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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.40 no.38 Rio de Jeneiro Jan./June 2018

 

ARTIGOS

 

São 788 degraus: a psicanálise sobe o morro

 

There are 788 steps: psychoanalysis up on the hill

 

 

Sabira Alencar*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo traz algumas reflexões sobre a presença de um psicanalista em espaços que não são, nem o consultório privado, nem outro estabelecimento da rede da saúde. Neste caso, o trabalho se deu no projeto Ação Social pela Música do Brasil, uma orquestra de cordas situada em uma favela carioca. Grande parte dos alunos desse projeto era marcado por um tipo de sofrimento social que, com Ferenczi, pode ser compreendido como um tipo de desmentido, cujas repercussões psíquicas envolvem alguma desvitalização do sujeito, uma fragmentação subjetiva ou o que Winnicott chamaria de um empobrecimento da criatividade.

Palavras-chave: Desmentido, Favela, Reconhecimento recíproco, Sofrimento social, Ambiente facilitador.


ABSTRACT

This article offers certain reflections about the presence of a psychoanalyst in environments that are neither private consultations, nor other establishments part of the healthcare network. In this case, the work involved a string orchestra located high up in a favela of Rio de Janeiro. Most of the children and teenagers catered to by this project were marked by some form of social suffering, the result of a lack of social recognition that, according to Ferenczi, can be considered a form of denial. Among the psychological implications is the devitalization of the subject, subjective fragmentation or what Winnicott would call the depletion of creativity.

Keywords: Denial, Brazilian favela, Reciprocal recognition, Social suffering, Facilitating environment.


 

 

Este artigo pretende trazer à reflexão alguns aspectos do que pode ser a função do psicanalista em espaços que não são o clássico consultório privado. Neste caso, o trabalho se deu em um projeto social, uma orquestra de cordas para crianças e adolescentes. O que faria o psicanalista em um contexto como esse? Quais seriam as especificidades de sua presença e as condições para que a experiência analítica pudesse ser considerada bem-sucedida? Ainda seria possível falar em "experiência analítica" embora a questão da demanda, da associação livre, do pagamento, da privacidade, da transferência, enfim, fosse tão diferente da proposta inicial da psicanálise? Essas são algumas interrogações que os psicanalistas, em sua heterogeneidade, vêm se colocando e que merecem atenção, já que a psicanálise segue sendo requisitada em contextos os mais diversos, a despeito do recrudescimento da demanda por tratamentos rápidos e cuja eficácia de resultados possa ser medida em gráficos. Não pretendo debater o lugar do analista, pois acredito que uma certa atopia faz-se necessária para essa atividade que é, antes de mais nada, movimento, processo, encontro.

A especificidade do dispositivo analítico tem, pelo menos, dois aspectos, um modo de escutar o sofrimento psíquico e um modo de tratar esse sofrimento. Aqui, a psicanálise se bifurca. Escolhi autores mais heterodoxos para me orientar nesse trabalho, também heterodoxo. A partir das lentes de Ferenczi e Winnicott, psicanalistas que trouxeram alento aos pacientes assolados pela época sombria das Grandes Guerras, não se pode mais pensar uma interioridade do sujeito, desvinculada do ambiente em que se está inserido, não é mais possível a separação ontológica entre sujeito e meio. Assim, somos ajudados a compreender a importância do meio para o desenvolvimento subjetivo e pensar o adoecimento psíquico em termos de suas relações e dos afetos envolvidos.

Não acredito que exista uma psicanálise para o consultório e outra para além do divã, ainda que novos contextos transferenciais, certamente, exijam maior elasticidade da técnica e do que se pretende com os atendimentos. Entendo que a grande contribuição da psicanálise continua sendo facilitar a construção de uma relação de confiança, que ajude o sujeito assistido a se sentir reconhecido, legitimado em sua verdade, podendo seguir com mais autonomia em seu movimento expansivo. Isso demanda que o setting seja entendido, mais como uma presença comprometida com uma ética do cuidado, do que como uma estrutura física que comporta condições, digamos, mais assépticas para o trabalho.

 

O projeto Ação Social pela Música do Brasil

Um dos núcleos do projeto Ação Social pela Música do Brasil estava instalado no pico da favela Santa Marta, morro localizado entre os bairros de Laranjeiras e Botafogo, zona sul do Rio.

Essa favela foi se construindo de cima para baixo, numa encosta íngreme. Pequena para os parâmetros cariocas, 788 degraus1 separam o pé do morro e o Pico. Ao longo da subida, avistam-se o Pão de Açúcar, a Baia de Guanabara, o Cristo, a Lagoa Rodrigo de Freitas. A visão é deslumbrante. Casarões de alvenaria se revezam com barracos de madeira mal equilibrados, alguns ainda sem banheiro. Nesse cenário, encantam-me, especialmente, as pipas de todas as cores e tamanhos que as crianças, habilmente, manejam de cima das lajes. Também me encantam as gambiarras, aquelas soluções geralmente eficientes, informais e improvisadas na falta de algum serviço ou utensílio. Elas trazem algo de lúdico. Muitas gambiarras estão na intimidade das casas, outras ficam à mostra, feitas em cooperação. Nos encontros criativos a coisa acontece, no espaço intermediário entre sujeito e social, público e privado, ciência e arte, lei e transgressão. Aparentemente ordinária e despretensiosa, a gambiarra é uma importante astúcia que se apresenta no cotidiano de pessoas comuns, que desejam e precisam sobreviver às catástrofes da vida.

