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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.41 no.41 Rio de Jeneiro jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Psicanalista, o artífice das palavras: uma reflexão a partir de três concepções do tempo

 

Psychoanalyst, the craftsman of words: a reflection from three conceptions of time

 

 

Felipe de Lima e FerreiraI*; Eliana Rigotto LazzariniI**

IUniversidade de Brasília - UnB - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo visa estabelecer aproximações com o fazer do psicanalista e do artesão ourives no que tange às formas de vivenciar o tempo, suas respectivas formações e atividades. O tempo foi o eixo norteador do trabalho; usamos três concepções do tempo: tempo serial, tempo convivial e tempo de salto. Em seguida, articulamos esses modos de vivenciar o tempo com a duração das análises e a formação tanto do psicanalista como do artesão ourives. Ao final do artigo, fazemos algumas reflexões sobre a relevância da vivência do tempo de salto em momentos importantes para as duas atividades, do artesão ourives em momentos de criatividade e inventividade e do psicanalista na clínica, na formação e no processo de análise pessoal.

Palavras-chave: Psicanalista, Artesão, Tempo, Formação.


ABSTRACT

The present article aims at establishing approximations with the psychoanalyst's and the goldsmith craftsman's process in relation to the ways of experiencing time, their respective formations and activities. Time was the guiding axis of the work; we used three conceptions of time: serial time, friendly time and leaping time. Then, we articulate these ways of experiencing time with the timespan of the psychoanalyses and the formation of the psychoanalyst as well as the goldsmith craftman's. At the end of the article, we make some reflections about the relevance of the experience of leaping time in important moments for both activities, of the goldsmith artisan in moments of creativity and inventiveness and of the psychoanalyst in conducting his/her analyses, in his/her formation and in the process of personal analysis.

Keywords: Psychoanalyst, Craftsman, Time, Formation.


 

 

Introdução a três concepções do tempo

Este artigo visa articular algumas reflexões sobre a formação e a prática do psicanalista com as do artesão ourives cuja atividade-fim é transformar matéria-prima, geralmente ouro e prata, em uma obra de arte. Para tal tarefa investigamos os modos de transmissão da atividade do artesão ourives e iremos fazer algumas articulações com o fazer do psicanalista. O eixo norteador da discussão é a vivência do tempo e o modo de transmissão da atividade artesanal, para podermos pensar no fazer do psicanalista e sua formação. No início do trabalho apresentamos alguns conceitos da sociologia sobre a vivência do tempo em diferentes modos de organização da sociedade; na sequência discorremos sobre a atividade do artesão ourives e articulações com a teoria e a prática psicanalíticas. Tendo isso em vista, o tempo foi usado para analisar a estrutura interna da atividade do psicanalista e a do artesão ourives.

A atividade artesanal, mais especificamente a atividade do ourives, existe há mais de cinco mil anos. Tal ofício artesanal não é escolarizado, nem formalizado, cuja transmissão acontece na relação tutorial de um aprendiz com seu mestre. Os mestres são como guardiões da tradição de um ofício, responsáveis pela transmissão de geração em geração dos conhecimentos concretos e práticos da ourivesaria. Constatamos os diferenciais deste ofício, quais sejam: a abertura ao diálogo, respeito ao tempo de aprendizagem e a singularidade de cada sujeito são partes integrantes e fundamentais do processo de formação. Além do mais, o genuíno interesse pela atividade é a marca do bom aprendiz (RAAD, 2013).

O conhecimento por meio da prática, ou seja, o "aprender fazendo" faz parte do processo de transmissão desse saber e atividades não escolarizadas, como a ourivesaria, é um saber prático desde sua origem. É saber tácito, não codificado, não formalizado em documentos, é algo que se transforma em hábito. Nesse sentido Sennett (2009) argumenta que:

Os artífices orgulham-se sobretudo das habilidades que evoluem. Por isso é que a simples imitação não gera satisfação duradoura; a habilidade precisa amadurecer. A lentidão do tempo artesanal é fonte de satisfação; a prática se consolida, permitindo que o artesão se aposse da habilidade. A lentidão do tempo artesanal também permite o trabalho de reflexão e imaginação – o que não é facultado pela busca de resultados rápidos. Maduro quer dizer longo; o sujeito se apropria de maneira duradoura da habilidade (SENNETT, 2009, p. 111).

