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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.39 no.37 Rio de Jeneiro July./Dec. 2017

 

ARTIGOS

 

Todas as manhãs do mundo são sem regresso

 

All the mornings of the word never return

 

 

Sabira Alencar*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O modo como Ferenczi e Winnicott pensaram o corpo e o universo simbólico permite uma reflexão interessante sobre aspectos da dinâmica psíquica, que estão em jogo na experiência musical. Com tais autores, é possível reconhecer a música como um fenômeno que envolve certo tipo de compreensão, que não se submete a uma dimensão externa ao sonoro e ao sensível, que não é, forçosamente, representável. É com base na memória sensorial das primeiras impressões auditivas que a música presentifica ecos de um vivido esquecido na lembrança e marcado no corpo. Na memória do corpo, a música se empresta para tudo poder significar, expressar, simbolizar, criar, mas nada exatamente.

Palavras-chave: Experiência musical, Corpo. Regressão, Fenômeno transicional.


ABSTRACT

The way in which Ferenczi and Winnicott thought about the body and the symbolic universe provides an interesting reflection on aspects of the psychic dynamics that are involved in the musical experience. With such authors, it is possible to recognize music as a phenomenon that carries a meaning, but this is not submitted to a dimension external to the sonorous and to the sensitive. This is not necessarily representable. It is through the sensorial memory of these impressions that the music makes present the echoes of a lived experience that was forgotten but yet is marked in the body. In the body`s memory, music lends itself to everything in order to mean, express, symbolize, create, but neither of those exactly.

Keywords: Musical experience, Regression, Body, Representation, Transitional object.


 

 

O universo musical e a psicanálise

Dentre as artes, a música foi, desde sempre, aquela que menos atenção recebeu dos teóricos da psicanálise. Talvez, uma escuta, excessivamente literal, da célebre afirmação de Freud em O Moisés de Michelangelo (2012) tenha contribuído para tal afastamento. Em uma reflexão a respeito do poder que a arte tem de nos afetar, Freud afirma:

Mas as obras de arte produzem um forte efeito sobre mim, em especial as obras literárias e as esculturas, mais raramente as pinturas. Isso fez com que eu me detivesse longamente diante delas em determinadas ocasiões, a fim de compreendê-las a meu modo, isto é, de explicar para mim mesmo como obtêm seu efeito. Quando não sou capaz de fazer isso - na música, por exemplo -, quase não consigo ter prazer. Uma inclinação racionalista ou talvez analítica se opõe, em mim, a que eu seja comovido por algo e não saiba por que o sou e o que me comove (FREUD, 1914/2012, p. 374).

Contudo, a relevância do universo sonoro, na obra freudiana, nunca deixou de existir, como mostra a ampla pesquisa da psicanalista e musicoterapeuta Edith Lecourt (1997). Se essa disposição racionalista, alguma resistência ou qualquer outro motivo não permitiram que a música estivesse na gama de interesses privilegiados do pai da psicanálise, suas teorias não deixam de ser um solo fértil para que se aproxime o pulso da música e o pulso da vida humana. Essa aproximação fica ainda mais fecunda se a música não está condicionada a um sentido linguístico-representacionista, ou seja, quando se concebe que não existe um sentido preexistente à música, como ocorre na linguagem verbal articulada. O sentido da música, aqui adotado para esta reflexão, se forma e se desenrola no plano das relações entre som, corpo e mundo. É, portanto, um sentido que não se universaliza.

Os primeiros sinais da experiência musical se manifestam num momento muito precoce e constitutivo do sujeito, quando também se esboça a capacidade de simbolizar. A relação que um bebê estabelece com o universo musical passa por certos padrões de pulsação somáticos e psíquicos presentes na vida, desde a concepção. Mas, antes do nascimento, o universo sonoro já impacta nossas primeiras percepções. O ambiente do feto é barulhento. Por volta do quarto mês de gestação, ele já pode ouvir a pulsação do corpo materno, as vibrações vocais da mãe e os barulhos do mundo externo. Com o nascimento e a saída do meio aquático para o aéreo, o bebê se depara também com o silêncio; o vivido sonoro se modifica completamente.

Para dar sequência a essa reflexão, cabe sinalizar em que campo de teorização psicanalítica estamos transitando. Nas diversas linhagens de pensamento que a história da psicanálise conheceu, é possível distinguir a chamada clínica pulsional da clínica das relações objetais. A segunda linhagem, da qual Ferenczi é considerado precursor, traz a característica fundamental de dedicar maior atenção a esse momento primordial do desenvolvimento, um período pré-linguístico, em que a dimensão sensível dos afetos é o que mais se destaca na experiência subjetiva e em que se formam as primeiras relações de objeto. Trazer autores que se dedicaram às relações iniciais entre corpo e mundo ajuda a pensar um espaço intermediário de experimentação entre som e sentido, a promover a interlocução entre psicanálise e musicologia, numa tentativa de aproximar a dimensão musical do corpo e a dimensão corporal da música, corpo e música figurando um tanto da diversidade do mundo.

Muitos filósofos comentam a dificuldade de teorizar a música. De um lado, tal dificuldade parece estar ligada à própria ambiguidade constitutiva do som. Sua materialidade, menos tangível, parece tornar o som mais enigmático do que outras expressões artísticas de espaços mais delimitados, como o universo visual. Se pudéssemos imaginar a via sonora como nossa única forma de relação possível com o mundo, podemos supor como seria difícil conceber a existência do espaço, conceber o que é interior e exterior. Tal característica contribui, certamente, para que o som, entre os objetos físicos, seja o que parece mais se prestar à criação de metafísicas (WISNIK, 2007). Mas, a dificuldade de teorizar a música, por outro lado, parece estar ligada a seu caráter primordial para o humano: onde há humanidade, há música.