Maio de 2010. Primeiro dia de trabalho no núcleo orquestral. "Eu preciso ver resultados", me adverte o coordenador do projeto. Resultados? Era a primeira vez, na minha vida de psicanalista, que me pediam resultados. Não sabia o que isso queria dizer, mas senti como se esperassem de mim o fim de conflitos faccionais que estavam, historicamente, fora do meu alcance. Eram cerca de cento e cinquenta alunos entre 07 e 18 anos, moradores de cinco favelas diferentes, todas recém-ocupadas por uma Unidade de Polícia Pacificadora. Antes da ocupação policial, esses morros eram controlados por facções rivais, no controle do tráfico de drogas do Estado. Os traficantes costumam ser originários do próprio morro; então, muitos alunos do projeto tinham laços de parentesco com membros do tráfico ou algum tipo de envolvimento com o tráfico. A identificação com a figura do traficante, a lógica da disputa territorial, o imaginário faccional, tudo isso parecia se atualizar nas relações entre aqueles alunos. Chegavam cantando as músicas de seus respectivos comandos, provocando os meninos das outras comunidades. Os atritos eram constantes.

Grande parte daqueles jovens vivia no exílio da cidade, em casas com perigo de desabamento ou ameaça de remoção e grande escassez de recursos e serviços de atenção básica. Um exílio com uma das mais belas vistas do mundo é bem verdade, ainda assim, um exílio. Fosse na trajetória individual ou familiar, a maioria ali tinha a experiência traumática do não reconhecimento social, a experiência de ser invisível e reduzido a um, radicalmente, estranho em sua própria cidade. E, quando não se é reconhecido como sujeito, é como se houvesse um pedaço da subjetividade que não pudesse se incluir em sua humanidade. Com frequência, no lugar de se revoltar contra o opressor, o sujeito se submete, se apassiva. Vai, aos poucos, perdendo a capacidade de afetar e ser afetado, de desejar e lutar por seu desejo. A verdade imposta pelo opressor torna-se realidade interna. Em uma espécie de identificação com o agressor, o sujeito perde sua confiança em si e no mundo.

Alguns teóricos, em particular no domínio da psicossociologia, estão debatendo a noção de sofrimento social, um tipo de sof rimento oriundo dessas posições subalternizadas que traz, entre os efeitos mais comuns, o sentimento de humilhação, vergonha e falta de reconhecimento, vividos silenciosamente e de modo solitário (CARRETEIRO, 2003, p. 60). Trata-se de um tipo de experiência subjetiva diretamente ligada à precariedade ambiental. Não está apenas ligado a fatores concretos, como renda, condição de moradia, segurança, mas, especialmente, a fatores subjetivos, discursivos, que vêm depreciar ou, pior ainda, negar a contribuição social do sujeito. Cabe destacar que é a invisibilidade das marcas psíquicas do sofrimento social que constitui o maior obstáculo para seu tratamento. O não reconhecimento social está no centro de gravidade desse tipo de sofrimento e o sujeito vai se apagando em suas relações. Infelizmente, alguns desses traços já podiam ser notados em grande parte dos alunos da orquestra.

O conceito de reconhecimento tem sido bastante discutido no campo das teorias sociais e da psicanálise. Algumas vezes, aparece como sinônimo da luta de grupos minoritários pela valorização de suas especificidades culturais, étnicas, subjetivas. Tal sinonímia reduziria a problemática do reconhecimento e correria o risco de segregar grupos identitários, mais do que favorecer relações de cooperação. Esse conceito permite pensar o sofrimento social em sua complexidade e de uma perspectiva dialógica. Charles Taylor (1995, 1997) e Axel Honneth (2009) são alguns dos grandes teóricos que atualizam essa discussão. Eles compreendem que para o sujeito moderno não há autorrealização possível, nem reconhecimento do outro se ele não for reconhecido socialmente em suas qualidades e sua potencialidade singular. O reconhecimento recíproco ganha, com tais autores, o lugar de uma necessidade vital.

Com Ferenczi (1931/1992) é possível compreender que a falta de reconhecimento social opera como um desmentido. Entre as repercussões psíquicas dessa (não) relação estariam o assujeitamento, a desvitalização do sujeito, a fragmentação subjetiva. Cabe lembrar que o modelo ferencziano do trauma patogênico se passa em, pelo menos, dois tempos. No primeiro, se daria um evento confuso ou chocante para a criança; no segundo, a criança busca sentido para o que passou, narrando o ocorrido e buscando apoio de outro adulto de sua confiança. Este, ao invés de acolher, desmente a criança, dizendo que nada daquilo aconteceu, responsabilizando ou punindo-a pelo ocorrido, ou ainda mandando que se cale (FERENCZI, 1933/1992, p. 104). Tal resposta do adulto é dissonante do vivido da criança e a produção de sentido fica, portanto, impossibilitada. A confiança básica se rompe.

