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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.39 no.37 Rio de Jeneiro jul../dez. 2017

 

ARTIGOS

 

Do "reconhecimento identitário" em Axel Honneth à "despossessão de si" de Judith Butler: subsídios para pensar a dimensão política da psicanálise

 

From "identitary recognition" in Axel Honneth to "self-dispossession" in Judith Butler: subsidies to think about the political dimension of psychoanalysis

 

 

Maria Regina Maciel*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho busca extrair do campo psicanalítico, a sua dimensão política. Isto é feito a partir, especialmente, dos argumentos de dois filósofos de referência nos debates contemporâneos sobre o tema: Axel Honneth e Judith Butler. Ele se engaja, também, mais diretamente com a literatura psicanalítica e as repercussões do debate no Brasil. Tendo a psicanálise como eixo norteador e frente à aspiração de novas formas mais horizontalizadas de fazer política hoje, o texto procura subsídios, mais especificamente, na noção de "reconhecimento identitário", do primeiro teórico, e na de "despossessão de si", da segunda pensadora.

Palavras-chave: Reconhecimento, Política, Psicanálise, Honneth, Butler.


ABSTRACT

This paper aims to bring out of the psychoanalytic field its political dimension. This is done considering especially the arguments of two central philosophers that take part in contemporary debates on the theme: Axel Honneth and Judith Butler. It also engages more directly with the psychoanalytic literature and the repercussions of the debate in Brazil. Having psychoanalysis as a steering element and facing the new, more horizontal forms of doing politics, the paper looks for subsidies in the notions of "identitary recognition" of the former author, and of "self-dispossession" of the latter.

Keywords: Recognition, Politics, Psychoanalysis, Honneth, Butler.


 

 

Introdução

Fui levada a refletir sobre o entrelaçamento entre psicanálise e política, a partir de meus trabalhos com grupos de crianças e de jovens em espaços escolares. O contexto, a partir do qual esta questão surgiu, foi não apenas o dessas experiências, mas também o das leituras dos livros Luta por reconhecimento: a gramática dos conflitos sociais, de Axel Honneth, e Relatar a si mesmo: crítica da violência ética, de Judith Butler.

Axel Honneth é um filósofo alemão que, na década de 90, recolocou em cena a noção de reconhecimento, derivada da filosofia de Hegel. Esse debate expandiu a compreensão acerca das lutas políticas, em torno das identidades individuais e de grupo, tão presentes no cenário mundial a partir dos anos 70/80. Vou expor, a seguir, o que disse Honneth (2003) a este respeito. Vale já adiantar que este autor recorreu à psicanálise, ao se referir à primeira esfera de reconhecimento intersubjetivo: o amor.

Nas últimas duas décadas, entretanto, temos visto mudanças na compreensão do uso político da noção de identidade social tão trabalhada pelo filósofo alemão. A fim de adentrarmos nesta discussão, irei recorrer ao livro de Judith Butler (2015). A autora denuncia as limitações normativas do indivíduo moderno (com seu individualismo possessivo e sua autoidentidade) para, subsidiada por sua teoria de gênero, afirmar a possibilidade de sermos despossuídos de identidades e, ainda assim, responsáveis pela vida social.

Como Honneth, Butler se utiliza da psicanálise para refletir sobre como nos submetemos às normas sociais. Porém, ao pensar sobre a possibilidade de uma ação política de não submissão a essas normas - como de certa forma Honneth também fez, ao se utilizar de autores do campo psicanalítico - ela aponta para algo além da produção de identidade. Justamente, criação de modos de ser despossuídos desta.

Veremos, a seguir, como esses dois filósofos, ao recorrerem à psicanálise, desenvolveram seus argumentos. Pretendemos, na mesma medida, explorar as repercussões que suas discussões têm tido entre os pensadores brasileiros. Para tal, vou me referir, especificamente, aos textos de Safatle (2013, 2015) e de Gondar (2012), com o intuito de ver qual a reverberação deste debate no Brasil. Apontar essas repercussões, não deixa de ser, tanto uma tentativa de dar continuidade à tessitura entre o campo psicanalítico e o campo político, quanto um esforço para recolocar a psicanálise num cenário de discussões mais amplo do que o de sua clínica tradicional.

