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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.41 no.40 Rio de Jeneiro Jan./June 2019

 

ARTIGOS

 

Narrativa em análise: da escrita ao conto

 

Narrative in analysis: from the writing to the tale

 

 

Bárbara Taveira Fleury CuradoI*; Eliana Rigotto LazzariniI**

IUniversidade de Brasília - UNB - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho é parte de uma pesquisa de doutorado que tem como premissa pontuar a proximidade que há entre psicanálise e literatura a partir da ideia de inconsciente como construção narrativa e, portanto, ficcional. Assim, a hipótese que aqui trago é de que a narração é uma necessidade e direito de todo sujeito, posto que é no ato de se contar, digo, de criar narrativas sobre si, que ele situa seu desejo e se situa diante de sua fantasia. Sendo assim, é só através de uma implicação pela narração que o sujeito pode assumir seu dito e sua vida como autor. Surgem então duas questões: fazer análise pode ser uma experiência de reescrita de si? E dentro desta contação toda, é possível pensar a clínica como um lugar de tecer ficções?

Palavras-chave: Escrita, Análise, Ficção, Narrativa, Conto.


ABSTRACT

This article is part of a doctoral research whose premise is to point the proximity between psychoanalysis and literature departing from the idea of the unconscious as a narrative construction and therefore fictional. Thus, the hypothesis I bring here is that narration is a necessity and a right of everyone, since it is in the act of recounting, I mean, in the act of creating narratives about oneself, that one situates his/her desire and stands before his/her fantasy. Thus, it is only through an implication by the narration that one can take over his/her reccountings and his life as author. Two questions then arise: can analysis be an experience of self-rewriting? And within this whole reccounting, is it possible to think of the clinic as a place of weaving fiction?

Keywords: Writing, Analysis, Fiction, Narrative, Reccounting.


 

 

O inconsciente é uma escrita - eis aí a ficção de si

Iannini em Estilo e verdade em Jacques Lacan, diz que a grandiosidade dos aforismos lacanianos se dá pela sua capacidade de colocar em um "semidizer, aquilo que parece como impossível de dizer" (2013, p. 257). Ora, a meu ver, o que Iannini (2013) sustenta em defesa dos aforismos lacanianos é justamente a aposta da clínica psicanalítica: a de que a medida da vida só pode ser inventada por aquele que a vive, através de um semidizer. É a partir disso que este texto tenta se desenrolar, ou seja, na tentativa sempre precária, mas necessária, de dizer alguma coisa sobre o impossível de se dizer, para recriar e sustentar nosso desejo de viver.

O que tentarei aqui defender vem a partir da clínica, do divã no qual me deito para falar, como do sofá no qual me sento para escutar. E sua relevância está no cerne da clínica psicanalítica, esta que se sustenta na escuta de algo que está para além do que pode ser visto, numa narrativa outra que só a saberemos parcialmente no momento do ato da fala. Sua relevância está na importância do inconsciente como construção narrativa e, portanto, ficcional. Para melhor compreender de que inconsciente este artigo parte, começo trazendo Antonio Cândido, sociólogo e crítico literário que, em seu texto Direitos humanos e literatura, afirma que "não há povo e não há homem que possam viver sem literatura, isto é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação" (1989, p. 112).

Cândido (1989) diz que ninguém passa um dia sem alguma forma de literatura, ou seja, sem algum tipo de criação poética, ficcional ou dramática, como um mero chiste, devaneio ou sonho, "talvez não haja equilíbrio social sem a literatura" (p. 112). Se não há como viver sem fabular, digo, se esta é condição para nos humanizarmos, devemos pensar a literatura como um dos direitos humanos básicos, aqueles que devem nos ser assegurados, já que sem eles não há como mantermos nossa integridade física nem psíquica.