Se o modelo do trauma foi inspirado numa intencionalidade sexual da parte do adulto, Ferenczi menciona outros exemplos em que uma confusão de línguas se nota: amor excessivo, punições passionais, abandono, instabilidade de respostas do adulto. A diferença de registro só se torna traumática quando existe a imposição tirânica do lado mais forte sobre o mais fraco, em uma relação assimétrica. Podemos compreender, com esse modelo, que o aspecto traumático do sofrimento social e do não reconhecimento é o desmentido que vem depreciar ou, pior ainda, negar a própria existência do sujeito. A solução psíquica encontrada é incorporar patologicamente a negação, a verdade do outro, a invisibilidade. O trauma patogênico se produz sobre esse algo da experiência que, em sua intensidade, não pôde ser inscrito, nem representado. As marcas não são representáveis, mas ficam registradas no corpo, como impressões sensíveis vividas, somaticamente, ou através de experiências que dispensam a palavra, mas têm um potencial figurativo, a exemplo do que ocorre na experiência onírica (GONDAR, 2013, p. 34). Ainda de acordo com a versão ferencziana do trauma, a defesa psíquica contra o desmentido seria a autoclivagem narcísica (FERENCZI, 1913/1988, p. 77). Nessa sofisticada gambiarra narcísica, a parte do sujeito que carrega a experiência do vivido traumático permanece extremamente frágil e machucada, enquanto a outra "amadurece", rapidamente, para tentar se adaptar à realidade. O não reconhecimento social produz um sujeito portador de fragmentos mortos, inexpressivos, silenciados.

Taylor e Honneth mantêm uma interlocução com a linhagem de pensamento da psicanálise, que se inicia com Ferenczi, segundo a qual o sujeito se constitui na relação entre um eu e um outro. Tal contexto afetivo e hierarquia de valores são indissociáveis das narrativas identitárias que influenciarão a consciência de si e a forma como o sujeito agirá no mundo. Se Taylor põe o foco na esfera pública, Honneth explora um pouco mais a dimensão dos afetos, das motivações conscientes e inconscientes, para, então, debater o processo de socialização e a esfera jurídica. Seguindo a trilha de Winnicott, Honneth amplia o papel ambiental da família à escola e à sociedade e vai dizer que, se o sujeito não consegue discernir a sua contribuição na comunidade onde vive, ele não poderá se perceber como sujeito de direitos e deveres (HONNETH, 2009, p. 211). O abalo desse acordo social levaria a seu adoecimento psíquico.

Entender que a patogenia do sofrimento social advém de um desmentido social significa defender o que Luís Cláudio Figueiredo chama de uma ética do cuidado ou uma disposição do mundo humano para se ocupar de seus membros, de forma a "propiciar para o indivíduo uma possibilidade de 'fazer sentido' de sua vida e das vicissitudes de sua existência ao longo do tempo, do nascimento à morte" (FIGUEIREDO, 2007, p. 15). Significa construir um ambiente - os pais, o analista, o Estado, a sociedade - com a responsabilidade de se adaptar, progressivamente, às necessidades do sujeito mais vulnerável, seja por sua idade, sua condição psíquica ou social. O ambiente deve facilitar o movimento expansivo do sujeito e promover sua saúde. Essa compreensão, que já estava presente no pensamento de Ferenczi, marca, completamente, a orientação clínica de Winnicott. Para tais autores, tato, empatia, holding, elasticidade da técnica, são aspectos do cuidado, que permitem relações afetivas mais verdadeiras porque pautadas na confiança e no reconhecimento recíprocos. É o que permite algumas reparações nas falhas desse percurso subjetivo inicial.

 

Por um ambiente que facilite

Meu lugar no projeto foi se delineando conforme eu me integrava ao grupo orquestral e que surgiam demandas da parte de alunos e profissionais. O primeiro passo foi trabalhar em mim uma escuta desimpedida de esperar encontrar o que eu, supostamente, já sabia daquele contexto. Inspirada nas ideias de Winnicott e de Paulo Freire tentei, então, pensar, junto à equipe de profissionais, como construir aquele ambiente mais adaptado aos alunos e que valorizasse a participação de cada um naquele espaço de convívio. Comecei apontando o que seria uma postura mais empática em sala de aula, o que, certamente, era muito mais acessível ao pensamento do que à realização, já que os profissionais nem sempre trabalhavam em condições temporal, afetiva e materialmente favoráveis e que muitos adolescentes traziam comportamentos e afetos bastante desafiadores para os profissionais, em especial, comportamentos antissociais.

O comportamento antissocial, como se sabe, não é um diagnóstico, mas um sintoma que indica a presença de elementos na vida do sujeito que compelem o meio a "administrar, tolerar e compreender" (WINNICOTT, 1995, p. 130). Ainda nas palavras de Winnicott, "a criança antissocial tem duas alternativas: aniquilar o verdadeiro eu ou sacudir a sociedade até que ela forneça cobertura" (op. cit., p. 200). Assim, esse psicanalista percebe, no ato antissocial, uma expressão de esperança. A positivação do sintoma funciona como um verdadeiro norte para quem trabalha com grupos castigados pelo sofrimento social e pela situação de guerra como essas vividas pelas favelas do Rio, pois ajuda o profissional a trabalhar na lógica da saúde e não da doença, da normatividade, no sentido canguilhemiano do termo e não da normatização. Tais princípios foram, pouco a pouco, fazendo sentido para a equipe do projeto.

