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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.39 no.37 Rio de Jeneiro jul../dez. 2017

 

ARTIGOS

 

Representações simbólicas do dinheiro na obra freudiana

 

Symbolic representations of money in Freudian theory

 

 

Lillian Nathalie Oliveira da Silva*; Rogério da Silva Paes HenriquesI**

IUniversidade Federal de Sergipe - UFS - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nas situações cotidianas, o dinheiro aparece com acentuada relevância e torna-se difícil a delimitação de um contexto, em que ele não esteja direta/indiretamente envolvido. Estudos econômicos apontam que a racionalidade frente ao dinheiro se faz limitada e insuficiente frente aos comportamentos financeiros. Considerando a importância com que é revestido, o artigo pretende abarcar como o dinheiro é tratado na obra freudiana, através de uma releitura dos artigos, em que Freud lida, diretamente, com a questão monetária. Em Freud, o dinheiro aparece permeado por diversas simbolizações, atrelando-se de forma permanente aos distintos mecanismos do aparelho psíquico.

Palavras-chave: Freud, Dinheiro, Pulsão, Simbolização.


ABSTRACT

In everyday situations, money appears as having a marked relevance and it is difficult to delimit a context in which it is not directly/indirectly involved. Economic studies indicate that rationality against money is limited and insufficient in the face of financial behavior. Considering the importance with which it is coated the article intends to cover how money is treated in the Freudian work, through a re-reading of the articles in which Freud deals directly with the monetary question. In Freud, the money appears permeated by several symbolizations, permanently attaching itself to the different mechanisms of the psychic apparatus.

Keywords: Freud, Money, Trieb, Symbolization.


 

 

Na maioria das sociedades civilizadas, quase tudo tem um preço. O dinheiro é um artefato que se instaura nas inúmeras atividades da vida cotidiana, tornando-se difícil o apontamento de qualquer contexto em que ele não se implique direta e/ou indiretamente. Há, até mesmo, discussões sobre serem as condições econômicas o motor da história das civilizações (FERGUNSON, 2007).

A psicanálise surge como um procedimento peculiar, algo original e especial, que só pode ser apreendida através de novas formas de compreensões internas, novos insights (FREUD, 1926/1996), pois entra numa esfera humana diferenciada da racionalidade e escancara um sujeito pulsional, movido pelo desejo e pelos ditames do inconsciente.

Dentro mesmo do âmbito psicanalítico, a questão do dinheiro dá vazão para muitos entrelaces na clínica e teoria, causando questionamentos e levantando diferentes posições quanto ao seu manejo e possíveis simbolizações (BORGES E ZANETTI, 2012; FIGUEIREDO, 1997; MARTIN, 1984/1997; QUINET, 2009; NORONHA, 2007). Considerando a importância com que é revestido, o artigo pretende abarcar como o dinheiro é tratado na obra freudiana, visto ser Freud o fundador da teoria que pontua uma esfera do humano difícil de ser apreendida em instâncias puramente racionais.

Trata-se, portanto, de uma releitura da obra freudiana no que concerne às atribuições dadas ao dinheiro, pretendendo subsidiar pesquisas sobre o seu manejo na clínica psicanalítica, bem como na análise da importância que lhe é concedida socialmente, visto que as questões econômicas são tão complexas para o manejo da vida social que disciplinas independentes têm mantido interfaces, na tentativa de dar conta dos fenômenos econômicos vivenciados, mas, de maneira geral, a racionalidade frente ao dinheiro se faz limitada e imprime um abismo entre as ações econômicas desejadas e as de fato verificadas (FERGUSON, 2007).

Analisando as relações estabelecidas entre o sujeito e o dinheiro, em que este se constitui como um artefato indispensável e valioso para a vida em sociedade, em Freud se torna possível o aclaramento deste como objeto não só representacional de necessidades, mas constitutivo e estruturante do ser.

