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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.40 no.39 Rio de Jeneiro jul./dez. 2018

 

ARTIGOS

 

De uma metapsicologia borderline e sua relação com o manejo clínico na conjugalidade

 

On a borderline metapsychology and its relationship with clinical management in conjugality

 

 

Mariana Kehl*

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A instituição de novos paradigmas e a fragmentação de valores tradicionais constituem-se como marcas da contemporaneidade. A clínica reflete as transformações da cultura e é convocada a se ocupar de configurações subjetivas que podem se apresentar sob a forma de quadros denominados borderline, circunscritas pela presença de elementos traumáticos e hiatos expressivos no âmbito da capacidade representacional dos sujeitos. Considerando-se a importância para a práxis psicanalítica e a escassez de trabalhos que se dediquem à conjugalidade nas patologias narcísico-identitárias e seu tratamento, o objetivo deste trabalho é realizar uma reflexão teórica acerca de uma metapsicologia dos casos limítrofes e as especificidades de seu manejo clínico no contexto do atendimento de casais.

Palavras-chave: Borderline, Metapsicologia, Clínica, Conjugalidade.


ABSTRACT

The institution of new paradigms and the fragmentation of traditional values constitute marks of contemporaneity. The clinic reflects the transformations of the culture and is called upon to deal with subjective configurations that may occur in the form of conditions so-called borderline, circumscribed by the presence of traumatic elements and expressive gaps within the scope of the representational capacity of the subjects. Considering the importance for the psychoanalytical praxis and the scarcity of works devoted to conjugality in narcissistic-identitary pathologies and their treatment, the objective of this work is to carry out a theoretical reflection about a metapsychology of borderline cases and the specificities of its clinical management in the context of the care of couples.

Keywords: Borderline, Metapsychology, Clinic, Conjugality.


 

 

Introdução

O recrudescimento da incidência na clínica das patologias do ato, tipificadas pela presença de reiteradas atuações e regularmente associadas a pacientes como não classificáveis, apresenta-se como uma realidade na contemporaneidade. A manifestação deste quadro clínico pode ser evidenciada a partir de diferentes fenômenos cuja compreensão não pode ser compendiada sob as formas já descritas na nosografia clássica, produzindo uma denominação variável no meio psicanalítico com a possibilidade de emprego de diferentes recursos no tratamento. A escola inglesa, perspectiva que será privilegiada neste trabalho, engendra este quadro sob o termo borderline, entendendo-o como uma organização autônoma que se encontra no limiar entre a psicose e a neurose e que não se confunde com a perversão, mas pode conservar traços das três. A escola francesa, por sua vez, vai definir tal condição a partir do termo estados-limite, concebendo-o, de acordo com Villa e Cardoso (2004), como uma disposição temporária de funcionamento encontrada nas perversões e neuroses graves.

O termo "limite", tematizado desde o exórdio da teoria freudiana como demonstrado no texto Projeto para uma psicologia científica (FREUD, 1950[1895]/1990), configura-se como elemento de mérito capital no desenvolvimento deste artigo, uma vez que indica e destaca as particularidades da constituição psíquica desses sujeitos assim como as limitações da técnica psicanalítica, que exige que o analista a reconsidere ante as dificuldades que se impõem. Tendo em vista as especificidades e contingências desta condição, uma compreensão detalhada acerca da dinâmica psíquica do borderline é imperativa para aprovisionar o terapeuta com recursos suficientes e profícuos no manejo clínico, possibilitando um tratamento do qual se exige uma disposição para além do setting clássico.

No que se refere a uma conjugalidade borderline, entendida aqui como um vínculo íntimo de qualquer ordem pactuado entre dois indivíduos, esta normalmente também se configura de modo comprometido, uma vez que seu formato é resultado imediato da psicodinâmica individual (ainda que um dos membros da parceria esteja sob outra lógica de funcionamento psíquico). Além das dificuldades e conflitos naturais que qualquer perfil de vínculo marital pode apresentar, uma relação que contempla um sujeito limítrofe se organiza de modo ainda mais complexo e torna-se imprescindível a compreensão de suas funções relacionais para que seja possível o estabelecimento de um trabalho clínico.