Antes de passarmos ao ponto central desta reflexão, cabe uma breve explicação do filósofo da música Francis Wolff (2015) a respeito de como os sons se tornam música e do que distingue a experiência sonora da experiência musical. Do ponto de vista da experiência, existem três graus sonoros, a saber: o barulho, o som e a música. O barulho pode ser definido como um som parasita, não desejado e perturbador. Os sons são funcionais para o sistema vital, ou seja, avisam sobre algo que se passa, em especial, um perigo. Nossa compreensão cognitiva permite associar um som a um objeto: uma porta batendo, a buzina de um carro. Tal compreensão procura a razão dos acontecimentos. Na experiência sonora, temos, portanto, uma compreensão cognitiva em jogo e uma causalidade real. Eis uma diferença importante entre a experiência sonora e a experiência musical. Wolff explica que, para se tornar música, o som precisa perder essa funcionalidade. Dizendo de outro modo, quando se escuta uma música, a relação entre os sons vai formando uma figura que dispensa a compreensão do que os origina. É a compreensão estética, não mais a cognitiva, que permite escutar uma música e não só um conjunto de sons ou barulhos. Nesta, "a causalidade vertical, sincrônica, material, das coisas para os sons, vai ser substituída por uma causalidade, diacrônica, imaginária, de som para som" (Ibid., p. 57).

Assim, um evento sonoro que não seja musical não faz sentido em si, sendo necessário buscar o que está por trás dele para que seja compreendido. A música, por sua vez, se basta; o sentido dispensa a causa real ou o objeto causador do som, mas ela precisa de um tipo de combinação sonora que dê a sensação, a quem escuta, de que os sons "seguem de modo ordenado, parecendo causados por aqueles que os precedem e causar os seguintes" (Ibid., p. 58). Uma sequência de sons só se torna música quando essa relação imaginária de causalidade pode ser estabelecida por aquele que ouve. Isso permite que, mesmo alguém que não entenda nada de música, saiba perceber a diferença entre alguém brincando com um porquinho de plástico e o porquinho de plástico que faz música, na música de Hermeto Pascoal. A atitude estética não toma o sensível como manifestação externa de algo subjacente, ela toma o sensível em sua aparência mesmo. Há uma inteligibilidade naquele evento, mas essa inteligibilidade permanece no próprio registro sensível, não sai dele. Assim, compreender a música é compreendê-la em termos perceptivos. É nesse sentido que Wolff conceitua como uma causalidade imaginária, diferente da causalidade real, científica ou literal que existe na relação entre sons e coisas. Importante notar que o bebê, no início da vida, já percebe essa relação sensível e horizontal entre sons, reagindo de forma diferente diante de um som do mundo e de uma música.

 

A música como fenômeno transicional

Desde o início, o som envolve o bebê, preenchendo o espaço indiscernível entre mundo externo e interno, atravessando barreiras físicas e subjetivas. A voz humana se destaca do fundo sonoro, em especial a da mãe ou da figura de cuidado. O bebê, que ainda não se percebe separado da mãe, vai sendo interpelado pela polifonia familiar, pelos barulhos que a família permite que venham do exterior, os sons da casa, as músicas ouvidas, as vozes que a ele se endereçam, convidando-o a participar do mundo. Aos poucos, ele passa da pura audição para a construção de seus primeiros sons e, desse modo, começa a interagir com o universo lúdico-sonoro do balbucio e a tentar controlar os sons que ele próprio produz. Esse aspecto do ambiente precoce ficará registrado, no corpo sensível, como traço mnésico e experiência de prazer. Muito cedo e com frequência, é possível notar como os bebês se divertem fazendo música, produzindo um ritmo com seus pés e mãos. A música emerge daquele corpo, é produzida pelo corpo e altera o corpo. É também um corpo reconhecido pelo outro que o escuta e reconhece sua música. O sentido do som, assim, vai avançar no sentido da alteridade.

Só existe música porque ela nos afeta, porque ela faz o corpo mexer, relaxar, se excitar, se angustiar. Dessa capacidade de pôr o corpo em ação se valem tantas práticas cotidianas. A política e a religião, por exemplo, nunca deixaram de apelar para a música no exercício de seu poder e de seu cerimonial, para fins mais ou menos nobres. Com frequência, a música se (em)presta à manipulação dos corpos e, com menos frequência, a fins limites, como a música das orquestras usada nos campos de concentração para fazer morrer.

A música altera, nos torna outro no tempo e, com isso, amplia o que Winnicott (1975) conceituou como o espaço potencial existente entre o indivíduo e o meio, que é também o espaço da experiência cultural. Quando se ouve um canto gregoriano, um blues tuaregue, um funk ostentação, longe de ser uma escuta passiva, conduzimo-nos a outros tempos onto e filogenéticos, outros estados de consciência, outros estados corpóreos, em uma temporalidade que ultrapassa as fronteiras entre passado e futuro. O tempo da música não é o tempo do metrônomo, mas o tempo subjetivo, o tempo da vida, tempo da presentificação de um fundo sensorial primitivo, onde se encontram os primeiros registros sonoros, os primeiros contatos do bebê com o mundo e, portanto, as origens do processo de constituição subjetiva.

