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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.40 no.38 Rio de Jeneiro Jan./June 2018

 

ARTIGOS

 

Winnicott escritor

 

Winnicott writer

 

 

Rogerio Luz*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A maneira de dizer o que tem a dizer é, em Winnicott, coerente com seu modo de pensar a teoria e a clínica psicanalíticas. Da modernidade deste modo de pensar dá testemunho o ensaísta francês Maurice Blanchot, pelo viés de uma reflexão sobre a escrita de Nietzsche.

Palavras-chave: Winnicott, Blanchot, Escrita fragmentária, O brincar.


ABSTRACT

The way to say what he has to say is, in Winnicott, consistent with his way of thinking psychoanalytic theory and clinical practice. The modernity of this way of thinking is testified by the French essayist Maurice Blanchot, through a reflection on Nietzsche's writing.

Keywords: Winnicott, Blanchot, Fragmentary writing, Playing.


 

 

Examinar o pensamento de Donald Winnicott a partir de seus textos: isto parece óbvio. Como fazê-lo diferentemente, mesmo se os textos tiveram origem em emissões radiofônicas ou palestras para públicos diversos? Penso, contudo, em centrar a atenção no modo de escrever de Winnicott e não no conteúdo de seu pensamento. Qual a relação entre a maneira de dizer de Winnicott e o que é dito por ele? Como essa distância é percorrida por um pensamento, como o de Winnicott, que não é um pensamento das estruturas e de suas articulações, mas dos desdobramentos, das transições e dos movimentos em mão dupla, do dinamismo de vaivéns e paradoxos, na tensão entre polos que se opõem? Cioran nos adverte contra uma análise meramente interna do texto, e isso justamente em um domínio que privilegia o modo de dizer, que é o domínio da poesia.

Não há pensamento vivo, fecundo, que aja sobre o real, se a palavra substitui brutalmente a ideia, se o veículo importa mais do que a carga que transporta, se o instrumento do pensamento é assimilado ao próprio pensamento (...) Um Dante era obcecado pelo que tinha a dizer, não pelo dizer (ESPINHEIRA FILHO, 1999, p. 266).

Mas será o texto um mero veículo de significados e de ideias? O texto, para falar de outra coisa, não fala também de si mesmo? Porque, afinal de contas, ele é uma sequência grafada de palavras, sequência que obedece a certas regras de formação, que circula dentro de um dado campo de significados e de práticas, que configura um determinado estilo.

É claro que o texto não depende, para existir, apenas de seus formantes, de sua significação, de seus referentes, de sua sonoridade e de seus ritmos. A definição do que é um texto não se esgota no exame de seus componentes expressivos e significativos. Um terceiro elemento deve ser considerado. Entre o dizer e o que se tem a dizer, aparece aquilo que, para o texto, significa pensar. Essa maneira de pensar é irredutível tanto à forma de expressão quanto aos significados descritivos e nocionais.

O pensamento - tal como, nesses termos, penso evocá-lo nos textos de Winnicott - é, portanto, o movimento que acompanha o texto para reduplicá-lo. Trata-se não de um espelhamento, mas de um funcionamento, que abre no texto o espaço para uma experiência de leitura. Essa imagem funciona como a alteridade do texto no interior do próprio texto.

Quando Winnicott nos fala de um objeto que não é nem subjetivo nem objetivo - ou que é simultaneamente subjetivo e objetivo -, além de sentirmos a estranheza da expressão, temos dificuldade em apreender seu significado. Não duvidamos, porém, de que Winnicott quer apontar para uma experiência efetiva, ilusória e constituinte, o do jogo sem regras, e que pretende nomeá-la. Neste momento, seu texto dá a pensar. Neste momento, sentimo-nos chamados a exercer uma nova modalidade de pensamento.

De fato, não há como fazer coincidir, no texto, o que é dito com o modo de dizê-lo. Neste hiato é que o texto dá a pensar: vira-se para o que ele não é, a exterioridade a que o leitor procura dar corpo.