Considerando-se a importância desta temática para a práxis psicanalítica e a escassez de trabalhos que se dediquem propriamente à conjugalidade nas patologias narcísico-identitárias e seu tratamento, o objetivo deste trabalho é, então, realizar uma reflexão teórica acerca de uma metapsicologia dos casos limítrofes e das especificidades de seu manejo clínico com ênfase no contexto de um atendimento de casal.

 

De uma metapsicologia borderline

Embora o fenômeno em questão possa ser designado a partir de diferentes nomenclaturas e concepções, é consenso entre os autores o reconhecimento de uma dinâmica própria, marcada pela compulsão à repetição (como um movimento intermitente de ora bem, ora mal), e que se caracteriza por um:

[...] padrão oscilatório dos afetos, à questão da instabilidade, das flutuações, das oscilações, das mudanças bruscas, do que muitos descrevem como o vaivém dos humores e das reações, e que muitas vezes se confunde com uma psicose maníaco-depressiva (FIGUEIREDO, 2013, p. 86).

No entanto, pode-se dizer sumariamente que a característica mais notável do funcionamento borderline é ao mesmo tempo a importância hiperbólica do ego e também sua fragilidade, destacando-se a dimensão do não reconhecimento da alteridade que se encontra altamente comprometida. Eu/não-eu (outro) e interior/exterior são pares antitéticos que se manifestam de modo deteriorado, isto é, a sua diferenciação não se dá rigorosamente (assim como a articulação frágil entre fantasia e realidade, e corpo e psiquismo). Ao revés, a lógica de funcionamento opera justamente por uma não discriminação propiciada por uma "precariedade de constituição do aparelho psíquico e, portanto, por uma porosidade dos limites entre as instâncias" (JUNQUEIRA; COELHO JÚNIOR, 2008, p. 139).

Segundo Monteiro e Cardoso (2014, p. 164) estes quadros são marcados por uma "impossibilidade de vir a perder o objeto, que, em última instância, resulta de uma relação precária com o objeto primário, que não permite que este venha a ser interiorizado. Assim, as fronteiras entre o eu e o outro não se definem de forma consistente". Etiologicamente, pode-se localizar a constituição desta falha numa dinâmica de detenção da libido no narcisismo primário, efeito da não internalização e simbolização do objeto primário, anteriormente à própria emergência do ego, de modo que esta se encontra fora do psiquismo. Assim, as excitações se apresentam de modo traumático é inaugurada uma patologia que, em última instância, incide no não encadeamento de formações de representação. É o traumático que incide em um corpo sem sujeito da experiência.

Uma das principais consequências desta organização se articula ao mecanismo de defesa central que se apresenta. A defesa não se designa sob a forma do recalque/repressão (Verdrängung) da neurose, que pressupõe um conflito psíquico entre instâncias regulado pela lógica do desejo, nem sob a rejeição da psicose (Verwerfung), quando não há uma deficiência na instituição do eu, nem na recusa (Verleugnung) perversa mas, nos estados limítrofes, o que se identifica são mecanismos centrais como o splitting (clivagem/cisão do ego decorrente de uma fixação pulsional arcaica e não de uma estratégia do ego) e a recusa - diferente da recusa da perversão cujo propósito é desmentir a castração. Aqui é a recusa dos fragmentos da realidade que se conformaram de modo traumático e resultaram numa clivagem narcísica, logo, trata-se da recusa, como apontam Laplanche e Pontalis (1967/2001, p. 436) "em reconhecer a realidade de uma percepção traumatizante" que não se pôde simbolizar.