Inicialmente, senti grande dificuldade de estar à escuta do outro em um registro psicanalítico, como não podia deixar de ser, mas sem psicanalisar. Eu atentava para não interpretar, precipitadamente, para que cada conversa tivesse início, meio e fim, para que não fossem abertas questões que aquele espaço não daria conta de tratar ou encaminhar, para que segredos que eu não poderia guardar não me fossem confiados. Tais cuidados não são muito diferentes daqueles que qualquer analista, no meu entender, deveria adotar. Contudo, fora do setting habitual do consultório particular, esse cuidado redobrava. Desde o início, houve grande receptividade em relação à psicanálise no projeto e, de modo geral, meu trabalho pôde contar com a ajuda, tanto dos alunos, quanto dos profissionais. Eu passava muito tempo nas aulas, observando as relações. Às vezes, aquele que parecia mais retraído em atendimento individual, mostrava-se um grande líder para o grupo. Outras vezes, o mais ilhado da turma estabelecia um vínculo rápido comigo. Formulei uma espécie de anamnese, que me ajudava a conhecer melhor cada aluno. Ali se conciliavam dados atuais e históricos, bem como informações fornecidas pelos responsáveis ou pelos profissionais do projeto. Através dessas fichas, eu acompanhava o desenvolvimento de cada aluno, já que eram muitos casos para conhecer de uma vez.

Eu não me cansava de observar os alunos: como andavam, sentavam, comiam, brincavam, abraçavam-se, tocavam seus instrumentos. A maioria ali, raramente, falava na primeira pessoa do singular, como se isso mostrasse limiares esfumaçados entre o eu e o outro. Nos mínimos detalhes, era possível notar marcas de humilhação, vergonha e medo. Os atendimentos tiveram que começar por aqueles alunos cujos conflitos eram mais intensos e recorrentes. Eles eram enviados a mim pelo coordenador, o que, para uma psicanalista acostumada a ser procurada por aqueles que querem se tratar, configurava, de saída, uma questão. Nem sempre eram os que mais precisavam de atendimento. Eu os recebia na minha pequena sala - que fiz questão de decorar para que se tornasse mais aconchegante - não porque sofriam, mas porque perturbavam os demais com sua bagunça e desrespeito. Ali havia angústia, passagem ao ato, comportamentos antissociais, ali havia também esperança.

Os alunos que mais me preocupavam eram aqueles que pareciam não sentir dor alguma, que perambulavam pela orquestra feito folhas secas, almas flanando pelo grupo ou feito os anjos cosmopolitas de Wim Wenders, quase inexistentes em sua temporalidade, sem pertencimento nem coloração. Viviam as emoções dos outros, como se ali extraíssem alguma fagulha de vida na qual se subjetivar. Não pareciam se importar com o desempenho na orquestra, nem com as zombarias do grupo, nem comigo, nem com nada. Na linguagem de Winnicott, não viviam, apenas existiam como se não importasse viver ou morrer. Essas crianças e adolescentes, mal acolhidos, era eu quem os procurava. Será possível uma psicanálise com essa demanda invertida? Como não se importavam, também não resistiam e vinham. Levávamos uma conversa morna, meio vazia de conteúdo, onde saltava à escuta aquilo que só se deixava escutar pelo silêncio. Eu me perguntava que tipo de interesse os teria conduzido ao projeto? Talvez a música, talvez a vida dos outros, talvez reencontrar fora deles o que já não encontravam dentro. Talvez nem houvesse interesse, apenas foram.

Os atendimentos desenrolavam-se em conversas individuais e em pequenos grupos, com exercícios escritos, desenhos, além de exercícios corporais. Após um mês e meio no projeto, iniciei o trabalho de assistência às famílias, aproveitando o encontro mensal que eles já tinham com o coordenador da orquestra. Era o momento em que as famílias se encontravam, conversavam, pediam orientações. Passei a fazer visitas domiciliares e encaminhar para outros tratamentos fora dali, se necessário. O fundamental daqueles encontros consistia em dar voz às famílias mais invisíveis e escutar os relatos desses moradores, como quem testemunha e legitima a verdade histórica de cada um e de toda uma classe, uma verdade indiscutível, porque baseada na experiência deles.

 

Fragmentos de encontros terapêuticos

Trago alguns fragmentos do que se passou na assistência que prestei àqueles alunos. O objetivo aqui não será apresentar, propriamente, os casos clínicos, mas apenas oferecer uma ideia de como foi possível trabalhar, psicanaliticamente, naquele espaço orquestral. Importante dizer que esses quatro alunos que escolhi trazer estavam entre aqueles que pareciam, mais diretamente, sofrer os efeitos de um desmentido social.

Uma aluna de seus 13 anos, cujo pai não aceita o pedido de separação da mãe, sendo que estão separados desde que essa filha tinha três anos. Sempre alcoolizado, ele vem fazer escândalos em frente à casa dela. A solução que a menina e o irmão encontram é atear fogo ao pai. A mãe trabalha, sustenta os quatro filhos sozinha e nos pede ajuda para "conter" essa filha. Ela se sente impotente. A casa em que moram está ameaçada de remoção pela prefeitura, sob alegação de estar em área de risco de deslizamento. Com a indenização, teriam que morar longe e perderiam as referências da vida toda. Apesar do contexto difícil em casa, essa menina tem expressões alegres. Durante o carnaval, desfila com sua escola de samba, em lugar de destaque. Há, no entanto, uma forte dissociação nessa menina. Quando ela se movimenta, é extrovertida, raivosa, fala muito alto, mas quando para, seu olhar congela, parece toda congelada, sem qualquer expressão facial, como se só pudesse se descongelar regredindo à sua agressividade primária.

