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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.39 no.36 Rio de Jeneiro Jan./June 2017

 

ARTIGOS

 

O sintoma-equilibrista e o tratamento médico ao mal-estar na atualidade

 

The equilibrist-symptom and the current medical treatment of malaise

 

 

Yedda Janaina Scuccato de Castro LimaI, II*; Mônica Ramos DaltroI**

IEscola Bahiana de Medicina e Saúde Pública - Brasil
IIInstituto de Psicanálise da Bahia - IPB - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo analisa, a partir da perspectiva psicanalítica, como a medicina e a psicanálise interpretam o sofrimento psíquico através de referenciais distintos, que evidenciam diferenças na forma como pensam o sujeito, impactando em sua maneira de lidar com o mal-estar. Nesse contexto, o estudo reflete sobre as distintas terapêuticas ofertadas e propõe duas categorias de análise para abordá-las, a partir dos conceitos de sintoma-desequilíbrio-biológico e sintoma-equilibrista. Destaca como a concepção freudiana de mal-estar contribui para implicar o sujeito na transformação de seu singular sofrimento sem promessas falaciosas.

Palavras-chave: Psicanálise, Medicina, Psiquiatria, Mal-estar, Sintoma.


ABSTRACT

The article analyzes, from a psychoanalytic perspective, how medicine and psychoanalysis interpret psychic suffering through different references, different thoughts about the subject that impact on his way of dealing with malaise. In this context, the study reflects on the different therapies offered, and suggests two categories of analysis to approach them from the concepts of biological-unbalance-symptom and equilibrist-symptom. It also highlights how the Freudian conception of malaise contributes to imply the subject in the transformation of his singular suffering without false promises.

Keywords: Psychoanalysis, Medicine, Psychiatry, Malaise, Symptom.


 

 

Introdução

O mundo contemporâneo segue atravessado por uma enorme produção de conhecimento científico, utilizando-o também como recurso para explicar o sofrimento humano psíquico, em especial no campo da psiquiatria. Esta, fortalecida pelos desenvolvimentos tecnológicos e pelos discursos da neurociência, tem potencializado a racionalidade científica moderna, apartando o corpo da existência e priorizando uma razão des-subjetivada. Tal perspectiva, que se sustenta a partir da produção de "verdades" tem impactado na forma com a qual os sujeitos se colocam no mundo (MADEL, 1988), lidam com seu mal-estar, manejam suas formas de sofrer e de produzir sintomas. Discutir como a psicanálise e a psiquiatria oferecem diferentes leituras e terapêuticas para esse fenômeno é o propósito deste estudo.

Do ponto de vista da psicanálise, a psiquiatria contemporânea, submetida ao modelo biomédico hegemônico tem interpretado o sofrimento psíquico, a partir de referenciais exclusivamente biológicos, concebendo-o, apenas, como um desequilíbrio biológico a ser reparado, objetivando o restabelecimento de um estado de saúde idealizado, advindo dos dados estatísticos. Baseando-se nesse ideal, em muitas ocasiões, tem ofertado ao homem a promessa falaciosa de resolver seu mal-estar, impactando na forma como ele lida com a sua condição desejante. A teoria psicanalítica, por sua vez, baseando sua clínica na premissa do desejo, discute como as possibilidades de desejar do sujeito vêm sendo atravessadas pela forma como a medicina psiquiátrica tem operado, na atualidade.

Nesse contexto, o estudo reflete sobre as distintas terapêuticas ofertadas, abordando-as mediante duas categorias analíticas, propostas através dos conceitos de sintoma-desequilíbrio-biológico e do sintoma-equilibrista. Destaca, também, como a psicanálise, concebe o mal-estar, a falta e o sintoma, colocando-os como condições que permitem ao homem continuar desejando e movimentando-se na vida com suas singularidades, implicando-o na transformação de seu singular sofrimento.

 

O olhar biomédico sobre o sintoma

A forma como a clínica médica ocidental moderna se fundamenta, no discurso científico, contextualiza o modo como a medicina concebe o sofrimento psíquico, na atualidade. Segundo Foucault (1963/2015), o estabelecimento da medicina como ciência moderna ocorreu quando o método anatomoclínico se consolidou, no início do século XIX. Tal método se constituiu quando a medicina passou a buscar as evidências empíricas das doenças, fazendo-as corresponder a uma lesão anatomopatológica no corpo. "Daí o aspecto que a anatomia patológica tomou em seu início: o de um fundamento enfim objetivo, real e indubitável da descrição das doenças [...]" (FOUCAULT, 1963/ 2015, p. 142).

A prática clínica médica ocidental, tal qual a atual, se deu, portanto, quando os dados da doença passaram a ser observados com maior fidelidade estabelecendo uma "soberania do olhar" sobre as patologias, fato que fundamentou um novo espaço clínico para a medicina - a anatomoclínica - e converteu a linguagem dessa área em um discurso racional, científico e empírico sobre as doenças (FOUCAULT, 1963/2015). Inicialmente, esse olhar foi dirigido para o corpo morto, dado que foi através dos cadáveres, que o médico pôde apreender as causas das doenças, integrando a morte a um "conjunto técnico e conceitual" que a dotou de "valor fundamental de experiência" (FOUCAULT, 1963/ 2015).

Esse novo entendimento da doença cedeu espaço para a rápida expansão do conhecimento médico e do desenvolvimento de técnicas que aperfeiçoaram o exame físico, como a utilização do estetoscópio e das análises laboratoriais (PIMENTA; FERREIRA, 2003). Foi o avanço dos exames paraclínicos, que tornaram as pesquisas sobre o vivo mais relevantes do que sobre os mortos, contudo, continuou encarando o corpo somente como um terreno, em que a doença se inscreve (CLAVREUL, 1983).