A história nos relata considerável mudança no modo de vivenciar o tempo, que não mais se destaca pelos elementos marcantes como a luz do sol para distinguir as atividades cotidianas, ou a vida no campo percebendo mudanças de estação. O tempo, que é uma forma de regulação da vida social, passou a ser demarcado pelos sons de um ponteiro de relógio, ou apito de fábrica, significando uma mudança brusca na cultura humana.

A atividade industrial é dominada pelo tempo serial, enquanto a atividade artesanal se estrutura, conforme o exame do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, em torno do equilíbrio de três concepções de tempo: tempo serial, tempo convivial e tempo de salto. Cada uma dessas concepções está associada, respectivamente, a um modo de organização da sociedade: a economia, a isonomia e a fenonomia (RAMOS, 1981).

A economia é um contexto organizacional voltado para prestação de serviços e/ou produção de bens; se caracteriza por ser ordenado por certas características como monopólios, firmas competidoras, organizações sem fins lucrativos e agências (RAMOS, 1981). Posto isto, nossa cultura regida por um modo de organização da sociedade pela via econômica pode ser pensada como monocrônica, pois nela prevalece o tempo serial, diferentemente do policronismo de outras culturas, como por exemplo algumas comunidades indígenas. Sobre a prevalência do tempo serial na economia, Ramos (1981) afirma:

As economias são cenários em que prevalece o tempo serial e, desse modo, são incapazes de atender às necessidades humanas cuja satisfação envolva uma experiência de tempo que não possa ser estabelecido em séries. A sociedade centrada no mercado tende a serializar o tempo de seus membros de acordo com sua orientação temporal e sai-se muito bem nessa tarefa, dessa forma desenvolvendo neles uma dirigida incapacidade para se engajarem em esforços que requeiram outros tipos de orientação temporal (RAMOS, 1981, p. 168).

Seguindo com as definições conceituais sobre os modos de organização da sociedade, a isonomia é definida por um contexto em que os membros sejam imbuídos de um caráter igualitário: não existe hierarquia, e o objetivo é que as pessoas se engajem em relacionamentos interpessoais que visem a boa vida do conjunto (RAMOS, 1981). Nela, prevalece o tempo convivial, que é o tempo de relação face a face, em que a experiência de cada sujeito estimula as pessoas a interagirem, a confiarem umas nas outras e expressarem com autenticidade seus sentimentos.

O terceiro modo de organização da sociedade é a fenonomia, um sistema social que pode ser dirigido e iniciado por um indivíduo ou um grupo pequeno, é marcada pela liberdade de escolha de cada indivíduo em relação ao uso do seu tempo e a forma como vai usá-lo. Esse tipo de organização social busca desburocratizar as relações humanas privilegiando experiências singulares. Na fenonomia, o tempo de salto é o impulso temporal, sendo um tipo de experiência muito pessoal na busca do indivíduo pela criação e pelo esclarecimento. É, portanto, um momento importante na vida de uma pessoa criativa. Tempo de salto emerge do conceito de Kairos, palavra grega que designa um tempo não quantificável que faz parte das percepções humanas do processo que conduz a eventos críticos e jornadas autoexploratórias. Sobre a fenonomia, Ramos (1981), relaciona-a com a atividade artesanal:

A fenonomia é o espaço do exercício da criatividade individual e a ação das pessoas é automotivada, autônoma e responsabilizada. Ela permite a seus membros o máximo de opção pessoal e o mínimo da subordinação a prescrições operacionais formais. Por isso, é também vinculada ao tempo antropológico. Como exemplo de fenonomia a organização do trabalho do artesão, aquele que possui, em sua casa, espaços em que exerce um ofício em que sua criatividade é o fator fundante de sua produção. A fenonomia é o espaço da aventura artística e criativa, em que a experiência do tempo de salto é vivenciada em momentos críticos de ruptura (RAMOS, 1981, p. 151).

