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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.40 no.38 Rio de Jeneiro jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

O Unheimlich na adoção da criança com deficiência

 

The Unheimlich in the adoption of disabilities children

 

 

Débora Ferreira Bossa*; Anamaria Silva NevesI**

IUniversidade Federal de Uberlândia - UFU - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo parte do reconhecimento de que muitas crianças e adolescentes disponíveis à adoção são excluídas da oportunidade de serem adotadas devido às exigências quanto ao perfil construído pelos pretendentes, sendo a deficiência uma das características eliminatórias. A análise das informações disponibilizadas nos relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a revisão bibliográfica mostram que a preferência dos adotantes é destoante da realidade das crianças institucionalizadas. A compreensão psicanalítica do fenômeno indica que a deficiência compõe o fenômeno do estranho (unheimlich), movimentando fantasias primitivas nos adotantes.

Palavras-chave: Adoção, Deficiência, Estranho, Psicanálise.


ABSTRACT

Our study was based on fact that most of children and adolescents available for adoption are excluded from the opportunity to be adopted, because of the profile required by applicant parents, in which disability is not expected. We analyzed the information provided in the reports of the Brazilian National Council of Justice (CNJ) and the bibliographic review showed that the preference of the adopters is disproportionate to the reality of institutionalized children. The psychoanalytic consideration indicates that the desability due to compose the phenomenon of the strange (unheimlich) moves their primitive fantasies on applicant parents.

Keywords: Adoption, Disability, Strange, Psychoanalysis.


 

 

Introdução

A prática de entregar crianças para o convívio em outras famílias ou deixá-las à deriva do destino, quando rejeitadas pela família, percorre a história da civilização (WEBER, 2000). A deficiência, por sua vez, é uma característica inerente à espécie humana e está relacionada à diversidade, apresentando intensos desafios quanto ao seu entendimento. A aproximação entre esses dois elementos convoca ao questionamento sobre o baixo índice de inclusão da deficiência como característica a ser considerada no perfil construído pelos pretendentes à adoção, cuja composição delineia o objetivo deste trabalho. A articulação entre adoção e deficiência, no âmbito da psicanálise, aponta para o reconhecimento do unheimlich, conceito apresentado por Freud no texto O estranho (1919). A deficiência, nesse campo, é compreendida como o fenômeno do real, que provoca efeito avassalador, indicando dificuldades na vinculação dos pais com a criança.

As crianças, disponíveis para adoção que apresentam alguma deficiência ou doença crônica, são pouco reconhecidas pelos pretendentes à adoção, que, ao construírem o perfil da criança junto ao Cadastro Nacional de Adoção (CNA), optam por crianças que não tenham essas características. Souza e Paravidini (2011) apontam que o perfil da criança está baseado em ressaltar características que possam suprimir as diferenças físicas entre os pais adotivos e a criança, como um esforço para esconder a adoção. Nessa perspectiva, é fundamental identificar a deficiência como aspecto causador de angústia e que porta o conteúdo devastador do unheimlich.

Para a sociedade atual, a adoção estabelece vínculos legítimos de filiação com os mesmos reconhecimentos legais da filiação natural e, além disso, configura-se como uma das formas de atenuar os problemas que vitimizam crianças e adolescentes do abandono, da orfandade e do desprezo (MENDONÇA, 2008). A adoção pode ser compreendida a partir de dois modelos, sendo que o primeiro cedeu lugar ao segundo a partir de 1990, com a primeira publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (BRASIL, 2017), reconhecendo o direito de família para todas as crianças e adolescentes do Brasil. A adoção clássica procurou garantir a descendência para os casais que não poderiam ter filhos naturais, enquanto a adoção moderna regulamenta a solução para a crise da criança abandonada, considerando como fundamento a concepção de que toda criança tem o direito a uma família (VARGAS, 1998).

Nesse sentido, Maggi (2009) menciona que a adoção, para a criança, pode favorecer o suporte familiar de referência, oferecer as bases de identificação para sua subjetividade e proporcionar acesso a uma rede social. As inscrições que uma criança adotiva carrega em seu psiquismo podem ser articuladas e favorecer o processo de simbolização de suas fantasias, liberando-a das angústias vivenciadas.

