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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.41 no.40 Rio de Jeneiro jan./jun. 2019

 

ARTIGOS

 

Os tempos em análise (Ideias a partir da psicanálise e da prática psicanalítica)1 2

 

Time in Analysis (Ideas from psychoanalysis and psychoanalytic practice)

 

 

Luís Claudio Figueiredo*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
Universidade de São Paulo - USP - Brasil
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A noção de heterocronia proposta por André Green para falar do tempo em psicanálise é retomada, discutida e ampliada nesta breve comunicação. Nosso principal objetivo, contudo, será o de aprofundar sua compreensão nas temporalidades incidentes nas práticas psicanalíticas, nas escutas e intervenções analíticas em uma sessão; para tanto recorreremos a ideias do psicanalista Wilfred R. Bion, em especial as expressas no seu livro Attention and interpretation. Alguns filósofos contemporâneos nos acompanharão a uma certa distância ao longo do percurso. Mas nossas fontes serão sempre teorias e práticas da psicanálise.

Palavras-chave: Tempo em análise, André Green, Heterocronia, Escuta, Wilfred Bion.


ABSTRACT

The notion of heterocrony proposed by André Green to talk about time in psychoanalysis is resumed, discussed and expanded in this brief communication. Our main goal, however, will be to deepen the understanding of the temporalities incident in psychoanalytic practices, in listening and analytical interventions in a session; to this end, we will turn to the ideas of the psychoanalyst Wilfred R. Bion, especially those expressed in his book Attention and interpretation. Some contemporary philosophers will accompany us at a certain distance along the route. But our sources will always be theories and practices of psychoanalysis.

Keywords: Time in analysis, André Green, Heterochrony, Listening, Wilfred Bion.


 

 

"É bem claro que é impossível falar da árvore do tempo em psicanálise sem levar em conta a de-sincronia entre os
vários aspectos descritos por Freud, revelando uma heterocronia fundamental. Outras questões nos aguardam.
Há o tempo, o fora do tempo e talvez, como veremos, o antitempo (o 'contra-tempo', diríamos nós; lcf)".
(GREEN, 2002, tradução nossa)

 

Introdução

Nossa apresentação terá como apoio a noção de heterocronia, tal como formulada por André Green em um dos seus livros sobre o tempo em psicanálise (GREEN, 2002, 2002a). Tomaremos alguma liberdade com o que sugere Green, trazendo algumas elaborações pessoais que, no entanto, acreditamos, mais expandirão do que deformarão o pensamento do psicanalista francês. No entanto, a principal novidade em relação aos textos em que a noção de heterocronia é proposta é que aqui focalizaremos especialmente a dimensão da prática psicanalítica e nela a problemática dos tempos em análise. Antecipando: a sessão analítica será tomada como acontecimento no aqui e agora, um "aqui e agora" que escapa completamente à aparente simplicidade da expressão, um "aqui e agora" em que incidem muitos tempos em tensão e conflito.

 

A noção de heterocronia de André Green e nossa apropriação pessoal da ideia

O livro em que Green nos fala em heterocronia se intitula Le temps éclaté. Sua tradução para o inglês (que não comparece como título do livro - Time in psychoanalysis) oferece a expressão shattered time, o que seria algo como "tempo despedaçado". No entanto, seguindo inclusive uma observação do autor que transcrevemos abaixo, preferimos falar em tempo explodido, estilhaçado ou arrebentado.

Diz ele: "a heterogeneidade diacrônica do aparato psíquico é acentuada, graças à diferença de estrutura entre as agências e a forma em que os efeitos das várias formas de temporalidade são inscritos nelas. O tempo não está mais só em pedaços; suas partes estão em um estado de tensão entre si" (GREEN, 2002a, p. 25, grifo nosso).

Do estado de tensão extrai-se a ideia de algo prestes a arrebentar, a éclater, vale dizer, a explodir.