Para compreender a proximidade entre inconsciente e literatura, retomemos o Seminário livro 6, onde Lacan narra como o inconsciente é escrito nos primeiros anos de vida de todo filhote humano, sendo uma resposta inventiva diante do enigma do desejo do Outro. Na introdução, Lacan (1958-1959/2016) apresenta o grafo do desejo, apontando como a constituição do sujeito se revela aí, na "constituinte da cadeia significante" (p. 19), "amarrada, presa, a certa função da linguagem" (p. 14). No primeiro andar está o estádio do espelho, momento em que a linguagem é imposta ao infans, desta imposição resultará uma identificação primária, marca que cada um carrega. Está aí o Isso sendo captado pela linguagem, a cadeia significante se formando por uma sincronia de significantes, ou seja, "o sujeito recebeu aqui a primeira chancela [seing], signum, de sua relação com o Outro" (pág. 22).

Na segunda etapa, temos o momento em que o sujeito apreende o Outro e produz algo diferente com isso. Se em um primeiro momento o que há é "a marca, a impressão deixada pela demanda sobre a necessidade" (p. 22), nesse segundo, há um apelo ao Outro em forma da pergunta "Che vuoi? Que quer você?" (p. 24), que gerará o "primeiro encontro com o desejo, o desejo como algo que é primeiramente o desejo do Outro" (p. 24). Surge nesse momento um processo de enunciação em que um deslocamento metonímico se inicia, produzindo onde havia um significante, o significado do Outro. Esta resposta é a marca que mostra que de dentro da experiência do desejo está sendo criada uma fantasia, marca simbólica de um discurso que se enuncia, discurso que é produção poética daquele que agora fala. É neste segundo andar que parece se localizar o problema que aqui trago, pois é diante desta apreensão do texto do Outro que o sujeito produzirá sua letra1. Produção que tomarei aqui como a primeira criação que realizamos na vida, digo. Flesler (2012) enfatizará que esta criação de si empenhada por cada sujeito ao dar sua resposta ao apelo do Outro, não ocorre de forma natural nem imediata, mas como Lacan (1958- 1959/2016) nos mostra neste seminário e ao longo de sua obra, ocorre em tempos - tempos de recriação do sujeito.

Em A psicanálise de crianças e o lugar dos pais, Flesler ainda afirma que é a partir da condição de incompletude humana (marcada pela falta de um objeto que nos satisfaça por completo nos três registros humanos: real, simbólico e imaginário), que a estruturação do sujeito se dará em tempos. Para a psicanalista, "o transcorrer do tempo depende da eficácia dessa recriação alternada do objeto" (p. 37) em cada um dos registros (R.S.I.). Flesler (2012) ainda dirá:

Dissemos que o sujeito não tem idade, mas tempos: tempos do Real, de reorientação dos gozos, tempos do Imaginário, que se realizam em trocas de cena; e tempos do Simbólico, nos quais se recriam, os jogos de palavra. (...) Mas esses tempos, não se produzem evolutivamente nem por geração espontânea. (p. 23).

Isso porque é diante da falta - se houver espaço na relação mãe-bebê para ela emergir e também se ela não emergir em demasia - que o sujeito sairá do seu lugar de objeto de investimento do Outro, e dará uma resposta sua, escrevendo em seu inconsciente um traço diferencial. É diante da falta que a criança toma a palavra para si, se dá voz. "O tempo do sujeito é o tempo de recriar-se fora do lugar em que estava originalmente colocado pelo Outro" (FLESLER, 2012, p. 99).

Flesler (2012) afirmará que em cada tempo de constituição do sujeito o humano precisará recriar sua relação com o objeto exigindo uma perda renovada para que haja uma redistribuição de gozo enlaçada e orientada pelo desejo. Caso contrário, o sujeito não se recria, mantém-se parado no tempo, já que "só há progressão de um tempo para outro se se engendrar uma alternância renovada entre esses tempos, no qual o objeto falta, e esse outro movimento, no qual o objeto se faz presente" (FLESLER, 2012, p. 27).