Recuperando a falha na psicogênese do ego, esta é caracterizada pela impossibilidade de apagamento do objeto no interior do aparelho psíquico. Sua obliteração não acontece porque a representação de sua ausência não pôde se formar, o objeto não foi internalizado, produzindo como corolário a carência no psiquismo de uma "função de estimulação e contenção da pulsão" (MONTEIRO; CARDOSO, 2014, p. 78), essencial na constituição da subjetividade. É a partir da perda do objeto que o sujeito se capacita a exercer a função de cuidado de si e insere-se na lógica pulsional da heterogeneidade na busca de novos objetos. Na patologia borderline o imbróglio se dá justamente pelo não apagamento do objeto primordial, uma vez que, devido a uma ineficiência atribuída aos cuidados maternais na primeira infância, este nunca se constituiu de modo suficiente para alcançar um estágio de privação e a não representação da sua ausência - assim, o objeto permanece no interior do psiquismo não como objeto, mas como excesso de presença pulsional não significada, originando uma ameaça de aniquilamento pela viabilidade da invasão do outro dado que a fronteira que os separa não se constituiu propriamente.

Como desenvolvido por Souza e Campos (2014), frente à possibilidade de intimidação e coação de um outro que pode invadir e ceifar o ego por sua presença excessiva, o sujeito reage defensivamente através do corpo e do ato - únicos recursos possíveis diante de sua precariedade simbólica. O ego, incapaz de perder o objeto, vivencia, então, uma relação ambígua com o outro que é experienciado como intrusivo e, sincronicamente, como imprescindível (dada a impossibilidade de acessar o objeto). Daí a formação de uma radical dependência e desespero frente à possibilidade de perder o outro (angústia de abandono) e a violência, quando este é sentido como invasivo (angústia de engolfamento).

Considerando-se a dimensão traumática presente nos casos limítrofes, sua dificuldade nos processos de simbolização e a consecutiva insistência da compulsão à repetição, é fundamental que a técnica psicanalítica seja ponderada levando em conta os aspectos intersubjetivos (elemento capital na terapia de casal) e intrapsíquicos que marcam estes quadros. Assim, coloca-se em xeque a relevância da transferência e da contratransferência do analista que, com suas intervenções, deve operar em justa medida para não se colocar nem como ausente nem como intrusivo.

 

Do manejo clínico nos estados limítrofes

Frente à constituição de mecanismos de defesa díspares dos presentes nas estruturas clássicas, ressalta-se também o não desenvolvimento, ao menos considerando-se os padrões tradicionais, de uma neurose de transferência. Como descreve Freud em A dinâmica da transferência (1912/1990), "a transferência é um fenômeno inconsciente derivado da articulação entre ‘disposição inata’ e ‘influências sofridas durante os primeiros anos’ na vida de um sujeito, resultando num ‘clichê estereotípico’" (Ibid., p. 56). Tal clichê atuaria como um padrão, um "lugar-comum" na condução da vida erótica, um engessamento dos modos de ser que seria repetido e reimpresso nas relações de investimento objetal, abarcando, inclusive e de modo intensificado, a relação com o analista. Ressalta-se aqui que embora haja comprometimento psíquico em relação à privação do objeto primário, os pacientes borderline inserem-se na dinâmica das relações de objeto ainda que de um lugar profundamente marcado pela sua insuficiência pregressa.

Assim, pode-se dizer que a transferência está ligada ao amor, no sentido de que ela é, precisamente, uma quota de libido investida em um objeto que traz à tona esses clichês amorosos. Para Freud (1915/1990), a transferência constitui-se como um engano a partir do qual se busca recuperar algo perdido em um novo objeto que exerce atração sobre ele. Nos pacientes fronteiriços a questão se dá não pela recuperação de algo perdido, mas pela construção desta perda centrada nas funções do ego.

