparação com a formação do crânio do recém-nascido; depois de um parto prolongado o crânio da criança deve apresentar a forma do canal estreito da pelve materna" (BELO; MARZAGÃO, 2011, p. 14-15,). Tal metáfora, apesar do mérito de demonstrar a influência da alteridade na constituição do psiquismo, pode também sugerir um estreitamento das possibilidades tradutivas do sujeito a essas marcas incutidas na primeira infância, como se apenas uma forma de resposta fosse possível diante de determinadas experiências pulsionais. Lembremos, no entanto, que Freud explicita, ainda, neste artigo de 1912, a característica perversa e polimorfa da pulsão, que, necessariamente, não pode ser satisfeita para que a civilização seja mantida. Parece-nos que Freud, ao considerar que a afeição dos pais, que por si só já é comprometida pelo inconsciente, tem papel fundamental no desenvolvimento do sujeito, bem como que também há outros fatores ambientais ou circunstâncias como colocou, que interferem nas escolhas futuras do mesmo, indica-nos que o comportamento humano não obedece a uma lógica causal, que pode ser decomposta até sua origem, mas sim, a uma outra lógica, a do processo primário. Assim sendo, podemos perguntar em que medida aquela monogamia edípica inconsciente já não seria algum tipo de tradução organizadora desses aspectos mais disruptivos do sexual infantil.

Percebe-se, durante todo o texto, uma atenção de Freud às intervenções radicais da alteridade no surgimento e desenvolvimento do sujeito, algo que não parece muito presente nos outros dois artigos citados nesta seção. É interessante perceber como o pensamento de Freud parece estranho a si mesmo, talvez contraditório, ao analisarmos estes três textos, de 1911, 1912 e 1922. Isto nos mostra que não poderíamos pensar em uma evolução cronológica do pensamento.

 

Reflexões sociológicas: sobre o amor e a monogamia

Para demonstrarmos esses contínuos desnivelamentos acerca da monogamia, na teorização freudiana, trataremos, nesta seção, dos apontamentos do autor a respeito das motivações psíquicas que nos levam, de alguma forma, a optar por este tipo de arranjo amoroso. Nota-se, que, em seus textos de caráter sociológico, Freud, apesar de algumas oscilações, parece estar mais atento à dimensão sociohistórica da monogamia. Como exemplo disso, veremos a análise apresentada em seu texto O tabu da virgindade (2006/1917).

O autor inicia o artigo com a observação do fato de que o alto valor atribuído à virgindade da mulher pelo pretendente, valor presente ainda em alguns grupos na atualidade, seria a "continuação lógica do direito à posse exclusiva da mulher, que constitui a essência da monogamia, a extensão desse monopólio para incluir o passado" (p. 201). Em seguida, Freud lança mão de um conceito de Krafft-Ebing, o de sujeição sexual, para justificar o que ele descreve como algo mais embasado do que um mero "preconceito" (p. 201) sobre a vida erótica das mulheres, que seria o grau de dependência feminino, bem como o desejo de vingança, supostamente desenvolvido em relação àquele que efetivar seu "defloramento" (p. 202). De acordo com Freud, essa dependência seria consequência da alta resistência sexual, presente devido à cultura, que é vencida com esse ato, o que justificaria a maior presença dessa sujeição em mulheres do que em homens. Outro aspecto interessante relativo ao primeiro relacionamento que Freud aponta é o fato de que, muitas vezes, o primeiro casamento carrega o peso deste desejo de vingança em relação à perda da virgindade, ocasionando conflitos conjugais e a inviabilidade da satisfação sexual no casamento, o que pode não acontecer num segundo casamento, desde que o conflito arcaico tenha sido esgotado na primeira relação. É interessante apontar que Freud, junto com Krafft-Ebing, parece concordar com a importância dessa sujeição, em certa medida, para a continuidade dos relacionamentos monogâmicos, que, de outra forma, seriam destituídos por outros impulsos dos seres humanos, como o desejo de vingança ou a tendência polígama. Parece-nos claro, neste ponto, que Freud reconhece, na monogamia, um mecanismo que visa recalcar desejos inconscientes do sujeito, de outra forma, não seriam necessárias as regulações legais às quais ela está submetida (FREUD, 1913).

