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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.40 no.39 Rio de Jeneiro July/Dec. 2018

 

RESENHA

 

A metapsicologia de Freud

 

Freud's Metapsychology

 

 

Ana Maria Furtado*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 

Gomes, Gilberto. São Paulo: Zagodoni, 2017. 334p.

 

Trata-se de um minucioso trabalho de mergulho nos meandros da articulação do pensamento freudiano, mostrando as conjecturas sobre o aparelho psíquico em sua estrutura, natureza, princípios de funcionamento e sobre os processos entendidos como resultantes desse funcionamento. Há uma intenção de se ater à letra de Freud, porém resumindo e comentando, em ordem cronológica, buscando confrontar a estrutura de pensamento subjacente aos temas abordados.

A vocação desse trabalho é assumidamente didática, visando apresentar uma visão de conjunto da teoria freudiana, o que é obtido com sucesso.

Num estilo gracioso, embora bastante acurado, Gilberto Gomes discorre inicialmente sobre trabalhos pré-psicanalíticos (1892-94), onde destaca o efeito das representações inconscientes ativas e do princípio da associatividade, bem como o papel central do afeto nos sintomas histéricos.

Ele escolhe iniciar a pesquisa sobre o Projeto de uma psicologia, texto nunca publicado, mas no qual, ressalta, podemos encontrar "os pilares da maior parte das conjecturas metapsicológicas posterirormente formuladas" (p. 28). Passo a passo, somos apresentados aos princípios do funcionamento mental, aos processos de excitação e de descarga, às noções de investimento e ao conceito de pulsão, assim como à experiência de satisfação e à de dor, à experiência de desamparo e de desilusão, que vão constituir os afetos e os estados de desejo. Nesse momento, surge também a introdução ao conceito de Eu. Nas cartas 39 e 52 discute a concepção freudiana de percepção, memória e associatividade, e a construção dos sistemas consciente, preconsciente e inconsciente.

Antes de chegar aos textos propriamente metapsicológicos (entre 1915-1923), demonstra como o trabalho do sonho está na "mesma série de processos psíquicos que levam à formação dos sintomas histéricos, fobias, compulsões e delírios, e, ainda, de fenômenos da vida cotidiana como esquecimentos, lapsos de linguagem e atos falhos" (p. 51).

Nos comentários sobre a seção H da Interpretação dos sonhos, mostra como há uma ampliação do conceito de afeto, articulando-o com as propostas do texto de 1915, sobre o Inconsciente. Comentando o capítulo 7 desse mesmo texto freudiano, demonstra como estão aí as principais exposições da metapsicologia de Freud: a ideia e a função da censura na instituição dos sistemas psíquicos, destacando os conceitos de recalcamento, traços mnêmicos e percepções, bem como os tipos de associação entre eles. Destacam-se aí também os tipos de investimento e de descarga e sua forma de atuação em cada uma das três instâncias até então concebidas. Analisa os gráficos de Freud e acrescenta um próprio para facilitar a compreensão das propostas freudianas (p. 63). Assim, trabalha a distinção entre processos qualitativos e quantitativos de investimento nos diversos sistemas psíquicos, esclarecendo como se institui o processo de pensamento em cada um deles, ressaltando a constância e a indestrutibilidade dos processos inconscientes.

Nunca é demais ressaltar a fluidez e a clareza com que Gilberto Gomes enfrenta a articulação do percurso epistemológico de Freud: os textos minuciosamente escolhidos e desvelados nos detalhes realmente significativos para a compreensão da imensa aventura intelectual em que se constituiu a Psicanálise. Nesse sentido, chama atenção o uso da palavra alemã Angst ao longo do trabalho. O autor comenta os limites e ampliações das traduções desse vocábulo para o inglês, francês, espanhol e português e, uma vez tendo assinalado a pertinência e limitação de cada uma delas, resolve referir-se à Angst aqui sempre como Medo/Angústia/Ansiedade, inclusive quando chega ao trabalho de Freud em 1917, Conferência 25 (capítulo 13 desta pesquisa), voltada para essa temática.

Na sequência dos textos escolhidos após o estudo dos sonhos - Uma nota sobre o inconsciente em psicanálise (1912), Sobre a introdução ao narcisismo (1914), Gomes acrescenta quais são os principais conceitos aí esboçados: Libido, Eu, Ideal do Eu, Investimento Objetal, Erogeneidade, entre outros, e os articula com a emergência de algumas patologias e com a neurose de transferência.

