SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.40 número38Da droga do sujeito ao sujeito da droga: no meio da clínica havia um sujeitoSão 788 degraus: a psicanálise sobe o morro índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.40 no.38 Rio de Jeneiro jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

"Bala perdida" - Um ensaio sobre narcisismo e violência

 

"Stray bullet" - An essay on narcissism and violence

 

 

Luiz Augusto M. Celes*

Universidade de Brasília - UnB - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio tem por objetivo discutir relações entre o narcisismo e a violência cotidiana, mesmo que eventual. Para isso parte da ideia da neurose traumática e sua relação com o narcisismo; aborda questões da síntese narcísica, sua facilitação e sua falha diante do reconhecimento do outro, articula a violência com o trauma narcísico, exemplifica com o caso da "bala perdida" para mostrar a indiferença que nela se implica, avaliando, de modo impressionista, o papel da mídia na divulgação de tais episódios de violência.

Palavras-chave: Reconhecimento, Indiferença, Anonimato, Eu, Cotidiano, Meios de comunicação.


ABSTRACT

This essay discusses connections between narcissism and daily violence, even if occasional. Starting from the connection between traumatic neurosis and narcissism, it approaches narcissistic synthesis, its facilitation and its failure when faced with the recognition of alterity; it articulates violence and narcissistic trauma, illustrating with the "stray bullet" case, in order to show the indifference implied and to evaluate the role of mass media in making public such episodes of violence.

Keywords: Recognition, Indifference, Anonymity, Ego, Quotidian, Means of communication.


 

 

Eu tô te explicando pra te confundir
(Tom Zé)

Desde antes da consolidação da noção de "neurose de guerra" a psicanálise se debruça sobre as perspectivas do adoecimento psíquico advindas de fatores traumáticos externos que não seriam caracterizados propriamente como sexuais. Aspectos como a violência (mais ou menos esperada), a surpresa do evento e seu efeito sobre a integridade corporal do sujeito e dos que lhe são próximos são priorizados para o entendimento da constituição das neuroses traumáticas (na qual a neurose de guerra estaria incluída). O século XX e o XXI, até onde ainda vivemos, certamente se tornaram pródigos em traumas genocidas pelos quatro cantos do planeta, embora se possa afirmar que para Freud a origem mesma da humanidade seja traumática, como o sugere Totem e tabu (FREUD, 1912/2013). A Segunda Guerra Mundial recrudesceu os aspectos de tais violências genocidas, conduzindo, como se sabe, sujeitos que as vivenciaram a buscar sua expressão na forma escrita, acusando o impacto das condições às quais foram submetidos, explicitando as situações e episódios de sofrimentos intensos, desumanizantes e profundamente des-estruturantes - isto é, episódios que decisivamente intervêm na arquitetura e no trabalho psíquicos, impedindo-os de sua realização. Assim, os sonhos repetitivos das vivências violentas seriam tentativas inócuas de assimilação das experiências para que sejam razoavelmente submetidas ao trabalho psíquico.

Por princípio, as tentativas neuróticas de dar curso às vivências traumáticas não são eficazes, pois o excesso dos estímulos o impediria - como numa carência simbólica relativa ao excesso. Rigorosamente, não se poderia falar na perspectiva metapsicológica de manifestações sintomáticas, pois não seriam resultado de conflitos psiquicamente qualificados. A origem da neurose traumática é colocada principalmente sob a responsabilidade das circunstâncias objetivas e efetivas, e o caráter da surpresa impede qualquer forma de preparação que em outras situações a angústia sinal propiciaria - embora certamente em situações de guerra ou conflitos sociais estabelecidos a surpresa não seja absoluta e deva ser pensada muito além de um susto cuja energia excessiva possa se esvair num momento seguinte, pois justamente como num inverso, no trauma da violência não há rigorosamente um momento seguinte, a temporalidade jaz suspensa.