A partir da segunda metade do século XIX, o avanço das disciplinas biológicas - fisiologia, histologia, bioquímica, farmacologia, genética etc. - constituiu o paradigma biológico da medicina científica (PIMENTA; FERREIRA, 2003) que passou a explicar as patologias, também através das alterações fisiopatológicas ou bioquímicas do corpo.

A racionalidade explicativa da doença, advinda do modelo da medicina científica, também denominado como modelo biomédico hegemônico, continua sendo, predominantemente, utilizada no diagnóstico das doenças, estabelecendo-se como paradigma para o campo médico na atualidade (PRISZKULNIK, 2000). Esse modelo, que se distancia da medicina social e coletiva (MADEL, 1988), é caracterizado por uma assistência médica, voltada para a saúde em termos biológicos, utiliza-se, amplamente, da tecnologia e se centra nas especialidades médicas (SILVA JUNIOR; ALVES, 2007).

A leitura do sintoma sob a ótica dessa vertente, recaindo sobre os processos físicos e bioquímicos da patologia, não costuma levar em consideração os fatores subjetivos envolvidos na sua constituição. Apesar da existência de outras abordagens médicas, que se preocupam com aspectos como a humanização da profissão (PIMENTA; FERREIRA, 2003), a maioria dos médicos não se sente à vontade em lidar com os fatores subjetivos presentes na doença, porque, em sua formação, não foram estimulados a operar sem a divisão cartesiana entre a mente e o corpo (BARROS, 2002).

A clínica médica psiquiátrica, na atualidade, submetida a esse paradigma científico hegemônico, toma o corpo, o sintoma, o diagnóstico e a terapêutica a partir de uma racionalidade científica, que investe com vigor nas neurociências. Estas assumem o protagonismo na investigação psiquiátrica associando três campos de investimento: o cérebro e seu funcionamento, a genética e a tecnologia psicofarmacológica (IZAGUIRRE, 2011). Nesse contexto, a psiquiatria formulou um projeto de "naturalização da mente" (BEZERRA JÚNIOR, 2010) que compreende o sintoma, através de uma racionalidade cognitiva de fundamentação neurobiológica (GOLDENBERG, 2011).

Essa biologização do sintoma tem deixado o sofrimento psíquico e sua dimensão simbólica fora da perspectiva terapêutica do tratamento. Embora a psicanálise, ainda no século XIX, tenha proposto uma racionalidade, que incluía a subjetividade construída a partir da concepção de um corpo representado e afetado pelo inconsciente na formação do sintoma, a psiquiatria foi, ao longo desse período, afastando-se de maneira quase definitiva dessa forma de compreensão do sintoma.

 

A disjunção da psicanálise com a medicina

As relações entre a psicanálise e a medicina, ao mesmo tempo em que se imbricaram historicamente, foram se tornando cada vez mais distintas, no que tange a seus métodos, objetos e suas epistemologias. Embora a psicanálise tenha iniciado sua trajetória no campo da ciência médica, paulatinamente, distancia-se desse caminho, assumindo contornos próprios como campo de prática e de conhecimento independente. O contexto dessa disjunção é tratado, neste artigo, através do olhar que cada um desses campos dispensou ao sofrimento psíquico, depois do advento do inconsciente freudiano, que, por sua vez, criou uma nova leitura do sintoma, concebendo-o, não apenas atrelado a um corpo biofisiológico.

Freud partiu da observação dos sintomas buscando sua cura; mas, no decorrer de suas elaborações, deparou-se com o sintoma histérico, denunciado como fingimento pela medicina da época, que não encontrava sua origem em uma lesão anatômica para explicá-los1. Desde os Estudos sobre a histeria (1893-1895/2016b), um texto bastante inicial da história da psicanálise, ele insinua a falta de dispositivos médicos para lidar com tal sofrimento.

Nem sempre fui psicoterapeuta. Como outros neuropatologistas, fui formado na prática dos diagnósticos locais e do eletrodiagnóstico [...]. [...]; o diagnóstico local e as reações elétricas não se mostram eficazes no estudo da histeria, enquanto uma exposição minuciosa dos processos psíquicos, [...], me permite adquirir, pelo emprego de algumas poucas fórmulas psicológicas, uma espécie de compreensão do desenvolvimento de uma histeria. Tais histórias clínicas devem ser apreciadas como psiquiátricas, mas apresentam relativamente a estas últimas uma vantagem, a saber, a íntima relação entre a história do padecimento e os sintomas da doença [...] (FREUD; BREUER, 1893-1895/2016b, p. 231).

Descobrindo que essas conversões no corpo traziam representações relativas à história de vida da pessoa, não acessíveis à consciência, Freud constata a existência de uma mensagem inconsciente no sintoma, que poderia informar a respeito da origem de um conflito. A revelação de que as manifestações inconscientes regem grande parcela da conduta humana demonstra que o sintoma freudiano, enquanto elemento dessas manifestações, não se refere apenas a uma anormalidade psíquica. De fato, um dos aspectos revolucionários da psicanálise foi a descentralização da ideia de patológico, através da concepção do sintoma como defesa aos conflitos e ao mal-estar inerentes a todo ser humano. Como essa nova forma de abordar o sintoma não encontrou afinidades com o que foi produzido até então pelo saber médico, ele constrói um procedimento próprio para tratá-lo, descrevendo-o como um processo de investigação do inconsciente (FREUD, 1923/2011), elemento importante a ser levado em consideração, no campo do sintoma.