Em nossa sociedade capitalista a vivência do tempo convivial e do tempo de salto, de forma geral, não é estimulada, sendo valorizado o tempo serial, que também é o que predomina nas atividades escolarizadas e cursos de formação profissional (RAAD, 2013).

Freud em seu trabalho sobre Análise terminável e interminável (1937/2018) comenta sobre a duração das análises, e que a lentidão de um processo de análise permite que o paciente se aproprie de forma mais duradoura de suas conquistas nesse processo e que uma análise é algo que consome tempo. Nesse texto criticou Otto Rank por tentar adaptar a psicanálise à pressa da vida norte-americana, a partir da premissa de que a verdadeira fonte das neuroses era o trauma do nascimento e que bastavam alguns meses de tratamento para eliminar toda neurose, ou seja, adaptar a psicanálise à lógica do tempo serial e, por que não? à lógica capitalista.

Hoje no Brasil recebemos analisantes angustiados querendo saber em quantas sessões vão conseguir curar o seu sofrimento ou manifestam de alguma maneira uma insatisfação em relação à duração do tratamento. Interessante notar que Freud se via às voltas com essas questões desde o início da sua obra até em seus últimos escritos. Sobre o tempo despendido em um processo de análise escreve:

Os senhores terão percebido, por algumas de minhas observações, que o tratamento analítico possui vários atributos que o distanciam de uma terapia ideal. Tuto, cito, iucunde [seguro, rápido, agradável]; a indagação e a busca não apontam para resultados rápidos, e a menção da resistência deve levá-los a esperar coisas desagradáveis. Sem dúvida, o tratamento psicanalítico faz grandes exigências tanto ao paciente como ao médico; do primeiro requer o sacrifício que é a sinceridade total, consome-lhe muito tempo e, portanto, é também custoso; para o médico, igualmente toma tempo e é um tanto laborioso, por causa da técnica que ele tem de aprender e praticar (FREUD, 1905/2016, p. 339-340).

Freud nessa questão se mantém firme ao sustentar o posicionamento de que se for para atender as exigências mais rigorosas no processo psicanalítico, a estrada não nos conduzirá a um abreviamento de sua duração. Cita alguns casos mais graves de doença que permaneceram com ele para o tratamento contínuo e que o objetivo era exaurir as possibilidades de doença e ocasionar profunda alteração da pessoa (FREUD, 1937/2018).

A hipótese que fazemos é de que a psicanálise, assim como a atividade artesanal, também pode ser pensada a partir da organização dos três tempos de Ramos. Por exemplo, a atividade artesanal possui tempos bem definidos, sendo o tempo serial orientador de diversos processos físicos, como burilar, cortar, amassar e expandir as peças. Processos químicos como a limpeza com ácido sulfúrico em que a peça deve ficar imersa por determinado tempo para poder ser clareada, ou mesmo o tempo de fogo para que uma peça possa derreter para ser remodelada. Portanto, para o ourives, existem tempos estreitos e rígidos que são aprendidos conforme sua prática. É um tipo de conhecimento prático desenvolvido ao longo de sua experiência para que domine essa habilidade, que envolve o tempo serial e essa lógica própria.

As sessões de psicanálise também obedecem, em parte, a lógica do tempo serial, pois os atendimentos podem ser em horários pré-determinados, escolhidos alguns dias da semana, uma certa frequência e com durações mais ou menos fixas. Freud no caso do Homem dos Lobos determinou um dia para o final do seu tratamento, fez isso com objetivo específico de acelerar o processo e adverte que foi um uso pontual para atender a uma necessidade específica, de certo modo operou o manejo transferencial a partir do tempo serial (FREUD, 1937/2018).