A partir daí, chega ao núcleo da metapsicologia, revendo o artigo Pulsões e destino das pulsões (1915), onde faz uma revisão da questão dos investimentos, das defesas, das origens, percursos e dos destinos das moções pulsionais, bem como das situações de ligação e de desligamento das mesmas e das transformações afetivas, como a de amor em ódio.

O texto seguinte, ainda de 1915, é O recalcamento, onde debate com detalhe sua função e evolução na constituição dos processos primários e secundários de pensamento (p. 129-138) e na afetividade presente nas psiconeuroses. Trabalha, a seguir, o texto O inconsciente (1915), onde, segundo Gomes, há "uma tentativa de sistematização que junta e articula formulações apresentadas por Freud em diferentes pontos de sua obra" (p. 154). Aqui ele destaca o papel da formação afetiva (conceito ressaltado por Carlos Paes de Barros) e seu papel nas relações entre os sistemas no aparelho psíquico, destacando, em seguida, as propriedades particulares do Inconsciente, sua relação com os demais sistemas e sua identificação.

Detém-se nos três capítulos subsequentes, nos textos de 1917: Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos, Luto e melancolia, e a supracitada Conferência 25(medo, angústia, ansiedade). Destaca a função e a constituição da prova de realidade, tenta explicar o processo da melancolia a partir do processo normal do luto, isto é, das consequências no psiquismo dos efeitos das perdas objetais, e, finalmente, introduz a noção de sinal de angústia, que adverte o psiquismo para algum grau de perigo. Discute, então, sua emergência tanto nas situações de ruptura, como no nascimento, quanto nas situações neuróticas (especialmente nas hipocondrias, histerias, fobias e síndromes do pânico) ou psicóticas.

Ao comentar o texto Além do princípio do prazer, Gilberto Gomes assinala não só a complexidade da evolução do tema do funcionamento do aparelho psíquico, como as hesitações e mudanças de posição de Freud ao longo de seu percurso na construção do mesmo. Para facilitar a nossa compreensão, institui subtítulos próprios - "Prazer e desprazer na regulação dos processos psíquicos - a excitação não ligada"; "A compulsão à repetição"; "As neuroses traumáticas"; "Observação de brincadeiras de crianças" etc. - até chegar ao surgimento do conceito de pulsão de morte.

Entra, assim, na preparação para a virada epistemológica freudiana, discutindo a dualidade vida e morte e as especulações presentes no sexto capítulo dessa obra, apresentando o princípio do prazer nos processos primários e secundários. Nas páginas 213 e 215, Gilberto nos brinda com resumos bastante claros do que Freud concebera até então para prosseguir discutindo as articulações dos princípios do funcionamento psíquico nas suas funções de ligação (Eros) e desligamento (Tanatos).

O cerne da metapsicologia nessa segunda tópica é o capítulo seguinte, O eu e o isso (1923), onde são destacados os dois sentidos de inconsciente presentes no texto (latente e recalcado) e o Eu é compreendido como emergente do Isso, como o desenvolvimento de uma projeção de uma superfície do corpo (nota ao pé da página 221). O autor apresenta e debate a segunda tópica freudiana, e discute o surgimento do Supereu como fruto das identificações, sendo algumas diretas e imediatas, antes de qualquer investimento de objeto. Gomes trabalha os aparentes paradoxos entre as identificações com o pai e a mãe no declínio do complexo de Édipo, apresentando-o como o mais importante dos destinos libidinais do Isso.

Gilberto Gomes expõe as muitas dificuldades de se compreender a segunda tópica ao se pinçarem frases isoladas, muitas vezes conflitantes entre si, desse trabalho de Freud, e expõe as muitas acepções para o Eu que ele adota ao longo do texto, ressaltando que o reservatório pulsional está no Isso, sendo o Eu muito frequentemente interpretado como uma diferenciação do primeiro. Comenta a força pulsional do Isso como determinante de um sentimento inconsciente de culpa que permite ao ideal julgar severamente o Eu. Comenta, ainda, a dificuldade de controle das moções pulsionais agressivas e suas manifestações na neurose e na melancolia.

Essa temática conduz Gomes a selecionar o texto seguinte da metapsicologia: O problema econômico do masoquismo (1924), destacando a relação do princípio de Nirvana com a pulsão de morte, o que opera uma modificação no princípio do prazer. Explica a três formas de masoquismo (erógeno, feminino e moral), exibindo como é assumida a expressão do masoquismo moral nas reações terapêuticas negativas, o maior obstáculo para o sucesso das terapias e do processo educacional.