Assim, enquanto o campo da medicina ancorava seu tratamento no modelo anatomopatológico, a psicanálise, por sua vez, apresenta-se a partir do inconsciente, acessado através de um método investigativo próprio, que instaura uma nova forma de tratar o sintoma neurótico. O inédito, na concepção do inconsciente freudiano, é a explicação sobre o seu funcionamento e o concomitante estabelecimento de uma clínica que o coloca como objeto de intervenção central. Para dar sustentação a essa descoberta, propõe a ideia de um aparelho psíquico, visando explicar os mecanismos envolvidos na formação dos sintomas (FREUD, 1900/2016a). Foi partindo da causalidade inconsciente dos sintomas que a psicanálise criou a sua especificidade e trilhou um caminho disjunto da medicina.

Essa disjunção foi, enfaticamente, abordada por Freud em A questão da análise leiga: diálogo com um interlocutor imparcial (1926/2014), ocasião em que ele deixou clara sua oposição à exclusividade do exercício da psicanálise apenas por médicos, apartando-a do campo de formação da medicina. Nessa obra, o autor esclarece a necessidade de uma formação específica para se tornar psicanalista, visto que os estudos sobre o funcionamento dos elementos psíquicos não pertenciam ao domínio da medicina. Defende, inclusive, a possibilidade da formação de profissionais não médicos na psicanálise, fundamentando-se no fato de que o campo de conhecimento, criado por ele, possui outro objeto de estudo, o inconsciente; um método distinto, a interpretação da fala; técnica própria para a investigação do inconsciente, a associação livre (FREUD, 1912/2010a) e, finalmente, critérios de formação diferentes da área médica: a análise pessoal e o estudo da teoria psicanalítica (FREUD, 1926/2014).

Lacan, um dos mais importantes pós-freudianos, aponta essa disjunção de forma ainda mais radical, designando à psicanálise uma posição de extraterritorialidade em relação à medicina. Em O lugar da psicanálise na medicina (1966/2001) ele diz:

este lugar atualmente é marginal e, como já escrevi em várias ocasiões, extraterritorial. Ele é marginal por causa da posição da medicina em relação à psicanálise - ela admite-a como uma espécie de ajuda exterior, comparável àquela dos psicólogos e dos outros distintos assistentes terapêuticos. Ele é extraterritorial por conta dos psicanalistas, que provavelmente têm suas razões para querer conservar essa extraterritorialidade (LACAN, 1966/2001, p.1).

Através da criação de dispositivos e conceitos próprios, a psicanálise descortina outro modo de conceber e de tratar o sintoma, diferentemente do ofertado pela medicina, ao longo da história.

 

O mal-estar constituinte do sujeito

A noção do mal-estar na psicanálise está diretamente atribuída às problemáticas da constituição psíquica e das restrições pulsionais impostas pela civilização, que, produzindo mudanças na economia libidinal do indivíduo, cumprem as funções de estruturar a subjetividade, introduzindo nela uma incompletude, um importante veículo, que possibilita tanto as relações dos homens entre si, como a capacidade de desejar do sujeito. As relações humanas, infligindo renúncias às satisfações pulsionais individuais, tornam-se fontes de conflito entre o desejo e as imposições culturais, o que, por sua vez, pode ocasionar o sintoma. É por isso que as questões das mudanças dos investimentos libidinais implicam as noções de pulsão, desejo, mal-estar e sintoma nos relacionamentos entre os homens.

Freud (1930/2010f), ao conceber o mal-estar como advindo da incompatibilidade entre as exigências sociais e as necessidades pulsionais individuais, indica que a condição sine qua non, que permite o homem adentrar na cultura é da ordem da substituição do princípio do prazer pelo de realidade (FREUD, 1930/2010f), utilizando-se, assim, da teoria do desenvolvimento das pulsões para explicar o conflito, advindo do desejo recalcado que pode se exprimir pelo sintoma neurótico.

Esses dois princípios regulam o psiquismo, mas, inicialmente, o aparelho psíquico obedece ao princípio do prazer para ajustar as quantidades de energia presentes nele, que considera desprazer a sua elevação e, prazerosa, a diminuição. Com o advento do princípio de realidade, os dois princípios passam a coexistir, mas Freud reforça a importância do princípio de realidade para que o aparelho psíquico possa adiar a satisfação imediata do prazer, em nome de uma posterior que leve em conta a alteridade: saída da satisfação autoerótica

para aquelas capazes de serem investidas nos objetos externos (FREUD, 1930/2010f). Sobre isso, Gaspar (2007) escreve:

O princípio do prazer dizia respeito a um sujeito [...] alienado do mundo que o circunda, cuja satisfação é obtida em si mesmo. [...] no entanto; sua sobrevivência implica que ele reconheça a presença deste mundo [...]. Orientar-se no mundo é fundamental, [...], para a sobrevivência do sujeito; [...], para fugir ao desprazer a que o psiquismo se vê exposto. Esse desprazer, que sempre corresponde a um aumento de tensão, pode ser causado pelas excitações provenientes do mundo externo e [...] do próprio organismo. [...], são estas - as excitações internas - que forçam o sujeito a reconhecer a presença do mundo externo. As necessidades internas não podem ser satisfeitas em si mesmas, implicam na presença de objetos do mundo externo (GASPAR, 2007, p. 53).

O mundo externo, impondo alterações nos investimentos libidinais do indivíduo, torna a sua constituição psíquica fadada a realizar muitos esforços, para alcançar breves e poucas satisfações (SAROLDI, 2015) e, por essa razão, Freud (1930/2010f) indica que a finalidade da vida se apresenta questionável para o ser humano. Para o autor, os homens, na vida, desejam atingir a felicidade, porém, nessa busca, o que se evidencia é um conflito, pois, se por um lado é o princípio do prazer que determina a felicidade, visto que ela é da ordem da satisfação repentina e total das pulsões mais represadas, por outro, esse mesmo princípio, está em completo desacordo com as exigências do mundo externo.