Que leitor, que leitura o texto de Winnicott quer provocar?

Suponhamos, para responder a tal pergunta, que sua teoria não é uma teoria energética ou linguística, mas estética - isto é, uma teoria das condições efetivas propiciatórias das primeiras experiências corporais, sensações e afetos, que podem vir a constituir o patrimônio de um ser humano, de um determinado sujeito psíquico em sua singularidade. Talvez um poeta possa melhor responder por nós. Jorge Luis Borges nos fala da leitura como um jogo constituinte do fato estético.

O fato estético requer a conjunção do leitor e do texto e só então existe. É absurdo supor que um volume seja muito mais do que um volume. Começa a existir quando um leitor o abre. A partir de então existe o fenômeno estético, que pode assemelhar-se ao momento no qual o livro foi engendrado (BORGES, 1997, p. 84-85)

Em Outras inquisições, Borges nos diz que esta iminência de uma revelação, que não se produz, que não se realiza, talvez seja o próprio fato estético.

Creio que o discurso do saber funciona diferentemente: ele procura conduzir o leitor à verdade. Para tanto, declara-se, modestamente, provisório, insuficiente, sujeito a revisões que sempre o irão aperfeiçoar. É assim que Freud parece ver o avanço da psicanálise como ciência. O texto de Winnicott não tem tal pretensão: ele se abre ao leitor como um lugar de experiência, um vazio que pode ser preenchido por uma experiência de pensamento.

Por isso, cada artigo de Winnicott, fragmento de um pensamento que não progride em vistas de uma obra imantada pelo desejo, sempre adiado, de um acabamento, parece ao mesmo tempo querer expandir e sintetizar tudo aquilo que ele pensa.

 

A escrita fragmentária

Entender o texto de Winnicott como lugar de experiência talvez possa contar com o que afirma Maurice Blanchot sobre a escrita de Nietzsche. Mas não vamos tratar aqui de discutir o pensamento de Nietzsche ou do próprio Blanchot, tarefa que, para dizer o mínimo, exorbitaria dos propósitos deste breve artigo.

Tomemos apenas algumas das observações que faz Blanchot sobre Nietzsche, para explicitar três características que podemos atribuir à relação entre trabalho clínico e trabalho teórico em Winnicott, e que orienta seus textos: um pensamento não-sistemático, uma escrita fragmentária, uma expressão paradoxal.

Na perspectiva de Blanchot, falar do texto não é falar da configuração de sentido que o autor imprime nele, de um saber que fala de uma realidade objetiva e é transmitido ao leitor para levá-lo a saber o que o autor já sabe. O texto se dá em um espaço de tensão entre escritor e leitor: ele se abre à leitura e faz desaparecer o autor. A criação está antes do lado do leitor do que de quem escreve e formula ideias - fórmulas reconfiguradas pelo jogo livre da leitura. O próprio leitor é apenas um momento deste destino do texto. Não cabe dizer isto de qualquer texto, mas de certos textos que fazem nossa modernidade - sejam eles textos de literatura, ensaio ou teoria.

Para Blanchot, podemos ver em Nietzsche duas palavras, duas maneiras de falar: a palavra sistemática da filosofia e a palavra que responde à exigência do fragmentário. Segundo a palavra da filosofia,

... existe um sistema possível - virtual - no qual a obra, abandonando sua forma dispersa, dá lugar a uma leitura contínua. Discurso útil, necessário. Então, nós compreendemos tudo, sem choque e sem fadiga. Que um tal pensamento, relacionado ao movimento de uma busca que é também a procura do devir, possa se prestar a uma visão de conjunto, isto nos tranquiliza (BLANCHOT, 1969, p. 227).