Consideramos importante notar, no entanto, que esta exigência de fidelidade se manifeste de forma muito mais acentuada para as mulheres em comparação aos homens, como é revelado na afirmação de Freud, que aponta para a "posse exclusiva da mulher", noção muito presente em seu tempo, mas que, talvez em formas mais sutis, vigora até hoje. Estudos sociológicos nos ajudam a entender tal desproporcionalidade sem que apelemos para explicações de cunho naturalista. Engels (1997/1884) aborda o tema do surgimento da família, localizando-o, historicamente, no mesmo momento do nascimento da noção de propriedade privada, sendo a monogamia fundamental para o exercício dos direitos de herança e hereditariedade. O autor ressalta que a família monogâmica foi a primeira forma que esta instituição assumiu, que se baseava em condições econômicas e não naturais.

A infidelidade foi, dessa forma, autorizada apenas aos homens, já que a paternidade dos filhos de um casamento deveria ser, acertadamente, do marido. Barbosa (2015) ressalta, ainda de acordo com Engels, que em sua origem, a palavra "família", dos romanos, designava o conjunto de escravos pertencentes a um homem, sendo, posteriormente, estendido a todo o grupo subordinado ao patriarca, ou seja, sua mulher, filhos e escravos e sobre quem tinha poder de vida e de morte. A monogamia das mulheres constituiu-se, portanto, a primeira opressão de classes, a opressão do sexo feminino pelo masculino.

Em termos de psiquismo, Freud (2006/1905), em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, aponta que a criança aprende a amar a partir da sua relação de lactente com a mãe, ou ama. Será esta relação que deixará, para sempre, suas marcas no psiquismo da criança e por essas marcas, as futuras relações amorosas irão se pautar. De acordo com Belo e Marzagão (2011/2006), na "psicologia do amor" freudiana, amor e destino encontram-se intimamente ligados, já que a passividade originária do bebê implica que o cuidado a ele oferecido implantará as "regras" que as relações futuras seguirão. Poderíamos pensar que talvez a monogamia seja uma das traduções deste tipo de regra inoculada no bebê, nos primeiros meses de vida.

Em relação a estes destinos moldados durante a infância, Freud, em O tabu da virgindade, também coloca que "O marido é quase sempre, por assim dizer, apenas um substituto, nunca o homem certo; é outro homem - nos casos típicos, o pai - que primeiro tem direito ao amor da mulher, o marido quando muito ocupa o segundo lugar" (FREUD, 2006/1917 p. 210). Parece-nos, neste trecho, que Freud não reconhece a escolha homossexual feita, originariamente, pelas meninas, ao tomarem a mãe como primeiro objeto de investimento, bem como de identificação, como acontece também com os meninos, pressupondo um amor heterossexual originário, como exposto na seção anterior. Percebe-se que, no mesmo texto, Freud desvela o caráter regulador, sociohistórico da monogamia, mas também a coloca, inclusive no seu formato heterossexual, no lugar de saída ideal para relacionamentos.

Este texto pode ser facilmente lido com outro trabalho de cunho sociológico de Freud de 1908, A moral sexual civilizada e doença nervosa moderna, em que fica explícita a condição de duplicidade, e permitindo-nos dizer, hipocrisia, presente no que ele chamou de "moral dupla" (p. 169) da sociedade moderna que impõe diferentes normas para homens e para mulheres. No texto de 1908, Freud deixa clara a força de recalcamento que a cultura, principalmente, através da instituição da monogamia, exerce sobre os sujeitos, levando-os aos mais graves padecimentos. Neste texto, especificamente, o autor trata da "doença nervosa" e de sua íntima relação com a supressão das pulsões sexuais, sem deixar de apontar, no entanto, para a imprescindibilidade desta supressão para a constituição da sociedade. Há ainda outros textos em que o autor sinaliza o casamento infeliz como um substituto do sintoma, como em O problema econômico do masoquismo (2006/1924):

Todo esforço terapêutico pode desvanecer-se se o indivíduo se envolve na desgraça de um casamento infeliz, perde todo o seu dinheiro ou desenvolve uma doença orgânica perigosa. Em tais casos, uma forma de sofrimento foi substituída por outra e vemos que tudo quanto importava era a possibilidade de manter um determinado grau de sofrimento (p. 183-184).