 

A formação artesanal do psicanalista e do artífice

Pudemos perceber durante a pesquisa com a atividade artesanal que a vivência do tempo convivial é importante durante a formação do artesão ourives. A relação entre mestre e aprendiz é marcada por um respeito do outro como igual, alguém que já passou por esse momento de estar na posição de aprendiz e que este, mesmo sendo um aprendiz, tem condições de ensinar algo novo para o mestre, independentemente da habilidade manual, inventividade e do tempo de experiência de cada artesão ourives. O ambiente de trocas de experiências e principalmente de confiança são fatores fundamentais, até por trabalharem com uma matéria-prima valiosa como o ouro, a prata e as pedras preciosas, itens de alto valor financeiro e também emocional para algumas pessoas. A relação de confiança entre um analista e o analisante é fator fundamental para que um trabalho de análise possa se dar; sem ela dificilmente a transferência se estabelece. A matéria-prima de um trabalho de análise pode ser compreendida como as palavras trocadas e elaboradas a cada sessão, relação que para além da troca financeira permite que o sujeito possa descobrir seus próprios tesouros.

Isso nos permite pensar o tempo convivial na vida de um psicanalista de diversas maneiras. Por exemplo, nos estudos teóricos, quando o psicanalista frequenta grupo de estudos, cursos e congressos, estabelece-se uma relação sem necessariamente haver uma hierarquia formal. Nesses espaços as trocas podem ser proveitosas pois cada integrante desse grupo tem uma experiência diferente da do outro, tem um percurso de estudo distinto, o que permite um tipo de vivência do tempo semelhante aos relatados e vivenciados dentro das oficinas.

O tempo de salto na atividade da ourivesaria pode ser pensado a partir dos diversos problemas complexos que surgem na elaboração de peças solicitadas por parte dos clientes, mas sobretudo, nos momentos em que se faz necessário o uso de criatividade e inventividade para desempenhar sua função. Para poder resolver esses problemas os artesãos chegam a inventar algumas ferramentas para realizarem o serviço, como por exemplo, um aro de bicicleta para auxiliar na produção de algumas peças. O tempo de salto é marcado por uma ruptura do modo de funcionar, como uma inspiração que teria ligação direta com a promoção da criatividade. Alguns ourives trabalham com a criação e invenção de novas peças, trabalhos que são verdadeiras obras de arte.

O psicanalista também está às voltas com essas questões colocadas na atividade da ourivesaria. Primeiro porque lida sempre com algo novo na clínica, a demanda de cada sujeito é diferente da do outro e, quase como um artífice, o psicanalista busca criar nessa relação possibilidades para que o analisante construa o seu próprio percurso rumo ao saber inconsciente e a novas invenções de si mesmo. Inclusive podemos pensar na constante formação do analista, pois como o artesão que sempre é demandado a produzir uma nova peça, o psicanalista terá sempre um novo caso, uma nova história com a qual nunca tinha se deparado. Como afirma Jorge "a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica" (JORGE, 2017, p. 65).

Interessante pensar na questão da não formalização da atividade do ourives durante milênios e o quanto ela ainda foi preservada com uma forma de transmissão oral e também prática. Isso nos remete à complexidade que envolve a formação do psicanalista que hoje também, de certa forma, não possui uma formalização, digo no sentido de uma regulamentação específica, algo que vem sendo discutido dentro das instituições psicanalíticas e inclusive no âmbito governamental no sentido de regulamentar a profissão do psicanalista. Questão polêmica e que tem gerado debates interessantes (PIMENTEL, 2010).

Em alguma medida, o psicanalista se forma como se forma o artesão, pois um aprendiz em uma oficina é supervisionado pelo mestre da oficina e o psicanalista em formação é supervisionado também por um profissional mais experiente. Portanto, ambos se formam em suas respectivas "oficinas". Aparentemente, o desejo de grande parte dos psicanalistas é que essa atividade permaneça artesanal, já que se trata de um aprendizado que está sempre sendo renovado e dificilmente pode ser regulamentado (PIMENTEL, 2010). O fazer do psicanalista envolve tanto uma dimensão teórica quanto uma dimensão prática. A formação do analista se dá no tripé: análise pessoal, supervisão e estudo teórico (FREUD, 1919/2009).