Winnicott se utilizou dos termos "objeto transicional" e "fenômenos transicionais" para compreender a importância das primeiras possessões do bebê, da experiência de brincar, simbolizar e do papel fundamental do meio no desenvolvimento sadio do sujeito. Qualquer objeto pode se tornar transicional, pois não se trata do objeto em si e sim do uso espontâneo e criativo que dele se faz: um pano velho, um boneco, um regar de plantas, o balbucio do bebê, o modo como a criança entoa uma música (WINNICOTT, 1975). O que está fundamentalmente em jogo nessa reflexão winnicottiana é mais da ordem do gesto, do movimento, de um modo de viver o tempo, do que, propriamente, de um espaço. Em Natureza humana, Winnicott (1990) alude ao que poderia ser um esboço de experiência sonora transicional, numa fase ainda de indissociação entre bebê e meio: "Com certeza, muitos bebês, sem saberem o que estão fazendo, brincam com ritmos e contra-ritmos, e uma observação cuidadosa pode mostrar que às vezes o bebê está tentando acertar seu ritmo respiratório com a frequência cardíaca [da mãe] (...)" (WINNICOTT, 1990, p. 167).

Winnicott teoriza a constituição subjetiva, mais como um processo de desenvolvimento não linear e indeterminado, e sua lupa não aponta para leis universais que possam servir de estrutura ao sujeito. O tempo subjetivo seria, para ele, uma espécie de gerúndio a partir do qual as potencialidades se apresentam, caso o ambiente facilite e, onde o mais importante, é como os encontros com o mundo vão podendo se dar, como o sujeito vai conseguindo se apropriar do espaço e do tempo e ampliando, gradativamente, seu campo de experimentação.

As dimensões afetiva, criativa e simbólica estão aqui, totalmente, entrelaçadas para compor a noção de saúde contida no pensamento winnicottiano. Essa problemática é marcada por um paradoxo no cerne dos processos criativos. A criatividade para Winnicott é uma ação primária - não tem a função de defesa como tem, por exemplo, para Lacan (SOUZA, 2007). "A adaptação da mãe às necessidades do bebê, quando suficientemente boa, dá a este a ilusão de que existe uma realidade externa correspondente à sua própria capacidade de criar" (WINNICOTT, 1975, p. 27). Tal sintonia marca a estabilidade ou a continuidade daquele tempo primordial que permite ao bebê conservar, na mente e no corpo, a imagem da figura materna e que oferece ao bebê a possibilidade de se separar dela. Mas também, é a separação que dá espaço para que o processo de simbolização siga subjacente à atividade criativa.

O objeto transicional é a primeira possessão não-eu do bebê. Como escreve Roussillon (2010), apesar de ser criado pelo bebê, para ser símbolo o objeto precisa não ser semelhante a ele próprio, ou seja, precisa encontrar uma alteridade. Dito de outro modo, para ser transicional, o bebê precisa experimentar a ilusão de ter criado o objeto, mas, para isso, o objeto precisa ter sido apresentado pela mãe. Nesse sentido, paradoxalmente, podemos pensar a alteridade ou a exterioridade como pré-condição de uma criatividade primária. Do espaço (ou tempo) potencial de criação irá se originar a capacidade de apropriação do mundo, que está na base dos processos de simbolização e da experiência lúdica. Música e palavra partilham, então, dessa mesma origem comum: as primeiras possessões não-eu, as primeiras experiências transicionais que marcam a passagem de um período inicial de indiferenciação com o outro até o estabelecimento da experiência de um mundo interno e um mundo externo.

O universo sonoro marca esses primeiros contatos do bebê com o mundo, contato ainda basicamente sensorial, numa época em que o corpo é o único mediador do nosso agir no mundo, o pensamento ainda é figurativo e não há universo simbólico. Conforme vai se dando o desenvolvimento do sentido de realidade e a atividade do pensamento, surgem outras formas de o bebê se relacionar consigo mesmo e com o mundo. Os primeiros sons que o bebê ouve, em particular a voz materna, têm uma participação especial no que Winnicott (1990) chamou de primeiros cuidados ambientais. A ternura das vozes que se dirigem ao bebê, as canções de ninar, os sons ambientes, não apenas introduzem a criança no mundo, como servem de para-excitação, de holding. No curso de um desenvolvimento sadio, a criança se apropria desses elementos e a construção do espaço psíquico vai se sofisticando progressivamente à medida que percepções, afetos, representações vão se ligando, formando novos espaços até o bebê tomar consciência de si e do ambiente que o envolve.

O percurso teórico e clínico de Winnicott pelos fenômenos transicionais convida a pensar a música como uma experiência "entre". Foi essa experiência que interessou destacar aqui, uma experiência que tanto pode ser vivida por aquele que faz música como por aquele que se deixa afetar pela música do outro e se apropria dela. Basta que não seja mais possível separar, ontologicamente, sujeito e música para estarmos nessa área intermediária de experimentação. No encontro espontâneo com a música, não há mais dentro e fora, sujeito e objeto, antes e depois e tudo isso ao mesmo tempo. Talvez seja pelo próprio fato de a experiência musical nos fazer regressar a nossas bases sensoriais, a esse período constitutivamente transicional, que, de todas as artes, a música seja a que toca mais diretamente o corpo, sem precisar passar pelo representável. É o que parece oferecer à música um poder meio mágico de tocar o incomunicável. Nas palavras de José Miguel Wisnik, "um único som afinado, cantado em uníssono por um grupo humano, tem o poder mágico de evocar uma fundação cósmica" (WISNIK, 2007, p. 33).