O princípio do prazer, convertido num comedido princípio de realidade, modera as aspirações humanas à felicidade e impõe certo mal-estar ao indivíduo, que, para tornar a vida mais suportável, tende a se utilizar de recursos paliativos (FREUD, 1930/2010f). Com isso, Freud conclui que "[...] a felicidade constitui um problema da economia libidinal do indivíduo. " (FREUD, 1930/2010f, p. 40) e que "[...] cada um tem que descobrir a sua maneira particular de ser feliz." (FREUD, 1930/2010f, p. 41). Assim, embora Freud postule

que constituição psíquica esteja fadada ao mal-estar, ele também assinala a capacidade do homem de se utilizar de formas substitutivas de investimento pulsional (FREUD, 1930/2010f) que, por sua vez, proporcionam a criação de mecanismos, que permitem o convívio entre os pares: a defesa ou a sublimação2 (CEDARO, 2000).

Entre as defesas utilizadas, Freud cita a neurose como uma forma de o sujeito lidar com as privações impostas pelos ideais culturais (FREUD, 1930/2010f). O sintoma histérico aparece, então, como uma suplência substitutiva das pulsões, que, depois de sofrerem recalcamento e de separarem suas representações inconscientes do afeto, acaba por deixá-lo livre para se converter em sintoma. Isso demonstra que o sintoma é uma satisfação substitutiva às representações inconscientes, que causariam desprazer, caso tivessem acesso à consciência, o que o leva a ser retratado como uma "solução de compromisso" entre essas duas instâncias (FREUD, 1896/1996a).

No que tange à pulsão, ela é, explicitamente, abordada na transição dos princípios reguladores do aparelho psíquico: no momento em que é regido, apenas, pelo princípio do prazer, a satisfação dos estímulos internos, ligados às necessidades básicas fracassa, pois, enquanto as pulsões se comportam autoeroticamente, nem ocorre a satisfação das necessidades, nem o alívio das tensões no aparelho (FREUD, 1914/2010c). No entanto, essa frustração aponta a necessidade do adiamento das satisfações futuras, visando uma interação com o mundo externo, que só será possível com a instauração do princípio de realidade. Este princípio, dota o aparelho da capacidade de representar e pensar, tornando-o apto para postergar a satisfação do prazer imediato, através da acumulação da pulsão, que, posteriormente, poderá então ser investida num objeto externo que, realmente, proporcione a realização da satisfação com menor dispêndio de energia (FREUD, 1914/2010c).

A noção do desejo freudiano aparece, justamente, antes da transição de um princípio para o outro e é explicada mediante a experiência da primeira satisfação - ilustrada por Freud, através do momento mítico da primeira mamada - que deixará, no indivíduo, traços de uma satisfação total com um suposto objeto complementador, que não se repetirá, mas que, doravante, o lançará numa eterna busca pelo objeto de desejo perdido (FREUD, 1911/2010b). O desejo freudiano é, portanto, um impulso psíquico que busca, incansavelmente, atingir essa antecedente sensação de plenitude absoluta, possibilitada pela intervenção do primeiro cuidador, cuja ação teria proporcionado o alívio total das excitações desagradáveis, advindas dos estímulos internos e externos (MAURANO, 2010a).

Lacan, a partir da aproximação com a linguística, cunha o conceito de sujeito, referindo-se ao inconsciente freudiano (LACAN, 1960-1964/ 1998b). Isso é importante no que tange à noção de desejo, porque foi com a concepção de sujeito dividido e faltante - diante de sua entrada na linguagem - que ele também fez a sua elaboração, acerca da incompletude inerente à condição humana.

Ao afirmar que "[...] não há sujeito se não houver um significante que o funde" (LACAN, 1958/1999, p.195), Lacan aponta que a constituição da subjetivação se dá pela via da simbolização, o que o faz conceituar o sujeito como um efeito de linguagem, como sendo representado por um significante, que, por sua vez, é "[...] aquilo que representa o sujeito para outro significante" (LACAN, 1960-1964/1998b, p. 833). Essa definição diz respeito à compreensão lacaniana de que o aparelho psíquico, o inconsciente e o seu correlato, o sujeito, são organizados de acordo com as leis da linguagem. Sobre isso, Andrade Filha (2013) aponta: "Trata-se do sujeito dividido pelo desejo, fundado na dimensão da palavra, e que traz como signo a falta que o constitui, efeito da relação com o significante. " (ANDRADE FILHA, 2013, p. 42). A entrada do sujeito no mundo da linguagem, também, torna problemática a estruturação subjetiva porque, para cada emissão significante, há uma enorme gama de interpretação de significado, o que impõe ao sujeito um enigma sobre a significação de si mesmo (LACAN, 1957/ 1998a), como também invoca a dimensão do mal-entendido, presente nas comunicações humanas, que, por sua vez, aponta a impossibilidade de tudo dizer da linguagem (MILLER, 1997) e a desarmonia entre o sujeito e o mundo, a partir do momento em que ele fala (LACAN, 1974/1993).

A constituição subjetiva ocorre através de uma dupla operação denominada, por Lacan, alienação e separação (LACAN, 1960-1964/ 1998b). Acerca disso, Fagundes Netto et al. (2013) apontam:

Lacan [...], fala sobre o processo lógico de causação do sujeito, que depende de duas operações - alienação e separação. [...]. Não se trata de se separar totalmente para se tornar sujeito. Não há um sem o Outro. A alienação é uma condição do sujeito, está posta. Estamos alienados na linguagem, submetidos aos efeitos do significante. [...]. Não há, com isso, a possibilidade de um único significante definir o sujeito que, por sua vez, é dividido pela linguagem (FAGUNDES NETTO et al., 2013, p. 377).