 

Freud e a simbolização monetária

As primeiras inquietações de Freud acerca do dinheiro e suas relações simbólicas podem ser encontradas anteriormente às suas publicações originais. Ao trocar correspondências com Fliess (FREUD, 1986), Freud vem tecendo, ao longo de 1897, nas cartas de 24/01 e 22/12, analogias iniciais entre fezes e dinheiro, dinheiro e sujeira, articulando, de forma despretensiosa, alguns conceitos fundamentais da teoria psicanalítica como os de recalcamento, neurose obsessiva, zonas erógenas e erotismo anal, conceitos estes originários, no que concerne ao simbolismo do dinheiro na psicanálise.

Na mesma linha, em A interpretação dos sonhos (1900/1996), Freud considera que "os sonhos com estímulo intestinal lançam luz, de maneira análoga, sobre o simbolismo neles envolvido, e ao mesmo tempo confirmam a ligação entre o ouro e as fezes, que é também apoiada por numerosas provas oriundas da antropologia social." (p. 436).

No entanto, o tema começa a ser mais bem delimitado em sua obra a partir da reformulação de seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 1905/1996), em 1915, no qual o conceito de zona erógena é estabelecido. Freud denomina por zona erógena órgãos do corpo que fornecem excitação, especificamente de ordem sexual, sendo fonte das pulsões parciais. No delineamento de suas características, atenta para a importância e atividade da zona anal, a qual conserva durante toda a vida uma parcela considerável de excitabilidade genital.

No ato de defecar, a criança expressa as primeiras relações de negociação. Através do autocontrole esfincteriano, recusa ou concorda afetivamente com a mãe cuidadora, pois o ato próprio contém sensações de volúpia mescladas às dolorosas. Na relação de negociação, as fezes adquirem também o sentido de presente, tendo em vista que se constituem como parte do próprio corpo. A criança exprime sua docilidade ou obstinação presenteando por meio da evacuação ou hostilizando através da retenção. Posteriormente, transfere as fezes do sentido de presente ao de bebê, que segundo Freud, nas teorias sexuais infantis, os dois - fezes e bebê - são ingeridos pela comida e provém do intestino (FREUD, 1905/1996).

A próxima contribuição sumária ao assunto, demonstrativa de uma série de equivalências pormenorizadas, delineou-se em 1908, quando Freud, partindo de sua experiência na clínica, faz analogias entre alguns traços de caráter e a relação dinheiro/sujeira/sexualidade. Em Caráter e erotismo anal (FREUD, 1908/1996), expõe que há certos indivíduos que possuem traços de caráter - ordem, parcimônia e obstinação - que se correlacionam com comportamentos das funções e órgãos corporais na infância. No período infantil, essas pessoas sofreram algumas falhas na função de defecar, bem como de incontinência. Continham as fezes no intestino, pois sentiam um prazer suplementar no ato e não o querem a despeito da ordem de outra pessoa. A constituição sexual infantil, nessas pessoas, possui uma alta carga de excitabilidade a partir da zona erógena anal, porém foi perdendo a erotização com a maturidade.

Fazendo um paralelo entre os postulados dos Três ensaios, Freud pontua a complexidade da sexualidade humana. Salienta as contribuições das partes erógenas do corpo (genitais, boca, anus e uretra) na excitação sexual, mas lembra que a quantidade de excitação, provinda dessas partes do corpo, não permanece a mesma em todos os períodos da vida. E somente parte dessas excitações permanece de fato como de ordem sexual, sendo o resto sublimado para outros destinos durante o período de latência. Nessa fase, as excitações provenientes das zonas erógenas acabam por tomar características até opostas a esse fim, como forma de mascaramento das pulsões.

Isso acontece de uma forma peculiar com a tríade de traços de caráter anteriormente descritos. As pessoas parcimoniosas, ordeiras e obstinadas, outrora obtinham no ânus uma intensa fonte de excitação, porém, com a sublimação, esse erotismo é transformado no seu avesso, anunciando a limpeza, ordem e fidedignidade como o contrário de uma sujeira perturbadora que não lhe devia pertencer. Com o desenvolvimento sexual, as fezes, que antes eram jubilosas e continham até mesmo o sentido de dádiva e presente, transformam-se em seu oposto e viram sinônimo de sujeira (FREUD, 1908/1996).