A adoção é uma forma de construção familiar de importantes especificidades, pois envolve fantasias permeadas pelos ditames sociais e inseguranças pessoais, tantos das crianças e adolescentes como dos adotantes. Dolto (1998) afirma que a filiação por adoção encontra o impasse de colocar uma criança no elo entre duas famílias, a biológica e a adotiva, oferecendo duplo pertencimento. Os pais adotivos podem vivenciar angústia frente ao desconhecimento da pré-história da adoção, a qual se mantém para a criança como lembrança e marca psíquica. Para realocar o mal-estar provocado pelo desconhecimento da história da criança anterior à adoção, a autora considera a importância da construção de um modo singular dos adotantes se relacionarem com a criança, proporcionando segurança no vínculo atual.

Sentimentos ambivalentes podem estar presentes nessa relação e dizem respeito às dificuldades de aproximação entre essas pessoas desconhecidas. Rosa (2008) esclarece que os vínculos interpessoais são enlaçados por expectativas e fantasias, como resultantes do inerente processo humano de dependência ao outro. O vínculo na família por adoção repercute em fantasias primitivas, vividas como reais em ambos os lados. As fantasias para pais e filhos são semelhantes e remetem a experiências de abandono, rejeição, roubo e estranhamento.

 

O cenário da adoção no Brasil

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2017) disponibiliza, em sua página virtual, relatórios com as estatísticas sobre a relação entre o perfil das crianças disponíveis para adoção e o interesse dos pretendentes quanto a esse perfil. Os dados estão sujeitos a alterações diárias, mas, ainda assim, é possível inferir que a maioria dos pretendentes à adoção (66,39%) não aceita crianças e adolescentes que apresentam doenças crônicas ou deficiências e, dentre os pretendentes que aceitam, há preferência para a deficiência física (5,2%) em detrimento da mental (2,69%). O cadastro não discrimina outras formas de deficiências ou variedades das relatadas, o que pode induzir a erros de interpretação no reconhecimento das habilidades dos pretendentes à adoção, em dedicar cuidados às necessidades das crianças.

Embora a quantidade de pretendentes (37.238) seja superior à de crianças e adolescentes disponíveis à adoção (4.813), muitos passam por longos períodos institucionalizados, pois suas características não coincidem com o perfil exigido pelos pretendentes, sendo idade, grupo de irmãos, etnia, doenças e deficiências, aspectos que incluem ou excluem a criança ou o adolescente da possibilidade de adoção.

No Brasil, a adoção se estabelece a partir de aspectos que aproximam a pobreza e o abandono, negligência e maus-tratos, uma vez que é neste cenário que ocorrem os maiores índices de crianças destituídas de suas famílias biológicas e encaminhadas para a adoção. Weber (2000) aponta que o fenômeno está associado à proibição do aborto, à condenação do filho ilegítimo, à falha nos programas de prevenção da natalidade, aos problemas de saúde pública como drogadição e de segurança pública, como tráfico, violência sexual e intrafamiliar. Nesse contexto, a criança é recolhida pelo Estado e protegida desse meio a partir do acolhimento institucional. Porém, a autora pondera que não existem trabalhos sociais realizados com a família da criança e acrescenta que o tempo de recolhimento da criança ou a privação do contato com a família de origem não garante que esta reorganize o modo de funcionamento para acolher a criança novamente. Para Weber (1998), a institucionalização tem se mostrado um instrumento de abandono, uma vez que os familiares das crianças deixadas em acolhimento institucional não retornam para buscá-las, reestruturando os laços familiares a partir da ausência da criança.

Os índices de maus-tratos contra a infância têm se ampliado nos últimos anos e Altoé (2007) considera que isso se deve ao aumento das possibilidades de detectá-los. Neves (2009) relembra, a partir de Casado Flores e colaboradores (1997), que até 1940 os profissionais não reconheciam as ocorrências de maus-tratos contra a criança. Com as publicações de trabalhos científicos, entre os anos de 1940 e 1960, houve um maior número de pesquisas envolvendo a descrição dos sintomas da violência familiar. Porém, desde 1860, os médicos já alertavam para as fraturas em crianças com causas desconhecidas, cujos sintomas permaneceram por muitos anos designados como "sem identificação".