Na Idade Média, para que um aprendiz de ourivesaria pudesse se tornar mestre, existia um critério claro que era a prova de obra-prima, que consistia em o aprendiz conseguir produzir uma peça que tivesse um certo nível de dificuldade, e tivesse suas características aceitas e reconhecidas por seu mestre; assim o aprendiz também se tornava um mestre nessa arte, e poderia ser reconhecido em outras localidades pela qualidade e pelas características da sua produção artística. Na atualidade, para que um aprendiz venha a se tornar um mestre na ourivesaria geralmente tem que conviver com seu mestre para desenvolver as habilidades e conhecimentos para exercer o ofício. Leva-se alguns anos para que um aprendiz incorpore todas as habilidades para desempenhar essa atividade complexa; sempre se destaca que cada aprendiz se desenvolve no seu próprio tempo e que o tempo que leva a formação de cada ourives não tem relação direta com a qualidade com que ele desempenha sua função. Esse trabalho envolve noções de física, química, habilidades manuais, noções estéticas e tantas outras (RAAD, 2013).

Importante notar que um fator determinante para que ele possa progredir é aprender com os erros, fato bastante valorizado nas oficinas dos artesões ourives, pois é o único meio para desenvolver as habilidades necessárias para exercer a profissão (RAAD, 2013). Grande parte do desenvolvimento teórico de Freud se estrutura a partir das elaborações e reelaborações dos seus casos clínicos e suas produções teóricas. Nesse sentido podemos pensar que o imprescindível para a formação de um psicanalista é aprender com seus próprios erros e principalmente valorizar a possibilidade de analisá-los, pois é justamente em sua análise pessoal que vai ter que lidar com as manifestações do seu inconsciente em seus atos falhos, lapsos, sonhos e chistes.

A formação do psicanalista é penosa e leva tempo. No texto sobre Análise terminável e interminável (1937/2018) Freud aponta que para que um processo de análise chegue a um fim, o psicanalista deve ter conseguido atravessar as fragilidades de sua personalidade por meio de uma análise dos seus próprios erros e equívocos, para isso são necessárias perícia e paciência. Segundo o autor "os psicanalistas são pessoas que aprenderam a exercer determinada arte e, ao lado disso, podem ser indivíduos como os outros" (FREUD, 1937/2018, p. 318).

Aí está uma maior complexidade por parte da atividade do psicanalista, pois este não está lidando somente com o inconsciente do analisante, mas também com o seu próprio. Nesse sentido Freud é categórico ao falar da importância da análise pessoal para o psicanalista, pois se em alguma medida existe o desejo do psicanalista de que seus analisantes se engajem no processo psicanalítico, ele precisa ter conseguido fazer isso por si mesmo. Sendo assim, podemos pensar que a prova da obra-prima do psicanalista pode ser a de ter passado por um trabalho psicanalítico, para assim poder reconhecer no outro aquilo que uma vez vivenciou no divã. Como diz Jorge sobre a importância da análise pessoal "nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios complexos e resistências internas" (JORGE, 2017, p. 26).

Parece, então, que para estar no lugar de psicanalista ou conduzir um aprendiz em uma oficina, algo relacionado à própria experiência e às vivências desses especialistas são fundamentais para que o processo se desenvolva. Aproximar o próprio fazer do psicanalista com o fazer do artesão indica que o analisante chega para o processo de análise como uma pedra bruta a ser lapidada. Em vez de usar maçarico, lima e martelo, usamos palavras. Essa comparação foi feita por Freud ao afirmar que o processo de análise é um processo de tirar, como em uma escultura, per via di levare :

Já a terapia analítica não deseja acrescentar ou introduzir algo novo, mas sim retirar, extrair, e para isso cuida da gênese dos sintomas doentios e do contexto psíquico da ideia patogênica, cuja remoção é seu objetivo. Por esse caminho de investigação ela fomentou significativamente a nossa compreensão (FREUD, 1905/2016, p. 337).

Um ourives, em alguns momentos, não consegue determinar o tempo de que vai precisar para produzir uma peça nova, pois precisa estudar como fazer, analisar os materiais e desenvolver uma estratégia, ou seja, não é regido pelo tempo serial. O psicanalista também se vê às voltas com essa questão do tempo, pois cada sujeito que procura um processo analítico, em alguma medida está disposto a entrar em uma aventura de exploração do inconsciente em que não há garantias em relação à duração ou mesmo aos efeitos desse trabalho.