Eu a vejo ocupando um lugar de reconhecimento entre os demais da turma e, no entanto, ela só percebe sua exclusão. É admirada pelos colegas, mas se sente sem lugar no grupo. Essa menina sempre entra na minha sala aos gritos, sorrindo e descrevendo seu ódio. Ao menos, sente ódio, ao menos é bagunceira. Faz uma bagunça barulhenta, embora ela não suporte o barulho que ela própria ajuda a produzir. Aliás, essa era uma queixa, quase unânime, da parte dos alunos, o barulho na sala de aula. O barulho deles próprios! Uma espécie de retorno do recalcado ou do nem mesmo recalcado, do mais sensorial de si e do outro, que vinha desestabilizar a turma e cada um. O ruído tinha algo de antissocial, de regressivo. Interessante notar a diferença entre a presença sonora da música, que facilitava a comunicação entre eles e a presença caótica e disruptiva dos ruídos que tornavam impossível qualquer relação. A música que eles produziam nos ensaios constituía, ali, uma espécie de silêncio: era preciso fazer música para que se fizesse o silêncio. O barulho, que eles produziam, incomodava-os a tal ponto que alguns apenas se irritavam, mas outros tinham acessos de choro, pediam para sair de sala. Para essa menina de 13 anos, o barulho causava tanto desespero que ela se descontrolava ainda mais e, quanto mais descontrolada, mais corajosa parecia, porque mais furiosa e mais admiração (e oposição) dos outros ela conseguia.

Assim como era salutar que nossa aluna expressasse sua raiva ali comigo. Em minha contratransferência, foi importante dizer a ela a raiva que me causava o barulho que ela trazia para a minha sala. Importava que nossos encontros fossem autênticos, o que me fazia buscar meu gesto mais espontâneo do que pedagógico. Conectar-me com meus afetos mais verdadeiros, naquele encontro, pareceu ajudá-la a fazer o mesmo e a confiar mais em mim. Legitimar nossos ódios é criar um espaço nosso de partilha e uma dinamização diferente do que a mãe manifesta com sua passividade, diante do pai e dessa filha. Falar da minha raiva significou, mais do que tudo, suportar minha raiva sem, no entanto, abandonar ou retaliar. Significou sobreviver. Essa foi uma das meninas com quem mais conversas tive. Adotei uma postura de mais reserva, embora tentasse conter seus atos mais violentos e procurasse expressar como eu me afetava naquele encontro. Deixo que fale e ela fala bastante, sempre num tom queixoso e de conteúdo ressentido. Aos poucos sinto que dá para fazer algumas intervenções sutis que venham trazer um pouco de alívio a suas angústias. O mais difícil ali era conseguir que meu desejo inevitável de que ela tivesse outra postura, em sala de aula não atravessasse demais minhas intervenções. Eu não queria que nossos encontros ganhassem um tom mais moralizante, pois isso ela já estava cansada de viver com os professores da escola e do projeto.

Nessa menina e em diversos outros alunos era possível perceber a convivência entre a parte que se defende ativamente da angústia terrível sentida e as partes que sofreram colapso. Isso ilustra o uso que Ferenczi faz da ideia de autotomia, como defesa narcísica passiva. A autotomia é um conceito do campo da biologia, sobre o qual se apoia a noção de clivagem narcísica. Trata-se de um modo de reação particular, que faz com que certos animais desprendam uma parte de seu corpo, deixando cair, literalmente, fragmentos que possam causar sofrimento (FERENCZI, 1924/1993, p. 276). Ferenczi entende essa forma de defesa como um deixar morrer para poder viver; é a morte a serviço da vida. Tal automutilação está para o corpo de algumas espécies, assim como a clivagem está para o nosso funcionamento psíquico, é uma gambiarra psíquica para sobreviver às catástrofes. Diante do desmentido, o sujeito "se desprenderia" do fragmento atingido pelo vivido traumático para continuar existindo. O corpo daquela menina sambista tão bonita é um corpo com partes mortas. Assim também é como o corpo da favela, um corpo ferido, fragmentado, remendado. As gambiarras denunciam a força e a frequência das catástrofes, a precariedade do meio, mas, especialmente, a força restaurativa do corpo no tempo.

Devo confessar que, com frequência, eu me lembrava dos tais resultados que me haviam sido cobrados de antemão, no primeiro dia de trabalho. Qual seria o alcance do meu trabalho? Assim como a mãe da menina, eu também me sentia impotente, frente àquelas crianças traumatizadas e aos desmentidos sociais de que, diariamente, tomava conhecimento ou testemunhava, só por estar no morro. Nas primeiras semanas, eu terminava as horas de trabalho e ia descendo e me perdendo pelas vielas labirínticas da favela e me perguntando se aqueles atendimentos eram mesmo reais. Será que algo de verdadeiro se passava ali? Será que, apesar de qualquer esforço, aqueles meninos permaneceriam soterrados no vazio de sua invisibilidade? Minha angústia, às vezes, se confundia com a dos alunos. Mas, quando as dúvidas se manifestavam, os próprios alunos me ensinavam a sentir com eles, a querer escutar menos o que diziam, e mais como diziam, fazendo-me notar que era o fato de terem uma escuta sensível e reservada a cada um ali que fazia da orquestra um ambiente, de algum modo, facilitador.