Por meio desta primeira modalidade de palavra, a obra de Nietzsche inscreve-se no discurso filosófico, visa à coerência e pretende integrar-se à grande tradição do pensamento. Nesta primeira maneira de ver, os textos fragmentários fariam parte de um conjunto, de um todo que seria possível reconstituir. Pensamento cujo objetivo ideal é sistemático e cujo instrumental é a dialética do discurso fechado e acabado.

Mas Nietzsche também afirma que não é suficientemente limitado por um sistema - nem mesmo pelo seu próprio sistema (BLANCHOT, 1969, p. 228). Existe, portanto, uma outra palavra, não a palavra do todo, mas a palavra do fragmento. Em Nietzsche, esta segunda modalidade de palavra, esta outra palavra, não expõe o discurso da filosofia, mas já o dá por suposto, para ultrapassá-lo, para ir além dele.

Por si só, o texto em fragmentos não provoca uma outra maneira de pensar. Ele pode ser apenas a forma eficaz de expor um sistema de ideias. Por outro lado, um texto, embora aparentemente contínuo, pode fazer valer um pensamento rebelde ao monopólio do discurso sistemático.

Segundo Blanchot, em Nietzsche a escrita fragmentária produz uma nova maneira de pensar, porque responde a uma exigência: a exigência do fragmentário. Tal exigência não contradiz, no entanto, dialeticamente, o ideal de unidade e de totalidade. A escrita fragmentária se coloca do lado de fora desse ideal. Blanchot afirma: "O fragmentário não precede o todo, mas se diz fora do todo e depois dele" (BLANCHOT, 1969, p. 229).

Blanchot não opõe, portanto, essas duas palavras. Porque a exigência do fragmentário escapa à própria categoria dialética do um e do múltiplo, que move o discurso da filosofia.

O discurso filosófico tradicional, lugar do logos unitário e unificante, é também plural: o sentido é sempre múltiplo, daí a necessidade da interpretação. A interpretação não é desvelamento de uma única verdade escondida, mesmo ambígua, mas leitura de um texto que tem muitos sentidos: esses outros sentidos são o processo, o devir que é a própria interpretação. O pluralismo filosófico afirma a experiência do ser múltiplo. Isto, porém, não solicita uma escrita fragmentária, porque o discurso permanece sob o ideal de completude de

... um logos que diz o todo, a seriedade da palavra filosófica (é próprio do homem superior a seriedade da probidade e o rigor da veracidade): palavra contínua, sem intermitência e sem vazio, palavra do remate lógico que ignora o acaso, o jogo, o riso (BLANCHOT, 1969, p. 233).

Ora, em Nietzsche, a fala do fragmento ignora a contradição dialética. A cada certeza afirmada corresponde a afirmação de seu oposto. Método que tem, por sua vez, duas vertentes.

Na primeira, ele se vira criticamente para a metafísica ocidental, polemizando com ela, atacando-a de diferentes pontos de vista e desconhecendo a integridade sistemática que ela gostaria de exibir em seu desenvolvimento ideal.

Na segunda, é o próprio pensamento de Nietzsche que é visado pelas oposições. Nessa vertente, obrigado a pensar e a falar, ele na verdade se obriga a pensar e a falar a partir do próprio discurso que refuta. Nietzsche não se contenta em afirmar criticamente o oposto da metafísica: ele questiona as próprias verdades que defende, para ultrapassá-las e voltar para elas de maneira renovada.

É ao jogar com a contradição que a palavra fragmentária a ignora. Dois textos fragmentários que se opõem não se hierarquizam: eles se justapõem sem relação, ou melhor, nessa relação muito especial que se faz, segundo Blanchot, por meio

... desse branco indeterminado que não os separa nem os reúne, mas os conduz ao limite que eles designam e que seria o sentido deles, se precisamente eles não escapassem aí, hiperbolicamente, a uma palavra de significação (BLANCHOT, 1969, p. 231).