 

A heterocronia como temporalidade saturada e a ponto de arrebentar

Evidentemente, precisamos começar considerando o tempo sequencial cronológico, mas mesmo este não pode ser tomado em sua aparente simplicidade e linearidade - antes, agora e depois. É claro que uma vida e um processo analítico obedecem a alguma cronologia, mas aí mesmo se oculta muita complexidade.

Há, por exemplo, o tempo evolutivo, desenvolvimentista, maturacional da biologia a que todos os seres vivos estão submetidos. Mas, no caso do animal humano e, principalmente, nos aspectos que irão interessar ao psicanalista, este tempo sequencial comporta elementos do "passado" filo e ontogenético que insistem, retornam e se repetem, dando aos processos temporais uma feição nada sequencial. O passado filogenético, por exemplo, não passa nunca, como bem sabemos ao reconhecer a força do mundo das pulsões e das fantasias que lhes são correlatas.

Acresce que os seres humanos são também seres da cultura, existentes. Esta existência histórica - não apenas porque cada um de nós faz parte da história coletiva de sua sociedade, mas também porque se desdobra no tempo próprio de sua própria história - enseja e solicita uma narrativa histórica de si. No entanto, novamente, esta narrativa histórica não pode ser composta como uma mera sequência de momentos e situações. Há nela a incidência de um "tempo antecipado", o da pré-compreensão do futuro na interpretação presente do passado, e, também do presente, a partir deste futuro projetado. Este movimento, de certa forma, nos remete ao que, em psicanálise, traduz o conceito freudiano de Nachträglichkeit tal como os franceses o fazem, como o efeito do après coup, o "a posteriori": o passado vai sendo reinterpretado a partir do que vem depois. No entanto, o que ocorre na narrativa histórico-existencial, tal como nos ensina a hermenêutica filosófica (GADAMER, 1986), é ainda mais complexo: não só o passado irá sendo ressignificado pelo futuro, mas este futuro já pertence ao presente como antecipação de sentido - pré-compreensão - e, desde aí, ressignifica todo o passado e todo o presente ele mesmo. No fundo é a noção de "presente" que começa a ser desconstruída, pois de cada momento presente já faz parte o futuro pré-compreendido.

Mas ainda há que levar em conta, também, o tempo em que o sentido atribuído ao presente se apoia e é determinado pelo passado, bem como é neste que também se apoia o projeto de futuro que o presente comporta. Isso levou tradutores ingleses a traduzir o mesmo termo freudiano Nachträglichkeit como deffered action, ação retardada: é algo que, desde o passado, determina o que vai se mostrar muito tempo mais tarde, em um efeito diferido. Na hermenêutica filosófica se denominou tal dinâmica de "história efeitual" (GADA- MER, 1986), algo que efetivamente não passou e habita o presente subterraneamente e à distância. É mais um passo na desconstrução da categoria da "presentidade".

Em nossa compreensão, a heterocronia psicanalítica implica todas estas temporalidades, as biológicas e as histórico-existenciais entrecruzadas e ambas autocontraditórias, tal como se viu nos parágrafos anteriores. Ou seja, já aqui temos motivo para falar em uma historicidade complicada devida, em grande medida, à posição da psicanálise entre as ciências biológicas e as da história e cultura. Mas há mais.

Em psicanálise, há uma imensa relevância do tempo da pura repetição e do tempo cíclico da insistência e do retorno, tal como se mostra, por exemplo, em toda a problemática das transferências, ainda que elas não sejam apenas, como pensava Freud no início, reedições. E há ainda a chamada atemporalidade do(s) inconsciente(s): a do inconsciente recalcado, seus padrões quase imutáveis e seus retornos, a do inconsciente cindido e seus retornos pré-representacionais - que se atualizam em ações estereotipadas -, o das defesas cristalizadas (cronificadas em forma de caráter), a dos valores e normas do passado (inscritos no presente do superego), e a das insistências pulsionais com suas origens ancestrais e pré-históricas. Vê-se assim, neste conjunto, o que Green descreveu como a "diferença de estrutura entre as agências e a forma em que os efeitos das várias formas de temporalidade são inscritos nelas": se o id, fonte das pulsões, pertence ao passado da espécie, e o supereu, pertence ao passado da cultura, o eu não apenas tem de lidar com estas temporalidades anacrônicas, como é ele mesmo atravessado por todos os regimes temporais a que estivemos aludindo até aqui.