O primeiro processo trata-se de uma alienação do sujeito ao desejo do Outro - entendido como o tesouro dos significantes ou o mundo da linguagem - que, juntamente com a separação, constituem o sujeito como uma falta de significação, uma hiância em que o sujeito constrói o desejo que o funda (LACAN, 1960-1964/1998b). Depois de alienado à linguagem, o desejo se aferra a essa falta de algo que, supostamente, o faria pleno, que, para Freud, é a busca pelo objeto perdido e que, para Lacan, é o vazio deixado pelo objeto que nunca existiu, pela falta instaurada na própria constituição do sujeito.

Toda essa explicação do desenvolvimento do psiquismo visa demonstrar como as relações entre os homens, ao mesmo tempo em que são importantes para constituir o indivíduo enquanto sujeito desejante, também lhe trazem o mal-estar originado pelas restrições culturais, que, pelo conflito que causa, pode se manifestar sob a formação do sintoma. O sintoma freudiano, portanto, é uma solução encontrada pelo homem diante de seus conflitos (FREUD, 1896/1996a).

Depois de contaminado pelo mundo da linguagem, o sujeito passa a perceber e a desejar os objetos do mundo externo através das representações, o que impede que o desejo humano se limite à satisfação das necessidades fisiológicas. Para abordar a especificidade da satisfação humana, Freud introduziu o conceito de pulsão, definindo-a como uma representação psíquica de um estímulo somático (FREUD,1915/2010d), indicando que esses dois registros não podem mais ser concebidos como independentes no campo do sintoma. Isso torna o conceito de pulsão imprescindível para abordar a questão do corpo e do sintoma, de forma diferente da lógica biológica e dicotômica da medicina. O sintoma, para a psicanálise, diz respeito aos modos de o sujeito se relacionar e se endereçar aos demais, o que inclui seus modos de operar com a linguagem, visto que ela é o veículo de acesso ao outro (MAURANO, 2010a).

Inicialmente, Freud concebe o sintoma como uma formação do inconsciente, assim como as demais; entretanto, posteriormente, acentua a diferença na sua temporalidade, pondo em evidência a sua durabilidade, a sua insistência em relação a uma satisfação paradoxal e a sua vertente inacessível à interpretação. Esse adendo no conceito do sintoma, ocorre em Além do princípio do prazer (FREUD, 1920/2010e), momento em que ele ganha também o estatuto de uma fonte de satisfação que inclui o desprazer, que não se põe somente como uma mensagem a ser decifrada e sim como uma repetição que quer apenas se realizar. Isso demonstra que, para além do princípio do prazer, como tentativa de homeostase econômica do aparelho, há algo que escapa a essa lógica. Assim, Freud descobre que o sintoma pode incluir "[...] uma satisfação que pode ser desprazerosa" (GASPAR, 2007, p. 55) que, posteriormente, é teorizado por Lacan como gozo "[...] o processo onde prazer e dor se entrelaçam secretamente" (MAURANO, 2010b, p. 35).

De forma concisa, pode-se dizer que Freud e Lacan postulam que o mal-estar e a falta são inerentes à condição subjetiva do sujeito e advindos das suas relações com o Outro que, pelos conflitos que trazem, constituem o sintoma, o que está posto como paradigma para a psicanálise. Tal paradigma rompe com as teorias cientificistas, demonstrando que as causalidades do sofrimento psíquico dizem respeito ao inconsciente e não apenas às leis anatômico-orgânicas da medicina.

A concepção psicanalítica do sintoma engendrou um tratamento baseado na transferência, descrita em Recordar, repetir e elaborar (FREUD, 1914/1996b), como uma atualização, na relação com o analista, dos modos anteriores de relação do paciente com suas figuras parentais. Isso demonstra que, na transferência, a figura do analista é investida libidinalmente e, por isso, ela pode ser utilizada para operar mudanças na economia libidinal do sujeito, ou seja, nos modos de satisfação dele com o seu sintoma.

Tendo em vista que "[...] o sintoma neurótico, leva ao sujeito do inconsciente" (PIMENTA; FERREIRA, 2003, p. 222), a psicanálise entende o sintoma como uma expressão de singularidade, advinda da história de cada um. Por esse motivo, esse campo de saber não oferece leitura e tratamento iguais àqueles ofertados pelo campo médico, cujo diagnóstico é sempre realizado através das mesmas gamas de classificações catalogadas em seus manuais e o tratamento pelos mesmos conjuntos fixos de propostas terapêuticas.

 

O sintoma-desequilíbrio-biológico

Considerando que o contexto através do qual esta pesquisa se desdobra é o mal-estar, o presente estudo versa, mais especificamente, sobre a psiquiatria, visto ser essa a especialidade médica, cujo campo está voltado para tratar das questões do sofrimento subjetivo. A psiquiatria, na atualidade, pretendendo-se uma ciência positivista, embasou-se no referencial das neurociências (INFANTE, 2011) e, portanto, submeteu-se ao paradigma biomédico hegemônico. Assim, empreende também uma visão organicista do sintoma baseada nas explicações biológicas, fisicalistas e genéticas da subjetividade, o que iguala o sintoma psíquico ao sintoma médico comum (PIMENTA; FERREIRA, 2003).

O paradigma neurocientífico da psiquiatria surgiu no fim do século XX, quando a sociedade moderna e globalizada esculpiu a falácia de um ideal de homem isento de sofrimentos, abolindo o conflito como núcleo da constituição subjetiva, o que culminou na substituição da concepção do "homem desejante" pelo "homem-máquina" (ROUDINESCO, 2000). Esse paradigma, juntamente com o desenvolvimento dos psicotrópicos (a partir de 1950) e das tecnologias de visualização do funcionamento do cérebro (década de 1980), modificou o entendimento do psiquismo humano pela psiquiatria, que passou a apostar na capacidade de normatização dos comportamentos e na eliminação dos sintomas (ROUDINESCO, 2000). Tais avanços amarraram a psiquiatria "[...] numa prática de certezas diagnósticas ilusórias e condutas farmacológicas fixas" (JERUSALINSKY; LAZNIK, 2011, p. 80).