Os que passam por situações como tais, necessitam dar curso ao sofrimento, tentar trazer algum sentido para elas, mesmo que somente seja ao modo do testemunho do que se viveu. Se consolida a partir do séc. XX o que Seligmann-Silva (2017) designa como paradigma testemunhal. Por outro lado, é conhecido e discutido que a escrita testemunhal não é garantia por si só para se alcançar o objetivo de uma elaboração simbólica (isto é, psíquica) da situação traumática vivida - não seria por si só terapêutica (CARVALHO, 2017). A função de regulação das relações entre os homens que se coloca como finalidade própria da cultura (FREUD, 1930/2010) parece em muita grandeza falhar.

Na neurose traumática acontece diferentemente do que se espera da possibilidade de simbolização e elaboração do trauma que estaria na origem das psiconeuroses, isto é, o trauma de sedução que se assenta na dificuldade de articulação significante característica da sexualidade infantil. Embora neste último caso também se possa identificar a violência característica da paixão do adulto sobre a criança (FERENCZI, 1932/1992)1 e a ideia de que tal vivência requeira para sua apreensão o reconhecimento do que se passa emocionalmente com a criança (FERENCZI, 1934/1992) - também a necessidade de que o sofrimento seja testemunhado pelo outro -, o trauma de sedução das psiconeuroses se encontra fortemente alicerçado na sexualidade, o que abre a possibilidade de ser adequadamente simbolizado, representado e elaborado, para o fim de desfazer e tornar inoperante a pressão pulsional da excitação que, no caso, conduziria à formação dos sintomas (não custa lembrar que, assim e por esse entendimento, nasceu a psicanálise). Mas também é verdade que a simbolização da vivência sexualizada tem seu limite, o qual limite se expressa mais radicalmente quando se pensa e se conceitua o além do princípio do prazer, a pulsão de morte.

Freud (1919/2010) já sugerira que na neurose traumática se trata de distúrbios no narcisismo e que tal situação dificulta a identificação da presença do fator da sexualidade. Essa observação de Freud me parece fundamental. Não para apressadamente buscarmos uma "outra coisa" no narcisismo, como se feito de outra matéria, o que acontece quanto se separa nitidamente as chamadas questões pulsionais das questões, por assim dizer, relacionais. A transformação da sexualidade no narcisismo impede, ela própria, o olhar na perspectiva da sexualidade - a sexualidade infantil perversa e polimorfa. O narcisismo envolve características da constituição do Eu, do Eu como totalidade de si mesmo e como representação dessa totalidade, de tal modo que seu distúrbio traz consequências que não têm sido elaboradas com simplicidade, seja na perspectiva da teoria da sexualidade (a sexualidade infantil e seu desenvolvimento), seja na perspectiva de uma teoria da simbolização promovida pelo outro significante, isto é, na impossibilidade de elaborar o que se estabeleceria como uma falta de si mesmo. Claro que não se trata aqui de uma falta de si como se diz da falta do objeto que permitiria a simbolização, que permitiria a inclusão de sua representação no psiquismo. No narcisismo e, em consequência, no Eu as coisas ficam bem mais complicadas quando se busca compreender sua dinâmica, economia e topologia - sua delimitação. Cada conceito mais acentuadamente parece pouco para compor a teorização do que se passa. A compreensão, enfim, do trabalho psíquico envolvido no narcisismo, na constituição do Eu e seus efeitos estão ainda, é meu entendimento, muito além de uma teoria que permita sua articulação mais completa, embora não faltem incursões psicanalíticas significativas, de Freud a Green (para tomar o primeiro e um dos mais recentes e importantes psicanalistas que dedicaram atenção ao narcisismo). Mas o objeto aqui não é propriamente o narcisismo, não é mais um esforço de desvendá-lo, pelo qual motivo este texto não se estende em sua compreensão ou teoria, mas busca somente indicar uma forma da violência traumática que impede sua razoável instalação.