A palavra fragmentária não nega o discurso do saber nem o afirma, porque não concebe uma outra verdade, simétrica a tal discurso, mas produz, no espaço intermediário entre dois opostos - o branco indeterminado, que não separa nem reúne - a ilimitada e expansiva potência da diferença.

A palavra fragmentária vive, portanto, de um outro pluralismo: pluralismo sem pluralidade nem unidade. Provocação da linguagem, aquela que continua a falar quando tudo já foi dito. Palavra intermitente, a palavra fragmentária escapa do regime da significação, mesmo múltipla, mesmo variável e ambígua. Blanchot arrisca-se, segundo ele próprio, a uma abordagem dessa outra palavra, da palavra fragmentária. Diz ele que essa é uma palavra

... que se designa a partir do entre-dois, que está como de sentinela em torno de um lugar de divergência, espaço do des-locamento que ela procura circunscrever, mas que sempre a discrimina, afastando-a de si mesma, identificando-a a esse hiato, imperceptível distanciamento, onde essa palavra retorna a ela mesma, idêntica, não idêntica (BLANCHOT, 1969, p. 235).

Duplo movimento do pensamento, entre força e forma, no hiato e na diferença que simultaneamente as irmana e as dissocia.

Pode-se supor que, se o pensamento de Nietzsche teve necessidade da força concebida como jogo de forças e ondas de força para pensar a pluralidade e para pensar a diferença, sob o risco de se expor a todas as dificuldades de um aparente dogmatismo, é que ele sustenta o pressentimento de que a diferença determina o tempo e o devir em que ela se inscreve.

(...) A diferença não é a regra intemporal, fixidez da lei. Ela é, como descobre mais ou menos na mesma época Mallarmé, o espaço enquanto "se espaceja e se dissemina" e o tempo: não a homogeneidade orientada do devir, mas o devir enquanto "se escande, se convoca", se interrompe e, nesta interrupção, não se prolonga, não se continua, mas se des-continua; daí será necessário concluir que a diferença, jogo do tempo e do espaço, é o jogo silencioso das relações, o desprendimento múltiplo que rege a escrita, o que significa afirmar audaciosamente que a diferença, essencialmente, escreve (BLANCHOT, 1969, p. 242-243).

Voltemos a Winnicott. No final de seu último livro publicado em vida, O brincar e a realidade, Winnicott procura apreender de uma vez o núcleo de seu pensamento, a verdade maior sobre a qual ele gira. Verdade insuficientemente compreendida, em si mesma não nomeável, verdade de uma experiência de que ele recorda e que quer contar para nós. Na impossível, mas necessária, síntese conclusiva, Winnicott reafirma sua proposição: o espaço do jogo é um hiato - hiato entre concepção e percepção, hiato entre mundo subjetivo e mundo objetivo, sem mediação possível. Estas realidades, no entanto, se articulam, por meio da experiência ilusória do jogo, em um paradoxo essencial, que deve ser aceito e não se destina a ser resolvido. Esse paradoxo indica uma experiência de suspensão de juízo sobre a natureza subjetiva ou objetiva do objeto e do sujeito que estão em jogo (WINNICOTT, 1975, p. 203).

Não seria ilógico não tentar resolver o paradoxo?

Blanchot, em artigo sobre o pensamento trágico em Pascal, desvela o funcionamento do pensamento paradoxal.

(...) o homem, compreendendo o mundo e ele próprio a partir do incompreensível, encaminha-se para uma compreensão mais razoável, mais exigente e mais ampla, que se pode chamar de trágica, acolhendo a ambiguidade sem aceitá-la, mais exatamente, remontando da diversão e da ambiguidade - intimidade do sim e do não - ao paradoxo, que é a afirmação simultânea do sim e do não, cada um absoluto, sem mistura e sem confusão, e no entanto sempre igualmente colocados ao mesmo tempo, porque a verdade está em sua clareza simultânea e na obscuridade que esta simultaneidade manifesta em cada um como o reflexo da claridade do outro (BLANCHOT, 1969, p. 145).