Dois alunos exigiram, particularmente, da minha elasticidade técnica, pela dificuldade que eu sentia de conversar com eles. Não conseguiam construir uma narrativa inteligível. Cabe lembrar que a cisão imposta pelo desmentido tende a afetar os processos representacionais e a capacidade associativa. Aquelas tais partes mortas, estão mortas porque portam um vazio, que não é como o vazio do espaço potencial (WINNICOTT, [1967]/1975), não é da ordem do inefável e sim do irrepresentável, daquilo que não deixa brechas para um sentido . Nossas conversas, se é que posso chamar de conversas, durante muito tempo, pareciam não provocar efeito algum. Ambos tinham famílias bastante envolvidas no movimento do tráfico. Eu não tinha ideia de qual seria a melhor estratégia de atendimento para eles. Em todo caso, foi fundamental ter, na base da escuta, a noção de que, quando as instâncias de poder (pais, professores, polícia, Estado) operam na lógica ferencziana do desmentido, a autoestima social da criança ou do adolescente fica, extremamente, prejudicada, a criatividade empobrecida e isso traz determinadas marcas psíquicas, que precisam ser manejadas com muita delicadeza pelos profissionais com quem esses meninos estabelecem uma relação transferencial.

O material que um deles me traz, o mais velho, é seu corpo em movimento, detalhes de cenas e alguns retalhos de afetos. Como escreve Ferenczi (1932/1990, p. 37) em seu Diário clínico, "nos momentos em que o sistema psíquico falha, o organismo começa a pensar". Não há nesse "pensar" a conotação representativa e sim a observação da manifestação da memória do corpo, a memória sem lembrança de uma experiência que não foi possível dizer e que, por isso mesmo, também não possível calar. Era preciso escutar o corpo silenciado, invisível, apassivado; notar as expressões, a musicalidade da voz, a literalidade do que trazia. Aqueles encontros, inquietantemente, familiares transformavam a ele e a mim. Esse menino de 15 anos traz a memória individual de seu desenvolvimento interrompido, bem como a memória de seus ancestrais destituídos de reconhecimento social. Um fato curioso: a cada novo encontro que temos, os relatos anteriores parecem nunca terem existidos. Quando retomo algum ponto já abordado, não há continuidade possível; é como se nunca tivéssemos falado daquilo, a ocasião já é outra, a memória é outra. Ele atualiza, nesses encontros, a própria descontinuidade de sua vida, como se fechasse, precocemente, um ciclo para se defender de um possível rompimento desse ciclo. Se cada encontro tivesse início, meio e fim, talvez estaria protegido da angústia de uma nova ruptura, um novo abandono, nesse caso o meu.

Às vezes, proponho que ele identifique e dê nome aos afetos que surgem no cotidiano da orquestra, outras vezes, escuto suas histórias, para mim sem pé nem cabeça e não falo nada ou, quando muito, tento fazer algumas mínimas associações que possam fazer sentido. Na maior parte do tempo, sinto que minhas intervenções não provocam ressonância alguma. Às vezes, peço que mostre o que está aprendendo em sala, para que eu possa valorizar o que está aprendendo. Ele gostava de mostrar. Esse menino é bem musical. Na primeira conversa que temos, é quase só grunhido. Ele se mete, constantemente, em confusões e qualquer acordo que os professores propõem é por ele descumprido. Vive sendo mandado para a minha sala. O sofrimento está inscrito no seu corpo: olhos fundos de desnutrição, olhar vidrado, pernas muito finas e bem machucadas, queimaduras em várias partes do corpo, ombros cada um de uma altura. Seu relato é composto de pedaços de frases com uma musicalidade monótona, quase um lamento. Primeiro, imagino que se droga antes de vir às aulas. Não é o caso. Há um pouco de timidez, há precariedade representacional e um afeto melancólico. Compreendo uma ou outra ideia desconexa. Ele sorri em momentos que para mim não cabem e pode ficar seríssimo ao fazer uma piada. Tudo me levava a crer que se tratava de uma personalidade limítrofe.

Pelo pouco que pude conhecer de sua história, esse adolescente viveu choques violentos, ao longo de seus quinze anos. Salva a mãe quando o pai tenta jogá-la da janela. A mãe tem problemas com drogas e, quando bebe, chega a casa distribuindo surras de cinto. O pai abandona a mãe. O irmão é morto pelo "dono do morro". Nas favelas, como se sabe, os traficantes costumam exercer a lei mediando, ao modo deles, os conflitos entre as pessoas. Nesse caso, o irmão rouba um celular de um vizinho e recebe, como castigo, a ordem de ficar em casa. Como não respeita, é morto com um tiro no peito na frente desse irmão. As marcas de queimaduras que esse aluno exibe são, segundo ele, decorrentes de choques que levou quando a pipa que empinava esbarrou num fio elétrico desencapado. Esse menino é o próprio fio desencapado. Dança como ninguém, gosta de fazer os outros rirem, mas, de repente, é tomado por um acesso de raiva, sem que dê tempo de entender, aos que estão à volta, o que ocasionou. Já, na minha sala, fica apático, quase não se mexe. É mesmo no encontro com o contrabaixo que seu corpo se expande, que seus afetos se acalmam e que ele parece se reorganizar. Em um dos acessos de raiva sem aviso prévio, atira objetos contra as janelas do projeto. É expulso. Recebemos depois a notícia de que, semanas depois, havia sido preso, depois solto. Tivemos cerca de oito encontros, ao longo de um ano e, nesse tempo, foi visível a ampliação que se deu no seu processo de simbolização, o que eu atribuo, em grande parte, pela experiência musical em grupo. Quanto aos nossos encontros, possivelmente, nunca saberei o que representaram para ele.