Ao desenvolvimento das relações transferenciais, Freud atribui algum elemento disparador que, presente no laço com o semelhante, suscitaria no sujeito a (re)atualização desses padrões já concebidos anteriormente, reproduzindo os elementos de sua história infantil por meio de uma doença artificial passível de intervenção. Ao desenvolver o conceito de transferência associado à técnica psicanalítica, ressaltou sua condição sine qua non ao sucesso do tratamento aliado, principalmente, à posição do analista e à interpretação da transferência. Tal conceituação diante dos casos borderline precisa ser repensada, uma vez que não se trata de uma substituição de objeto, visto que este nunca foi perdido. Trata-se de uma outra lógica que produzirá efeitos no entendimento da transferência, fenômeno que mantém seu estatuto clínico, porém a partir de uma proposta ampliada, como será retomado a seguir.

Em relação à contratransferência, Freud realiza apenas breves ponderações em seus trabalhos e a entende como uma forma de resistência, ideia que será recuperada por Melanie Klein (1952/1991), uma vez que esta se dá como efeito das ingerências do paciente sobre e relacionada aos complexos do analista, exercendo um papel contraproducente no tratamento analítico tradicional. Sem embargo, no que se refere às patologias limite, tendo em vista a apresentação de elementos clivados e todas as suas idiossincrasias, a contratransferência se coloca de maneira mais marcada e adquire outro estatuto a partir dos anos 1950, como desenvolvem Souza e Campos (2014), pleiteando do analista um longo treinamento técnico-teórico e um processo de análise pessoal que franqueie um contato de maior plenitude com a realidade psíquica do paciente. Há ativação intensa (característica desta situação clínica) que evoca frequentemente uma série de reações emocionais no analista e suas defesas - muitas vezes coincidentes ou bem aproximadas daquilo que se passa com o paciente, aspecto que ressalta o valor da função contratransferencial no processo de tratamento e a comunicação muitas vezes silenciosa do paciente (como a do bebê) - cabendo ao analista a função de amparar e fornecer subsídios representacionais com o objetivo de suprir o prejuízo constitucional destes. Haja vista a necessidade de cumprimento desta função, a imprescindibilidade da contratransferência deve ser considerada nesta modalidade de encontro como fenômeno de promoção de tratamento e seu bom manejo é crucial.

Figueiredo (2003) explicita que assim como a contratransferência apresenta uma outra função ante os casos limite, há também a consideração da existência de uma outra modalidade de transferência. Esta, por sua vez, contemplaria uma expansão do sentido freudiano com ênfase em seu papel de comunicação, um para além da interpretação, assim como defende Winnicott (1941/1982), abrindo campo para um tratamento adequado aos casos limite que escapam ao modelo convencional, mas que igualmente considera o fenômeno transferencial (e contratransferencial, como comentado acima) motor do tratamento. A transferência nesta relação analítica encontraria expressão, então, principalmente através de enactements, repetindo o traumático não por reminiscência, mas por ato. Do analista é reivindicada uma capacidade de rêverie (BION, 1962/1984), uma atuação como sustentação e continência - tributária da função materna, esta, baseada nas perspectivas de Bion (1962/1984) e Winnicott (1949/2000), e modelo para a relação terapêutica que opera enquanto restabelecimento inicial de um vínculo de dependência - possibilitando a construção de um ego que posteriormente possa processar tais experiências. É preciso, então, que o analista se dirija a um esforço para simbolizar o que o paciente não pôde representar.

Para tanto, como sugerido pela escola inglesa (e também por Lacan - episódio que acarretou em sua "excomunhão", em 1964, da Associação Internacional de Psicanálise), é oportuna a ampliação dos limites do método através da flexibilização do enquadre. No que concerne ao dispositivo clássico, este precisa extrapolar suas fronteiras com o intuito de sustentar algum trabalho analítico considerando-se as idiossincrasias destes pacientes.