E há ainda o "fora do tempo" - o extemporâneo - e o que precisamos de- nominar de extra-memória que reside no que Freud na carta 52 para Fliess (FREUD, 1896 apud MASSON, 1985) denominou de fueros: por exemplo, o chamado "trauma precoce" deixa uma marca, uma "memória corporal" na forma de impressões que não foram traduzidas para se transformarem em traços mnêmicos, representações etc. Estas marcas estão fora do espaço psíquico, daí o nome fueros, e estão fora dos tempos: os fueros são essencialmente extraterritoriais e extemporâneos e é nesta condição que pertencem à problemática dos tempos em psicanálise.

Finalmente, há o tempo "puro", incomensurável e indivisível, das vivências, pois o eu, habitado que seja por todas estas temporalidades, e mesmo por seus extemporâneos e atópicos, experimenta o mundo e a si mesmo - suas emoções e ideias - no plano da duração, não representável nem historiável, como bem nos advertiu Bergson.

Vale dizer:

Em psicanálise temos a confluência de todos estes regimes de temporalidades, incluindo as extras e as contra temporalidades (o que Green chamou de antitempo) na heterocronia psicanalítica, e isso faz da heterocronia a matriz de um presente carregado, saturado, tensionado, potencialmente éclaté (explodido, estilhaçado).

Certamente, embora a problemática dos tempos possa ser pensada e precise ser considerada a partir das teorias psicanalíticas e na psicanálise, ela, na verdade, diz respeito à condição humana em sua universalidade. Na próxima seção veremos algo mais específico ao nosso campo de trabalho.

 

Uma outra dimensão de heterocronia: os tempos estritamente psicanalíticos - o "aqui e agora" da sessão e suas fraturas produzidas pelas tensões e explosões

Devemos nos perguntar para início de conversa, que noção de experiência nos serve para falarmos da experiência psicanalítica, aquela "vivida" pelo paciente e seu analista em uma sessão e uma sucessão de sessões.

Em geral, entendemos a experiência sob a primazia da presentidade: o que é, é no presente. O que foi já não é e o que será ainda não é. O verbo ser só diz plenamente o que se dá no presente do é.

Assim, a solução narrativa que inclui o passado e o futuro no "presente estendido da narração", nos parece tão engenhosa e convincente: o passado é e o futuro também é no presente estendido da narração, o primeiro como memória e o segundo como expectativa, ambos como "sentimento". O tempo inscrito como sentimento e medida subjetiva corresponde à "solução subjetivista do problema do tempo" proposta por Santo Agostinho e que nos foi tão bem apresentada pelo Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho.

É evidente, todavia, que a heterocronia de que estávamos falando, entendi- da como o tempo múltiplo e em tensão não se conforma a esta solução narrativa que não consegue acomodar em seu seio as fraturas dos tempos discordantes, suas persistências, suas repetições, seus retornos, seus enclaves etc. Esta é uma das razões pelas quais é tão difícil - na verdade, impossível - transformar em relato o transcorrer de um processo analítico e mesmo o transcorrer de uma única sessão.

A rigor, cabe a pergunta: o que é uma sessão de análise? Será algo relatável na forma de uma narrativa histórica? Antecipando uma resposta a ser esclarecida e elaborada adiante: uma sessão não é, uma sessão acontece, e acontece como um horizonte de acontecimentos a partir deste encontro inusitado na situação analisante. A complexidade esburacada e tensionada do "aqui e agora" da sessão que se cria pelo acontecimento do encontro analítico opera como uma matriz dos acontecimentos imprevisíveis e incontroláveis, cada um deles detendo um potencial infinito de significações e ressignificações que explodem em todas as direções, para frente e para trás.