Freud faz, nesse sentido, uma analogia direta com o dinheiro afirmando que há muitas conexões entre os complexos de apego ao dinheiro e da defecção. Inicialmente, afirma que pacientes com problemas de constipação podem ser mais habilmente tratados a partir do seu complexo monetário. Assim como, nas mais arcaicas formas do pensamento humano, o dinheiro é intimamente relacionado à sujeira. A linguagem popular até mesmo identifica aquele sujeito muito apegado ao seu dinheiro como um sujeito sujo, bem como os mitos, os contos e as superstições fazem essa ligação.

Segue, dessa forma, abordando exemplos correlatos, em que até nos pensamentos religiosos "o ouro entregue pelo diabo a seus bem-amados converte-se em excremento após sua partida, e o diabo nada mais é do que a personificação da vida instintual inconsciente reprimida" (FREUD, 1908/1996, p. 162-163), assim como pensamentos supersticiosos ligam a descoberta de um tesouro com a defecação e segundo antigas doutrinas o ouro é equiparado às fezes do inferno. Freud diz que,

assim, aqui como em outras ocasiões, a neurose, acompanhando os usos da linguagem, toma as palavras no seu sentido original e significativo; parecendo utilizá-las em seu sentido figurado, está na realidade simplesmente devolvendo a elas seu sentido primitivo (FREUD, 1908/1996, p. 163).

Percebe-se que Freud correlaciona, inicialmente, o dinheiro às fezes por meio da sujeira. Porém, considera também que a neurose trabalha através de um mecanismo potente de formação reativa e, portanto, "é possível que o contraste existente entre a substância mais preciosa que o homem conhece e a mais desprezível, que eles rejeitam como matéria inútil ('refugo'), tenha levado a essa identificação específica do ouro com fezes" (FREUD, 1908/1996, p. 163).

Outra provável circunstância dessa equivalência é que o interesse erótico na defecação, aquele concernente ao presente na infância como parte de si, ou como obtenção de prazer e de vontade própria, acaba por se extinguir posteriormente. Quando esse erotismo vai se perdendo, é substituído por interesse pelo dinheiro, que não se fazia presente na infância, fato que facilita a transferência dessa transformação da pulsão. À medida que a criança cresce, o dinheiro aparece como instrumento facilitador na transformação da excitação sexual existente na zona anal para a sublimação em sua formação reativa; "facilita a transferência da impulsão primitiva, que estava em processo de perder seu objetivo, para o nosso objetivo emergente" (FREUD, 1908/1996, p. 163).

Em 1913, Freud (1913b/1996) traz contribuições traçando perspectivas sobre os fatores determinantes na escolha do tipo de neurose, alertando que diferentemente à proposição geral que delega à genética e hereditariedade toda ocorrência, o humano sofre transmutações psíquicas ao longo da vida, com desenvolvimento da função sexual, bem como de outras importantes funções do Eu. Há, no entanto, um ponto de fixação nesse desenvolvimento, para o qual o indivíduo pode retornar quando ameaçado pelo mundo. Assim, esclarece que fatores determinantes no desenvolvimento da neurose obsessiva relacionam-se, intimamente, com os impulsos de ódio, oriundos do erotismo anal.

Trilhando os caminhos das transformações das pulsões, Freud (1917/1996) as delineia exemplificando-as no erotismo anal e segue a linha, tecendo elos entre o caráter anal e sua relação com o dinheiro. Dessa forma, pontua que, no desenvolvimento sexual humano, há um importante período pré-genital, comandado pelo sadismo e erotismo anal. Aponta a questão como oportunidade de esclarecimento acerca das transformações das pulsões através da analidade, concatenando a ideia de uma cadeia simbólica de identificação na qual as crianças tendem por criar, pondo em patamar de igualdade os conceitos de fezes, bebê, dinheiro e pênis.