Freud ainda coloca que é, justamente, devido ao caráter constantemente mutável e flexível da pulsão que se torna possível a substituição de objetos geradores de satisfação de forma a possibilitar o indivíduo a atingir uma sexualidade "saudável" e útil para a sociedade. Desta forma, percebemos como o texto de 1908 parece atentar para a natureza polimorfa da pulsão sexual, a qual não poderia ser restrita apenas à tradução da escolha monogâmica, heterossexual, como forma privilegiada de relacionamento.

No entanto, Freud parece não se atentar para o fato de que sua própria teorização a respeito da origem do complexo de Édipo, por exemplo, contribui para o apagamento desta dimensão polimorfa da pulsão. Em Totem e tabu, ao descrever a origem da civilização e do Édipo, a partir da horda primeva, o subsequente parricídio e a tomada do poder pelos filhos insurrectos, após um breve período de matriarcado, Freud (2006/1913) atribui às mulheres o lugar de representantes da satisfação total, da mesma forma que os primitivos. Ao não explicitar a culpabilização das mulheres neste contexto primordial, Freud parece fazer uma dobra na teoria, legitimando a repressão das mesmas, devido ao caráter ameaçador que a situação, originária de dependência materna, apresenta para o sujeito, posicionamento que, apesar de considerado em seu contexto histórico, parece contradizer muitas das elaborações do autor, que já foram apresentadas. Ribeiro (1985) ainda demonstra o caráter de recalque presente no mito das origens freudiano, em relação a este estado primário de dependência, ao atribuir-se ao homem e não à mulher, o papel principal na procriação da espécie. Ele acrescenta que:

O significado da repressão da mulher encontra-se, segundo Freud, no fato desta simbolizar o princípio de prazer, a gratificação plena de todas as necessidades e portanto uma ameaça à sobrevivência não só do indivíduo como também da coletividade, pois, somente sob o domínio do princípio da realidade (Ego), cuja observação era imposta pelo pai primevo, a horda poderia sobreviver. Este certamente não é todo o significado da repressão imposta à mulher no decorrer da formação de nossa cultura [...] Se realmente no início da história da civilização, a fertilidade feminina maravilhava e causava a inveja dos homens, se esta mesma fertilidade se aproximava em importância ao papel dos modernos meios de produção, é pertinente supor que a importância do controle deste poder feminino também se aproximasse do significado que tem hoje o controle dos meios de produção e da força de trabalho, não apenas pela sua importância subsistencial, mas também por representar a realização heroica da qual tanto carecem os homens (p. 122).

Poderíamos, deste modo, discordar da colocação de Engels de que a monogamia foi a primeira opressão de classes, tendo em vista que, aparentemente, mesmo antes de seu surgimento, as mulheres já eram, de algum modo, reprimidas pelos homens. A monogamia tem sido, apesar disso, um dos mecanismos que contribui para a manutenção desta repressão, assim como percebemos que, também a psicanálise, em conceitos-chave, como o Édipo, tomado não como um roteiro, mas sim como uma realidade inevitável e natural, operou e opera para a legitimação dessas repressões.

Na próxima seção, trataremos de algumas das consequências da inquestionabilidade deste mecanismo, na clínica psicanalítica.

 

A monogamia na clínica

Buscaremos expor, nesta seção, os desdobramentos, em alguns casos clínicos de Freud, de suas concepções acerca da monogamia que, apesar de todos os movimentos copernicanos e anti-essencialistas de suas elaborações, parece não ter sido capaz, nos casos descritos, de desvencilhar-se das concepções rígidas, quanto ao papel e desejo das mulheres vigentes em seu tempo. Um exemplo de como os campos de sua interpretação foram, muitas vezes, reduzidos por forças inconscientes de recalcamento, no sentido da "tradução" e não da "destradução", é o erro que Freud comete, durante a análise de Dora (2006/1905). Este deslize, clássico na história da psicanálise, por exemplo, refere-se à tentativa de Freud, em moldar Dora de acordo com o que nela esperava encontrar, ao achar que ela deveria apaixonar-se por um homem, assim como sentir ciúme das relações que este homem estabelecia com outras mulheres, como sua esposa e a governanta, quando o que se passava, em realidade, seria uma atração de Dora pela Sra. K. É conhecido o fato de que este estreitamento da interpretação de Freud contribuiu para a transferência negativa de Dora, que a levou, posteriormente, a abandonar o tratamento. A resistência de Freud, em perceber o desejo homossexual presente em Dora é, talvez, a mesma resistência encontrada no texto de 1911, Sobre o mecanismo da paranoia, em relação à identificação feminina do homem ciumento.