Os tempos do sujeito dependerão dos encontros e desencontros, ou seja, da experiência de presença e ausência - que cada humano terá com seus cuidadores. Flesler (2012) dirá que é a partir dessas vivências que sua capacidade recriativa e recreativa se inscreverão como traço diferencial, marca que faz da condição humana de dependência de um Outro real, algo a mais: produção poética daquele que a enuncia.

Cada ausência que os pais proporcionam, se não for demasiada, dará possibilidades para que a criança crie aí seu traço diferencial. Ou seja, só quando a criança puder frustrar os pais, não os satisfazendo completamente nem como objeto de amor nem como gozo nem como desejo, é que a criança poderá recriar seu lugar na dinâmica familiar. A recriação deste lugar introduz uma "marca diferencial como resposta ao Outro. Manifestação sensível da emergência de um traço distintivo do sujeito que, tendo surgido no campo do Outro, toma posição, ocupa seu lugar" (FLESLER, 2012, p. 98).

Em 1908 Freud escreveu em Sobre as teorias sexuais das crianças que essas primeiras invenções criadas pela criança para dar conta da realidade que a circunda serão responsáveis pela fantasia fundamental. Ou seja, serão a base para a estruturação psíquica do sujeito, para a maneira como o sujeito investi- rá no amor, nos seus modos de gozar e desejar. Jerusalinsky em A criação da criança afirma que para se dar a passagem do ser falado ao ser falante, a criança precisará criar, "produzir uma coisa que até então não existia" (FREUD, 1908[1907]/1996, p. 258), produção que se fará como uma escrita cifrada. Tal escrita é inscrição psíquica que Lacan, em seu texto Lituraterra, afirma fazer do inconsciente uma escrita.

Em A instância da letra no inconsciente, Lacan discorre sobre essa letra pessoal, feita com o texto do Outro - a primeira escrita de todo sujeito. A partir deste conceito, me ponho a questionar sobre as possibilidades que cada um tem de se recriar em análise. A recriação em análise é compreendida aqui de maneira diferente da criação da letra - empreitada no primeiro tempo de vida do infans. O prefixo remarca não só essa diferença, mas os limites dessa empreitada. Para pensar isso, compreender o inconsciente como uma escrita que é criação se torna fundamental.

Lacan (1968) retoma a ideia freudiana do inconsciente para dizer que o saber inconsciente não é descoberto, mas inventado pelo sujeito através de seu dizer. Para pensar como essa noção de inconsciente já estava em Freud, retomemos seu texto chamado Construções na análise. Neste, Freud (1937/2017) traz o caráter de eterno presente do inconsciente ao falar que o vivido na infância continua se reatualizando constantemente.

Freud (1937/2017) começa se questionando sobre qual seria a tarefa do analista:

O que então é a sua tarefa? Ele terá de inferir o esquecido a partir dos sinais por ele deixados, ou, mais corretamente, ele terá de construir o esquecido. Como, quando e com que explicações ele comunica as suas construções ao analisando é o que estabelecerá a ligação entre as duas partes do trabalho analítico, entre a sua parte e a do analisando.
O seu trabalho de construção, ou, se preferirmos de reconstrução, mostra uma ampla coincidência com o do arqueólogo, que escava uma morada destruída e soterrada ou uma construção do trabalho (p. 367).

Freud (1937/2017) ao se utilizar do termo construção enfatiza o caráter de criação existente no ato de interpretação do analista. E ao comparar o trabalho do analista ao do arqueólogo nos mostra que essa criação parte de um fato, mas como já bem desenvolvido em sua teoria através do conceito de fantasia, os fatos que marcam o desenvolvimento da psique do indivíduo são menos os reais, ligados à realidade material, e mais os ligados à realidade psíquica. Em Um estudo autobiográfico Freud diz sobre como foi essa descoberta, ou seja, o do desenvolvimento da sua teoria em torno da noção de fantasia: "os sintomas neuróticos não estavam diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas de desejos, e que, no tocante à neurose, a realidade psíquica era de maior importância que a realidade material" (1925/1966, p. 40).