Nos produtos do inconsciente, seguindo as explanações tecidas até então, os conceitos de fezes (dádiva, dinheiro), bebê e pênis são equiparados e mal se distinguem uns dos outros, podendo facilmente se substituírem. Observa-se que aqui Freud já considera o dinheiro como equivalente de fezes, uma vez que tratou de explanar as possíveis associações no artigo de 1908.

Nessa lógica simbólica, há o encadeamento da neurose na mulher, através do complexo de castração, havendo desejos variados na vida posterior, os quais são derivados da inveja do pênis. Tais desejos concernem na transformação do desejo do pênis pelo desejo por um homem, que se torna um suplemento do pênis. Noutras possibilidades, o desejo se permuta para um bebê (FREUD, 1917/1996).

De acordo com as teorias sexuais infantis, retomando o tratado no artigo anterior, o bebê segue a mesma linha de existência que as fezes e torna-se compreensível o fato de as fezes terem, inicialmente, o significado de dádiva e não o de dinheiro pelo fato deste ser desconhecido para a criança, o que o torna propício à transferência desse interesse através das transformações da energia libidinal (FREUD, 1917/1996).

Dos tratados de Freud acerca do dinheiro, torna-se importante pontuar a presença do outro entre o complexo monetário e analidade. Ao passo que o controle esfincteriano é estimulado pela presença do outro, bem como a passagem simbólica das fezes em dinheiro se faz sempre na relação de troca, o surgimento do dinheiro como artefato indispensável para as negociações financeiras se dá também através da necessidade de contato com o outro, com comunidades fronteiriças, que necessitam de aprimoramento nos sistemas de troca e intercâmbio de mercadorias (ROBERT, 1989). Há, portanto, equivalências estruturais entre a simbologia do dinheiro em nível inconsciente com aquela surgida historicamente.

As fezes são algo provindo do corpo, um bem essencial e valioso, isso as torna o primeiro elemento de troca genuína. É algo em que o bebê dispõe de propriamente seu e que já não tenha sido adquirido de fora. Nesse mesmo sentido, as comunidades primitivas faziam usufruto do que dispunham genuinamente, a partir de seu trabalho direto e somente com o contato com outras comunidades puderam reconhecer outras formas de necessidade. As produções iniciais eram advindas somente por meios intrínsecos a quem as produzia, a partir do trabalho - o bem mais legítimo de que se dispunha - e a partir da progressiva complexidade da troca é que o dinheiro vem a se estabelecer.

Nos dois níveis de simbolização, o dinheiro possui um caráter secundário, elaborando-se, posteriormente, através da transformação das fezes e das mercadorias, respectivamente em suas formas pulsional e histórica. O dinheiro possibilita a simbolização da troca, bem como da causa da troca, que escancara a incompletude pulsional humana que estimula a sublimação das pulsões originárias. Se historicamente o dinheiro surge como facilitador do processo de troca de mercadorias entre as comunidades, no indivíduo ele facilita a transferência da pulsão (anal).

 

A simbolização monetária na clínica psicanalítica

Para além das considerações de equivalências simbólicas elaboradas por Freud acerca do dinheiro, há referências do manejo deste no tratamento psicanalítico, em que o dinheiro é posicionado de forma elementar ao lado de outros cuidados indispensáveis ao encaminhamento da clínica.

Em Sobre o início do tratamento, Freud (1913a/1996) vem, pormenorizadamente, tecer algumas recomendações de maneira não mecanicista, tendo em vista a subjetivação dos processos psíquicos com os quais a psicanálise se ocupa. Ao lado de posicionamentos elementares os quais o analista deve tomar no início do tratamento analítico - a saber, o período de ensaio preliminar, diagnóstico diferencial, não compatibilidade entre análise e amizade, e tempo -, Freud inclui o manejo do dinheiro e discorre, de maneira preponderante, suas recomendações.