O outro acompanhamento que me desafiou, particularmente, foi o de um menino de 09 anos que nunca foi à escola, segundo ele, porque não tem certidão de nascimento. Não tem certidão, porque seu pai não quis registrá-lo. Seu pai não quis registrá-lo porque, ainda segundo ele, é o filho mais feio. O pai é ou foi do tráfico. Esse menino até consegue fazer frases com alguma linearidade, só que se contradiz o tempo todo. Ao explicar a situação dos pais, ora diz que ainda moram juntos, ora diz que são só amigos e que o pai os visita de vez em quando, ora diz que os pais namoram e que o pai vai e vem para casa. É o mais novo de sete irmãos e todos estudam, menos ele. Chega ao projeto sem saber ler e se alfabetiza nas aulas de musicalização. Apresenta-se como uma criança alegre, doce, generosa e diz, para meu espanto, gostar da vida que tem. Fico indignada com a condição de ser um menino de 09 anos em plena zona sul carioca que nunca foi à escola, mais ainda, por ser o único filho da família fora da escola.

A mãe também é muito simpática. Esquiva-se, porém, quando cobramos que o matricule na escola. Alega ter perdido a certidão de nascimento do filho e não nos deixa ajudar a tirar uma nova. Nós, da equipe do projeto, começamos a suspeitar que a certidão não podia aparecer, porque talvez o filho fosse de um outro pai, que não podia ser revelado, ideia que reforçada pelo menino ter um biótipo um tanto diferente dos irmãos. Seja como for, há um desmentido por parte dessa mãe. O menino, nesse papel de "patinho feio", não se revolta, não se mostra angustiado, parece anestesiado e submisso. Ele ainda não pôde se separar da mãe, não pôde ter existência própria, de modo que seu processo identificatório ficou bastante prejudicado. Sem sofrimento, também não se sente um "patinho feio" nem em casa, nem na orquestra, porque ainda não parece ter chegado ao ponto de diferenciação e reconhecimento de outro nem como igual, nem como diferente. Por conseguinte, transforma os outros em um mesmo, igual a si. Tem uma espécie de obediência mecânica quanto às propostas do projeto, mas quando as tarefas exigem criatividade, não sabe como fazer e fica satisfeito em imitar o colega.

Nesse caso, pareceu-me, especialmente, importante atender a mãe, o que foi facilitado pelo fato de ela vir, com frequência, buscar o filho no projeto. Ela teve uma infância difícil: o pai, com problemas de alcoolismo, batia, frequentemente, na mãe dela que, por sua vez, era a própria mãe morta de Green (1980/2010), isto é, eficiente do ponto de vista operacional e totalmente desprovida de afetividade. A mãe do nosso aluno também não mostra muita vitalidade, nem muita iniciativa em sua vida. Não faz planos, parece conformada, como seu filho. Identificada com a mãe ausente, não pode deixar de transmitir esse traço melancólico ao filho. Apesar da frágil constituição narcísica que apresenta, ela reage rápido a nossas conversas. Sugiro que se separe gradativamente do filho, começando por não mais dormir na cama com ele, procurando atividades que lhe deem prazer, que invista em suas amizades. Ela obedece, embora pareça não entender muito o porquê disso. Eu fico imaginando que, em alguma hora, o filho reagirá a essa separação e converso com a professora com quem o menino tinha mais vínculo, para que ela esteja atenta às suas reações. De fato, ele começa, gradativamente, a se aproximar dos alunos mais desobedientes, a fazer mais bagunça, passa a levar broncas. O processo de separação, que se inicia, parece revitalizá-lo, devolvendo alguma força expansiva e alguma criatividade, no sentido winnicottiano do termo. Viver criativamente, no caso desse menino de 09 anos, opunha-se ao viver apaticamente, inutilmente. Ele foi alienado por sua família, destituído de seus direitos, em especial destituído de seu direito de existir legalmente. A mãe não o deixa crescer porque lhe faltam recursos psíquicos para viver só, separada desse caçula. Esse trabalho de holding e de revitalização voltado para a mãe parece contribuir no sentido de que ela permita o processo de individuação do filho. Ser chamada a ajudar o filho parece lhe dar um norte.

O último fragmento de caso que trago para esta apresentação é de um aluno com quem vivi, provavelmente, a cena mais emocionante em minha passagem pela orquestra. Um menino de 10 anos que chega ao projeto porque o pai precisa da cesta básica que era distribuída. Sua mãe sai de casa logo depois de ele nascer e nunca mais têm notícias dela. Segundo ele, a madrasta, quando bebe, costuma fazer "ruindades", como puxar sua coberta à noite e o deixar com frio. Curiosamente, quando pergunto ao menino qual a lembrança mais difícil de sua infância, responde que são as vacinas que precisou tomar, porque nunca lhe avisavam que elas aconteceriam; ele era sempre pego de surpresa. As injeções pareciam uma presentificação, no sentido da Darstellung de Ferenczi (GONDAR, 2010, p. 125), do abandono repentino da mãe, das perversões da madrasta, da omissão do pai. Tirando o medo que vaza de seus olhos, não aparece nenhuma outra afetividade. Ele é apático, não se queixa. Tem os ombros curvados, é muito magro e muito pálido. Ele me inspira um manejo bem diferente dos outros, pela fragilidade que apresenta. Se, com aquela menina de 13 anos, constantemente enviada à minha sala por sua bagunça e sua agressividade, eu precisei ter uma presença mais reservada, com ele precisei de maior implicação para, minimamente, dinamizar aquela vida emocional estagnada, quase morta. Tento-me "emprestar" mais, dizendo as imagens que me vêm à mente, como me sinto e como acho que me sentiria nas situações que ele traz. Com este eu brincava mais.