De Freud a Bion, passando por Melaine Klein, o narcisismo é considerado como uma espécie de transbordamento de dentro para fora - transbordamento pulsional, transbordamento do ódio ou transbordamento de elementos não pensáveis (elementos beta), para indicar aspectos concernentes, sem, no entanto, me dedicar a eles. O narcisismo enquanto primário é necessariamente de morte. De sua imersão o sujeito se afasta para não perecer, para não adoecer, diz Freud (1914/2010) em seu texto-título sobre o narcisismo. O narcisismo é de morte senão e já por impedir a multiplicidade de vias de acesso ao mundo propiciadas pela pulsionalidade que se expressa na forma da sexualidade infantil. A multiplicidade de vias e objetos de satisfação, tão duramente alcançada no desdobramento da sexualidade perversa polimorfa, se constringe no narcisismo. Este, por seu lado, não é um acidente, mas aquilo que permite a formação do Eu e o trabalho psíquico razoavelmente integrado. Embora se faça necessário certo abandono da multiplicidade e diversidade da sexualidade infantil no narcisismo, só com este ou a partir dele se pode falar, por exemplo, de uma experiência de vida no sentido próprio de experiência, que seria, no caso, a simbolização da parcialidade e multiplicidade da vivência sexual - a integridade narcisista é, simultaneamente, a condição e o meio de simbolização das vivências. A dinâmica entre o investimento narcísico e do mundo externo (entre a libido de Eu e a libido de objeto) torna-se fundamental para a sanidade vital (Eros). A circulação dos investimentos promovida por Eros pode ser obstada pelo Eu, mas também pelo objeto, isto é, pelo mundo externo e as condições que oferece para o acolhimento dos investimentos do Eu e para a preservação do Eu. Neste caso, a precariedade do mundo (na forma de carência ou excesso - como no trauma) se desdobra, retardada e posteriormente (nachträglich), sobre o Eu e dificulta ou mesmo impede parte do trabalho psíquico do narcisismo - dificulta ou impossibilita o trabalho de síntese e o conjugado trabalho psíquico de investimento no objeto.

Embora se possa entender a vivência traumática como advinda de dentro para fora, constituindo uma falta a ser - uma fraqueza de síntese..., como em consequência do "desenvolvimento da sexualidade" (FREUD), ou do transbordamento próprio da pulsão, do excessivo pulsional (pulsão de morte) -, a vivência traumática necessita do reconhecimento e do testemunho para sua elaboração e simbolização. No caso de sua falha ou inadequada presença, é sugestivo se pensar a falta de si mesmo no outro. Nas psiconeuroses tais estados infantis podem conduzir à busca compulsiva do amor no objeto supostamente amado. Além, portanto, da "falta de si", ou falta em si, que poderia ser objeto de psicanálise em seu sentido mais clássico - embora encontre sempre a barreira do narcisismo -, a necessidade do reconhecimento de si no outro e, dele derivado, do testemunho do objeto, apontam para a falta do si mesmo no outro. O testemunho (como na tradição testemunhal) seria uma tentativa de levar o si mesmo ao outro, conduzi-lo ao reconhecimento do sofrimento do primeiro - conduzir o outro à função de testemunha. O testemunho autobiográfico, por assim dizer, ainda mantém o sujeito numa circularidade eu-outro sem saída, ainda mantendo as condições de falta da simbolização, incapaz de sustentar o Eu em sua constituição, por vezes conduzindo ao desfecho da morte do Eu, do aniquilamento da própria vida. O bom desfecho do testemunho seria a constituição do terceiro como testemunha, capaz de fazer a mediação do sofrimento, dando-lhe algum sentido ou tornando possível sua vivência sem aniquilamento. Mas isso seria uma idealidade. Na perspectiva do trauma na civilização, talvez o testemunho ao analista e o seu reconhecimento não bastem. Vivências traumáticas de todo um povo ou de fração deste não podem ser levadas ao divã senão pelo discurso singular de um sujeito. Mas isso não deve impedir, como já o mostrou Freud em seus chamados textos culturais, de a psicanálise e cada psicanalista se debruçarem sobre as condições e os efeitos das amplas vivências traumáticas - o que muitos, desde o inventor da psicanálise, já fizeram -, mesmo sendo aproximações muito tateantes e incompletas. Quer dizer, a psicanálise, embora instigada a oferecer seu entendimento, este não será suficiente para dar sentido a tão amplos, intensos e profundos sofrimentos. Ela própria, a psicanálise, chegara ao postulado de condições inerentes aos sujeitos e incontornáveis, como a do postulado da pulsão de morte. Talvez ela possa assim alertar os sujeitos, se é que dela seja legítimo se esperar uma função, diga-se, preventiva ou educadora.