Inicia, portanto, indiciando que, ao lado das funções de autopreservação e obtenção de poder, o dinheiro carrega consigo poderosos fatores sexuais. Mas, assim como as questões sexuais, os humanos tratam de dinheiro com hipocrisia e falso moralismo e levando em consideração a sutileza com que a psicanálise deve desvelar a sexualidade, o analista não pode servir como extensão ao preceito, devendo ele mesmo mostrar que os dois assuntos podem ser habilmente tratados, sendo o próprio analista desavergonhado o suficiente para estimar o valor do seu tempo dispendido.

Para Freud, o "valor de um tratamento não é aumentado aos olhos do paciente quando se cobra bem pouco por ele" (p. 133) e um tratamento eficaz deve ser bem cobrado, tendo em vista os benefícios efetivos que proporciona, tal qual o trabalho de um médico cirurgião. O pagamento da análise se faz importante tanto para a simbologia existente na relação analítica, como para o indicativo de considerar a psicanálise com as mesmas prerrogativas de um ofício, visto que o analista necessita sustentar-se na vida e na profissão, produzindo um trabalho habilidoso.

Considerando que Freud se instituía como pesquisador e fundador da nova clínica e teoria, recomenda aos psicanalistas, pautado em sua experiência, que não há ganhos em ambas as partes - analista e paciente - ao se disponibilizar tratamentos gratuitos. Este tipo de tratamento, contrário ao esperado, aumenta algumas resistências do paciente no que concerne à relação transferencial e ao sentimento de dívida de gratidão. Nas mulheres, a questão se atrela à transferência. Se o analista a atende sem honorários, implica que ele obtém ganhos com isso, outros ganhos que não o do tratamento, em ser o profissional analista. Pode decorrer assim do estabelecimento pautado na ilusão do amor romântico e mesmo no amor paternal. Nos homens, gera o sentimento desgastante do dever da gratidão, que remonta originariamente ao complexo paterno, o que, por sua carga simbólica, finda por impor ainda mais obstáculos ao tratamento. Dessa forma, o fato de privar o paciente desse efeito regulador proporcionado pelo pagamento retira dele um considerável motivo para buscar o fim do tratamento.

Freud pontua as dificuldades de a psicanálise embrenhar-se no tratamento de pessoas com menor poder aquisitivo, expondo que, quanto a isso, nada de muita relevância possa ser feito. Mesmo porque quem possui duros problemas a enfrentar na vida real cotidiana, dispõe de menos pretensão à neurose. O tratamento para pessoas de muito baixo poder aquisitivo se faz, habilmente dificultoso, pois, uma vez que não pode pagar, traz consigo todos os problemas citados anteriormente, com o agravante de ser sua neurose quase incurável pelo fato de haver muitos ganhos secundários na doença e, portanto, suas resistências em tratá-la serão proporcionalmente contrárias aos ganhos. O indivíduo, dessa forma, pode aproveitar-se de sua neurose para resgatar o que lhe foi negado materialmente e se tornar contrário a sair da situação de pobreza através de seus próprios esforços e força de trabalho devido ao ganho recompensador.

Freud finda a questão do manejo do dinheiro a partir da recomendação de que quem dispõe de condições financeiras moderadas e pode pagar por um tratamento de si, sem dúvida obterá melhores resultados através do dispêndio frequente com uma psicanálise, com retorno de saúde e realização pessoal, em contraponto aos gastos infindáveis com tratamento médico, que não tratam o requisito de realização pessoal.

Como é reconhecida a forma peculiar de Freud em reaver suas concepções e postulações acerca da psicanálise, em 1918, se pronunciando sobre Linhas de progresso na terapia psicanalítica, o autor retoma a perspectiva de uma análise gratuita e, dessa vez, não se faz opositor de uma possível aplicação - não da ótica de que as classes menos abastadas não são condizentes com as neuroses ou que a forma dura com que a vida se lhe impõe dispense uma análise pessoal. Maleavelmente, Freud antever que, mais cedo ou mais tarde, "a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma assistência à sua mente, quanto o tem, agora, à ajuda oferecida pela cirurgia, e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose" (FREUD, 1919/1996, p. 180). No contexto estabelecido, a preocupação concerne nas possíveis transmutações que poderá se por a psicanálise frente à necessidade de adaptação de práticas clínicas em larga escala, incorrendo-se no risco de descaracterização da psicanálise genuína para o atendimento das demandas. No entanto, faz-se importante conjecturar que os elementos indispensáveis num tratamento nesse contexto são aqueles capazes de manter uma psicanálise não sugestiva e não tendenciosa.