O contexto no qual a biologia se expandiu, a ponto de ser considerada "referência científica hegemônica", na atualidade, tem relações com o rearranjo do panorama político e socioantropológico, cujas narrativas sustentaram a ideia da possibilidade de realização pessoal total, baseada em uma concepção ideal de cidadãos plenos nos âmbitos da saúde, bem como difundiram no imaginário social a justificativa biológica e neuroquímica de seus estados emocionais e comportamentais (BEZERRA JÚNIOR, 2010).

Segundo Lunardi (1999), essa concepção de plenitude em relação à saúde foi ofertada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1986, momento em que ampliou o conceito de saúde para a noção de "perfeito bem-estar físico, mental e social". Essa definição foi embasada em referências objetivistas diante da necessidade da Saúde Coletiva de utilizar de formas de mensuração quantitativas em suas avaliações estatísticas (SEGRE; FERRAZ, 1997). O conceito da OMS, num primeiro momento, ofertou um conceito de bem-estar idealizado inatingível (SEGRE; FERRAZ, 1997), perspectiva que, rapidamente, foi absorvida pelo potente discurso do capitalismo.

A clínica psiquiátrica, inserida nessa conjuntura, consolida-se como ciência positiva, passando a se utilizar das descrições neuroquímicas para explicar a causa dos sintomas psíquicos (PIMENTA; FERREIRA, 2003) diagnosticados a partir dos manuais classificatórios e a orientar sua terapêutica pela prescrição medicamentosa e pela indicação de psicoterapias cognitivas comportamentais (FENDRIK; JERUSALINSKY, 2011).

Para Izaguirre (2011) e Roudinesco (2000), a transformação do paradigma psiquiátrico pode ser acompanhada, também, através da história dos manuais diagnósticos, como o DSM3 e o CID4, que classificam os sintomas de forma objetiva, descrevem o diagnóstico diferencial e o tratamento para eles (FAGUNDES NETTO et al., 2013). Tais manuais foram criados pela psiquiatria americana, segundo critérios estatísticos e científicos com o objetivo de constituir uma nomenclatura oficial para os transtornos mentais e de servir de guia para todas as práticas clínicas, voltadas para as questões do sofrimento psíquico (IZAGUIRRE, 2011). Várias edições e revisões do DSM foram feitas, ao longo dos anos, para adaptá-lo aos avanços do conhecimento científico. Hoje, o seu produto final encontra-se à disposição dos profissionais de saúde mental em sua quinta versão, o DSM-5.

Um fato importante para a psicanálise a respeito dessas revisões é que esses desenvolvimentos culminaram na abolição total da perspectiva psicanalítica pela psiquiátrica biológica. Assim, as entidades clínicas da psicose, neurose e perversão foram substituídas pelas noções de distúrbio, desordem, transtorno, ou seja, pela caracterização sintomática dos fenômenos subjetivos. A histeria foi reduzida a um distúrbio dissociativo ou conversivo e a esquizofrenia a uma perturbação do curso do pensamento (ROUDINESCO, 2000).

Até os anos 1970, a psiquiatria realizava seus diagnósticos baseando-se, também, nos referenciais psicanalíticos, partilhando da ideia freudiana de que os sintomas psíquicos tinham relação com o inconsciente, com o lugar que o indivíduo ocupava na história de sua família e de seu meio social (ROUDINESCO, 2000). Porém, tal modo de proceder foi muito criticado pela medicina científica, que considerava que a neurose remetia a questões psíquicas ambíguas, de caráter não objetivo, não quantificável e confuso (FENDRIK, 2011). A psiquiatria reagiu e, voltando-se para uma objetividade mais científica, publicou o DSM-III Revisado, em 1987, retirando a neurose e as demais explicações etiológicas dos sintomas, que, doravante, passaram a ser conceituados como transtornos de comportamento.

A classificação dos transtornos mentais foi, também, amplamente influenciada pela indústria farmacêutica, que, investida nas pesquisas de novos medicamentos a serem colocados no mercado, financiou as pesquisas psiquiátricas (DUNKER, 2014). Segundo Russo e Venâncio (2006), essa conexão fica explícita desde o DSM IV (1994), quando os novos diagnósticos emergem diretamente associados à produção de novos psicofármacos. Uma das consequências dessa psiquiatria, que se pauta nos efeitos medicamentosos, é a substituição da neurose, enquanto elemento que pode unificar a história de vida e dos sintomas de cada um, por um objeto único, que não trazem esses dados: a medicação (DUNKER, 2014).

Baseando-se na ideia de uma disfunção orgânica que acomete o cérebro e dando-lhe o estatuto de lugar da experiência subjetiva, a psiquiatria científica tem ofertado ao homem a proposta de que seu sofrimento psíquico é uma doença que lhe parasita, cuja causa não lhe diz respeito enquanto sujeito, mas sim aos déficits das regulagens neuroquímicas do cérebro. Perante essa concepção, passou a ofertar tratamentos medicamentosos para a normalização dos processos psicológicos, prometendo ao sujeito a possibilidade de "[...] aceder à felicidade por uma via simplificada [...]" (FENDRIK; JERUSALINK, 2011, p. 8). Sob a ótica psicanalítica, essa formulação construída na cultura capitalista desconsidera a falta e o mal-estar como constituintes da vida psíquica e, segundo Goldenberg (2011), prescinde da escuta da singularidade e daquilo que divide o sujeito: o desejo.