Dessa forma, vemos que as preocupações freudianas com o trabalho psíquico a ser desenvolvido na clínica se expressam no trabalho que Gomes comenta a seguir: A negação (1925). Aí ele ressalta o trabalho de negação do recalcado sem suprimir o recalque, cujo conteúdo é julgado e condenado, o que é operado pelo Eu, uma vez que no Isso não existe negativa, só afirmação.

Seguindo a produção freudiana, o trabalho comentado em sequência é apresentado como Inibição, sintoma e medo/angústia/ansiedade (1926). Explicitam-se aí os conflitos existentes entre o Eu e o Isso, e faz-se uma relação entre o aparecimento do sinal de angústia e o sinal de desprazer exposto em vários textos desde o Projeto (p. 247), assinalando que a Angst que surge como algo novo é a reprodução de um estado afetivo a partir de uma imagem mnêmica prévia. São ainda realizados comentários sobre a noção de sintoma como exposta por Freud nesse trabalho, a partir do caso do pequeno Hans, o que também permite a assunção da noção de ganho secundário da doença. Nesse momento, Freud discute a formação de sintomas fóbicos e da histeria de conversão, e Gomes sumariza as assertivas freudianas acerca dos perigos que geram os medos/angústias/ansiedades, associando-as ao temor à castração e à perda do objeto, reafirmando que o sinal de angústia aparece frente à perda de objeto, que poria o Eu numa situação de perigo, o que produziria os mais variados sintomas, exigindo gasto de energia e produzindo resistências para se evitar a dor e o desamparo.

Nos três capítulos subsequentes (19, 20 e 21), onde são analisados textos de 1933 e 1938, o trabalho de pesquisa é sobre o papel da identificação na constituição do Supereu e a extensão da função de auto-observação deste, especialmente nas situações patológicas. É feita uma revisão das relações entre os sistemas da segunda tópica freudiana, sendo o Eu aí melhor discutido. Mais uma vez, na tentativa de precisar as formulações e demonstrar a parcialidade das traduções, Gilberto Gomes apresenta, na página 283 dessa pesquisa, sete possíveis compreensões corretas para a afirmação freudiana "Wo es war soll ich werden", examinando o contexto em que essa frase está situada na referida conferência, além de explicitar o sentido de outras metáforas freudianas aí presentes.

Já chegando ao final da pesquisa, nosso autor se detém sobre o Compêndio de psicanálise, nunca publicado por Freud, mas que é um texto sobre o aparelho psíquico e em que se trabalha a possibilidade de uma apreensão imediata de dados, incapaz de ser descrita, porém dotada de um registro. Mostra como Freud concebe esse aparelho como uma extensão espacial, relacionada ao cérebro, sendo composto por partes diferenciadas, podendo ser tanto herdado quanto congênito, além de incluir o recalcado. Discute, ainda, as funções do Eu, do Isso e do Supereu, além de expor a teoria das pulsões, apresentando a tentativa de síntese que Freud faz de seu trabalho metapsicológico.

Creio ter sido esse o motivo de o autor ainda se debruçar sobre mais esse texto, que aborda, também, os temas do narcisismo, da libido e suas relações com o Eu e o objeto. Na página 292, Gilberto inclui mais um gráfico próprio para facilitar a compreensão das divergências de Freud consigo mesmo nas construções dos conceitos de Eu e Objeto.

O caráter revisionista desse texto freudiano pode ser reconhecido nos comentários cuidadosos da pesquisa no penúltimo capítulo da obra que comento. Temas da sexualidade infantil, da diferenciação dos processos e sistemas psíquicos e das relações entre o psíquico e o somático, além da tentativa freudiana de reivindicar para a psicanálise um lugar entre as ciências naturais são aqui explorados.

Finalizando esse trabalho, Gilberto Gomes se volta para o último texto sobre a metapsicologia escrito por Freud, onde ele tenta precisar conceitos desenvolvidos na quarta parte do Compêndio. Aqui termina destacando que, na última frase de suas obras, Freud salientou a importância de se fazer uma tradução do inconsciente para a consciência, a fim de que este se torne acessível.

Ao finalizar a leitura da Metapsicologia de Freud, sob a lupa de Gilberto, com certeza abre-se uma compreensão mais ampla dos temas que foram centrais na elaboração da trama dos conceitos-mestres da psicanálise, tanto como saber quanto como prática clínica. O livro é um guia precioso para o estudo da teoria psicanalítica.

 

Endereço para correspondência
Ana Maria Furtado
E-mail: anamariafurtado.rj@gmail.com

 

 

*Psicanalista, membro efetivo/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ), mestrado em Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), doutorado em Saúde Coletiva - IMS/Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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