Ainda no contexto da clínica, há em Freud (1909/1996) uma explanação de caso clínico que lida diretamente com as equivalências simbólicas do dinheiro e sua importância na constituição da neurose. O caso do Homem dos ratos é a história clínica do Tenente Ernst Lanzer, que procura Freud com um sofrimento em demasia por causa de uma dívida ínfima contraída a respeito de uns óculos comprados pelos correios. O tenente Ernst se impressionara, certa vez, com a historieta de um capitão que havia aplicado um castigo cruel em que se envolvia ânus e ratos. Dias depois da grande impressão sobre o castigo, Ernst perdeu os óculos e pediu novos deles pelos correios. Recebendo os óculos, o tenente se impôs, como obrigação, o pagamento da dívida em questão, sob a pena de recair o castigo dos ratos à moça a quem amava ou ao pai já morto. No entanto, a dívida contraída sofreu distorções sobre a quem deveria ser paga e a promessa feita pelo tenente a si mesmo se tornou difícil de ser cumprida. Logo, o castigo estava na iminência de acontecer se não houvesse solução para o caso.

Assim, Freud descobre na trama que o elemento central é a dívida e, articulando ao romance familiar, descobre que o pai do Homem dos ratos era um devedor que contraía dívidas apostando dinheiro em jogos de azar. Na atual conjuntura de sua situação, com a dívida dos correios, Ernst se vê identificado ao pai devedor, além do agravante de saber, por meio de sua mãe, que o pai também havia abandonado o amor de sua vida para casar-se com a mãe de Ernst por dinheiro. A identificação, nesse segundo ponto, também se faz presente na dúvida própria do tenente com a escolha entre uma empregada do albergue em que se hospedava e a moça dos correios a quem ele devia os óculos (que era rica para Ernst porque podia pagar os óculos).

O caso se segue entre os ciframentos próprios do funcionamento da neurose obsessiva, mas Freud pontua um deslocamento no jogo de palavras como o ponto chave. A palavra Ratten (ratos) era deslocada em sua associação para Raten (dívida) e para Spielratte (rato de jogo-pai). Ao ser comunicado por Freud sobre o preço da sessão, Ernst completou mentalmente a sentença "tantos florins, tantos ratos", o que não deixa dúvidas quanto à associação feita entre o dinheiro e os ratos.

Outras equivalências existiam também sobre a palavra rato que, na cadeia simbólica, se ligava a pênis e fezes e, por isso, o castigo pelo ânus se fazia tão impressionante. Nesse caso, portanto, Freud traça, na cadeia simbólica do tenente Ernst, toda a equivalência simbólica já transcrita naqueles objetos protuberantes do corpo - fezes/bebê/pênis/falo.

 

Da fronteira monetária entre a clínica e o social

Na perspectiva clínica trazida por Freud, o dinheiro se institui como objeto condensador de instâncias caras ao sujeito, pois perpassa fatores sexuais, de autopreservação e de obtenção de poder. A história, por sua vez, aponta que o dinheiro por si só não é digno de valor, mas passa a valer por representar a coisa real. É ele que está nos diferentes cenários como motor da história ou, no mínimo, atrelado ao desenvolvimento das diferentes civilizações. Surge, dessa forma, através do processo de intercâmbio entre comunidades, adquirindo formas e performances diversas a depender do contexto em que se inseria ao longo da história (ROBERT, 1989; FERGUSON, 2007).