 

Luta pelo reconhecimento, despossessão de si e psicanálise

Honneth (2003), ao resgatar a noção hegeliana de reconhecimento, diz que é, a partir do "reconhecimento mútuo", que desenvolvemos uma relação com nós mesmos. Em outras palavras, é desde uma perspectiva dos parceiros - a quem nos endereçamos socialmente, numa interação - que podemos nos desenvolver como sujeitos. A isto ele acrescenta que a base da interação é o conflito inerente à "luta por reconhecimento". Conflito que se origina de uma experiência de desrespeito social e de um ataque à identidade pessoal e coletiva.

Sustentado fundamentalmente em Hegel e Georg Mead - psicólogo social pragmatista - Honneth (2003) dirá que o florescimento humano depende de três padrões de reconhecimento intersubjetivo: o amor (esfera emotiva que gera autoconfiança), o direito (esfera jurídica-moral que gera autorrespeito) e a solidariedade (esfera social que gera autoestima). Porém, o mais interessante neste seu livro parece-me ser o pensar a dimensão do desrespeito (que, por seu turno, gera conflitos intersubjetivos e sofrimento psíquico). Seu ponto de vista acabou por ampliar, dentro da tradição da teoria crítica, um campo de estudos sobre a experiência do sofrimento. Afinal, e seguindo suas palavras,

Nem em Hegel nem em Mead havia-se encontrado uma referência à maneira como a experiência de desrespeito social pode motivar um sujeito a entrar numa luta ou num conflito prático; faltava de certo modo o elo psíquico que conduz do mero sofrimento à ação ativa (p. 220).

Ao se debruçar sobre o estudo do sofrimento psíquico, Honneth dirá que, diante de experiências de desrespeito, as três esferas de autorrelação prática do ser-humano, citadas anteriormente (autoconfiança, autorrespeito e autoestima), poderão se direcionar para a "morte psíquica", a "morte social" e a "humilhação", respectivamente. O filósofo alemão não deixa de acrescentar, contudo, que "quando o meio de articulação de um movimento social está disponível" (p. 224), a experiência de desrespeito pode tornar-se uma fonte de motivação para ações de resistência política.

Para tais argumentos, o autor teve a psicanálise como um de seus alicerces. Mais precisamente, os textos de Winnicott serviram de suporte para pensar a primeira esfera de reconhecimento mútuo (neste caso, o amor). O autor estabelece relações entre a teoria do amadurecimento emocional e a intersubjetividade, enquanto critério para uma relação consigo mesmo. O filósofo alemão vê reflexos do amor em Hegel ("ser-si-mesmo em um outro") e na psicanálise de Winnicott, na qual as relações primárias afetivas dependem da preservação recíproca de uma tensão entre o auto-abandono simbiótico e a autoafirmação individual.

Segundo Honneth, quando pesquisou as condições "suficientemente-boas" da socialização de crianças pequenas, Winnicott empreendeu uma primeira tentativa de interpretar a relação amorosa como um processo de reconhecimento recíproco. Afinal, neste caso, o desenvolvimento infantil passa a ser percebido através das interações, mais do que transformações pulsionais da criança.

Ao se referir, por exemplo, ao "estágio de interação" denominado "dependência relativa", Honneth dirá que:

Neste sentido, os atos destrutivos e lesivos não são a expressão de uma elaboração negativa de experiências frustrantes; eles formam os meios construtivos com base nos quais a criança pode chegar a um reconhecimento da mãe, isento de ambivalência, como 'um ser com direito próprio': se ela suporta seus atos destrutivos como pessoa capaz de resistência, chegando até mesmo a lhe dar, com negativas, ensejo a erupções de fúria, então ele se torna capaz, através da integração de seus impulsos agressivos, de amá-la sem fantasias narcisísticas de onipotência (p. 169).