Com todas essas limitações e outras não explicitadas, vou continuar e introduzir uma reflexão que não busca repassar o muito e já melhor dito sobre as diversas figuras traumáticas. Me deterei no aspecto de uma espécie de falha testemunhal, onde esta cai no vazio, no anonimato de uma grande audiência. Trata-se de certo regime instituído da indiferença - o caso exemplarmente aqui tomado será o instituto da "bala perdida". "Instituto" no sentido de algo estabelecido, estando no limite do inquestionável; um consenso amplamente divulgado e enraizado nas pessoas e nos meios de comunicação, que daria um suposto sentido ao que se passa, embora um sentido muito limitado, pois, no caso da "bala perdida", sem história.

Evoco novamente o paradigma do trauma representado no complexo da mãe morta de André Green. O trauma precisamente aí se caracteriza pela indiferença afetiva que a criança vivencia diante de sua mãe, com sérias repercussões narcísicas, determinando o destino do Eu que então se constitui. Mas não vou entrar no detalhamento da caracterização desse complexo nem de sua relação metapsicológica com o trauma da violência. Vou, como o sugere Cláudia Garcia (2012), tomá-lo como paradigma. O que quer inicialmente dizer que não me obrigo a traçar (e, portanto, nem justificar) paralelismos entre o particular e o coletivo, entre o individual e o social ou entre a ontogênese e a filogênese etc.

Existe a violência ruidosa a que, com facilidade, damos atenção e com a qual nos espantamos até o limite de sua repetição e banalização, como acontece com as diversas formas de terrorismo (incluindo o chamado terrorismo de estado) espalhadas mundo afora. Também ruidoso é o importante exemplo (o exemplo é a coisa que nos incomoda, já sugeriu Freud), da violência sem piedade e sem trégua nas cidades como acontece e se acirra no nosso caso, no Brasil, da qual violência, as mídias nos trazem conhecimento imediato e, muitas vezes, repetitivamente noticiado. Embora sejam expostas com abordagens parciais ou imediatamente acompanhadas de valorização, que se impõem consensuais (mesmo que marcadas pela dualidade "do bem" ou "do mal", onde todos se consideram "do bem"), tal se acompanha de pouca aclamação por justiça efetiva, que chegue ao final das responsabilizações. A violência no campo acaba por ser menos ruidosamente tratada pelas mídias, a ponto de nos conduzir ao seu esquecimento - como numa espécie de grande recalcado coletivo, não no sentido de reduzi-la (a violência) a um problema de trabalho psíquico individual ou fazer psicologismo de questão tão grave, mas "recalcado" no sentido de tal esquecimento ser fruto de trabalho intenso de esquecimento (como numa orquestrada antipropaganda).

Além dessas e muitas outras violências sociais mais ou menos enfatizadas e lembradas à beira da exaustão, existe outra forma da violência mais silenciosa. Trata-se da violência cotidiana e considerada "natural" nas sociedades contemporâneas, que as organizações econômicas, políticas e sociais pouco privilegiam, descuidadas, grosso modo, do bem comum, do bem-estar social mais geral. É violência "feita da matéria bruta das carências de base para construção da humanidade de cada um" (NOSEK, 2008, p. 43). À carência material para a sobrevivência, seguem-se as culturais e psíquicas que necessitam ser atendidas para a humanidade de cada um, que envolvem, dentre outras, o reconhecimento das vivências traumáticas, a preservação da certa qualidade da individualidade de cada um, a visibilidade dos sujeitos (de cada um) no meio social etc. - para ficar somente no campo que aqui se delimita. Tais aspectos podem perpassar todo um povo oprimido por diversas causas e mesmo vários de um povo que esteja de todo oprimido. Assim, por exemplo, a indiferença no meio à multidão das grandes cidades, a indiferença entre vizinhos de prédios de apartamentos, a banalização constituída pela repetição compulsiva de eventos fortemente violentos até que sejam "naturalizados" nas paisagens urbanas e agrestes.