O que se passa é que no aqui e agora explosivo da sessão incidem as forças de todos os extemporâneos, os retornos do recalcado, os retornos do cindido, as insistências pulsionais, os "atópicos" (fueros), etc. É justamente neste contexto que as interpretações e demais intervenções do analista, elas também entendidas como acontecimentos na análise, podem fazer efeito de transformação do campo; elas também são não previsíveis, incontroláveis, elas também não são premeditadas, acontecem. Trata-se enfim, na situação analisante, de um horizonte de acontecimentos - ele mesmo sendo inaugurado pelo acontecimento do encontro - que cria as condições de possibilidade (quase transcendental) para que os acontecimentos analíticos e terapêuticos eclodam.

 

Uma questão de método: como experimentar este aqui e agora em sua radical negatividade?

Wilfred Bion, um grande psicanalista que foi também um pensador e um epistemólogo da clínica nos fala de uma capacidade negativa (negative capability) termos emprestados a Keats. Com esta expressão Bion nos remete a uma disposição de mente do analista que se abre plenamente ao horizonte de acontecimentos no aqui e agora da sessão: é uma espera do inesperado, uma receptividade indeterminada e indeterminante ao que vem ao encontro sem aviso prévio e preparação, vale dizer, ao que acontece. Para se referir a esta atitude mental Heidegger fala de "serenidade" (HEIDEGGER, 1959).

A esta atitude serena, Bion ajuntava as recomendações: "sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia" (BION, 1971), ou seja, sem reter o passado, sem projetar o futuro e sem se apegar a qualquer pressuposição teórica presente na mente do analista para - indo além ou ficando à margem de qual- quer lógica e de qualquer teoria - deixar-se afetar pelo que está acontecendo...e acontecer junto. Vimos, na exposição do Prof. Danilo, como, em Santo Agostinho, esta ideia de presente estendido pelos sentimentos de recordação e expectativa se ligava à pressuposição de uma lógica dialética da história, uma ideia retomada e aprofundada por Hegel e em seguida Marx. Pois bem, escutar em análise nos exige justamente que abramos mão de toda lógica do decurso histórico, seja no plano de uma vida, seja no plano de um tratamento, seja no plano de uma sessão; se a alguma noção de lógica dialética da história ainda quisermos recorrer, precisaria ser a de uma dialética infinita, inconclusa, como a dialética sem síntese de Merleau-Ponty, jamais a de Hegel ou Marx. Qualquer noção de lógica da história mata a escuta em análise.

Destituídos de todo saber prévio, soberano e antecipatório, lá ficamos à espera da emergência do fato selecionado na e da sessão. Fato selecionado, termo que Bion toma emprestado ao matemático Raymond Poincaré, refere-se ao elemento - um detalhe imprevisto - que espoca em nossa escuta e a intercepta, produzindo um acontecimento íntimo que recorta, religa, ressignifica e projeta sentido em todas as direções, propiciando novas configurações. É assim que das escutas erráticas de acontecimentos imprevisíveis emerge um novo acontecimento, um autêntico acontecimento analítico: a intuição da verdade no campo transferencial-contratransferencial. Poderíamos também ressaltar como da espera paciente do inesperado vem a irromper a precipitação em seu duplo aspecto: o fato selecionado é em si mesmo um "precipitado" (no sentido da química) que dá origem a acontecimentos que se precipitam no transcorrer da análise: o insight e a interpretação. Eis uma temporalidade complexa e alógica, feita de paciência e precipitação3.

A intuição diz respeito a um acesso sem mediação à experiência emocional neste sentido acontecimental de que estamos falando. Trata-se, portanto daquilo que em termos bionianos podemos chamar de Verdade em O, para diferenciar da verdade em K, que é a verdade no plano do conhecimento representacional, o que se dá por algum princípio de correspondência e adequação. Na "Verdade em O", intuímos algo que, a rigor, nunca foi presente e nunca o é completamente, pois depende de algo que, seja "vindo antes", seja "vindo depois", jamais será presente. A Verdade emocional obtida a partir de um fato selecionado é essencialmente criadora e não corresponde nem se adequa a um objeto ou estado preexistente; muito menos o explica introduzindo-o em uma suposta racionalidade.