Vale esclarecer que Honneth se utiliza de Winnicott intermediado pelo que diz Jessica Benjamim (1996) em seu livro denominado Os laços do amor. Esta psicanalista americana definiu a relação amorosa como um processo de reconhecimento recíproco. E esta visão influenciou Honneth em sua compreensão de Winnicott. O filósofo refere-se a Benjamin (1996), quando trabalha o processo de desligamento da criança como "resultado de manifestações de comportamento agressivo" (Honneth, 2003, p. 169). Ele refere-se também a ela quando pensa sobre "distúrbios de relacionamento, os quais se medem pelas categorias do reconhecimento recíproco" (HONNETH, 2003, p. 176).

Devemos acrescentar que Jessica Benjamim (1996), trabalhou o tema do domínio e criticou a psicanálise tradicional que dá por "formalmente aceito a gênese da estrutura psíquica na qual uma pessoa representa o sujeito e a outra deve servi-lo como seu objeto" (BENJAMIM, 1996, p. 18). Para a autora, neste caso, a psicanálise tradicional postularia que a dominação é inevitável. Diversamente a isto, para a psicanalista americana é possível chegar a uma relação em que ambos os participantes sejam sujeitos, tenham poder e se respeitem mutuamente. O que me parece interessante a ser destacado, contudo, é o argumento desenvolvido por Benjamim quanto ao tema do self. Este é definido como "ponto do espectro total das relações, e não como o 'estado natural', original, do indivíduo" (BENJAMIM, 1996, p. 33). Sustentando-me nesta definição de self winnicotiano é que julgo poder distanciar a teoria do psicanalista inglês das críticas, que tem sofrido daqueles que afirmam que ele teria traçado uma linha desenvolvimentista de nossa constituição. Linha esta que é própria ao individualismo vigente em nosso sistema político atual.

Voltemos, no entanto, ao eixo temático principal deste artigo. A retomada feita por Honneth (2003) da noção de reconhecimento de Hegel influenciou o entendimento sobre as novas formas de fazer política que surgiram nos anos 70/80, quais sejam: lutas de grupos identitários como os de negros, mulheres, LGBTs, etc. O autor esclareceu que essas lutas políticas podiam ser entendidas como lutas por dignidade humana - ou mesmo luta pela consideração às diversas culturas e modos de vida - mais do que demandas por uma justa distribuição de bens materiais.

De vinte anos para cá, todavia, outra forma de pensar a política, também subsidiada pela psicanálise, tem surgido. Uma das intelectuais que tem respaldado esses debates é Judith Butler (2015). Esta filósofa americana parte da noção de um "não-saber" que é prévio ao sujeito. Começa com Lacan que, nas suas palavras:

Deixou claro que qualquer que seja o relato que se dê sobre os momentos inaugurais de um sujeito, ele sempre será tardio e fantasmático, afetado irreversivelmente por um Nachttraglichkeit. A origem só se torna disponível retroativamente e através da tela da fantasia (p. 73).

Neste sentido, Butler pode criticar as narrativas evolutivas que erram, ao supor que o narrador possa estar presente nas origens da história. Afinal, a origem só se torna disponível retroativamente. Ela explora a noção de que a linguagem nos faz pertencer primeiro ao outro e chama atenção para o limite do domínio linguístico e egóico. Da mesma forma, afirma que o que é considerado "expressão" do material psíquico excede a narração (há algo que persiste em ser inarticulável).

Quanto à noção de reconhecimento, Butler dirá que este "não pode ser reduzido à formulação e à emissão de juízos sobre os outros. Na verdade, o reconhecimento, muitas vezes, nos obriga a suspender o juízo para podermos apreender o outro" (p. 63). Neste sentido, ela acredita que a luta pelo reconhecimento de Hegel revela a impropriedade da díade (eu X outro) como quadro de referência para entender a vida social. Isto porque, para entender a vida social, precisamos entender as normas "pelas quais o reconhecimento recíproco pode ser sustentado de maneiras mais estáveis do que suporia a luta de vida ou de morte ou o sistema de servidão" (p. 42). Neste ponto, ela está se referindo à dialética senhor/escravo, de Hegel, e ressaltando a necessidade de acrescentar um conjunto de normas. Este conjunto de normas, referentes ao reconhecimento, é que constituirá e não constituirá a 'reconhecibilidade'.