Se por um lado tais indiferenças trazem certa proteção como a liberdade do anonimato, a prevenção contra intrusões insuportáveis, elas estão longe de representar aquilo que Winnicott (1958/1983) caracteriza como a capacidade de estar só na presença do outro. Neste último caso, se trata de uma solidão que traz a liberdade do espaço transicional, um fenômeno potencialmente criador.

No entanto é perceptível a desimportância seletiva com que são tratadas pela mídia as situações de assassinatos e mortes provocadas pelos próprios homens, pelos aparatos de segurança ou pelos conflitos entre facções diversas. Os "esquecimentos", por vezes rápidos, dos meios de comunicação de cenas de violência extrema ou simplesmente não as considerar relevantes quando acontecidas, parecem também alcançar a invisibilidade pública já desinteressada.

Nesses casos, a mídia não se faz de testemunha - não ocupa o lugar de terceiro que exerceria a mediação entre a violência noticiada e o público mais geral, que poderia auxiliar no reconhecimento traumático e facilitar a simbolização das vivências. Ao contrário, ou diferentemente disso, promove com técnicas próprias uma imagética que conduz os sujeitos uma posição esquizoparanoide, promove e sustenta uma cisão entre o bem e o mal e a aterrorizante mensagem do "tenham cuidado": "É o que exemplifica o toque de recolher não só nos bairros dominados pelo tráfico, mas em todas as áreas, centrais ou periféricas das grandes Cidades onde se tornou perigoso circular. Estamos todos sob a vigência do toque de recolher" (ENDO, 2017, p. 113). Nesse sentido, inabilita o ambiente em sua função acolhedora e de simultânea alteridade.

Mas ainda há a indiferença e invisibilidade de uns por outros que convivem e estão próximos. São as vítimas anônimas, indefesas e inocentes das violências das mais agudas até aquelas mais cotidianas. O resumo dessa gente tão oprimida pela indiferença e invisibilidade, aparece na descrição de Gonçalves Filho (2004):

Índios expostos à espoliação agrária. Negros expostos ao racismo. Roceiros sem-terra, expostos a trabalhar para só comer. Cidadãos pobres expostos ao emprego proletário, ao desemprego e à indigência. Velhos expostos a ficarem para trás no trabalho acelerado. Mulheres detidas por seus pais, irmãos e maridos, por seus professores e chefes [acrescente-se as que sofrem de violência doméstica]. Amantes expostos à vigilância e à proibição, quando o amor aconteceu fora da ordem erótica oficial. Loucos desmoralizados pelas ciências, cassados pelos tribunais, invalidados pelos manicômios. Tantos expostos à desonra e ao desrespeito cultural. Uma comunidade política parece reuni-los todos: exposição ao sofrimento da dominação (p. 258). [Invisibilidade e indiferença social e singular de cada um].

Entre as múltiplas e variadas situações cotidianas de violência, gostaria de retomar a da "bala perdida", tão corriqueiramente anunciada e repetida. Tal expressão pode ser tratada como eufemismo que, no entanto, mostra, pelo inverso, o que quer esconder. Não existem balas perdidas. Muito mais assertivamente do que as neuroses, com respeito às quais se sabe que seus sintomas têm um "de onde" e um "para onde" (que, aliás, se tornam o objetivo da análise alcançar), as balas têm origem numa arma acionada por alguém e têm, quando "perdidas", um alvo, uma vítima, um corpo no qual se "perdem". Todos anônimos ou tornados indiferentes pela falsa fatalidade da bala perdida. Não se apura, por conveniência, de onde partiu a bala, quem acionou a arma - mantém-se no anonimato da proteção de privilégios que lhe permitem usar uma arma em condições onde certamente anônimos, inocentes e indiferentes podem ser alvejados. As forças opressoras, sejam as policiais sejam as de facções em conflito (do tráfico de drogas ou armas, das milícias etc.) que subjugam comunidades ou populações inteiras, permanecem sem rosto, numa atitude de feitor, agressiva e humilhante, jamais seriamente questionada ou identificada, nesse caso, será por medida de proteção de seu poder de ação, de assassinato, verdadeiramente.