Na Conferência XVII, Freud (2006/1917) afirma que os sintomas, assim como os atos falhos e os sonhos, têm um sentido e busca, através de dois exemplos clínicos de casos de neuroses obsessivas, demonstrar sua hipótese. O primeiro caso relatado é de uma jovem senhora, com cerca de trinta anos que possuía algumas manifestações obsessivas graves. Freud começa o relato dizendo que, talvez, a pudesse ter ajudado "se uma eventualidade desfavorável não tivesse transformado em nada o meu trabalho - posso ser capaz de contar-lhes mais a respeito disso, futuramente" (p. 269). No entanto, não menciona que eventualidade foi essa que jogou por terra seu trabalho.

O ato analisado nesta conferência4 se constituía do seguinte ritual: a paciente corria de seu quarto até outro quarto contíguo, se posicionava diante de uma mesa de determinada maneira e chamava a empregada, dando-lhe qualquer tarefa sem importância ou mesmo a dispensando sem maiores explicações. Freud relata que, após ter invalidado uma de suas dúvidas importantes - também sem mencionar qual - a paciente tem um insight que revela o sentido do ato. Na noite de núpcias, seu marido, muitos anos mais velho que ela, ficou impotente. Durante a noite, ele correu até o quarto dela, para uma nova tentativa, mas não obteve êxito e, envergonhado, na manhã seguinte, derramou uma garrafa de tinta vermelha no lençol para que não fosse julgado pela empregada.

A interpretação de Freud é a de que a moça, identificada com seu marido, procura corrigir o malfeito do mesmo, ao forçar a empregada a ver a mancha de tinta na toalha da mesa. De acordo com o autor:

Servia ao propósito de fazer seu marido superar a desventura passada. Tudo quanto eu poderia lhes dizer a respeito dessa mulher ajusta-se ao fato. Ou, mais corretamente falando, tudo o mais que sabemos a respeito do caso abre o caminho, mediante esta interpretação ininteligível. A mulher estivera separada de seu marido, durante anos, e estava debatendo-se com a intenção de obter divórcio legal. Contudo, não havia como livrar-se dele; ela era forçada a permanecer fiel a ele; retirou-se do mundo para não ser tentada; em sua imaginação desculpava-o e engrandecia as qualidades dele. Na verdade, o mais profundo segredo de sua doença consistia em que, através desta doença, protegia seu marido de comentários maldosos, justificava-se por estar separada dele e possibilitava-lhe levar uma vida separada cômoda (p. 270-271).

Freud, em Atos obsessivos e práticas religiosas (2006/1907), menciona ainda outros três atos da mesma paciente, que se referem ao seu relacionamento conjugal. O primeiro deles era o fato desta senhora deixar intacta a melhor porção de tudo o que comia, que é interpretado a partir do dia de sua origem, quando ela recusou ter relações sexuais com seu marido, que, de acordo com Freud, seria renunciar ao melhor. O segundo ato se refere à paciente só se sentar em uma cadeira da qual era difícil levantar-se, a qual simbolizava seu marido e explicava-se pela frase: "É difícil nos separarmos de alguma coisa (um marido, uma cadeira) a que já nos fixamos" (p. 112). Quanto ao terceiro ato, o de anotar o número de todas as décadas de papel-moeda, se referia a um encontro com um senhor que, de forma galanteadora, disse que não se separaria de uma nota que ela havia lhe dado. Nos encontros posteriores com esse senhor, ela tencionou pedir-lhe para mostrar a nota, mas conteve-se, já que não poderia, de fato, saber se era a mesma nota que ela havia lhe dado. Freud neste mesmo artigo ainda coloca

Podemos dizer que aquele que sofre de compulsões e proibições comporta-se como se estivesse dominado por um sentimento de culpa, do qual, entretanto, nada sabe, de modo que podemos denominá-lo de sentimento de culpa inconsciente, apesar da aparente contradição dos termos (p. 113).

Tal "sentimento de culpa inconsciente" seria o responsável pela necessidade de punição que os neuróticos, frequentemente, sentem e, ainda de acordo com Freud, teria na escolha infeliz de parceiros ou parceiras, uma das formas por excelência de se fazer operar:

Pode-se observar, aliás, que o casamento infeliz e a doença física são as duas coisas que com mais frequência tomam o lugar de uma neurose. Satisfazem particularmente o sentimento de culpa (necessidade de punição), que faz com que muitos pacientes se apeguem tão rapidamente às suas neuroses. Por uma escolha imprudente no casamento, castigam-se a si próprios; consideram uma longa doença orgânica como uma punição do destino e, consequentemente, muitas vezes deixam de manter as suas neuroses (FREUD, 1919[1918], p. 177).