Desse modo, o abandono está relacionado à pobreza, repetindo a própria condição social em que políticas públicas não se mostram atuantes. Weber (2000), em estudo realizado com as mães que abandonaram seus filhos, considera que estas o fazem por também terem sido abandonadas pela sociedade. A autora propõe que as mães abandonam por não terem alternativas de sustentação financeira da criança, por não acreditarem nas propostas das políticas públicas e por carecerem de educação e expectativa de vida. As famílias abandonadas repetem o ciclo de abandono com seus filhos, cujas raízes estão relacionadas à profunda desigualdade social, de uma política brasileira que desemprega, não alfabetiza, criminaliza e exclui os pais da sociedade institucionalizando as crianças.

Segundo Freitas (2001), a reconstrução do modelo e orientação da assistência à infância abandonada foi estabelecida a partir de 1960. Weber (1998) aponta que, em 1959, a promulgação dos Direitos da Criança reconhece uma forma ética para a proteção da infância abandonada e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em 1989, constituiu instrumento jurídico de mesma finalidade.

A Constituição Cidadã de 1988 inseriu os direitos da criança, após a proclamação dos Direitos Internacionais da Criança pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1950. O Estado passou a assumir a responsabilidade da assistência à infância e à adolescência com a formatação e consolidação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8.069/1990), que permitiu a efetivação da imagem da criança e do adolescente como sujeitos de direito (FREITAS, 2001).

Altoé (2007) menciona que o conceito de sujeito de direito, para a criança e o adolescente, traz uma contradição na compreensão entre capacidade e incapacidade, entre menoridade e maioridade, em especial para a criança. A atribuição, como sujeito de direito, permite que a criança e o adolescente sejam ouvidos frente aos processos jurídicos, como separação dos pais, sendo reconhecido seu posicionamento e vontade mediante destituição e a adoção. Contudo, a audição da criança e do adolescente é permeada pela possibilidade de não existir, se for julgado que a idade ou o estado da criança não viabilizarem essa prática. Nas situações em que a criança delata maus-tratos, são os pais quem devem responder por ela, justificando a acusação. O lugar da vítima é tomado pelo Estado, sendo promotores, conselheiros e juízes quem decidem sobre os caminhos da criança, frente aos abusos. A autora acrescenta que a infância é atravessada pelas desigualdades que a sociedade reproduz, sendo, por esta razão, que as políticas em relação à infância e adolescência não podem estar dissociadas das políticas sociais em geral, cabendo reconhecer a existência de crianças cujo destino social caminha pelos guetos da sociedade bastarda.

Por outro lado, a adoção apresenta como uma dentre as propostas de enfrentamento deste problema social. Queiroz (2004) relembra que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ao regulamentar ações que asseguram o bem-estar da criança e do adolescente, reconhece que adoção contribui para minimizar o efeito social do menor abandonado. A prática tem sido recorrente nos países de direito romano, em especial nos períodos de aumento da orfandade, como é o caso dos períodos pós-guerras e de conflitos territoriais. A adoção é incentivada pela Vara da Infância e da Juventude e amparada por associações de apoio aos pretendentes e pais por adoção. À medida que aumenta o interesse pela adoção, também cresce a demanda por acompanhamento psicológico, uma vez que ansiedades e resistências podem estar presentes na relação.

Weber (2000) diz que a adoção é permeada por preconceitos e estereótipos, condições que interferem no interesse pelas adoções de crianças maiores de três anos (adoção tardia), multirraciais, grupo de irmãos e de crianças ou adolescentes com deficiências ou doenças crônicas.