Outra propriedade importante a ser destacada na direção do tratamento diz respeito à noção de "construção", resgatada por Junqueira e Coelho Júnior (2008). Segundo os autores, diante da complexidade da clínica borderline é necessário um trabalho que não se restrinja a decifração e enunciação daquilo que jaz por trás de determinado conteúdo manifesto, mas, retomando algumas diretivas de Freud numa adaptação para a atualidade, que se siga em especial uma outra orientação: a de uma construção, não de produção de sentidos, mas "das barreiras e limites psíquicos, de que tanto carecem os pacientes-limite" (Ibid., p. 145), isto é, do seu próprio psiquismo.

Esta ideia reflete igualmente aquilo que Winnicott (1945/1982) entende como holding environment - uma atmosfera suficiente boa que dê conta das exiguidades faltosas que emergem do verdadeiro self favorecendo o abandono de organizações defensivas. Assim, o espaço de trabalho clínico torna-se próprio para o restabelecimento do desenvolvimento emocional que foi paralisado anteriormente.

Desta forma, o autor instaura a possibilidade de um manejo de enquadre e de uma intervenção regressiva e não interpretativa, favorecendo alguma transfiguração existencial nesses pacientes (através da tentativa de circunscrição simbólica do traumático pulsional e sua inscrição em outro circuito, e do analista oferecendo-se como depositário e sustentação para a recepção das mais intensivas demonstrações transferenciais) e estabelecendo a experiência clínica desta transferência singular como ponto diferencial, de forma que o acesso a determinado conteúdo latente não atue como elemento único e compulsório na análise desses casos.

 

Conjugalidade borderline e manejo clínico

No que diz respeito a uma conjugalidade de pacientes borderline, esta, como descrito previamente, também apresenta particularidades decorrentes da falha na constituição do ego com efeitos deletérios na relação amorosa. O sujeito dirige-se a uma reprodução, não apenas na relação com o analista, mas também nas relações de parceria romântica, da sua vinculação paradoxal com o outro, produzindo desmesurado mal-estar nos sujeitos envolvidos. Dada a gravidade das atuações, frequentemente marcadas pela violência, este tipo de parceria quando chega à clínica sob a configuração de terapia de casal e/ou família exige do analista um outro modo de atuação, contemplando sempre que possível algumas das já citadas particularidades de um tratamento individual.

O campo da terapia de família e casal configura-se de modo heterogêneo e encontra-se à disposição uma série de abordagens e técnicas. Para os efeitos deste trabalho, pretende-se articular ao estudo da conjugalidade borderline a terapia psicanalítica de família e casal de orientação inglesa. Segundo Gomes e Levy (2009, p. 151), a psicanálise de família e casal emerge como desdobramento direto da ampliação do método psicanalítico individual baseado em Freud e Melanie Klein e, subsequentemente, agrega construtos oriundos da psicanálise de grupo de Bion e Winnicott, fundando uma vertente teórica própria. O método psicanalítico mostra-se bastante frutífero para a compreensão da conjugalidade. Seu entendimento acerca da instituição de um contrato fantasmático inconsciente compartilhado pelo casal, família ou grupo contribui extensamente para o tratamento do psiquismo familiar, considerado um só.

Como destacado anteriormente, a psicanálise como terapia familiar não é a simples aplicação da teoria psicanalítica individual, mas uma expansão e adaptação de acordo com as demandas clínicas. O conceito de transferência elucida bem esta questão ao considerar as transferências não só entre paciente e terapeuta, mas também entre os próprios membros da família/casal, promovendo uma reelaboração, elevação de estatuto e de grau de importância de determinados conceitos - como identificação projetiva; fantasias compartilhadas; cisão e idealização, por exemplo - para dar conta dos fenômenos intersubjetivos que se apresentam.

Quando uma relação amorosa se dá, estabelece-se um novo regime econômico que pressupõe a hipótese de um aparelho psíquico comum de organização autônoma fundamentado num contrato inconsciente entre os parceiros. De acordo com Ruszczynski (1993), mesmo antes da constituição de uma parceira, os sujeitos trazem consigo pré-concepções acerca do que entendem por uma relação íntima. Na dinâmica do encontro, portanto, sempre haverá "remanescentes arcaicos" individuais sendo projetados e esboços prévios sendo compartilhados e atuando em conjunto na promoção do laço conjugal seja através de um desenvolvimento amoroso conjunto ou pela via do conflito.