A autora segue seus argumentos apontando, também, para um excesso e uma opacidade que estão fora das categorias de identidade. Sendo assim, "o esforço de 'fazer um relato de si mesmo' terá de fracassar para que chegue perto de ser verdade. Desse modo, se existe na pergunta o desejo de reconhecimento, esse desejo estará obrigado a se manter vivo como desejo e não se resolver" (p. 61). Deste modo, o que podemos afirmar é que, a partir de uma experiência, é importante construir uma narrativa. Porém, a narrativa nunca é suficiente, sobretudo frente a situações traumáticas.

O que leva Buttler a por a questão deste modo? Penso que isto se dá porque ela quer denunciar as limitações normativas do indivíduo moderno (com seu individualismo possessivo e sua autoidentidade). Subsidiada por sua teoria de gênero, ela deseja afirmar a possibilidade de sermos despossuídos de identidades e, ainda assim, sermos responsáveis pela vida social.

Butler (2015), insistindo no não-narrável, acredita que podemos nos responsabilizar por nós mesmos, enquanto comunidade humana. Expliquemos melhor. Ela nos convida a nos arriscar em momentos de desconhecimento, pois, afinal, a angústia de sermos desfeitos pelo outro é também a oportunidade de sermos "impelidos a agir, interpelados a nós mesmos em outro lugar e, assim, abandonarmos o 'eu' autossuficiente como um tipo de posse" (p. 171). Só assim, diz ela, seremos efetivamente responsáveis pela vida social.

A aposta da autora é a de que, ao nos vermos todos como despossuídos de autossuficiência, poderemos nos responsabilizar pela vida social. O interessante é observar que Butler busca apoio para este seu argumento na psicanálise. Mais especificamente, na transferência própria à clínica analítica, quando o analista se apresenta como outro despossuído de si mesmo. Isto não deixa de ser uma aposta numa relação mais horizontalizada e promovedora de transformações.

Seguindo suas palavras: "Pela transferência a psicanálise traça disposições e cenas relacionais primárias, articulando as cenas de interpelação em que surgem de diversas maneiras os si-mesmos" (p. 76). Neste caso, Butler recorre a Bollas (1992) e ao que ele chama de "conhecido não pensado" e de analista como "objeto transformacional". Ela ressalta que, na mesma linha de Winnicott, Bollas acredita que o analista deva estar preparado para "adoecer situacionalmente" com o paciente, quando chegar o momento. Neste caso, diante de uma difícil situação, o analista pode "ser empregado no idioma ambiental do analisando ao mesmo tempo em que desenvolve uma capacidade reflexiva e deliberada para a análise" (p. 77).

Não pretendo aqui trabalhar as noções, anteriormente citadas, de Winnicott e Bollas. Apenas acho necessário acrescentar que elas se referem aos usos da contra-transferência dentro do trabalho psicanalítico, quando os analistas se apresentam, em certa medida, tão vulneráveis quanto os pacientes. Segundo a autora, essas noções mostram que o "Eu não é uma entidade ou uma substância, mas um conjunto de relações e processos, implicado no mundo dos cuidadores primários de maneira que constituem sua própria definição" (p. 80). Os psicanalistas recém-mencionados mostram, também, que na transferência/contra-transferência há uma recapitulação e re-encenação das cenas primeiras de interpelação que "atua a serviço da narração de uma vida e contribui para a construção de uma história de vida" (p. 80). Isto, mesmo que Butler não abra mão de lembrar que "as articulações de todos os tipos têm limites necessários, dados os efeitos estruturadores do que persiste em ser inarticulável" (p. 81). Inarticulável que Butler entende, sobretudo, como uma espécie de fluxo ligado aos limites corporais que sobrevivem no humano.

Bem, após essa introdução ao pensamento de dois dos filósofos contemporâneos que têm influenciado os debates acerca da relação política/psicanálise, gostaria de pincelar as repercussões que suas discussões têm tido entre os próprios brasileiros. Neste artigo, pretendo me ater a uma leitura mais ligada a Lacan, desenvolvida por Safatle (2013, 2015), e a uma leitura mais ligada a Ferenczi, encaminhada por Gondar (2012). Eles estão aqui pelo mérito de terem feito uma ampla leitura dos livros dos dois filósofos e, a partir daí, tentar articulá-los com a psicanálise, mesmo que, cada um, com seu psicanalista clássico de referência.