 

A memória musical

Assim, a música, como a psicanálise, poderia ser entendida, não apenas como uma arte dos sons, como uma arte da memória. Uma memória que pode ser tão arcaica que ultrapassa até mesmo as origens da constituição individual. Contudo, é importante circunscrever o que está sendo entendido por memória. Não se trata do conceito tal como empregado na filosofia clássica, ou seja, como a capacidade de reter, trazer à mente e relacionar o que se vive hoje e o que se viveu no passado, uma memória que nos garantiria uma identidade e o conhecimento adquirido (JAPIASSU; MARCONDES, 2006). Essa definição se aproxima da ideia de uma memória-arquivo, um depositário de eventos passados mais ou menos conscientes e, nesse caso, a memória seria a ação de retornar do ou ao passado. A memória que é convocada pela música também não obedece ao tempo cronológico, nem ao espaço do baú de um sujeito receptáculo. É, antes, a memória de um sujeito criativo para quem o ato de lembrar já seria um ato de criar. Penso no conceito winnicottiano de criação, mas também na memória tal como aparece nas últimas reflexões de Walter Benjamin.

A memória que entra em cena na experiência musical obedece, naturalmente, à temporalidade da música. Para Benjamin (1940/1993), é no presente que a memória se apropria do passado e do futuro, entrelaçando memória, experiência e história como condição de mudança; um movimento que aponta para a reciprocidade, ou para um hibridismo, entre passado e futuro. A história, para esse filósofo, passa ao largo da representação dos acontecimentos passados; ela é, antes, uma apresentação do passado e uma construção no presente. Nesse sentido, podemos compreender que história e psicanálise também se aproximam. Não seria esse o percurso (nada linear) de um processo de análise? Existem, nas vozes que escutamos hoje, ecos das vozes que emudeceram, bem como, nas vozes de que nos lembramos, ecos das vozes que nos falam hoje. A memória não manifesta a vida como ela de fato foi, mas a vida lembrada e, infinitamente, reavivada por quem a viveu.

No texto "Sobre o conceito de história", Benjamin marca essa diferença, dizendo que "o passado só se deixa fixar no momento em que é reconhecido, o que não significa conhecê-lo como ele de fato foi, e sim apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo" (BENJAMIN, 1940/1993, p. 224). A memória, dessa perspectiva, aproxima-se do trabalho do narrador (BENJAMIN, 1936/1993) que, com sua memória breve sobre fatos difusos, toma o rumo mais de uma criação do novo, do que da rememoração do antigo. Contudo, vale reforçar, as reminiscências, que fazem a história, não retornam sempre como lembranças representadas e sim como registros sensíveis. Benjamin se inspira nas obras de Proust e Baudelaire para teorizar a temporalidade. O narrador de Em busca do tempo perdido é transportado pelos sentidos, em especial pelo paladar, o que fica registrado na célebre cena da degustação da madeleine embebida no chá. Não é o sujeito que revisita o passado, é o passado que se estilhaça no presente. O tempo da memória involuntária de Proust é o tempo do espaço sensorial, do sonho, do esquecimento, que deixa brechas para novas reminiscências, mas é, especialmente, a memória do corpo, dos membros: "As pernas e os braços estão cheios de lembranças entorpecidas!" (PROUST, 1995, p. 9).

Benjamin segue nessa trilha. O passado é sempre uma memória do presente, é também uma tentativa de elaboração do presente e da experiência de acontecimentos. Algumas dezenas de páginas em O tempo recuperado de Proust (1995) descrevem essa memória que é atualização no presente e em que se encontram sensações corporais oriundas dos nossos cinco sentidos. Como em um refrão, o sabor da madeleine, o ruído da colher no prato, a desigualdade das lajes, vão sendo reconhecidos como puro instante e como reminiscências de etapas da vida. A cada retorno, é uma nova experiência que se dá, sempre a mesma e nunca igual. O aspecto da memória, que eu gostaria de destacar aqui, é esse da ordem de uma experiência no corpo, inconclusa, capaz de produzir, no presente, novos rumos para o que foi, o que será, o que "poderia ter sido". Proust descreve, com muita beleza, essa experiência tão anacrônica, quanto policrônica e é nesse tempo aberto que a memória se aproxima da potência de criação da experiência musical:

[...] Essas várias impressões que me proporcionaram bem-estar e que, entre elas, tinham em comum a faculdade de serem sentidas, ao mesmo tempo, no momento atual e num momento passado - o ruído da colher no prato, a desigualdade das lajes, o gosto da madeleine -, até fazerem o passado permear o presente a ponto de me tornar hesitante, sem saber em qual dos dois me encontrava; na verdade, a criatura que então saboreava em mim essa impressão, saboreava-a naquilo que ela possuía em comum entre um dia antigo e o atual, no que possuía de extratemporal, era uma criatura que só aparecia quando, por uma dessas identidades entre o presente e o passado, podia achar-se no único ambiente em que conseguiria viver, desfrutar da essência das coisas, isto é, fora do tempo. Isto explicava por que minhas inquietações acerca da minha morte teriam cessado no momento em que eu, inconscientemente, reconhecera o gosto do bolinho, pois nesse instante a criatura que eu fora era um ser extratemporal, por conseguinte despreocupado das vicissitudes do futuro. [...] Tal ser nunca viera até mim, nunca se manifestara senão fora da ação, do gozo imediato, todas as vezes que o milagre de uma analogia me fizera escapar ao presente (PROUST, 1995, p. 189).

Podemos dizer que essa noção de memória é quase uma condição de possibilidade para a teoria e prática psicanalítica. Com a formulação freudiana do inconsciente, memória e consciência deixam de ser noções que precisam andar juntas. Embora o conceito tenha passado por rearranjos ao longo de sua obra, a memória, para Freud, vai se estender ao campo do não simbolizável, do não representável, das percepções sensoriais, vai incluir fantasias e até crenças também policrônicas. Noções centrais como a de transferência, traço mnêmico, recalque estarão intimamente relacionadas à memória e, com isso, à verdade do sujeito. Não é exagero afirmar que a teorização da temporalidade constitui o objeto por excelência da psicanálise, bem como "os fragmentos de existência subtraídos ao tempo" (Ibid., p. 184) a matéria bruta das sessões. É nesse bojo que surgem diferentes abordagens para os fenômenos sugestivos de uma progressão ou de uma regressão do sujeito.