Levando em conta que o sujeito humano se institui somente em relação, assim como o dinheiro também só existe em função da linguagem, o complexo monetário indica uma saída do eixo da necessidade isolada para o âmbito da demanda e do desejo (QUINET, 2009), uma vez que o humano não comporta o conceito de necessidade, mas é constituído como um ser movido por pulsões, advindo de um furo impossível de sutura.

Dessa forma, se o sujeito se constrói em relação como fruto da coletividade, o dinheiro não se constitui somente enquanto objeto com efeitos pulsional e representacional do sujeito, mas é detentor de uma capacidade estruturante sobre o psiquismo. É objeto ativo e quase vivo, capaz de postular certa dependência dada a sua força potencializadora. Para Sahovaler (2014),

o dinheiro institui a "ausência" dentro do âmbito dos intercâmbios sociais. Dado que nenhuma coisa está definitivamente inscrita na moeda e falta toda referência a algum objeto particular, o dinheiro serve para adquirir qualquer objeto; assim, de modo metonímico, por deslocamento, o dinheiro se transforma em qualquer coisa até se converter em uma referência metafórica do falo, da vida, da completude (p. 86).

O dinheiro, a partir de sua propriedade de tornar-se qualquer tipo elementar, se põe num lugar objetal fluido e estável simultaneamente, e, dessa forma, influencia significativamente a subjetividade. Isso implica dizer que o dinheiro, por si mesmo, não é somente aquele objeto depositário das pulsões, mas é estruturante. É, ao mesmo tempo, transformador e passível de transformação por situar-se na fronteira entre o individual e o social. Para trespassar a ordem da necessidade à do desejo, requer a passagem pelas relações sociais que o estruturam, pois surgido essencialmente como um meio coletivizado, representa socialmente o limite egoico, e não se faz somente parte do meio ou uma forma social de troca, visto que não se inscreve com formas específicas, mas pode se converter simbólica e metaforicamente na ilusória completude (SAHOVALER, 2014).

Algumas teorias psicológicas seguem um movimento de atribuição de significados e valores ao dinheiro como algo dado, estabelecido, com o principal objetivo de subsidiar pesquisas sobre o comportamento econômico cotidiano (MOREIRA e TAMAYO, 1999; MOREIRA, 2002; LAUER-LEITE et al., 2014). Embora estudiosos das ciências econômicas indiquem uma correlação entre os fatores econômicos e a cadeia de motivação humana, as produções, no âmbito da psicologia, carecem de uma articulação desses significados a um sujeito que se desenvolve a partir do mundo conduzido economicamente; de um sujeito que conferiu, ao longo da história, uma importância acentuada ao dinheiro; um sujeito que foi ordenado pelos modos de produção e que validou esses modos simultaneamente.

No imaginário social, o dinheiro tem atributos de metamorfosear-se em desigualdade, progresso, cultura, poder, desapego, conflito, estabilidade, sofrimento, dentre outros tantos significados variáveis de acordo com a abundância ou escassez com que ele aparece. O dinheiro é relacionado, ainda, a fatores como altruísmo e, em contrapartida, aparece também como causador de conflitos e distanciamento entre as pessoas (MOREIRA e TAMAYO, 1999).

É nessa carência de um sujeito ativo que a psicanálise indicou um caminho aos estudos sobre os comportamentos econômicos já estabelecidos. Na elaboração estrutural de um ser que modela e é modelado pela realidade. E nesse sentido, a psicanálise pôde contribuir para uma interpretação do dinheiro como detentor de tantos atributos e da verificação de um lugar proeminente.

A partir do tratado por Freud acerca do dinheiro, a marca fálica se sobrepõe na dimensão do desejo, a castração, evidenciada nos objetos fálicos equivalentes no inconsciente, faz-se presente sobrepondo, de forma fluida, as dimensões estruturantes do ser. Se, na dimensão do desejo em que os fatores sexuais se atrelam invariavelmente aos fatores de autopreservação, o dinheiro implica a sexualização e denota uma falta no ser decorrente da incompletude e necessária presença do outro; na condição de obtenção de poder, o dinheiro ilusiona a onipotência narcísica, dissimulando a falta inerente ao humano, dando o indicativo de que tudo pode proporcionar, mascarando a castração. Na lida com o dinheiro, em seu aspecto de instrumento de poder, tem-se a impressão de não ser barrado, não ser marcado pela castração.