Ainda sobre o conceito de construção trabalhado por Freud (1937/2017), Dunker e Zanetti (2017) afirmam que a construção opera justamente naquele fragmento da história do sujeito que está recalcada e que opera em ato na sua vida. Fragmento que ao faltar impede o sujeito de reconhecer a causalidade da neurose. Por esse caráter, elas possibilitam a produção de "elos associativos necessários à construção da fantasia" (p. 27). Os autores ainda afirmam que a construção (que parte ou não do analista) é a reconstrução da fantasia funda- mental (enquanto construção e reconhecimento dela) ao mesmo tempo que é sua desconstrução; posto que quando o analisando começa a reconhecer sua fantasia, simultaneamente ele começa a desconstruí-la.

Sobre a estrutura destas, Freud (1937/2017) afirma que por tomarem a história do sujeito como um todo, necessita de um certo tempo em análise a fim de que se reúna maior quantidade de elementos do caso. Para Dunker e Zanetti (2017) "o critério de verossimilhança sugere que a construção seja uma conjuntura ou ficção, autorizada quando se chega ao limite do material lembrado" (p. 27).

Sobre esta estrutura de ficção, ela tem este caráter por dois motivos. Um por remeter à resposta que o sujeito inventou para lidar com o "encontro traumático com o desejo do Outro e a sexualidade" (DUNKER; ZANETTI, 2017, p. 27), por outro lado, é quando a rememoração falha, que a construção vem como tentativa de propor algo novo, de ficcionalizar o que até então tentava ser lembrado, documentado.

Sobre isso, Lacan, no Seminário livro 7, cita o filósofo Jeremy Bentham (1748-1832) dizendo que no decurso dessa discussão o termo real é tido como oposto ao termo inglês fictitious. É assim que Lacan afirma que fictitious não se traduz por ilusório nem enganador e que se falamos fictício é no sentido de "que toda verdade tem uma estrutura de ficção" (p. 24). Para o psicanalista, a invenção freudiana encontra-se não no lado da realidade, mas totalmente do lado da ficção, sendo esta a característica que suporta o inconsciente:

O fictício, efetivamente, não é, por essência, o que é enganador, mas, propriamente falando, o que chamamos de simbólico. Que o inconsciente seja estruturado em função do simbólico, que aquilo que o princípio de prazer faz o homem buscar seja o retorno de um signo (...) é a importância disso que é preciso medir no pensamento freudiano (p. 24).

A verdade do inconsciente do sujeito aparece com esse caráter de ficção, onde a narração contada em análise se faz importante menos pelo seu caráter de fidedignidade ao fato passado - a chamada realidade - e mais como movi- mento de cercear o real de sua história, daquele fragmento que o impede de enxergar sua fantasia, digo, sua construção ficcional. Assim, a noção de construção em análise, como bem apontam Dunker e Zanetti (2017), enlaça o terreno da realidade com o do real, tomando esse caráter de ficção justamente porque é assim que o inconsciente se estrutura, como nos mostra o próprio conceito de fantasia. E é justamente isso que o neurótico não enxerga, digo, que a realidade que ele vive - a forma como vê o mundo e se porta nele - ao invés de fixa, é fictícia.

Ainda no Seminário livro 6, Lacan dirá que é "no nível do desejo que o sujeito se conta" (p. 438). Observem a grafia que Lacan (1958-1959/2016) dá ao pronome reflexivo "se", pois é disso que trato aqui, dessa implicação de si no que está sendo contado. Se Lacan (1958-1959/2016) afirma que é no ato de se contar que o sujeito reconhece seu desejo, é nessa contação que ele assume seu lugar ativo na sua narrativa de vida, podendo recriar traços de sua história, inventar partes dela.

Isso porque no ato de se contar em análise o sujeito começa a questionar os significantes que o alienaram, assumindo então que a narrativa que conta, desloca, reconta, inventa, tem caráter de ficção. O dizer cria um conto, vários contos, uma narrativa que cumpre certas funções, dentre elas a de situar o sujeito da sua fantasia e através dessa implicação pela narração a de assumi-la como autor (e por que não podemos dizer aqui autor nos termos foucaultianos, ou seja, aquele que dentro de um discurso, transgride-o, criando sua própria lei?)2.