Com isso torna-se nítida a diferença entre a noção de verdade própria à linguagem representacional - onde se persegue a verdade em K, no plano do conhecer e do reconhecer o fenômeno em sua "razão de ser" - e o que se dá como Verdade no plano da linguagem do êxito (ou linguagem de saída) (BION, 1971). Neste plano, é que ocorre o acontecimento do vir a ser, tornar-se, uma transformação que ultrapassa o mero conhecer e reconhecer segundo o princípio de razão suficiente4 (cf. HEIDEGGER, 1957).

 

Os acontecimentos em análise e a descontinuidade radical do tempo na matriz freudo-kleino-bioniana

Embora a problemática dos tempos pertença a todo o horizonte das teorias e práticas do que podemos reconhecer como psicanálise, nossas elaborações até este momento são particularmente adequadas àquilo que chamamos em livro recente de matriz freudo-kleiniana, a que podemos acrescentar o pensamento de Bion (FIGUEIREDO et al., 2018). Nesta matriz, as fraturas dos tempos com potencial de explosão são básicas para a eclosão dos acontecimentos, seja nas falas e atos dos pacientes, seja nas interpretações e manejos do analista. A emergência das angústias sinaliza justamente os pontos de ruptura - as crises e as oportunidades de rearranjos subjetivos. As estratégias de cura nos adoecimentos contemplados por esta matriz respondem a conjunturas de crise em que angústias e defesas chegam a estados de tensão intolerável que mobilizam de forma intensa e disfuncional todas as instâncias com suas temporalidades contraditórias, tal como está acentuado no subtítulo inglês do livro de André Green, a análise se realiza aí em pleno apogeu da heterocronia e com suas urgências, seus retardos e paralisias, suas repetições etc. Fazer psicanálise neste contexto crítico é produzir novas descontinuidades neste tecido tensionado e explosivo com a esperança de que novas ligações poderão ser realizadas, ligações que ultrapassem a repetição e a produção sintomática.

Mas esta mesma problemática temporal pode se mostrar de forma bem diferente em outras conjunturas clínicas.

 

Os acontecimentos na análise modificada e a construção da continuidade na matriz ferenczi-balint-winnicottiana

A psicanálise pensada e praticada segundo a outra matriz contemplada no li- vro de Figueiredo et al. (2018), também pressupõe a heterocronia básica do humano, especialmente relevante para a clínica. Só que nesta outra matriz ela, aparentemente, já produziu uma explosão catastrófica que levou ao colapso das defesas e à morte de áreas mais ou menos extensas do aparelho psíquico. Na verdade, os sofrimentos nesta outra matriz já decorrem dos efeitos retarda- dos de traumas precoces que deixaram áreas da experiência fora da possibilidade de representação e simbolização - os fueros de que nos falou Freud, uma das formas mais perniciosas da extratemporalidade. Serão necessários o acontecimento do encontro analítico e todos os acontecimentos que se seguem para constituir ou reconstituir alguma continuidade onde a descontinuidade tomou conta da cena. É neste contexto que a regressão terapêutica pode se tornar necessária e possível: é necessária para recuperar a vivência pré-traumática a partir da qual um novo começo pode acontecer, e é possível porque a área silenciada permanece muda, mas como que à espera do resgate, alojada neste terreno extraterritorial e extratemporal do psiquismo.

Quando se trata de dar tempo aos processos de amadurecimento, parece preciso retomar a ideia bergsoniana de duração: a sustentação do ser ao longo do tempo, uma tarefa para o holding tal como o apresenta Winnicott, é justa- mente o que se realiza na continuidade não cronológica e não segmentada da duração.

É no tempo que dura que pode ocorrer o amadurecimento da confiança e da esperança, indispensáveis às curas que se endereçam aos sujeitos em estado de agonia e que necessitam da regressão terapêutica.