O número absurdo de homicídios no Brasil, em 2015, quase 60 mil, computados pelo Ipea, é exemplar para concretizar a violência cotidiana a que estão submetidos principalmente jovens negros. Muitos dos homicídios permanecem "anônimos", no sentido da falta de importância das vítimas e pela carência de providências que seriam necessárias para acolhimento e reconhecimento das situações nas quais se dão os homicídios (CERQUEIRA et al., 2017). Nessa conta se incluem os latrocínios, as mortes no trânsito, os assassinatos sem conflitos grupais determinados, as "queimas de arquivos", os assassinatos nas rebeliões de presídios, os assassinatos das facções criminosas, os extermínios, ainda hoje, de índios, posseiros, etc. Muitos desses assassinatos têm como vítimas oprimidos e indiferentes.

Do outro lado da "bala perdida" (mas também serve de paradigma das diversas violências urbanas e no campo, paradigma dos atingidos, oprimidos e desprivilegiados), ainda mais anônima e indiferente há uma vítima: a menina de 13 anos que perdeu sua vida, o garoto baleado que soltava pipa, a criança ou adolescente que não teve tempo de se proteger atrás de um muro ou apenas saída do colégio, o bebê atingido no colo da mãe, o idoso que passava por avenida movimentada ainda pela manhã etc., etc. São muitos (embora não tenha encontrado estatísticas a respeito) os que anualmente são assim vitimados. Há uma aparente positividade no noticiário desses traumas sentidos pelas famílias, amigos e companheiros das vítimas. Alguns desses eventos são veiculados pelos meios de comunicação, e algumas entrevistas no local do enterro, por exemplo, aparecem e são ouvidas. "Dar a própria versão dos fatos, [...] revela um esforço em publicizar a dor, buscando um reconhecimento e reparação coletivos e públicos" (ENDO, 2017, p. 115). Mas mesmo assim, no entanto, permanecem anônimas, indiferentes na maioria das vezes e situações - perguntar à mãe o que ela sente diante do caixão da filha vítima de "bala perdida" é o cúmulo, o máximo de expressão da indiferença e do não reconhecimento da dor do outro, por parte de um repórter, por exemplo. Daquele que justamente poderia representar o meio de reconhecimento social de tão desgraçada vitimização. A violência como um trauma-narcísico se prolonga. Não se produz em tais momentos nem empatia - estampada na "cara lavada" de um suposto profissionalismo noticioso de quem faz tal pergunta ou outra semelhante -, nem constrói sentido. O reconhecimento social do sofrimento de cada um desaparece em meio à "justificativa" da não intencionalidade da bala naquele corpo - e não se identifica, sequer se investiga quem puxou o gatilho: crime impune, crime perfeito. A face negativa e traumática permanece operante: o não reconhecimento de si no outro. As vítimas, agora todas, o corpo estendido no chão, os familiares, companheiros, colegas..., também não são reconhecidos em suas dores, por mais que a cena se repita nos noticiários, mesmo que compulsivamente se repitam (ou talvez por isso mesmo) produzem efeito dessensibilizante.

São, todas essas vítimas, um "ninguém" sofrendo, porque sem história que dê algum sentido à vivência profundamente dolorida. As vítimas são outros, outros talvez de um grande Outro a que de certo modo todos assistimos meio indiferentes - perdas secundárias de confrontos que se justificariam a final de conta. "O crime organizado", as "facções criminosas muito organizadas", as "intervenções policiais e militares necessárias" são grandes Outros que, no entanto, não significam, não simbolizam, expressam somente a opressão inescapável dos vitimados. Sem história que dê sentido e sem abertura para um futuro de esperança (sem utopia), falham as condições para um mínimo de síntese narcísica. Ao contrário, provocam profunda instabilidade narcisista os acidentes, destinos "imprevisíveis" que não ocupam mais que alguns segundos da visibilidade nas TVs ou são compulsivamente repetidas à maneira de uma pulsão de morte que destrói vínculos significativos e históricos. O sofrimento transformado em imagem!

Se Freud sugere que a civilização serve para dois fins: "a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si" (FREUD, 1930/2010, p. 49), e que nessa perspectiva asseguraria um mínimo de individualidade e de coesão social, a indiferença seria a negação da civilização. Nela se excluem simultaneamente a vantagem da vida civilizada e a possibilidade da liberdade individual que favoreceria alcançar certa satisfação narcisista.