Peço, em uma de nossas conversas, para que me ajude com uma dificuldade que sinto. Comento que um determinado professor havia faltado e que a turma, ao invés de fazer as atividades que eu sugeri, estava brigando muito. Primeiro, ele me sugere punir a todos com castigos, no meu entendimento, bem desproporcionais, o que me leva a crer que grande parte daquela submissão que ele manifesta, viria de um superego bastante tirânico. Depois de ouvi-lo e brincar com o rigor excessivo de sua sugestão, tento conduzir a conversa para soluções mais leves, mais bem-humoradas. Ele resiste. Esse é um dado curioso: com a mesma força com que os alunos, de modo geral, tentam subverter as regras do projeto, quando deixamos com que as façam, tornam-se verdadeiros carrascos com eles próprios, como se tivessem incorporado à norma que os exclui.

Esse menino diz querer ser manobrista quando crescer, para poder dirigir carros diferentes. Aos poucos, essa se torna uma tônica de nossas conversas: o interesse por carros. Falamos dos motores, da potência, do design. Alguns lampejos de afeto se esboçam. Ele passa a me trazer novidades automobilísticas. E um dia, vivemos aquela cena única. Ele me ensina, detalhadamente, mas sem nenhuma expressão no rosto, como eu deveria limpar o instrumento para, então, guardá-lo. Abre o case, tira um violino bem pequeno e cheio de esparadrapos e dobra, com muito cuidado, o paninho que o protege. Precisa dobrar e redobrar três vezes para ficar certinho. Explica o passo a passo da limpeza, dando ênfase ao cuidado com o cavalete que pode descolar. Ainda assim, frisa que eu posso esfregar forte com a flanela que ele resiste. Só não resistiria se eu batesse nele. Diz que a limpeza tem que acontecer todos os dias. Não consigo lembrar todos os detalhes dessa bela aula, mas não consigo esquecer o tato e a imersão com que ele descreve o processo. Haveria, alguma vez, falado de alguém com tanta afeição? Quando termina sua explicação, suspira como que um pouco cansado daquele trabalho e me fixa o olhar, ainda inexpressivo. Ele me ensinava a cuidar dele. Imóvel, permaneço, sentindo toda ternura daquele instante que parece decisivo em nossa relação. Uma ponta de esperança se anuncia. Instantes como aquele, em que um lampejo de confiança se estabelece, foi o que sustentou minha esperança naquele trabalho. Mesmo que nunca mais voltássemos a conversar, ao menos aquele instante nos teria marcado. Foi o último encontro que tivemos.

Entre o corpo daquele menino, o corpo de seu violino, o corpo da orquestra e o meu, parecia haver uma existência em comum, uma comunidade. Não no sentido de uma comunidade homogênea, fusional, mas no sentido de uma partilha. O filósofo e grande sinólogo francês François Jullien (2012, p. 32) propõe que a noção de distância [écart] substitua a noção de diferença para se pensar o comum. Não são as diferenças que precisam ser respeitadas para se investir nessa comunidade, mas as distâncias. Pensar em termos da distância entre pessoas ou entre as culturas significa pôr a lupa no espaço intermediário, que permite reciprocidade e relação. A distância sugere mobilidade, pois existe um caminho a ser percorrido, ao passo que a diferença fica restrita à pura distinção, não cria esse espaço potencial entre. É nesse sentido que a teorização de Jullien se aproxima da transicionalidade de Winnicott e é nesse sentido que entendo o caminho de um analista num contexto como esse.

A palavra "comum" deriva do grego koinos, que tem o mesmo sentido que em português, ou seja, o que se partilha. No entanto, tomando a raiz etimológica do termo em latim, communis, se tem com: que se partilha, se explora em conjunto e munis: tarefa, doação, obrigação (JULLIEN, 2010, p. 46). O latim, segundo Jullien, ajudaria a pensar o comum em sua natureza política. Longe de ser a busca pelos pares identitários, o espaço comum se refere àquilo que se deve com(partilhar) mutuamente. Assim, trabalhar por esse comum, por essa comunidade é explorar as partilhas possíveis entre as pessoas, entre as pessoas e seus espaços, entre as pessoas e seus objetos. Penso, agora, no sentido que Jean Luc Nancy oferece ao político, como sendo da ordem do "ser em comum", isto é, da experiência de existência comum em uma sociedade. É esperado da política que propicie "forma e visibilidade à possibilidade do viver junto" (NANCY, 2004, p. 173), assim como entendo fazer parte do trabalho do analista pela confusão das línguas, pelos desmentidos para se chegar a uma distribuição maior de vozes. Aí, parece-me estar a função maior de todo psicanalista que lida com o sofrimento social, na lógica da ética do cuidado, ou seja, oferecer um pano de fundo afetivo que sirva de base para a criação de gambiarras dialógicas, que legitimem a verdade do sujeito traumatizado, que devolvam um bocado de seu reconhecimento recíproco e, assim, devolvam-lhe o valor de sua contribuição no mundo.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 01/02/2017
Aprovado para publicação em: 02/01/2018

Endereço para correspondência
Sabira Alencar
E-mail: sabira.alencar@gmail.com

 

 

*Psicanalista, membro associado/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ), mestre em Saúde Coletiva/Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), doutora em Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), estágio doutoral/Universidade Paris V - René Descartes.
1Como canta a música do rapper Fiell, morador do Santa Marta: repperfiell.com.br/?page_id=12

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