Nesta medida, o acontecimento do encontro analítico e os acontecimentos que daí podem se seguir estão comprometidos com a instalação de alguma continuidade. Tais acontecimentos precisam, para tanto, aparecer em conjuntos que estabeleçam a experiência temporal do ritmo.

O ritmo corresponde a uma experiência temporal sui generis: a descontinuidade de cada acontecimento, quando disposta de uma certa forma, cria, paradoxalmente, uma continuidade complexa: não é a continuidade do mesmo a vivida, provavelmente, na forma primária do holding pela mãe na chamada "preocupação materna primária" - mas é uma continuidade que já traz em seu bojo a alteridade. Vale assinalar que a simples permanência do "mesmo", por mais importante que seja no começo da vida, ainda não introduz a experiência do tempo. Para que isso venha a ocorrer, a sustentação do ser no tempo já precisa incluir a vivência do tempo passando, o que é obtido justamente pelo ritmo. A experiência do tempo parece vir da alternância entre o "mesmo" e o inesperado ou a surpresa. O ritmo compartilhado, nos tempos iniciais, é que talvez vá dando essa experiência do "tempo passando".

Na análise com qualquer paciente, vamos construindo, quando a análise acontece, essa vivência de um ritmo compartilhado. Nos casos que exigem e permitem a regressão terapêutica, a experiência do ritmo compartilhado torna-se decisiva tanto para que amadureça a confiança e a regressão aconteça quanto para que, a partir do que Balint chamou de New Beginning, comece a se constituir ou reconstituir o tecido temporal da continuidade do ser no tempo, do permanecer ao longo de uma duração do "tempo passando".

Quando esta continuidade complexa do ritmo é vivida em conjunto, criam-se as condições para o que podemos chamar de "afinação sincrônica", uma forma básica de empatia, a do ritmo compartilhado: esta parece ser uma forma básica de temporalidade, a da pura duração, fundamental em alguns atendimentos com um certo tipo de paciente, mas que, de certa forma, está operando em surdina nos bastidores de qualquer psicanálise pelas regularidades temporais que o enquadre estabelece.

 

Os tempos na psicanálise transmatricial: o descontínuo e a continuidade entrelaçados

O que sugerimos no livro de 2018 Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura, contudo, é que a psicanálise contemporânea é uma psicanálise transmatricial, recorrendo às duas matrizes acima referidas. No campo específico da questão que ora estamos examinando, depreende-se que nossas práticas precisam ser capazes de operar com os acontecimentos que produzem as descontinuidades e desligamentos e com os acontecimentos ritmados geradores da experiência do tempo contínuo e das ligações. De fato, acontecimentos de ambas as ordens participam de todas as análises, embora com ênfases diferentes.

Dito isso, tão brevemente quanto a situação aqui o exige, passemos adiante para acrescentar mais uma dimensão de complexidade à exposição.

 

Como passar do aqui e agora da sessão - seja a da descontinuidade, seja a da duração ritmada na construção da continuidade - aos historiais: transporte ou dissolução da verdade?

No entanto, não seria possível ignorar a historicidade narrativa na construção do pensamento clínico psicanalítico. Esta construção narrativa é indispensável por diversas razões: em primeiro lugar, cabe destacar que é nela que se enraízam atividades de criação e de exercício teórico em psicanálise, onde as teorias são criadas e "testadas" na relação com suas bases empíricas na observação clínica; ademais, tais construções são necessárias para a transmissão da psicanálise, pois uma transmissão de teoria abstrata sem sua operatividade ser exibida na construção do pensamento clínico não forma psicanalista algum; cabe ainda assinalar, no que respeita a transmissão, os "efeitos de supervisão" que a leitura dos historiais clínicos e dos "casos construídos" (ficcionalizados, como veremos a seguir) produzem em estudantes e praticantes da psicanálise. Ou seja, com a escrita e a leitura dos historiais podem-se gerar efetivamente retornos ao regime acontecimental da clínica: escrita e leitura tornam-se matrizes de novos acontecimentos, inclusive para quem consegue pensar ou repensar seu trabalho pela via do pensamento reflexivo alimentado por elas.