O que a experiência clínica nos mostra é que no ato de se contar em aná- lise, o sujeito pode dar seu giro ético, saindo da posição de demanda e suposição do desejo do Outro, para um mais além da escuta do sintoma, da fantasia e da interpretação. Ou seja, com a movimentação dos significantes que o constituem, ele começa a reconhecer a inconsistência de seu ser, sua parte real. Assim, a partir de seus ditos, contas e contações ele começa a sustentar seu dizer como ato, mesmo este sendo carregado de equívocos e não-saberes. Começa então a pagar sua conta à vista, a assumir o real do seu ser, para se pôr como autor de uma autêntica narrativa.

Ítalo Calvino (2015) afirma que é comum cobrar que uma narrativa diga tudo, seja explicativa e pura. É isto que o analisando demanda ao analista. Ele demanda aprender, com quem supõe um saber, a construir uma narrativa coerente. Mas como Calvino (2015) recorda, "narrar é narrar, e a narrativa, quando se empenha em contar, já tem (...) seu modo de incidir no mundo" (p. 21), já está contaminada, e é com o "espúrio" (p. 21) mesmo que o analista, como o escritor, se põe a fazer. E se há algo que o analista pode transmitir ao analisando, passa por essa contação que se supõe infinita - como Freud nos lembrou em Análise finita e infinita - para uma assunção desse semidizer. O fim de uma análise enquanto um saber inclui o não-saber e faz disso um saber-fazer com o real, uma invenção posta em ato que faz da fixação fantasística, uma ficção que leva em conta o pior. Como Iaconelli (2016) afirma ao narrar os fins e confins de sua análise, "não nos curamos de nosso in- consciente, com sorte, o desfrutamos" (p. 258).

A aposta que trago é que o ato de se contar em análise parte de uma narração fixa para uma possível abertura a outras narratividades fictícias. Digo, no discurso do sujeito está a forma como ele fantasia a diferença sexual, está a ficção que criou para narrar sua vida, seu mito. É isso que tentamos resgatar ao retomarmos primeiramente o conceito de inconsciente como uma escrita inventiva do sujeito. Assim, diante da ausência de um ser dado, que nasça pronto ou que tenha uma essência, o sujeito cria uma versão que se torna sua referência. Mas esta versão tem um ideal como ponto de partida - o Outro. Será Lacan quem dirá no Seminário 7 que o final de uma análise seria o caminho da père-vèrsion à assunção de uma versão que tenha como referência não mais o pai, mas o inconsciente.

Dominique Fingerman (2007), para falar do momento do passe, recorda que o dispositivo descreve dois momentos diferentes que ocorrem em análise. O primeiro, onde o analisando se põe a desrecalcar o possível da pulsão, reto- mando sua cadeia significante: ele se põe a narrar sua história e a construir pela transferência sua fantasia. É o momento onde vemos um predomínio do simbólico, já que a repetição toma lugar para fazer série, e a consciência da alienação ao Outro vai mostrando o lugar do narcisismo na constituição da cadeia significante do sujeito.

Este primeiro momento, afirma Fingerman (2007), se trata da consciência daquilo que te aliena, inclusive de retorno e fortalecimentos das bases narcísicas, já que como nos recorda Pinheiro (2001), "construímos o edifício narcísico para podermos um dia aceitar a castração" (p. 74).

Já no segundo momento de uma análise, Ramirez e Assadi (2017) dirão que é onde surge a possibilidade de o sujeito se sustentar naquilo que lhe falta, assumir assim sua castração de uma outra forma, ancorando-se não mais no objeto, e sim na sua solidão. Solidão que é marca do real, mas lembremos que este não anda só, anda enlaçado ao simbólico. Assim, esse segundo momento é tempo de fazer algo com isto que resta de sua análise, já que "há um resto que é real, amarrado à construção significante" (RAMIREZ; ASSADI, 2017, p. 91).