Pelo mesmo atributo de barganha e negociação em que dinheiro e fezes se equivalem na discussão freudiana da vida infantil, ele denota também a atribuição de instrumento de poder, pois, a partir do poder de compra, abrem-se possibilidades para novas formas de poder social (SMITH, 1996). Quanto maior for a posse do dinheiro, tanto maior é a capacidade de adquirir bens e serviços disponíveis no mercado. O direito de deter para si a capacidade de aquisição materializa o poder de decisão, que, por sua vez, conduz a influência no poder econômico e político. Esses direitos podem influir, portanto, nos próprios rumos da vida em sociedade, o que caracteriza um poder social (LOPES, 1942).

Assim, se as necessidades básicas resolutivas com dinheiro denunciam uma falta na posse no sentido de ter, a passagem pelas relações e, portanto, pela linguagem, denuncia a falta no ser. Denota a dimensão do furo, como a barra que cinde o sujeito. Envolto da mesma energia libidinal que o põe na série de equivalências simbólicas traçadas por Freud, o dinheiro passa a se comparar com os objetos indispensáveis ao sujeito, que vão para além da necessidade, permitindo um ciframento da libido por se situar na barreira entre o que é representável e aquilo que é inapreensível da pulsão.

 

Considerações finais

Para além das situações cotidianas em que o dinheiro aparece com acentuada relevância, na obra de Freud sua importância não se atenua, visto a quantidade de trabalhos que lhe são designados nas diferentes fases ao longo de sua obra. Em Freud, o dinheiro aparece permeado por diversas simbolizações, atrelando-se de forma permanente aos distintos mecanismos do aparelho psíquico.

Ao tempo que o dinheiro se equipara a componentes fundamentais da simbologia do sujeito, é também permeado por fatores estruturantes do ser. Na relação com o dinheiro, o sujeito pulsional freudiano produz uma articulação entre as forças da natureza e a linguagem, se entremeia como simbolização daquilo que é indispensável. O dinheiro responde a algo provindo da divisão do sujeito, perpassado pelo desejo, que marca o lugar vazio.

Freud aponta que existe uma peculiaridade monetária a cada ser, mas o dinheiro perpassa o imaginário social como um todo, detém uma importância generalizada, com equivalências nos indivíduos de forma geral. Destarte, o dinheiro explicita não só a comunhão de ser o humano originariamente relacionado ao outro, mas deste se fazer único frente às próprias questões e seus próprios deslizamentos pela linguagem.

A articulação dos trabalhos de Freud relativos ao dinheiro pode subsidiar pesquisas que têm surgido com enfoque frente a questões econômicas de maior relevância, uma vez que considera o sujeito em suas pulsões elementares. Através desses ditos, possíveis desdobramentos acerca da simbologia do dinheiro podem ser realizados, de forma a contemplar características específicas encontradas na utilização do dinheiro individual e socialmente, assim como analisar com maior propriedade pesquisas de cunho econômico. A psicanálise originária traz, portanto, uma contribuição sumária no delineamento simbólico do dinheiro, atrelado aos complexos inconscientes estruturantes do psiquismo e da própria condição do ser.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 24/12/2016
Aprovado para publicação em: 27/07/2017

Endereço para correspondência
Lillian Nathalie Oliveira da Silva
E-mail: lillian_nat@hotmail.com
Rogério da Silva Paes Henriques
E-mail: ruggerosph@gmail.com

 

 

*Mestre em Psicologia Social/Universidade Federal de Sergipe (UFS), psicóloga/Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
**Doutor e mestre em Saúde Coletiva/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-doutor em Teoria Psicanalítica/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor adjunto do Departamento de Psicologia/Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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