No Brasil, a adoção é marcada, historicamente, pela clandestinidade, pela falta de informação e pelo segredo (WEBER, 2000). Souza e Paravidini (2011) percebem importante diferença entre os pretendentes brasileiros e estrangeiros. No Brasil, há preferência pela criança menor de três anos de idade, de etnia branca, sem histórico de nascimento prematuro e sem problemas de saúde. Os autores apontam que essas exigências estão relacionadas à adoção como recurso para a busca pelo filho ideal, impossível, geralmente, devido à infertilidade dos casais. O perfil da criança parece se assemelhar às características dos adotantes como forma de suprimir a adoção, distorcendo-a em filiação biológica; mais próximos à adoção clássica. As famílias estrangeiras, porém, não apresentam as mesmas exigências. Crianças que não se encaixam no perfil solicitado pelos pretendentes brasileiros são inscritas para a adoção estrangeira, quando nenhuma outra oportunidade parece ser possível no território de origem, mais próximos da adoção moderna, baseada na ideia de que toda criança tem direito a uma família.

Levinzon (2006) menciona que a adoção é uma escolha de muitos casais brasileiros que buscam suplantar a infertilidade, o que aponta para a vivência de fantasias que dizem respeito ao luto de não poder gerar filhos. Os impasses da relação adotiva podem ser atribuídos aos pais biológicos, desresponsabilizando os pais adotivos pelas dificuldades com a criança, cuja justificava é atribuída ao "mau sangue".

Giacomozzi, Nicoletti e Godinho (2015) indicam que os adotantes brasileiros preferem crianças recém-nascidas, de pele branca e do sexo feminino, respaldados pela crença de que "meninas" são mais "dóceis" e de melhor adaptação em ambientes novos. A resistência em adotar crianças maiores de três anos é fundamentada pela crença de que tragam consigo maus hábitos e "defeitos de caráter", decorrentes do maior convívio com a família de origem ou ao longo período de institucionalização. Os autores ressaltam ainda que a pouca quantidade de estudos sobre o tema da adoção, suas fantasias e preconceitos são fatores que potencializam a falta de informação da população e conhecimento dos profissionais atuantes nas redes de saúde e proteção social.

Enquanto estranhamento e tentativa de exclusão, é possível inferir que a deficiência se insere nesse contexto, sendo permeada por fantasias que recobrem os atos de rejeição historicamente apresentados, bem como ilustram o campo da adoção, em que esta característica é preterida pelos pretendentes. O perfil exigido pelos pretendentes aponta que a adoção ainda é carregada de preconceitos e estereótipos, que valorizam a filiação biológica como a legitimação do laço, estando a deficiência em condição de ser excluída em diversas formas, primeiramente ao considerar as condições de violência, abusos e negligências vivenciadas pelas crianças, culminando nos processos de institucionalização, destituição e espera para a adoção, bem como a não adequação de seus corpos e capacidades mentais e físicas às exigências dos pretendentes à adoção e, por último, a partir do reconhecimento das desvantagens sociais as quais está submetida.

 

Adoção e deficiência: as fantasias que tornam preterida essa aproximação

Andrade e Soléra (2006) reconhecem que a deficiência, principalmente aquela que implica na aparência do corpo, imprime um corpo fragmentado, o qual está excluído da imagem especular fundamental para a formação do eu. A marca primordial, esclarecida por Lacan (1963/2005), é a imagem especular alienante, para a qual o bebê se identifica com uma imagem que oferece forma ao eu ideal e não corresponde ao corpo fragmentado experimentado. As autoras concluem que a imagem do deficiente perturba, pois devolve, em espelho, a experiência da imagem fragmentada para a qual o corpo é testemunha. O encontro com a deficiência faz emergir a marca da própria debilidade e da impotência excluídas da imagem pela qual o sujeito se reconhece. Nesse sentido, a deficiência é negada em nós mesmos, por ordem inconsciente, pois representa a imagem de um corpo debilitado, apresentado como espelho perturbador. A imagem da deficiência provoca incômodo por ferir uma imagem que não corresponde àquela construída a partir do eu ideal, a qual está associada à perfeição narcísica identificada nos tempos primórdios da constituição, produtora de angústia e, portanto, excluída, mas não destruída.