Dunker, em Estrutura e constituição da clínica psicanalítica, aproxima (ressaltando também as diferenças) o cuidado de si da cultura grega com o percurso de uma análise. Há uma ideia de Sêneca neste livro que nos é rica para pensar esse momento de passagem que une o passe ao fim de análise, ou seja, que sai dessa contação sem fim para a invenção de um possível final de análise. Sêneca pensa o cuidado de si como uma espécie de liberdade do passado e do futuro. Liberdade que para ser obtida, requer uma desaprendizagem da infância. Sobre isso, Dunker (2011) o cita em referência a uma Carta de Sêneca a Lucílio: "Almejo-te um desprezo generoso por todas as coisas que teus pais te desejaram em abundância" (p. 118). Poderíamos pensar esse desprezo pelo que nos foi ensinado, a essa passagem crucial na análise onde o sujeito aos poucos vai se separando da cadeia que lhe constitui?

Isso que o sujeito fará após tanto narrar sua história, tanto se encontrar e desencontrar em seus ditos passa por essa desidentificação com o supereu, com os ideais que o constituíram. É esta desidentificação que possibilita a destituição subjetiva, ou seja, reconhecer-se dessiderado, esvaziado "da consistência dada pelo cálculo neurótico do gozo" (FINGERMAN, 2007, p. 157), é o passo fora da série de significantes que o alienaram.

Se num primeiro momento de análise temos uma falação sem fim. É essa fa- lação que possibilita ao sujeito contar-se e a partir dessa conta questionar os significantes que o alienaram, assumindo então que a narrativa que conta tem caráter de ficção. É quando o analisando toma consciência da fantasia que ele criou para dar conta do real que o constitui, que o mesmo pode assumir uma outra verdade (liberta do cuidado do outro), já que a contação toda revelou a "deformação da fantasia; isto é, provou que a fantasia é impotente ao suturar a impossibilidade, ela é um plano furável, ou seja, atravessável" (FINGERMAN, 2007, p. 157).

Atravessar a fantasia, para Fingerman (2007) seria reconhecer justamente aquilo que ela insiste em recalcar, que o gozo do Outro não existe; e o produto desta descoberta seria então a mudança de posição do sujeito que mostra que diante de sua fixação com a fantasia, é possível ficcionalizar outras narrativas. Digo, é possível modificar sua modalidade de gozo, suportando o impossível e a contingência, ato que descompleta o ser e seu saber, revelando que "a única garantia era apostar no que só a análise pode suportar, ou seja, como nos ensina Lacan, que 'o não sabido se ordene como moldura do saber'. Uma aposta, portanto" (FRANCO, 2007, p. 172).

Assim, o final de análise seria essa possibilidade de o sujeito se sustentar enquanto de-ser em sua face real também. Para isso, faz-se necessário que ele desacredite em sua essência, digo, que ele vislumbre em sua contação tanto sua alienação quanto sua castração. É isso que lhe possibilitará brincar com o cará- ter de ficção que cerne sua existência. Trata-se de deixar de tentar ser um, aquele pelo qual se idealizava - o tal ideal de eu - para brincar de ser vários, de construir semblante, de bancar seu lado escritor. Escritor que todos somos de nosso próprio inconsciente.

Sobre esse momento de final de análise, Mourão (2004) dirá:

É a saída que significa ir adiante, quer dizer, admitir que o Outro como tal, como encarnado, não existe. Teoricamente, essa saída é denominada destituição subjetiva: destituição do Outro, do saber do Outro. (...) Portanto, ela implica desmontar esse saber no qual o sujeito estava estruturado e, no seu lugar, colocar um eu não sei [sobre o ser], ou seja, um não saber.
A partir disso, cria-se para esse sujeito a possibilidade ou a necessidade de ter que inventar um saber para a sua falta de senti- do - invenção a partir de suas próprias insígnias (p. 2).