Podemos observar, no interior do texto de Winnicott, um movimento divergente, que é o funcionamento mesmo de um modo de pensar que se faz escrita: na direção da linguagem e na direção da realidade. No meio dessa divergência, e como seu propulsor, um pensamento do paradoxo e de ambiguidade, se adotarmos o ponto de vista lógico ou linguístico. Um pensamento da diferença, se adotarmos o ponto de vista da vida em desenvolvimento.

Esse pensamento emerge da distância entre o que é dito e o modo de dizê-lo, no cruzamento entre o jogo das ideias, em direção à realidade, e o jogo das palavras, em direção à linguagem. Esta me parece a maneira como Winnicott trata o texto: nem veículo imperfeito, mas inevitável, de saber progressivo e cumulativo sobre a realidade, nem exercício autorreferente, puro acontecimento de fala, o texto é o campo de uma experiência concreta de pensamento.

Winnicott nos dá um testemunho curioso sobre seu modo de trabalhar. Isto, em aparência, nada tem a ver com aquilo que ele verdadeiramente pensa e nos comunica em seus textos sobre temas tratados no âmbito da psicanálise. Mas aqui esse modo de trabalhar terá toda a importância possível, porque indica um modo de pensar. Ele afirma não poder expor o desenvolvimento de suas ideias fazendo um histórico das teorias dos outros autores, porque sua mente não trabalha dessa maneira.

O que acontece é que saio catando isso e aquilo, aqui e ali, debruço-me sobre a experiência clínica, elaboro minhas próprias teorias e então, no final de tudo, interesso-me em olhar para ver de onde eu roubei o quê. Talvez seja um método tão bom quanto qualquer outro (WINNICOTT, 1982, p. 145).

Winnicott fala sempre do dinamismo dos percursos, das passagens, dos processos: desenvolvimento afetivo, objetos em trânsito, o brincar, o existir, o vaivém da regressão criativa. Para ele, a teoria não é explanação sistemática de uma doutrina em diálogo e confronto com outras. Seu texto parece utilizar antes o método da colagem: fragmentos de ideias, suas e de outros, lado a lado com fragmentos de clínica, que não apenas ilustram e expressam ideias, mas as interrompem, fazem com que elas se modifiquem e mesmo se desviem do rumo inicialmente previsto, afetadas pelo que está acontecendo à sua volta.

Em torno da escrita fragmentária e do acontecimento da diferença em que ela se produz, produzindo pensamento, podemos encontrar, no ensaio de Blanchot sobre Nietzsche, elementos para uma compreensão renovada do texto de Winnicott.

Winnicott, quando opera em relação ao corpo de conceituações da psicanálise, recusa o conjunto como um sistema de ideias e como um método de exposição de ideias. Ele o submete ao andamento de uma experiência sempre provisória e sempre inacabada. Não há para Winnicott uma doutrina a ser elaborada, um consistente edifício de conceitos a ser deixado como herança, mas uma palavra que se mostra como um dos aspectos da vida. Porque o importante é o jogo: a psicanálise, como ele disse, é apenas uma forma sofisticada de jogo, que apareceu no século XX.

Não seria a forma do fragmento - de um artigo em relação a outro, mas também no interior de um mesmo artigo - a forma mais eficaz de exibir o movimento da vida, a continuidade rompida e refeita da existência individual? Em torno de uma mesma verdade, de um universal - como nos versos de Rabindranath Tagore, comentados por Winnicott, é universal a verdade da criança que brinca no litoral de mundos sem fim -, ele tece a rede de seus textos descentrados. Porque Winnicott não pretende aprisionar tal verdade, mas levar-nos a experimentá-la naquele limite de revelação infinitamente adiado, infinitamente ampliado, de que nos fala Borges.