Foi no fenômeno regressivo tal como formulado por Ferenczi (1913) que encontrei alguns encaminhamentos interessantes para aprofundar esse estudo sobre a experiência musical e compreender melhor como pode a música nos afetar tão diretamente e sem que saibamos por quê. Como já mencionado, a experiência musical, tal como na experiência onírica, pode remeter a algo muito arcaico de nossa constituição psíquica. Assim, existe na experiência musical um prazer ligado a um tipo de reconhecimento, uma espécie de reencontro que é, paradoxalmente, sempre idêntico a si e nunca o mesmo. A música que nos toca preserva o efeito de um evento familiar e ao mesmo tempo surpreendente, convida ao repouso no familiar e à jubilação do novo. Algum aspecto sensível é despertado naquele instante e se afina a outras impressões marcadas no corpo. É nessa mobilidade que o gesto musical se vitaliza.

 

A regressão talássica

O termo "regressão" surgiu, pela primeira vez, na teoria freudiana em A interpretação dos sonhos (1900/1987). Intimamente associado ao conceito de memória, o termo "regressivo" marca a natureza alucinatória dos sonhos. Freud distingue três formas de regressão: topográfica, temporal e formal, que estariam presentes na atividade onírica, bem como no processo de análise. Inicialmente compreendida como fator patogênico e como mecanismo de defesa (Ibid.), a regressão será, mais tarde, associada à transferência e, desse modo, será compreendida como um aliado terapêutico. Sua conotação negativa de resistência não será deixada de lado e a regressão permanecerá, na obra freudiana, como um fenômeno importante, mas que deve ser superado para que a dinâmica psíquica retome a sua boa atividade. Esse foi um importante ponto de discórdia entre Freud e Ferenczi, que provoca uma guinada teórica e clínica importante para a clínica, vindo influenciar uma série de analistas, em especial do chamado Grupo Independente, que têm em comum a atenção especial ao período pré-edípico e às chamadas relações de objeto.

Ferenczi (1913/1988) distancia-se do mestre para trazer uma conotação mais positiva ao processo regressivo. Aqui, regressão e progressão não são fenômenos que obedecem ao tempo cronológico e o desenvolvimento se faz através de retornos que são avanços e avanços que são retrocessos. A memória que interessa particularmente à Ferenczi é a memória traumática da filogênese, tanto quanto da ontogênese, ou seja, a necessidade de regressão provém dos traumatismos estruturantes e necessários ao desenvolvimento. Segundo Balint, a diferença de abordagem entre Ferenczi e Freud se deve ao tipo de paciente que eles receberam (BALINT, 1967/2014) e à técnica que empregaram. Nas palavras de Luís Cláudio Figueiredo, parece que [Freud] se dispunha a correr menos riscos [na clínica], era mais prudente, o que já não se pode dizer de Ferenczi e de seus seguidores na letra ou no espírito. Estes não hesitaram em se meter em caminhos muito novos e a enfrentar desafios bastante perturbadores (FIGUEIREDO, 2002, p. 912).

A partir de Ferenczi, algum processo regressivo passa a ser necessário não apenas para que o trabalho de análise aconteça, como para que o indivíduo se desenvolva. Winnicott dá continuidade a essa ideia:

Na vida da criança normal, o descanso deve poder incluir o relaxamento e a regressão para a não-integração. (...) Só encontramos não-integração nos momentos de relaxamento de pessoas saudáveis, e na regressão profunda possibilitada pela psicoterapia, onde o terapeuta passa se encarregar da organização das defesas no lugar do paciente (WINNICOTT, 1990, p. 138-139).

A regressão ferencziana, seja ela regressão ao início da vida individual (ontogênese) ou da vida da espécie (filogênese), faz parte dos recursos vitais do sujeito; mas, para que haja uma regressão terapêutica, o manejo clínico torna-se determinante. Ferenczi foi um grande experimentador de técnicas para o tratamento de seus pacientes e acabou afirmando a importância do tato, que ele conceitua como um "sentir com" (1928/1992, p. 27), para estabelecer um tipo de manejo clínico em que não é apenas o conteúdo do que é dito que importa, mas, especialmente, o tom da fala, o ritmo da voz, o silêncio, a postura acolhedora do analista. É essa forma de empatia, mais do que qualquer interpretação, que convida o paciente a partilhar seu sofrimento e deixa o ambiente propício a que o corpo se expresse. No final da vida, Ferenczi afirma categoricamente: "sem simpatia, não há cura" (FERENCZI, 1932/1990, p. 248).

Assim, é o "sentir com" que vai garantir a regressão terapêutica. Em O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios, a ideia de uma pulsão de repouso tem seu lampejo com a hipótese de que o homem é dominado por uma tendência regressiva permanente, que visa o restabelecimento da situação intrauterina (1913/1988), o que Ferenczi chamará de pulsão de regressão materna. No amadurecimento que o indivíduo percorre do registro do princípio de prazer ao princípio de realidade, substitutos vão sendo encontrados para essa situação confortável do passado. Uma parte importante da nossa personalidade preserva essa tendência regressiva ao longo de toda vida. A ideia de que será sempre preciso regredir para avançar é fundamental também para que se entenda a temporalidade em Thalassa.