Safatle (2013) acredita que Honneth forneceu uma orientação normativa para o desenvolvimento progressivo das lutas sociais. Para sustentar tal argumento, esclarece que o conceito de reconhecimento de Hegel foi recuperado pela primeira vez por Alexandre Kojeve. E quando Honneth retoma Hegel, nos anos 90, ele esquece esta primeira recuperação do conceito. Foi esta leitura de Hegel que gerou a "vertente francesa" dos debates sobre reconhecimento. Mais precisamente, afirma que a interpretação de Kojeve foi a que influenciou Lacan.

Safatle (2013), então, propõe pensar a política, a partir da noção de reconhecimento em Lacan. Afirma que teorias do reconhecimento são normalmente fundadas em teorias da socialização e da individuação e pedem uma ontogênese de constituição do eu autônoma. Acredita, todavia, que a psicanálise lacaniana pode nos fornecer uma compreensão radicalmente distinta. Afinal, em Lacan, "o eu está estruturado exatamente como um sintoma" (p. 196).

Não pretendo, aqui, entrar nos argumentos que sustentam tal compreensão do "eu", se não apenas mostrar que a consequência para Safatle é a de poder tirar uma compreensão política disto. Qual seja: re-compreensão do que podemos entender por reconhecimento social e seus limites. Neste sentido - ao contrário do que acredita ter feito Honneth, já que este teria entendido que "a luta pelo reconhecimento" em Hegel constituiria "a força moral que impulsiona a realidade vital social humana em direção ao desenvolvimento e ao progresso" (p. 210) -, sustenta que, em Hegel, há uma realidade ontológica da negação, junto com a natureza profundamente indeterminada do desejo. Assim, Safatle postula que privilegiando esta concepção de desejo e a concepção de pulsão de morte em Freud (que ganhou uma positividade a partir da interpretação empreendida, sobretudo, por Lacan), podemos nos referir a sujeitos que procuram ser reconhecidos em um campo político, fora dos processos culturais de produção de identidades.

É justamente neste ponto que Safatle (2015) procura subsídios no que diz Judith Butler. Ele acredita que, precisamente, a teoria de gênero da filósofa americana "será uma astuta teoria de como, através da experiência de algo no interior da experiência sexual que não se submete integralmente às normas e identidades, descubro que ter um gênero é um 'modo de ser despossuído'" (p. 174). Este "modo de ser despossuído", que serve de crítica ao capitalismo individualista e possessivo só pode ser sustentado por Butler porque, segundo Safatle, ela se dedicou ao conceito de desejo baseada, por sua vez, na interpretação "francesa" de Hegel.

Safatle procura argumentar, ainda, que Butler define gênero enquanto aparato discursivo/cultural que se sustenta, por seu turno, numa "naturalidade" entendida a partir da noção de "jogos de força" nietzschiana. Segundo Safatle (2015), isto poderia explicar o porquê dela entender o gênero como um "processo contínuo de repetições que, ao mesmo tempo, anula a si mesmo - pois mostra a necessidade de repetir-se para subsistir - e aprofunda suas regras" (SAFATLE, 2015, p. 189).

Vamos, agora, ao outro texto, que sinaliza a repercussão que tem Honneth e Butler, entre os autores brasileiros que pretendem pensar política e psicanálise hoje. Neste último trabalho, porém, a proposta foi vinculá-los à psicanálise de Ferenczi, já que se propõe a extrair, dos textos do psicanalista húngaro, a sua dimensão política. Ao se debruçar sobre o pensamento de Honneth, Gondar (2012) entende, por reconhecimento, a "necessidade vital que possui todo indivíduo de ser visto, ouvido, aprovado e respeitado pelas pessoas que o cercam" (p. 199).