Nota-se, portanto, que o autor estava bastante atento à importância do casamento na economia psíquica; no entanto, suas interpretações do caso exposto, aparentemente, são feitas baseadas em conteúdos mais pré-conscientes do que naqueles verdadeiramente inconscientes, sexuais, disruptivos.

Pensamos que o caso descrito parece revelar a capacidade da monogamia em recalcar aspectos importantes do sexual. Pode-se considerar que a escolha da paciente por um homem mais velho talvez já estivesse comprometida com o desejo de que esse homem falhasse sexualmente. Por quê? Talvez porque o que ela visava preservar fosse algo da sexualidade infantil: sua virgindade, sua pureza, algo do corpo não penetrável, não penetrado. No entanto, há algo de conflitivo demonstrado pelo sintoma obsessivo. Mostrar a mancha de sangue é um modo de identificar-se com o marido, de salvá-lo, como diz Freud, mas também de apresentar-se para a sociedade (a empregada) como uma mulher devidamente introduzida no campo da sexualidade adulta, salvando-se também. Os sintomas da cadeira e da nota apontam para algo ainda mais potente da sexualidade infantil: a sensação de que não podemos nos separar de alguém.

Para além da moral burguesa da época, que tornava a separação um ato social quase impossível, pensamos em outra hipótese. Talvez o casamento com o homem mais velho e impotente legitime ainda mais esse desejo: deixar alguém impotente provoca culpa semelhante àquela sentida por algumas crianças, diante de suas mães deprimidas. Abandonar a mãe, nesse contexto, significa também admitir-se impotente para ajudá-la e, nesse sentido, também culpada por não conseguir ajudar e, inconscientemente, por ter produzido algo da depressão materna. A identificação com a mãe impotente é diretamente proporcional ao desejo de salvá-la. A relação com um marido impotente e mais velho pode ser uma reedição de uma relação parental como a que descrevemos. Trata-se não de salvá-lo, mas de repetir, de forma masoquista, algo da situação originária. A cena do lençol ensanguentado é todo o salvamento que se deseja: uma saída imaginária apenas para salvar-se da sexualidade que ela não pode viver realmente.

Estes dois casos expostos demonstram como as intervenções do analista são ditadas, não apenas pelo seu domínio da técnica psicanalítica, mas, em grande parte, também por seus impulsos inconscientes de tradução. Entendemos que sustentar a dimensão disruptiva da pulsão, requer constantes movimentos de revisão de nossas próprias concepções acerca das saídas possíveis dos sujeitos para seus conflitos, a fim de que não perpetuemos determinados tipos de relação de dominação, que já não são mais desejáveis em nossa sociedade.

Neste sentido, pensando na dimensão polimorfa do desejo, o relacionamento monogâmico poderia também funcionar como um recipiente mais ou menos seguro para o exercício da sexualidade, de maneiras benéficas para os sujeitos envolvidos. Dessa forma, ao mesmo tempo que a monogamia poderia funcionar, como vimos, como uma defesa em relação a determinados desejos inconscientes, que se apresentam como demasiado disruptivos, ela também pode constituir-se como uma tina, da maneira que Laplanche descreve (1993), estabelecendo uma diferença potencial entre seu interior e exterior, garantindo a homeostase interna necessária para a expressão da libido.

Gostaríamos de estender a metáfora da tina para a monogamia, a fim de levantarmos uma hipótese que contrabalanceia a ideia de que a monogamia se articula ao recalcamento. Laplanche (1993) propõe que o aparelho psíquico pode ser visto como uma tina. Ela tem por função fazer circular a libido, sem deixar vazar, por assim dizer. O autor propõe que a situação analítica deve produzir algo semelhante a essa tina e permitir que o trabalho de destradução, de desligamento, se coloque em movimento. As paredes da transferência sustentariam, portanto, aspectos mais disruptivos do pulsional, a fim de que eles pudessem ser rearticulados, posteriormente, pelo paciente. Estamos propondo uma nova derivação. Talvez seja possível pensar na relação monogâmica, exatamente pela estabilidade que ela oferece, como uma tina segura para que aspectos mais infantis e recalcados possam vir à tona. Nesse sentido, o recalcamento da sexualidade infantil funciona, mas sem tantos restos. Talvez seja possível incrementar, clinicamente, as traduções e destraduções que relações monogâmicas trazem, sem questionar o modelo em si, mas seu funcionamento.