A partir da fala de Mourão (2004) é possível compreender o final de análise como uma abertura para a reinvenção de outras verdades inconscientes que guiem nossas vidas, agora tendo "suas próprias insígnias" (p. 2) como referência. Insígnias que darão notícia de uma mudança na sua modalidade de gozo, fruto de um "deparar-se com o impossível - verdadeiro furo da estrutura: o gozo do Outro que não existe" (FINGERMAN, 2007, p. 158).

Se na ausência de um sentido, a criança cria um sentido a partir do que o Outro lhe ofertou, o percurso de análise seria a possibilidade de, se havendo com o furo desta criação, recriar, mais uma vez, o impossível da vida. Criação através de um semidizer que possibilite enlaçar o impossível de ser contado a um possível conto. Agora, levando em conta, o que temos de pior: o real e a castração.

 

Concluir para continuar

Se o começo deste texto enfatizou a relevância da literatura na vida de qualquer sujeito, dado que a realidade humana, como Freud (1908[1907]/1996) revelou, é mais fictícia que factual; foi no desenvolvimento dele que houve uma teorização a partir do que a clínica psicanalítica nos mostra: que é no ato de se contar que o inconsciente pode ser reinventado incansavelmente. Isso porque a linguagem que o funda, como Lacan (1958-1959/2016) insistiu em dizer, tem um furo real, permitindo que a narrativa seja atravessada, recontada e transformada.

Assim, se foi com Freud que descobrimos a importância da vida psíquica e o caráter de fantasia que esta possui, foi com Lacan que demos prossegui- mento à descoberta freudiana. Quando Lacan, em O Seminário 6, desenvolve a fórmula da fantasia, compreendemos ali que o inconsciente se cria em torno de uma narrativa ficcional, construída para dar conta do desamparo funda- mental. Mas quais os efeitos disso na clínica? Ora, se podemos tecer narrativas, podemos então reconstruí-las em um processo de análise.

Lacan (1976) afirma que o analisante, junto com o analista, aprende a trapa- cear a língua, a cortar seus excessos, a subvertê-la, já que se reconhece como personagem e autor do romance que escreve. Saber fazer com a língua (savoir y faire), se aproveitando do real que ela se funda, tirar proveito dos equívocos, da ausência de um saber fixo, para enfim, ficcionalizar o que é impossível de ser todo contado numa vida. A análise nos convoca a fazer como as crianças: brincar com o que lhes falta, construir fantasias a partir da sempre precária realidade.

Retomo assim, por último, mas não por definitivo, as perguntas colocadas no resumo deste trabalho. São elas: fazer análise pode ser uma experiência de re-escrita de si? E dentro desta contação toda, é possível pensar a clínica como um lugar de tecer ficções? Ora, se dentro de cada pergunta já está a hipótese de uma resposta, trago a aposta de que cada sujeito que se submete à prática analítica tem condições, por sua conta e risco, de responder tais questões. No mais, deixo minha hipótese no próprio desenvolvimento deste artigo, e espero que a dúvida do irrespondível, suscite o movimento desejante de saber mais sobre isso.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 19/12/2018
Aprovado para publicação em: 15/05/2019

Endereço para correspondência
Bárbara Taveira Fleury Curado
E-mail: btfcurado@gmail.com
Eliana Rigotto Lazzarini
E-mail: elianalazzarini@gmail.com

 

 

*Doutoranda em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UNB). Bolsista do CNPQ, Brasília, DF, Brasil.
**Doutora em Psicologia pela Universidade de Brasília (UNB). Professora do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UNB), Brasília, DF, Brasil.
1Letra: conceito que Lacan desenvolve no texto Lituraterra (em O Seminário livro 18), afirmando ser o que faz litoral entre gozo e saber, corpo e linguagem. Borda que no corpo do infans possibilita que ele faça a passagem daquilo que inscreve em seu corpo - constituindo-o - para um ser que produz algo com isso, logo, fala.
2Me refiro aqui ao texto O que é um autor? de Michel Foucault.

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