Para Quinet (2001), essa "civilização dominada pela ciência" vem expressando seu sofrimento psíquico servindo-se da oferta de um enorme número de patologias elencadas nos manuais classificatórios, advindos, predominantemente, do discurso capitalista. Cada revisão do DSM introduziu novas categorias psicopatológicas e, atualmente, chegou ao ponto de transformar problemas cotidianos e comuns da vida em transtornos mentais. Isso se refletiu em um aparente crescimento do número de doentes mentais (FENDRIK; JERUSALINSKY, 2011) e no uso indiscriminado de medicamentos. Entretanto, o consumo desenfreado de pílulas mágicas anestesiantes do mal-estar não garante ao indivíduo a ausência de sofrimento. Nessa medida, este estudo concorda com Roudinesco (2000), ao enfatizar de que não se trata de negar o conforto trazido pelos psicofármacos, mas sim de se atentar para o lugar ocupado por eles na cultura e para a sua impossibilidade de curar o mal-estar, visto que o humano "[...] não se restringe a seu ser biológico" (ROUDINESCO, 2000, p. 9).

Em face dessa nova cena, a maioria dos psicanalistas se lançou num amplo debate, que, atualmente, tem como centro de sua crítica a versão do sintoma, denominada, neste estudo, sintoma-desequilíbrio-biológico. A crítica que se faz a essa abordagem é o fato de ela não levar em conta a subjetividade, a causalidade dos conflitos advindos das experiências psíquicas de cada um e, principalmente, o mal-estar e a falta, constituintes do sujeito, como condições importantes, que permitem ao homem continuar movimentando-se na vida, enquanto desejante.

 

O sintoma-equilibrista

Apesar de sua bagagem plena de conhecimento médico, Freud não dispensou o mesmo olhar que a medicina de sua época ofereceu para os sintomas. Segundo ele, a compreensão do sintoma não corresponde à observação de um corpo doente, porque o corpo que interessa é o corpo vivo de uma história, um corpo pulsional que traz consigo uma significação singular não correspondente à realidade material. Nessa medida, o pai da psicanálise dispensou ao corpo e ao sintoma uma análise relacionada ao campo de uma realidade psíquica fantasística, concepção bastante diferente do modelo biomédico hegemônico.

Em O mal-estar na civilização (1930/2010f), Freud concebeu o sintoma como uma tentativa de solução que o sujeito encontra para manifestar seu desejo, que, conforme visto anteriormente, está em conflito com as exigências civilizatórias. Para ele, as mudanças na economia libidinal, oriundas das restrições pulsionais individuais estruturam a subjetividade, mas são também fontes de sensação da incompletude humana, do mal-estar e do sintoma. Para Lacan, é a entrada no mundo da linguagem que, introduzindo na subjetividade uma falta, faz com que a busca humana pelo objeto de satisfação possa passar pelas relações entre os homens. Ambos entendem que a incompletude e a falta são elementos importantes na causação do desejo, cuja função é fazer com que o homem se lance num incessante movimento pela vida Nesse sentido, a leitura psicanalítica do sofrimento psíquico não o faz corresponder a um sintoma-desequilíbrio-biológico, na medida em que entende que o sintoma advém dos efeitos da incidência da linguagem sobre o sujeito, inscrevendo-o numa ordem que o faz perceber e desejar através de representações psíquicas inconscientes. Disso, parte a constatação psicanalítica de que o sintoma tem estreitas relações com a história de vida de cada um, com seus desejos inconscientes, sendo ele, portanto, apreendido por esse campo de saber como algo da ordem do singular.

Para a psicanálise, então, o sintoma é uma invenção do sujeito para lidar com o não sentido da vida, com a falta e a incompletude humana, mas é sempre uma resposta que não é realizada de forma idêntica para todos, ou seja, cada um a produz conforme a sua trama particular. Com base na concepção psicanalítica do sintoma como uma solução singular, que tenta equilibrar o desejo com a realidade externa, este artigo introduz a ideia de o sintoma funcionar como um equilibrista. O sintoma-equilibrista, apontando sempre para a singularidade do sujeito, faz com que seu sentido não seja passível de ser generalizado, classificado por um manual ou tratado somente pelo uso de psicofármacos. Levando em conta o estatuto de solução do sintoma, a psicanálise entende que não há de se eliminá-lo ou removê-lo, mas sim transformar a relação do sujeito com ele, nos casos em que há presença de grande angústia. Quando Freud apontou outra lógica relativa ao sintoma, não como sinal de uma doença, mas como uma resposta produzida pelo sujeito diante de suas relações com civilização e, quando Lacan postulou a falta como condição inerente ao sujeito, eles afirmaram o mal-estar e a falta como condições que sustentam, no psiquismo, a capacidade de desejar. Baseando-se nisso, a psicanálise propõe outra noção de "cura", evidenciando que não se trata de curar a condição faltante no sujeito, dado que, para essa práxis, ela é a premissa fundamental de sua clínica. Isso quer dizer que a clínica psicanalítica é pautada na ética do desejo e, por essa lógica, ela não se coaduna com uma ética que visa o atingimento de uma norma idealizada, proposta pelos constructos sociais ou cientificistas. A única ética ofertada pela psicanálise é que o analista conceda ao sujeito a liberdade de se posicionar, singularmente, enquanto desejante. A cura psicanalítica "[...] não é outra coisa senão uma transformação existencial do sujeito" (ROUDINESCO, 2000, p. 48). Porém, essa proposta de considerar o sintoma como singular, no caso a caso, vem sendo solapada na atualidade pelas promessas falaciosas de bem-estar total, garantidas pela ciência baseada na lógica biológica, tecnológica e capitalista. Contudo, apesar de tal promessa, o homem continua sofrendo com as suas questões e, pior, achando que há, realmente, algo de errado com ele por não corresponder aos padrões ideias impostos culturalmente.