Thalassa (1924/1993) é um ensaio de Ferenczi sobre a teoria da sexualidade. Ali, ele explora outras vias do fenômeno regressivo, percorrendo as origens da vida sexual pelo conhecimento filogenético, que se tinha na época. São ousadas suas especulações nesse ensaio, tanto quanto a forma como vai costurando as ciências naturais e as ciências do espírito. Esse texto começou a ser escrito no início da Primeira Guerra, após Ferenczi ter traduzido para o húngaro os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, com o qual manterá forte interlocução. Muitas ideias que encontramos, ao longo da obra freudiana, são ali retomadas, em especial a de que

Os sonhos e as neuroses parecem ter preservado mais antiguidades anímicas do que imaginaríamos possível, de modo que a psicanálise pode reclamar para si um lugar de destaque entre as ciências que se interessam pela reconstrução dos mais antigos e obscuros períodos dos primórdios da raça humana (FREUD, 1900/1987, p. 502).

Em 1915, uma primeira versão de Thalassa foi apresentada ao autor dos Três ensaios, quando este visitava o amigo húngaro (FIGUEIREDO, 1999). Mas, o texto só seria publicado nove anos mais tarde. A primeira parte do ensaio de Ferenczi é dedicada ao plano ontogenético e a segunda ao filogenético, com a ideia de base de que a ontogênese repete a filogênese em suas catástrofes e soluções para evoluir e se adaptar. Toda a história filogenética ficaria inscrita na memória (FERENCZI, 1924/1993). O meio intrauterino seria uma recapitulação do mar, o nascimento seria uma recapitulação da secagem dos oceanos, o ato sexual seria um desejo ao retorno intrauterino e aquático, e por aí vai.

Freud e Ferenczi partilhavam da ideia de que a humanidade teria sofrido um traumatismo generalizado com o advento da era glacial e que, dessa catástrofe, repercussões seriam sentidas sobre a memória da espécie e, portanto, a sexualidade humana. Com sua própria teoria da genitalidade, Ferenczi se lança nessa investigação onto e filogenética para sustentar que a existência intrauterina dos mamíferos superiores constitui uma repetição da existência aquática, onde viviam os anfíbios, dos quais a espécie humana se originou. Esse meio tem uma qualidade de repouso e de proteção, já que o ambiente está totalmente adaptado às necessidades dos seres. Thalassa significa "mar" em grego ou a própria condição originária da vida. Porém, na obra ferencziana, ganha o sentido de uma força de atração que ressurgiria na dimensão reprodutiva da humanidade.

Assim, para Ferenczi todo indivíduo traria a necessidade de retorno, não apenas à fase inicial de sua própria vida, mas às formas primordiais de vida, em particular uma tendência para restabelecer o modo de vida perdido. Com esse movimento de reciprocidade entre tempos e formas de vida que apoiam a necessidade de paz e repouso, a regressão talássica se aproxima, tanto da memória em Benjamin, quanto da transicionalidade da música. A regressão talássica se manifesta no ato sexual, mas também no sono, no sonho, no folclore, nas fantasias - vê-se aí a filiação de Winnicott ao pensamento ferencziano. É com essa ideia central que um texto de pedaços indigestos, às vezes parecendo uma viagem insólita pela psicanálise e a biologia, se tornou, para mim, fundamental no âmbito da reflexão sobre a experiência musical. Veremos mais adiante por quê.

Ferenczi pensa a evolução da espécie ou do indivíduo, em termos de um movimento espontâneo, mas descontínuo, já que atravessado por catástrofes, pressões e forte necessidade de adaptação (FERENCZI, 1913/1988). Tal movimento, junto com a ideia de uma ontogênese que repete a filogênese, ajuda a pensar no processo de desenvolvimento como repetição e mudança. Repetir para superar o trauma. Ferenczi considera a secagem dos oceanos uma catástrofe fundamental, pois os seres tiveram que encontrar novas formas de reprodução e sobrevivência fora da vida marinha. As catástrofes naturais são os traumas que impulsionam a evolução da vida. O desenvolvimento do sentido de realidade se daria nesse movimento, em que progresso e regresso se alternam e se sobrepõem, em que se retorna para avançar e se avança para retornar. É preciso renunciar à regressão para adquirir o sentido de realidade, mas é preciso também regressar para estar na realidade. A lógica paradoxal é uma marca do pensamento ferencziano.

A memória do trauma para Ferenczi tem uma dinâmica que lembra aquela teorizada por Benjamin quase duas décadas depois, quando vai discutir e subverter o conceito de história. A repetição traumática, como a história de Benjamin, não está no tempo da rememoração, ela é vivenciada no presente, mas não um presente histórico que fixa uma presença, ao contrário: uma presença que se dissolve e se expande até a pré-história. "É esse tempo que está em jogo quando Ferenczi fala da memória do corpo, em que as sensações de uma experiência são retidas sem que essas adquiram a função de lembrança" (KNOBLOCH, 1996, p. 64). É por essa temporalidade que a história pode ser continuamente reescrita, que a memória cria, que os traumas se inserem em uma "progressão" saudável e novas dinâmicas são acionadas. Quando não há regressão possível, estamos na dimensão dos traumas patologizantes. Como destaca Felícia Knobloch, essa teoria sobre o tempo do trauma traz uma compreensão a respeito da economia psíquica que acarreta, não apenas em novas técnicas de tratamento, como traz também novos entendimentos para a própria noção de sujeito. O sujeito ferencziano é o sujeito clivado, paradoxal, o sujeito que funciona, ao mesmo tempo, em várias dimensões de experiência, cada uma com sua temporalidade própria e sem necessidade de unificação. Um sujeito anacrônico e policrônico feito de barulho, som, música e silêncio.