Estando o reconhecimento no cerne das reivindicações políticas do campo social, procura entrelaçá-lo às noções de trauma e desmentido de Ferenczi. Neste sentido, dirá que "um bom número de contribuições teóricas e técnicas de Ferenczi pressupõe a quebra da verticalidade e da hierarquia na relação analítica" (p. 204). Além do mais, ao aceitar os limites do saber do analista, Ferenczi fundaria as "relações subjetivas (analíticas ou não) sobre a precariedade de todos nós" (p. 204).

Ressaltando o valor do reconhecimento da precariedade de todos nós, Gondar (2012), referindo-se a Ferenczi acrescenta:

É neste ponto que as ideias de um psicanalista da primeira geração encontram as de uma filósofa contemporânea, a norte americana Judith Butler ... ela propõe uma nova forma de polítização cujo fundamento não mais reside no pai ou no Estado, mas na vulnerabilidade presente em todos nós (p. 206).

Gondar (2012) critica a tendência pessimista que certos psicanalistas demonstram, quando diante do declínio do pai ou do Estado, no que tange a uma nova forma de politização. Critica, também, a tendência dos que são menos pessimistas - já que admitem a feminilização da cultura -, porém, de certo modo, se negam a abandonar a referência fálica como princípio e norma social. Lembra, então, que a horizontalidade presente nas novas maneiras de atuarmos, não é feminina nem masculina.

Gondar (2012) finaliza dizendo que, em termos políticos, o importante hoje é uma distribuição mais justa tanto da vulnerabilidade quanto da proteção a ela. Sugere, assim, uma vertente da psicanálise menos devedora tanto da noção de "grande outro" quanto da "referência fálica". Afinal de contas, e como também argumenta Butler, somos todos precários, sujeitos a perda e ao luto.

A afirmação anterior sustenta-se na compreensão da teoria pulsional estreitamente vinculada à filosofia de Deleuze - quando a pulsão de morte, por exemplo, para além da repetição destrutiva, seria entendida como princípio de diferenças, livres de submissões identitárias. Isto, em alguma medida, é diferente da leitura da pulsão que faz Safatle, já que esta última é tributária, tanto de certa perspectiva da filosofia de Hegel, quanto da teoria crítica de Adorno. A horizontalidade pensada por Gondar (2012), por seu turno, sustenta-se na proposta feita por Ferenczi, de analisar a criança que existe no adulto. Assim, o analista abriria "mão do lugar verticalizado de suposto saber para arriscar-se situar-se na mesma linha em que a criança que existe em seu paciente está" (p. 203).

 

Para terminar

Acredito que a importância do debate, em torno da dimensão política dos textos psicanalíticos hoje, encontra-se na tentativa de recolocar a psicanálise presente nas discussões mais amplas da cultura. Diante das articulações aqui colocadas, não vejo porque a psicanálise poderia ser considerada como aquela que nada tem a dizer sobre nosso contexto político contemporâneo. Muito pelo contrário.

Ao longo do artigo, tentei mostrar a importância da psicanálise para aqueles que pensam a política. Isto, no sentido em que ela pode ser considerada, não apenas uma prática psicoterápica, mas também uma teoria do sujeito na cultura. Hoje, mais que nunca, a política se vê às voltas com reivindicações de sujeitos que querem ser reconhecidos em suas particularidades. As fronteiras entre local e universal, bem como entre singular e plural, estão se dissolvendo. Por isto, acredito que os debates sobre política têm muito a ganhar se recorrerem ao campo psicanalítico.

No que tange aos dois autores brasileiros que debateram psicanálise e política (quando, por seu turno, também recorreram a Honneth e Butler), e que foram aqui sumarizados, penso que ambos parecem sustentar que a relação do sujeito com a cultura é, ao menos inicialmente, traumática. Isto, mesmo que a segunda autora tenha ressaltando que o desmentido da sedução sofrida pela criança, por parte do adulto, é o que, efetivamente, constitui o trauma, já que o desmentido é que torna o trauma patológico.