Jerusalinsky (2007) menciona que a chegada de uma criança com deficiência faz emergir emoções profundas de não reconhecimento, ódio e isolamento da criança em virtude da não identificação com o narcisismo dos pais. O isolamento, nos primeiros meses de seu nascimento, pode levar a traços de psicose e autismo, coincidindo a debilidade orgânica, já marcada pelo real, com sua constituição.

Segundo Brauer (1998) a presença do filho com deficiência pode fazer surgir sentimentos impronunciáveis, que permeiam os cuidados e sua criação e, por vezes, ocupa o lugar de exclusão, castigo e culpa. A deficiência não precisa existir, de modo real, na família para fazer valer essas concepções, mas sua presença pode desencadear o engendramento da relação mãe e filho, permeada pela psicotização, uma vez que a mãe passa a necessitar que o filho com deficiência ocupe o posto de depositário de seus sentimentos hostis insuportáveis a ela mesma, e justificados pela presença da criança. Isso permite que a mãe e sua criança, com deficiência, permaneçam colados subjetivamente, que contracena com a fantasia posta no real do cuidado à deficiência. Cuidar e ser cuidada são lugares socialmente aceitáveis nos quais os sentimentos poderão encontrar uma forma de se depositarem.

Góes (2006) afirma que a deficiência pode ocasionar importante transtorno psicológico nos pais e na família, ao vivenciarem constantes conflitos que repercutem, de forma significativa, na própria criança, em virtude de sua limitada capacidade de elaboração das situações nos âmbitos psicológicos, cognitivos e afetivos. Os pais experimentam movimentos frequentes de rejeição e aceitação, que se manifestam de modo inconsciente em relação à criança, além disso, suas funções materna e paterna podem ficar na impossibilidade de ser psiquicamente elaboradas diante da realidade do filho. A aceitação da deficiência é permeada por mobilizações inconscientes e afetos ambivalentes, e por isso o autor considera a necessidade de construção de novas representações psíquicas capazes de incluir a realidade da criança e proporcionar um novo encontro entre pais e filho, ou, um "novo nascer". Para isso, é preciso que os pais estejam em condições de elaborar o estado de estranhamento que a imagem real da criança lhes oferece, recorrendo a novas idealizações, incluindo a imagem da criança a partir da realidade. Esse processo possibilita a ressignificação e a oferta de novos significantes ao filho que não oferece continuação ao desejo narcísico dos pais.

Os conflitos, que afloram da relação entre os pais e a criança com deficiência, colocam-nos frente ao desafio de superar o vazio que os distancia da criança, pelas dificuldades em reconhecer seus traços, identificando-o como sujeito incapaz de perpetuar seus desejos e suas histórias. O trauma decorrente do nascimento da criança com deficiência é fruto da restrição ao desejo de plenitude narcísica e de imortalidade do Ego dos pais. Essa condição aponta para a inviabilidade de novos momentos e conquistas junto com o filho (GÓES, 2006).

A presença da deficiência na família e na comunidade anda na contramão do funcionamento esperado para a manutenção do movimento de produção e adequação aos sistemas sociais. Diante disso, Jerusalinsky (2007) afirma que a abundância de conhecimentos científicos para a compreensão e trato da deficiência tende a se refugiar nos discursos técnicos, o que acaba por desconsiderar a subjetividade da pessoa com deficiência. A ênfase dada à deficiência como objeto, ao não reconhecer o sujeito, remete à defesa da mobilização dos temores primitivos infantis de ser abandonado, execrado e desprezado para sempre.

Nas relações familiares, a deficiência movimenta importantes afetos que podem apontar os modos de cuidados a serem empreendidos sobre a criança. A reconfiguração desses laços passa pelo reconhecimento da condição da criança e pode se deparar com as fantasias e movimentos inconscientes dos pais. A deficiência é uma condição da espécie humana, mas os contextos sociais, familiares e adotivos encontram dificuldades em reconhecê-la enquanto diversidade do corpo, deparando-se com aspectos de estranhamento. Nesse sentido, a deficiência apresenta a articulação entre o familiar e o estranhamento.