Como a clínica psicanalítica não trabalha pelo viés da objetividade cientificista, nem pelo imediatismo e nem pelas identificações aos ideais propostos pela sociedade, nesse sentido, ela se encontra do lado oposto aos dogmas da biomédica, da tecnociência e do capitalismo. É por essa razão que a psicanálise não opera com nenhuma psicopatologia classificatória, por não estar em questão o homem, o indivíduo ou a pessoa, mas o sujeito, ou seja, o inconsciente dentro dos laços transferenciais.

Porquanto a psicanálise não estar ligada a nenhuma normalização, mas à ética do desejo, ela investe num tratamento alicerçado na elaboração do sofrimento, através de uma invenção singular do próprio sujeito para lidar com ele e considera que a promessa da ausência de mal-estar é falaciosa, visto que o encontro com faltas e tristezas faz parte da história de vida humana e é da ordem dos conflitos que o homem enfrenta em sua vida a partir do momento em que deseja. Essa prática entende que o tratamento ofertado, apenas pelo encontro com o medicamento, promete uma solução imediatista que não considera o tempo movido pela lógica singular subjetiva, nem o fato de que cabe ao sujeito saber lidar com seu mal-estar de modo a produzir, subjetivamente, algum saber com isso. A psicanálise defende, portanto, o direito do homem de ser afetado pela vida, pelo mal-estar e de se defender dele com o sintoma, bem como o direito de se haver com esse sofrimento.

 

Considerações finais

Diante de tudo que foi exposto, pôde-se constatar que a concepção e o tratamento ofertados ao mal-estar são processos completamente diferentes entre a clínica médica psiquiátrica e a psicanalítica.

A clínica psiquiátrica, utilizando-se de um método diagnóstico fundamentado nos sinais objetivos do transtorno psíquico, concebe o sintoma como um déficit biológico da saúde a partir de análises estatísticas que promovem um olhar universalizante sobre o sintoma, circunscrevendo-o como sintoma-desequilíbrio-biológico, o qual necessita ser eliminado pela via da medicação.

Negar a dimensão biológica dos sintomas psíquicos é indiscutível e não é a proposta deste estudo, que se propôs, apenas, a ressaltar a determinação inconsciente da subjetividade e afirmar a impossibilidade de reduzi-la à causalidade máquina-orgânica. O fármaco produz um incontestável alívio aos desconfortos implicados ao sintoma; entretanto, não elimina o mal-estar constitutivo do ser humano, que persiste, apresentando-se de forma atemporal, inerente à constituição subjetiva e ao trabalho da cultura.

Na atualidade, essa busca por aliviar/eliminar o sintoma promoveu a medicalização da própria existência, prática que culmina numa certa sedação do sujeito, o que, para a psicanálise, representa uma espécie de mortificação subjetiva, uma vez que pode entorpecer a possibilidade de o sujeito de se colocar, enquanto desejante.

Na perspectiva psicanalítica, o sintoma está implicado com a história de vida e com as formas de subjetivação do sujeito, é marca de sua singularidade no mundo. Nessa medida, ele está aqui nomeado como sintoma-equilibrista, isso porque assume a função de sustentar a realidade e o desejo. A psicanálise, apostando no desejo, concede ao sujeito a possibilidade de sofrer e de inventar um modo de lidar com seu sofrimento, que lhe cause menos angústia. A perspectiva apresentada neste artigo assinala a importância da contribuição da teórica psicanalítica para a leitura do sofrimento psíquico, na contemporaneidade, uma vez que levanta aspectos que demostram como o homem, com seu sofrimento, vem sendo atravessado em suas possibilidades de desejar, a partir da terapêutica ofertada pela psiquiatria, que, na atualidade, tem-se colocado de forma hegemônica, impactando, de forma importante, no conjunto das práticas de cuidado da saúde mental como um todo.

A psicanálise abre mão de falsas promessas, evidenciando o exercício de existir entre a impotência e a impossibilidade, considera o sintoma-equilibrista como possibilidade a ser mantida como potência de singularidade.

 

 

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Artigo recebido em: 15/12/2016
Aprovado para publicação em: 20/03/2017

Endereço para correspondência
Yedda Janaina Scuccato de Castro Lima
E-mail: yjanas@me.com
yjanas@me.com
E-mail: monicadaltro@bahiana.edu.br

 

 

*Graduanda curso Psicologia/Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Psicanalista associada Instituto de Psicanálise da Bahia (IPB).
**Psicóloga, profa. adjunta curso Psicologia do Programa de Doutorado em Medicina e Saúde Humana e profa. adjunta/Escola Bahiana Medicina e Saúde Pública.
1O sintoma desapartado por Freud de sua correspondência anatomofisiológica se desloca do lugar de sinal de doença assumindo outras formas de designação, passando a ser concebido como sinal de subjetivação, de defesa frente à falta inerente à constituição subjetiva, de expressão do sujeito e, finalmente, como um modo de se endereçar aos outros (MAURANO, 2010a).
2Defesa que emprega parte da energia pulsional para um uso proveitoso da cultura (FREUD, 1930/2010e).
3DSM é a sigla do Manual Diagnóstico Estatístico de Transtornos Mentais, confeccionado pela Associação Psiquiátrica Americana a partir 1952 (DUNKER, 2014).
4CID é a sigla do manual de Classificação Internacional de Doenças , elaborado pela Organização Mundial de Saúde através da replicação do sistema DSM (DUNKER, 2014).

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