A emergência de conflagrações e discórdias pode ser resultado, grosso modo, da interrupção ou alterações na correspondência ou encaixe entre as projeções que, quando deixam de corresponder à aliança inicialmente proposta, tornam-se conflito. Além disso, um funcionamento fusionado, característica do borderline, gera um estado constante de frustração e desapontamento.

Joan Lachkar (1992) aponta um lugar-comum que pode ser identificado com bastante frequência na clínica de casais em crise com histórico de violência conjugal: a parceria devastadora, caótica e, geralmente de longo prazo, estabelecida entre sujeitos borderline e narcísico. O crescente nível de instabilidade emocional é ocasionado pela interação dos complexos individuais e a autora desenvolve no primeiro capítulo de seu livro The Narcissistic/Borderline Couple: New Approaches to Marital Therapy (2003) os principais aspectos de cada um desses perfis, descrevendo o sujeito borderline como aquele que é dominado por angústias persecutórias, de abandono e aniquilamento, e no vínculo interpessoal promove grande inconstância emocional e tendência descomedida à fusão devido a uma intolerância da ideia de separação. Tal disposição se justifica nas relações românticas devido ao estabelecimento, como aponta Solomon (1998 apud CARDONA et al., 2013, p. 218), de um estado similar à relação inicial entre o bebê e seu cuidador como resultado de insuficiência de atenção e cuidado recebido. Essencialmente, a atração se dá por aquilo que faltou.

Como direção do tratamento, Lachkar (1992, Op. cit.) apoia em Bion e aposta numa terapêutica seccionada (com finalidade didática) em "multiestágios": no estágio I pretende-se desenvolver um estado de unidade; no estágio II, um estado de dualidade (ser dois); e no estágio III, a emergência de uma possível separação. Em sua formulação teórica, tal ordenação se justifica pelo movimento de um estágio no qual eu e outro se dão de forma indistinta, com as fronteiras borradas e fusionadas, a um estágio de maior clareza entre limites subjetivos e, finalmente, a um estágio de consciência que pode propor uma separação (subjetiva, promovendo o reconhecimento do outro, da alteridade). Assim, aspectos como a elevação da autoestima e a construção de atividades fora da relação devem ser trabalhados nos pacientes borderline, evitando-se qualquer "tomada de partido" em relação aos componentes do casal e ajudando-os a adquirir consciência das identificações projetivas de cada um. Desta forma, o objetivo é a promoção de uma outra forma de aliança: mais digna e responsável.

No modelo proposto por Lachkar deve haver espaço também para o atendimento individual de cada componente da família ou casal para o tratamento de questões intrapsíquicas. Entretanto, tal vicissitude pode se dar com efeito apenas após um trabalho conjunto que possibilite a conformação de um laço sólido entre o casal, contemplando então dois sujeitos, para que assim possam suportar a separação. Sem essa condição, embora necessárias, as sessões individuais são arriscadas, pois poderiam precipitar uma "crise de aproximação" - rapprochement crisis - e uma desistência do tratamento conjugal.

Com esta formulação, entende-se que Lachkar estabelece o laço da conjugalidade borderline de forma sintomática - no sentido freudiano, contribuindo para mascarar os impasses da existência limítrofe. A função da terapia de casal seria elucidar os mecanismos sintomáticos de funcionamento do par através de um holding environment, assim como também propõe McComarck (2000) juntamente com a ação do analista como um "terceiro", e possibilitar alguma separação que possa franquear um tratamento individual que dê conta da verdadeira questão limítrofe - sua própria existência. Aqui, a relação amorosa é assimilada como um vínculo de ordem parasitária e funciona como uma suplência precária ao borderline, proporcionando de alguma forma alguma descarga daquilo que se apresenta de modo traumático e em ato se reatualiza, porém sem nenhum tratamento analítico, com quase irrealizável probabilidade de melhoria. Uma forma de exemplificar a assertiva anterior, dá-se a partir da fantasia constante de abandono do borderline que toca em seu ponto mais vulnerável e renova-se frequentemente no cotidiano dessas relações como modo de tentar dominar este trauma num processo contínuo de compulsão à repetição - daí a repetição de padrões de comportamento nesses casos.