 

Considerações finais

Procuramos, com este trabalho, expor as linhas de força inconsciente que operaram na obra de Freud para a manutenção da monogamia, em seu modelo prescrito de fidelidade e exclusividade amorosa, como pressuposto das relações amorosas, na tentativa de explicitar a dimensão defensiva que este modelo carrega. Deslocando-a de seu lugar naturalizado, percebemos que algumas noções utilizadas pelo pai da psicanálise em suas abordagens da constituição do psiquismo, como o amor e o ciúme, por vezes, contribuíram para a formação de dobras ideológicas, na medida em que não explicitam a força da determinação do outro intra e intersubjetivamente, mantendo, assim, reduzido o campo de interpretação acerca deste tipo de arranjo, interferindo, inclusive, nas intervenções clínicas de Freud.

Atribuir a primazia à alteridade sexual do inconsciente, sua constituição pulsional, tem consequências políticas fundamentais. A análise de um tema como a monogamia permite mostrar isto com clareza. Qualquer laço amoroso deve ser analisado a partir de suas raízes emocionais e as fantasias inconscientes. A monogamia merece especial atenção por ser um tipo privilegiado de relação amorosa em nossa cultura (AMORIM, BELO; MOREIRA, 2015), o que, muitas vezes, dificulta seu questionamento em termos subjetivos e coletivos.

Uma das questões a ser examinada, posteriormente, diz respeito ao Édipo negativo. Como aponta Bersani (2009), a introdução do conceito de Édipo negativo em Freud, bem como sua relação fundamental com a bissexualidade, duplica o casal edipiano, na medida em que, no caso do menino, por exemplo, a disposição masculina desejaria a mãe da mesma forma em que a disposição feminina adotaria o pai como objeto de amor. Em que pese a controvérsia acerca do conceito de bissexualidade freudiano, devido ao fato deste se apresentar apenas como a coincidência de dois desejos heterossexuais - o do menino masculino pela mãe e o menino feminino pelo pai - o mesmo guarda o mérito de também "instituir uma mobilidade de posições desejantes e uma multiplicidade de identidades, que fazem do próprio casal uma unidade em contínua dissolução. Psicanaliticamente, a monogamia é inconcebível, exceto como algo que bloqueia os circuitos do desejo" (BERSANI, 2009, p. 92).

Fazer a crítica das imagens da monogamia que conseguimos depreender, ao longo da obra freudiana, auxiliará a instrumentar analistas para uma escuta mais atenta à história do sujeito e sua relação com esse contrato amoroso, que deve ser visto como arranjo pulsional, com todas as vicissitudes que determina.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 05/09/2016
Aprovado para publicação em: 23/02/2017

Endereço para correspondência
Patrícia Mafra de Amorim
E-mail: patricia.mafra.amorim@gmail.com
Fábio Roberto Rodrigues Belo
E-mail: fabiobelo76@gmail.com

 

 

*Graduada Psicologia/Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestranda Estudos Psicanalíticos/Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
**Doutorado Estudos Literários/Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), prof. adjunto Departamento de Psicologia/Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
1Mitchell em "Mulheres: a revolução mais longa" (2006/1967) discorre sobre o tema, mas a partir de perspectivas antropológicas e sociológicas.
2Always to look twice at least in order to discern, even in the most familiar texts, the detail, the overlooked contradiction, or Freud's second thoughts as they arise within a few lines, paragraphs or years of one another, and to consider such 'accidents' as the textual equivalents of slips of the tongue and parapraxes in the course of an analytic session (SCARFONE, 2013, p. 547).
3De acordo com a teoria freudiana, os meninos, ao nascerem, tomam imediatamente a mãe como objeto de investimento, não se identificando com ela, mas sim com o pai, da mesma forma acontece com as meninas, que devem futuramente desinvestir a mãe enquanto primeiro objeto de amor, e se desidentificarem do pai. (FREUD, 1925).
4Em Atos obsessivos e práticas religiosas (1907), Freud relata outros três rituais da mesma paciente.

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