Quando o sujeito sofre traumas patogênicos (FERENCZI, 1932/1990, p. 65), ele carrega partes que são irrepresentáveis. Nesses casos, o sujeito fica fora de si, não está lá, como se estivesse em uma dimensão fora do tempo-espaço. Alguns (como é o caso na psicose) formam uma cosmogonia própria em que passado, presente e futuro convergem em um só tempo. Ferenczi percebeu que a técnica analítica clássica não daria conta desses pacientes fora de si, esses que não podiam falar do que era intraduzível. Ele também percebeu que aquilo que os pacientes traziam não configurava apenas uma repetição do passado, mas também um acontecimento atual. Por se tratarem de marcas e não de traços, no sentido freudiano daquilo que foi recalcado, "estes investimentos só encontram expressão, ou melhor, saídas possíveis, nos silêncios, no agir, na clivagem" (Ibid., p. 62). Na temporalidade do trauma, apenas parte do sujeito está fora de si, já que o sujeito clivado de Ferenczi (1924/1993) tem a astúcia de proceder a uma espécie de autotomia psíquica. É a defesa pela via da fragmentação. Para simplificar, seríamos como lagartixas que soltam a cauda para se safar do perigo. Na condição humana, a gambiarra é para que a parte machucada, aquela que guarda a memória traumática, não impeça nossa sobrevivência.

A experiência musical faz trabalhar essas gambiarras psíquicas. O sujeito fragmentado encontra uma possibilidade parcial de inserir seu sofrimento impossível nesse grande espaço sonoro. A compreensão estética, com sua relação imaginária de causalidade a que se referiu Francis Wolff, mencionada anteriormente, dispensa a representação porque ela acontece no âmbito da experiência sensorial. Assim, é pelo fato de a experiência musical vibrar na frequência sutil do não-representado, que ela se torna capaz de tocar, sensorial e corporalmente, as marcas do trauma, de uma ruptura que nunca deixa de se atualizar. Os estímulos sonoros acionam a memória involuntária do corpo, sem ter que obedecer ao tempo cronológico. Pode ser que exista uma consciência histórica em ação, mas, certamente, existe a ação do próprio corpo sensível que não passa pela consciência. No tempo da música, as impressões mais dolorosas podem ganhar atualização e podem ou não vir a ser lembranças. A regressão musical permite que algo se crie entre o sujeito e o objeto. A música toca a concretude do corpo, ao mesmo tempo em que desperta os recursos sensoriais para expressão do corpo que deve sustentar a nota. As madeleines de Proust, os usos transicionais que fazemos de nossas ações mais ordinárias, a experiência musical, são, portanto, compreendidos aqui como mo(vi)mentos regressivos mais espontâneos e menos mecanizados, que ajudam a reinventar a vida.

A música expressa e ao mesmo tempo não expressa; expressa e nunca uma coisa só, já que ela traz uma compreensão que escapa à palavra ou à coisa. Se ela dispara algo que vem fazer sentido e ser introjetado, este não se torna, forçosamente, representação. Nessa capacidade de tocar o corpo, toca também a memória do que não foi possível calar, uma vez que não foi possível dizer. Ela é capaz de nos fazer encontrar, fora de nós, algo que já está em nós de forma primordial. O mistério da música, bem como o do amor ou da poesia, é da ordem de uma aporia e está, justamente, no fato de ela exprimir o inexprimível, o insondável. Mas não o insondável da morte e sim o insondável da vida. Nas palavras do filósofo e musicólogo francês Vladimir Jankélévitch, o mistério musical não é o indizível, mas o inefável. A diferença fundamental, segundo esse autor, é que o indizível não tem a dizer, o inefável é inexprimível porque ele tem infinitamente a dizer (JANKÉLÉVITCH, 1983, p. 86).

Sabemos que, na psicanálise, existem diferentes formas de trabalhar o trauma e a memória corporal. Ferenczi propõe que se possa trabalhar com as impressões fragmentadas, sem tentar unificá-las pela via simbólica. Winnicott propõe que se estabeleça um ambiente confiável e de holding para que as regressões terapêuticas possam advir e o sujeito retomar seu curso. Certamente, grande parte da memória que se atualiza num processo de análise permanecerá nesse registro de fragmentos sensoriais . É aí que opera a dimensão da experiência musical: no nível do afeto, do sensorial, do fragmento. Como no sonho, na atividade musical há um trabalho de figuração dos elementos sonoros, que já é em si um evento psíquico, sem que se esteja na dimensão representacional .

Assim, a música se apoia no vivido, nas impressões traumáticas, oferecendo-se como instrumento de ligação que, pela via sensível, fará vibrar as lembranças do corpo. Se a música dispensa o simbólico para começar a existir, isso não a impede de promover uma abertura à possibilidade simbólica. Como escreve Cristiane Celano Cordeiro (2015), em sua dissertação de mestrado sobre a relação entre memória e música, as experiências musicais ultrapassam a música para ocupar certo campo existencial, produtor de narrativas que relançam e recriam o passado, que não apenas operam como ressignificação ou atribuição de sentido, mas na produção de sentidos inéditos. Assim, podemos afirmar que a experiência musical é não só expressão de subjetividade, como produção de subjetividade. É justamente por isso que ela se torna um elemento terapêutico eficaz, movendo uma parte da nossa experiência de mundo interno que está para além do conjunto de pensamentos e sentimentos, que a linguagem é capaz de comunicar. A experiência musical pode alterar o sujeito para-além daquilo que se é capaz de lembrar, daquilo que não teve "direito" à palavra. Nessa dimensão experiencial e transicional, sempre haverá algo que se comunica e algo que se silencia, algo representável e algo que permanece no sensorial. É nessa frequência que a música parece vibrar, entre a memória involuntária de Proust, a memória-criação de Benjamin, a regressão talássica de Ferenczi e a transicionalidade de Winnicott, dimensões distintas que permitem a reconexão com a vida pela criação de novas composições.