Por fim, o uso do paradoxo é indispensável para indicar o esforço de síntese impossível, mas necessária, que atravessa cada artigo, onde se mesclam, sob uma série de pares de opostos, preocupações de diferentes intensidades e qualidades, clínicas, teóricas, de observação, de humor crítico. Totalidade vazia e aberta onde vigora o paradoxo vivido, não explicitado e não resolvido, não nomeável pelo discurso corrente e pelo discurso do saber regido pelo princípio de identidade substancial ou de contradição dialética.

O texto de Winnicott convoca o leitor, primeiramente, não a uma compreensão intelectual de sua estrutura interna, nem a um entendimento da realidade nele referida, mas a uma experiência da ordem da ilusão criadora e daquilo que se pode dizer sobre ela. Qual a natureza dessa experiência?

Não será a experiência do texto em si, como peça autônoma e autorreferente, interessada em chamar a atenção, para dizer e para pensar, sobre seus próprios componentes e operadores formativos. Não será a experiência de uma realidade objetiva, frente à qual o texto deveria, tornado transparente, desaparecer. Logo, nem discurso literário nem discurso de saber, mas um modo especial de desdobrar o espaço de jogo, que implica o leitor em um dinamismo de associações em rede, de passagens em diferentes direções. Rede que é um campo aberto, sem um nó ou sentido central.

O texto não insere o leitor no campo das representações claras e distintas, de que resultaria uma apreensão unicamente intelectual, nem no campo da materialidade assignificante das puras sensações e afetos, de que decorreria uma compreensão estética em sentido restrito. Se toda subjetivação se produz na deriva de um processo de alteração, ao mesmo tempo corporal e ambiental - acontecimento alterado e alterante -, o texto de Winnicott seria um modo de subjetivação: nem concepção, nem percepção, mas uma determinada maneira de afetar o leitor, atraí-lo para o vazio que o próprio texto escava e de onde é possível pensar.

Tal modalidade de texto desdobra no espaço do jogo - naquele branco indeterminado - um interior que se abre para a experiência do pensamento em processo. Modalidade que é perfeitamente consistente e coerente com a prática teórica e clínica de Winnicott. O modo de dizer é fundamental porque não é nem o relato descritivo de uma experiência anterior a ele, nem o instrumento de uma teoria exterior. O texto de Winnicott não pode ser, se formos coerentes com os pressupostos de seu pensamento, simples veículo de experiências clínicas ou de afirmações teóricas.

Enfim, o modo de dizer tem primazia sobre o dizer em Winnicott, se entendermos em sua radicalidade o que é o jogo para ele e como ele vê o próprio funcionamento teórico da mente como jogo, que age em sua escrita.

Este é o modo estético de pensar em Winnicott, modo que é experimentado e ganha sentido em seu texto não sistemático, fragmentário e paradoxal. Deve-se contar com tal característica da escrita e da fala de Winnicott, porque ela é elemento importante de seu pensamento. Um jogo, não uma razão de ser, um componente da vida, não um mestre da vida.

 

 

Referências

BLANCHOT, Maurice. VI. Réflexions sur le nihilisme. 3. Nietzsche et l'écriture fragmentaire. In: L'Entretien Infini. Paris: Gallimard, 1969.         [ Links ]

BLANCHOT, Maurice. II. L'expérience-limite. 3. La pensée tragique. In: L'Entretien Infini. Paris: Gallimard, 1969.         [ Links ]

BORGES, Jorge Luis. Borges oral - conferencias. Buenos Aires: Emecé/Belgrano, 1997.         [ Links ]

ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Poesia sempre. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, ano 7, n. 11, p. 266, 1999.         [ Links ]

WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.         [ Links ]

WINNICOTT, Donald W. Through paediatrics to psychoanalysis. London: Hogarth Press, 1982.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 03/01/2018
Aprovado para publicação em: 07/03/2018

Endereço para correspondência
Rogerio Luz
E-mail: rogerluz36@yahoo.com.br

 

 

*Professor aposentado/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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