Surge, contudo, a questão: na narrativa dos nossos historiais, há verdade ou ficção? Antecipando a resposta: Verdade e ficção, mas há também, a nosso ver, insuficiências insanáveis.

O que pensamos é que a possível verdade de uma narrativa psicanalítica não reside em uma impossível reprodução foto ou fonográfica; a mera narração dos ditos e ouvidos, vistos e sentidos na ordem em que ocorreram na sessão não corresponde em nada à experiência dos que dela participaram. Não apenas isso não capta os climas emocionais e, naturalmente, os movimentos psíquicos inconscientes de paciente e analista, como não leva em conta os di- versos movimentos temporais que fazem, por exemplo, que o final de um encontro ressignifique completamente o meio do caminho e que, na outra direção, a fala de abertura projete uma expectativa que só vai se esclarecer ao final. São inúmeras as dimensões temporais que transtornam inteiramente a ordem dos "fatos" ao mesmo tempo em que criam fatos psicanalíticos absolutamente surpreendentes e erráticos, casuais.

Para dar conta, muito aproximadamente e sempre de forma insuficiente, desta complexidade precisamos apostar na dimensão literária e estética dos relatos nos historiais clínicos, o que levou Freud, por outra via, a reconhecer que suas histórias de caso se pareciam mais a contos e novelas do que a registros científicos e relatórios psiquiátricos. E é exatamente assim e por isso que são tão poderosos em nossa formação e compreensão de suas ideias. Hoje, encontramos em obras de ficção literária, na dramaturgia e no cinema modalidades de "narração" que se propõem justamente comunicar algo destas complexidades temporais, mas não é do nosso conhecimento que algo disso já tenha sido adotado para o relato de casos em psicanálise, certamente por insuficiência nossa. Muitas vezes, por isso, conseguimos expressar mais acurada- mente nossa capacidade de pensar a clínica trabalhando sobre um material fornecido por boas obras de ficção literária e cinematográfica.

De toda forma, por mais bem construídos que fossem estes historiais ainda estariam muito longe do que foi a experiência analítica de uma sessão ou de um processo de cura, razão pela qual alguns analistas - como foi o caso de Bion a partir de certa época - abandonaram o esforço de escrever casos clínicos fazendo suas ideias funcionarem em outro contexto, o dos seminários clínicos, por exemplo. Na discussão de casos - em parte relatados através de narrativas, mas a maior parte das vezes apresentados de forma muito menos linear, muito mais lacunar e bastante errática (ao sabor das questões e das lembranças que ocorrem na própria situação do seminário) - podemos exercitar nossos saberes teóricos e ver colegas e mestres fazendo o mesmo. Também nas supervisões, o que mais nos leva para perto da experiência da sessão e dos processos analíticos não é o relato que o supervisando preparou e trouxe, mas o entre-jogo de afetos, lembranças, questões e hipóteses que ali emergem.

Ou seja, é porque a supervisão - assim como o seminário clínico - é também um acontecimento e um horizonte de acontecimentos que ela nos pode dar algum acesso aos acontecimentos da análise.

Tornam-se assim, supervisão e seminário clínico, ferramentas muito eficazes na formação do analista ao enraizar as teorias na clínica, sem o recurso ao historial clássico e permanecendo muito mais próximos ao regime da temporalidade acontecimental de uma sessão.

 

Um adendo desnecessário. Nossos parceiros, os filósofos: Husserl, Heidegger, Lévinas, Dérrida e Bergson