Freud (1919/1985) esclarece que o fenômeno do estranho (unheimlich) é provocador de horror e medo e porta, simultaneamente seu oposto, o familiar (heimlich). Na compreensão do unheimlichem aproximação à deficiência é possível considerar que esta se apresenta a partir do efeito aterrorizador, ao pronunciar fantasias relacionadas ao abandonado, ao ser execrado e desprezado, ao mesmo tempo em que é uma condição intrínseca à espécie humana (heimlich).

A criança a ser adotada é o desconhecido que adentra no lar, no familiar de um grupo cujo laço é construído à medida que o impacto do estranhamento é desvanecido. Da mesma forma, a deficiência enquanto unheimliché provocadora de desconhecimentos, que anunciam constantes cuidados à saúde e suas diversas modalidades terapêuticas, estando associada à impressão de acabamento e inviabilidade da vida.

O distanciamento entre a deficiência e a adoção é efeito de preconceitos e estereótipos, que se manifestam pelo efeito dessas fantasias, as quais, ao terem a oportunidade de ser elaboradas, tornam possível a aproximação desses fatores. Muitas crianças que apresentam deficiência não são preferidas à adoção, uma vez que provoca o efeito devastador do unheimlich. O resgate da composição entre adoção e deficiência, a partir do percurso do unheimlich, caracteriza-se pela inclusão da deficiência na família adotiva, questionando o perfil construído pelos pretendentes à adoção, o qual denota interesse em corporificar o filho ideal e pouco se aproxima das crianças reais disponíveis para adoção e habitantes das instituições de acolhimento brasileiras.

Desse modo, pode-se reconhecer que os pretendentes à adoção, no Brasil, buscam construir o perfil da criança a ser adotada a partir de critérios que suprimem a diferença física revelada pelo laço não consanguíneo. Ao verificar o pequeno índice de pretendentes, que aceitam a deficiência física e mental ou a presença de doenças crônicas, como características a serem consideradas para a adoção, é possível identificar a deficiência como aspecto causador de angústia e que porta o conteúdo devastador do unheimlich, além de anunciar o incômodo vivenciado a partir das fantasias sobre a infertilidade, principal motivo para a busca pela filiação adotiva.

 

Considerações finais

Os pretendentes à adoção tendem a construir o perfil da criança a ser adotada, acentuando aspectos da semelhança física. Essa postura é compreendida pela insistente concepção cultural de suplantar o vínculo adotivo em detrimento da valorização da filiação biológica, além de encobrir dificuldades afetivas relacionadas à infertilidade.

As informações do CNJ indicam que o número de pretendentes à adoção é quase oito vezes maior que crianças e adolescentes disponíveis, porém a espera é longa para ambas as partes. Isso é compreendido a partir das exigências quanto ao perfil da criança pelo pretendente à adoção, sendo a deficiência ou doença crônica características também desconsideradas.

A deficiência foi compreendida a partir do efeito unheimlich, cuja implicação aterrorizadora mobiliza nos adotantes fantasias primitivas e conflitos inconscientes de ser desprezado e abandonado, revelando o afastamento ou desinteresse em adotar essas crianças. Os preconceitos, estereótipos, a falta de conhecimento e a pouca habilidade em reconhecer e elaborar fantasias são aspectos presentes no laço da adoção da criança com deficiência e podem inviabilizar que muitas crianças sejam acolhidas em famílias substitutas.

A deficiência enquanto unheimlichtambém pode ser percebida pelos escassos estudos sobre sua relação com a adoção, o que contribui para a manutenção do desconhecimento que repercute em movimentos de isolamento e afastamento das discussões psicanalíticas a esse respeito.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 05/07/2017
Aprovado para publicação em: 04/12/2017

Endereço para correspondência
Débora Ferreira Bossa
E-mail: deborabossa@gmail.com
Anamaria Silva Neves
E-mail: anamaria@umuarama.ufu.br

 

 

*Psicóloga, mestre em Psicanálise e Cultura, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Aplicada, Núcleo de Psicanálise e Cultura/Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
**Docente Associado II, do curso de graduação e pós-graduação strictu sensu,Instituto de Psicologia/Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

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