Antes de finalizar, um fato curioso. No período em que estive mais debruçada no campo de interlocução entre psicanálise e música, que foi durante o doutorado-sanduíche, não encontrei nenhum autor que fizesse a articulação da música com a teoria ferencziana, embora eu tivesse encontrado diversos autores associando a experiência musical ao fenômeno da regressão, assim como à experiência onírica. Já quase finalizada a escrita da tese, me deparo com um artigo do crítico de arte Jean-Louis Pautrot (2004) sobre a filosofia da música de Pascal Quignard. Ali a experiência musical é associada à teoria da regressão genital que Ferenczi desenvolve em Thalassa. Eu já havia lido o Ódio à música, desse mesmo autor francês, mas nenhum de seus breves fragmentos sugeria tal aproximação. É em La leçon de musique (1987), publicado quase uma década antes deste último, que aparece a dimensão talássica do gesto musical.

Quignard (1987) teoriza a música, a voz e suas mudanças na puberdade masculina tendo como pano de fundo a vida de um dos maiores representantes da viola de gamba na França, o músico Marin Marais. Esse escritor e violoncelista francês, tal como Ferenczi e Winnicott, cada um a seu modo, acredita que só existe cultura para dar conta de separação, frustração, catástrofe. Toda música, toda reconfiguração entre som e sentido seria, de algum modo, uma tentativa de oferecer sentido ao horror. A breve menção que Quignard (1987) faz a Ferenczi e à ligação que este estabelece entre a ontogênese e a filogênese vai na direção de pensar a música como memória das origens. A música seria, então, uma linguagem desprovida de significação, que nasceria dos traumas sucessivos e afiguráveis. O som evocaria o apelo ao amor, à escuta primordial e fusional da criança com a mãe, ou da vida intrauterina.

O gesto musical manifestaria, portanto, a permanência do arcaico em nós. A proposta central do livro de Quignard (1987) é que se escute o som como lamento da perda irreparável. O ensaio La leçon de musique deu origem ao romance do próprio Quignard chamado Todas as manhãs do mundo (1993) que, por sua vez, inspirou a bela adaptação ao cinema de Alain Corneau. O romance traz a história dos dois grandes gambistas da França do século XVII, época em que a cena cultural era dominada pelo Rei Luís XIV. Marin Marais, encenado por Gérard Depardieu no filme, foi músico da corte, na segunda metade do século. Aos 17 anos, ele se apresenta como aprendiz do renomado Monsieur de Sainte-Colombe, um senhor austero que vive no campo com suas duas filhas, recluso do mundo em seu sofrimento, após o falecimento da esposa. Sua boa reputação se deve ao fato de ter fabricado a viola de gamba de sete cordas, "um instrumento de madeira que cobria todas as possibilidades da voz humana" (Ibid., p. 35). Sainte-Colombe vive pela e para a música. Primeiramente, ele não aceita Marin Marais como aluno, com o argumento de que ele teria a técnica, mas ainda não seria um músico. Precisou que o jovem se pusesse a tocar com algum afeto para que o mestre aceitasse lhe transmitir seu conhecimento.

- Podeis ajudar a dançar quem dança. Podeis acompanhar os atores que cantam em cena. Ganhareis a vida. Vivereis rodeado de música, mas não sereis músico. Será que tendes um coração para sentir? Tendes um cérebro para pensar? Fazeis ideia de para que podem servir os sons quando já não se trata de dançar nem de recrear os ouvidos do rei? Todavia, a vossa voz quebrada comoveu-me. Aceito-vos por mor da vossa dor, não pela vossa arte (Ibid., p. 42).

O aprendiz Marin Marais termina cedendo aos encantos da corte e, anos depois, volta a procurar o mestre dizendo que na música ele procura "os lamentos e as lágrimas" (Ibid., p. 91). Ao que Sainte-Colombe complementa:

- A música aí está para falar apenas daquilo de que a palavra não pode falar. Nesse sentido, ela não é completamente humana. Descobristes então que ela não é para o rei? [...] Um pequeno bebedouro para aqueles que a linguagem abandonou. Para a sombra das crianças. Para as marteladas dos sapateiros. Para os estados que precedem a infância. Quando estávamos sem hálito. Quando estávamos sem luz (Ibid., p. 91-92).

O universo sonoro-temporal aparece em cada detalhe da narrativa de Quignard e das belas imagens de Corneau, em que, até no ruído da urina quente furando a neve, escuta-se a escala cromática descendente. Quignard exalta a música que emerge da memória do corpo, que antecede a linguagem e que toca o irrepresentável. A vertente nostálgica da memória predomina ao longo do romance; a coloração afetiva do gesto musical é coerente com a apropriação que Quignard, o violoncelista, faz da teoria de Ferenczi. As árias de Sainte-Colombe são lamentações das catástrofes que regressam, dos traumas sucessivos e figurados no paradoxo tácito da primeira frase do capítulo XXVI, que dá origem ao título do filme e do romance, e que parece remeter ao próprio mistério da música: "todas as manhãs do mundo são sem regresso" (QUIGNARD, 1993, p. 87).

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 21/02/2017
Aprovado para publicação em: 12/06/2017

Endereço para correspondência
Sabira Alencar
E-mail: sabira.alencar@gmail.com

 

 

*Psicanalista, membro associado/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ), formada em Psicologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestre em Saúde Coletiva/Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), doutora em Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com estágio doutoral na Universidade Paris V - René Descartes.

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