O que gostaria de acrescentar é que podemos também afirmar que esta relação (do sujeito com a cultura) não, necessariamente, é traumática. Neste caso, ao invés de "sujeito" podemos pensar em termos de "ser". Nesta perspectiva, volto a Winnicott que, afinal de contas, foi o principal psicanalista trabalhado por Honneth em seu livro A luta por reconhecimento. Para o psicanalista inglês, a relação do ser com a cultura não é, necessariamente, traumática. O outro-ambiente não vem em oposição assimétrica. Ele é aquele que dá forma ao ímpeto da criança. Em suas palavras: "A integração entre originalidade e a aceitação da tradição como base da inventividade parece-me apenas mais um exemplo, e um exemplo emocionante, da ação recíproca entre separação e união" (WINNICOTT, 1975, p. 138).

Sobre este último ponto, podemos recorrer a Philips (1988). Ele esclarece que:

Influenciados obliquamente pelo Existencialismo, o 'Middle Group' tendeu a desenhar suas redescrições de Freud da biologia, da etologia e da literatura, e não da linguística e da filosofia continental. Darwin, em vez de Hegel ou Nietzche, era um espírito de presidência no trabalho (p. 11).

Especificamente sobre cultura em Winnicott, ele nos acrescenta:

Nos escritos de Winnicott, a cultura pode facilitar o crescimento, como a mãe; [...] o homem só pode encontrar-se na relação com os outros e na independência ganha mediante o reconhecimento da dependência. [...] para Winnicott o homem seria um animal dependente, para o qual o desenvolvimento - a única 'coisa dada' de sua existência - era a tentativa de tornar-se 'isolado sem ser insulado' (PHILIPS, 1988, p. 7).

Nesta perspectiva psicanalítica, a cultura não vem em contraposição a nossas ações.

Esse debate final pode, todavia, distanciar-nos de nosso objetivo principal do artigo que foi entrelaçar psicanálise e política a partir das noções de "reconhecimento" de Honneth (2003) e "despossessão de si" de Butler (2015).

Podemos, então, concluir dizendo que acreditamos que o debate sobre política pode ampliar a compreensão dos próprios psicanalistas sobre suas práticas. Práticas daqueles que, sobretudo, não se restringem a trabalhar na clínica psicanalítica de consultório. Sabemos que tem sido cada vez mais frequente a migração do setting analítico clássico para espaços sociais mais amplos. E trabalhar em espaços diferentes do tradicional exige um exercício constante de problematização de nossa prática.

Cabe perguntar, portanto, como podemos legitimar um trabalho, dito analítico, quando o enquadre não é o convencional? E, se não é convencional, provavelmente significa trabalhar com população socialmente vulnerável ou dentro de uma Instituição. Nesses casos, a tentativa de problematizar a dimensão política do campo psicanalítico torna-se ainda mais fundamental. E, neste sentido, espero ter contribuído para este debate.

 

 

Referências

BENJAMIN, J. Los lazos de amor: psicanálise, feminismo y el problema de la dominacíon. Buenos Aires: Paidós, 1996.         [ Links ]

BOLLAS, C. A sombra do objeto: psicanálise do conhecido não pensado. Rio de Janeiro: Imago, 1992.         [ Links ]

BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.         [ Links ]

GONDAR, J. Ferenczi como pensador político. Cadernos de Psicanálise-CPRJ, Rio de Janeiro, v. 34, n. 27, p. 193-210, 2012.         [ Links ]

HONNETH, A. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo, Editora 34, 2003.         [ Links ]

PHILIPS, A. Winnicott. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1988.         [ Links ]

SAFATLE, V. Abaixo de zero: psicanálise, política e o "déficit de negatividade" em Axel Honneth. Revista Discurso. São Paulo, n. 43, 2013.         [ Links ]

SAFATLE, V. Dos problemas de gênero a uma teoria da despossessão necessária: ética, política e reconhecimento em Judith Butler. Posfácio do livro de Judith Butler, Relatar a si mesmo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.         [ Links ]

WINNICOTT, D. A localização da experiência cultural. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 06/03/2017
Aprovado para publicação em: 26/04/2017

Endereço para correspondência
Maria Regina Maciel
E-mail: mreginamaciel@terra.com.br

 

 

*Psicanalista, membro efetivo Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ), professora associada/Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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