Ainda que a conjugalidade borderline se constitua de modo excessivamente precário, a relação tende a se perpetuar. Isto acontece porque o vínculo e seu objeto podem oferecer alguma estabilidade a esses sujeitos, ainda que débil, inconsistente e extremamente frágil, e também justamente porque há no conflito e demais trocas um escoamento do excesso pulsional não simbolizado que, por sua vez, mantém-se sem significação, porém compartilhado na folie à deux conjugal.

 

Considerações finais

Autores com importantes publicações no campo de investigação de pacientes-limite, como Kernberg (1991), apontam que o estatuto dessas patologias é resultado de um processo sócio-histórico-cultural. Tal asseveração possibilita, por conseguinte, o estabelecimento de uma correlação entre a importância das histéricas de Freud do século XIX e as organizações borderline no século XX. Winnicott (1945/1982, p. 476) assevera:

[...] nos neuróticos, lidamos com pacientes cujas mães, no início, e também nos primeiros meses, foram capazes de fornecer condições suficientemente boas. Mas essa era da psicanálise está inexoravelmente chegando ao fim.

Sendo assim, a proposta deste sintético estudo teórico se justifica por sua destinação e propósito de aplicabilidade no entendimento e enfrentamento dos enunciados de uma clínica contemporânea singular que se distancia da concepção clássica. A questão possui pertinência teórica, uma vez que a reflexão aqui apresentada permite mais uma possibilidade de recorte frente às produções da área e, espera-se que com o desenvolvimento dado ao tratamento da conjugalidade, seja produzida alguma conformação maior do tema frente à escassez de material existente em língua portuguesa. Também se vislumbrou alguma contribuição à clínica psicanalítica à medida que o estudo e depuração dos conceitos possa proporcionar maior elucidação acerca de seus cruciais papéis enquanto operadores clínicos.

Embora este artigo tenha almejado se deter de forma privilegiada às ideias produzidas pela escola inglesa de psicanálise, é preciso ressaltar que a concepção de um construto teórico é resultado direto da observação de um fenômeno que encontra ressonância nas interpretações formuladas por determinados autores, produzindo uma filiação e também antagonismo no interior de uma mesma procedência. Assim, a circunscrição de determinado objeto pode ser concebida de modos distintos de acordo com uma série de variáveis e torna-se especialmente profícuo pensar o quadro clínico limite a partir de diferentes perspectivas e pontos de vista.

Birman (2005) entende que as patologias do ato não podem ser desarticuladas do atual cenário cultural marcado pelo individualismo e por organizações familiares conflituosas e instáveis. Considerando-se a escassez de produções na área no que se refere aos vínculos afetivos familiares entre pais e filhos borderline, sugere-se esta temática para pesquisas futuras com ênfase nas situações de violência. Uma maior elucidação desta dinâmica pode contribuir para um melhor entendimento das situações de conjugalidade e parentalidade desses quadros.

 

 

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Artigo recebido em: 18/06/2018
Aprovado para publicação em: 18/07/2018

Endereço para correspondência
Mariana Kehl
E-mail: marianakehl@gmail.com

 

 

*Psicanalista, Psicóloga/Faculdade de Ciências Médicas - Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), graduação em psicologia/Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)/Eberhard Karls Universitat Tubingen, mestrado em Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)/Universidad Autónoma de Madrid, doutoranda em Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

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