A indiferença e o não reconhecimento são traumas narcísicos, impedem os indivíduos de uma localização afetiva e efetiva (simbólica) no conjunto social. Esses anônimos oprimidos ainda veem seus laços culturais desvalorizados, se não aniquilados e desfeitos em sua insignificância diante da criação cultural do que se chama arte, ciência, literatura, música etc. "academicamente" reconhecidas. Ou são "artes populares" secundárias e com reconhecimentos restritos, fracionados, talvez.

 

 

Referências

CARVALHO, Ana Cecília. Escrita: remédio ou veneno? In: T. Rivera, L. A. M. Celes, & E. L. A. d. Sousa (Org.), Psicanálise. Rio de Janeiro: FUNARTE, p. 321-336, 2017.         [ Links ]

CERQUEIRA, Daniel et al. Atlas da violência 2017. Rio de Janeiro: Ipea, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Ministério do Planejamento e Desenvolvimento Econômico, 2017. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017>         [ Links ].

ENDO, Paulo Cesar. Violências, sistemas violentos e o horizonte testemunhal. In: T. Rivera, L. A. M. Celes, & E. L. A. d. Sousa (Org.), Psicanálise. Rio de Janeiro: FUNARTE, p. 109-120, 2017.         [ Links ]

FERENCZI, Sándor (1932). Confusão de língua entre os adultos e a criança. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 97-106. (Obras completas Sándor Ferenczi, 4).         [ Links ]

FERENCZI, Sándor (1934). Reflexões sobre o trauma. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p.109-117. (Obras completas Sándor Ferenczi, 4).         [ Links ]

FREUD, Sigmund (1912). Totem e tabu. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. (Obras Completas, 11).         [ Links ]

FREUD, Sigmund (1914). Introdução ao narcisismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, 12).         [ Links ]

FREUD, Sigmund (1919). Introdução a "psicanálise das neuroses de guerra". São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, 14).         [ Links ]

FREUD, Sigmund (1930). O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras Completas, 18).         [ Links ]

GARCIA, Cláudia Amorim. O trauma em André Green. Alter - Revista de Estudos Psicanalíticos, v. 30, n. 2, p. 19-30, 2012. Disponível em: <http://www.spbsb.org.br/site/images/Novo_Alter/2012_2/02Claudia.pdf>         [ Links ].

GONÇALVES FILHO, José Moura. A invisibilidade pública (prefácio). In: COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004. E-book. p. 42-556.         [ Links ]

NOSEK, Leopoldo. O terror na vida cotidiana: revisitando Mr. Kurtz (T. M. Zalcberg, Trad.). In: S. Varvin & V. D. Volkan (Org.). Violência ou diálogo? reflexões psicanalíticas sobre terror e terrorismo. São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 27-46.         [ Links ]

SELIGMANN-SILVA, Marcio. "A era do trauma". In: T. Rivera, L. A. M. Celes, & E. L. A. d. Sousa (Eds.), Psicanálise. Rio de Janeiro: FUNARTE, 2017. p. 59-66.         [ Links ]

WINNICOTT, Donald Woods (1958). A capacidade de estar só. In: WINNICOTT, Donald Woods O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. p. 31-37.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 03/04/2018
Aprovado para publicação em: 15/05/2018

Endereço para correspondência
Luiz Augusto M. Celes
E-mail: lceles@me.com

 

 

*Psicanalista, pesquisador colaborador no Programa de Pós-Graduação de Psicologia e Cultura, Instituto de Psicologia/Universidade de Brasília (UnB), professor titular aposentado/ Universidade de Brasília (UnB).
1O tradutor chama atenção para o título original do artigo de Ferenczi, que seria: As paixões dos adultos e sua influência sobre o desenvolvimento do caráter e da sexualidade da criança. Embora não se encontre aí o motivo da mudança, é perceptível que o título atual, Confusão de língua entre os adultos e a criança, possui uma visada mais metapsicológica e menos singularizada na vivência de cada um.

Creative Commons License