Toda a exposição até agora derivou de nossa experiência com autores da psicanálise e, mais ainda, de nossa experiência na prática psicanalítica. Todavia, é inegável que a leitura de alguns textos filosóficos nos ajudou a pensar algumas ideias. Apenas para não sermos acusados de jogar escondendo cartas na manga, admitimos que (1) a leitura da Fenomenologia da consciência do tempo imanente, de Edmund Husserl, (onde o filósofo demonstra que na percepção de algo presente já estão operando retenções e protensões, isto é, o presente é intrinsecamente infiltrado por ausências, e a consciência do tem- po já comporta um horizonte inconsciente) (2) de diversos textos de Martin Heidegger (em torno da questão do ser e do tempo), (3) de outros tantos de Émmanuel Lévinas (em torno da questão do acontecimento do encontro com a alteridade do outro) e (4) dos de Jacques Derrida (reunindo Husserl, Heidegger e Lévinas na desconstrução da "presentidade") ressoaram um bocado em tudo que precede. De outro lado, não nos esquecemos das lições de Maurice Merleau-Ponty (cuja ideia de "dialética sem síntese" nos livrou da lógica dialética da história agostiniana e hegeliana) e, mais ainda, de Henri Bergson que tanto nos ajuda a pensar as vivências conscientes do tempo (e da passagem do tempo) em termos de duração.

Todos estes filósofos foram nossos parceiros nas breves considerações sobre os tempos em psicanálise. Desnecessário dizer que eles não são culpados de nada...

 

 

Referências

BION, W. R. Attention and interpretation. A scientific approach to insight in psycho-analysis and groups. London: Tavistock, 1971.         [ Links ]

FIGUEIREDO, L. C. et al. Adoecimentos psíquicos e estratégias de cura. São Paulo: Blucher, 2018.         [ Links ]

FREUD, S. "Carta de 6 de dezembro de 1896, Carta 52". In: MASSON, J. M. (Org.) A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess (1887- 1904). Rio de Janeiro: Imago, 1985.         [ Links ]

GADAMER, H. Verdade e método. Traços fundamentais da hermenêutica filosófica. Petrópolis: Ed. Vozes, 1986.         [ Links ]

GREEN, A. Le temps éclaté. Paris: Editions de Minuit, 2002.         [ Links ]

GREEN, A. Time in psychoanalysis. Some contradictory aspects. New York: Free Association, 2002a.         [ Links ]

HEIDEGGER, M. Le principe de raison. Paris: Gallimard, 1957.         [ Links ]

HEIDEGGER, M. "Sérénité". Questions IV. Paris: Gallimard, 1959.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 06/07/2019
Aprovado para publicação em: 26/07/2019

Endereço para correspondência
Luís Claudio Figueiredo
E-mail: lclaudio.tablet@gmail.com

 

 

*Psicanalista, Membro Efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP). Professor da Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo, SP, Brasil.
1Trabalho apresentado em uma mesa redonda no CPRJ em junho de 2019 juntamente com o Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho, a cuja fala o presente texto faz algumas alusões. A mesa era sobre o "Tempo em Análise", mas, por razões que se elucidarão a seguir, nossa opção foi por falar em Tempos, dado que nos processos de constituição subjetiva, e mais ainda nos processos analíticos, seremos obrigados a considerar uma multiplicidade de regimes temporais. Agradeço a Andreia Rocha de Vasconcellos, Regina Orth, Alfredo Naffah Neto, Mauro Meiches, Nelson Coelho Junior e Paulo de Carvalho Ribeiro pela leitura e sugestões, e a Ignacio Gerber e Elias Rocha Barros pela leitura e incentivo.
2Nota das Editoras: O artigo do Prof. Danilo Marcondes, ao qual o autor se refere, está publicado no presente número dos Cadernos de Psicanálise (CPRJ), p. 11-19.
3Neste contexto da escuta, mesmo a dialética sem síntese de Merleau-Ponty talvez não nos adiante muito para garantir a liberdade de esperar o inesperado que nos é exigida, ainda que já nos assegurasse um antídoto contra as pretensões da dialética hegeliana e marxista de prever a marcha da história.
4"Nada é sem uma razão de ser". Uma escuta subordinada a este princípio, vale dizer, a uma lógica formal ou a uma lógica da história, nunca será a escuta livre e flutuante preconizada por Freud e radicalizada por Bion com sua ideia da capacidade negativa, a de esperar o inesperado e tolerar a incerteza. Como essa aposta na incerteza e na indeterminação se articula ao chamado "determinismo freudiano" seria assunto para uma outra palestra.

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