 

Psicanalista é o artífice das palavras que molda o verbo a ferro e fogo

Freud afirma que o efeito terapêutico de uma análise depende de tornar consciente o que está reprimido no id e o trabalho que o psicanalista faz é abrir caminho para essa conscientização mediante interpretações e construções. O grande desafio nesse processo é vencer as resistências (FREUD, 1937/2018). Nesse sentido faz uma analogia interessante quando escreve sobre a viscosidade da libido e aponta para questões quantitativas. Afirma que cada analisante necessita de uma certa quantidade de energia para que seja vencida essa viscosidade da libido, sendo que quanto maior essa viscosidade, mais lentamente o processo de análise se dá, ou seja, não conseguem deslocar investimentos libidinais de um objeto para outro. Porém também encontramos analisantes com outra dinâmica:

Encontramos também o tipo contrário, em que a libido aparece bastante móvel, rapidamente enceta os investimentos sugeridos pela análise e abandona os anteriores por eles. É uma diferença como deve sentir um artista plástico ao trabalhar com a pedra dura ou argila mole. Infelizmente, nesse segundo tipo os resultados da análise se mostram muitas vezes frágeis; os novos investimentos são logo deixados, temos a impressão de não haver trabalhado com argila, mas escrito com areia. Vale aqui o provérbio que diz: "Fácil se ganha, fácil se perde" (FREUD, 1937/2018 p. 309-310).

Jorge aponta para o poder da sugestão e que ao longo dos séculos a força que a sugestão exerce se dá através da transferência. Inclusive aponta que um psicanalista de renome provavelmente terá uma maior possibilidade de transferência e também maior probabilidade de cura. Em seu livro dá alguns exemplos a respeito desse fenômeno e aponta para o poder da palavra que pode/deve atuar inclusive sobre o corpo, o que pode ser exemplificado através do fenômeno da "expressão das emoções", ou seja, as palavras podem agir sobre a resistência física das pessoas, como, por exemplo, resistir a moléstias infecciosas. O choque violento de contentamento ou desgraça pode chegar até mesmo a terminar com a vida. Nesse caso coloca como exemplo o escritor João Guimarães Rosa que, três dias após ser empossado como Imortal na Academia Brasileira de Letras, morreu de um ataque cardíaco (JORGE, 2017).

Comparar a transferência que ocorre em uma análise ao calor gerado por um maçarico para derreter as peças de metais pode ser interessante. É sob transferência que o trabalho psicanalítico é possível no consultório. O que é vivenciado sob forte relação transferencial dificilmente é esquecido, como uma marca feita em uma peça de metal após ser aquecida pelo calor de um maçarico. Não é possível análise sem transferência, como não é possível derreter um metal sem a energia necessária para amolecê-lo. Logo, o processo de tratamento requer uma preparação, ou seja, estabelecer uma relação de confiança com o analisante para que o trabalho possa se desenvolver, não só possibilitando que o analisante rememore sua história, mas principalmente que experimente na relação com seu analista novas versões de seus conflitos e que, sob esse calor transferencial novas soluções possam ser inventadas.

O trabalho dentro de uma oficina de ourivesaria gera um resto ou um resíduo, fruto do manejo dos metais. Em uma oficina de ourivesaria o trabalho se desenvolve sempre acima de uma gaveta que armazena todo resíduo do processo de manipulação do metal, como os recortes e as lixas; ao final do dia sempre resta uma quantidade de ouro que volta a ser matéria-prima e pode ser transformada em novas peças. Esse resíduo recolhido ao final do dia é fundido e pesado; esse retorno de um material fruto do trabalho na oficina possui valor relevante para o artesão ourives.

Freud em Construções na análise afirma que a relação de transferência que se estabelece entre o analista e o analisante permite o retorno de vínculos afetivos e isso pode ser considerado a matéria-prima do que se deve extrair de uma análise (FREUD, 1937/2018). Podemos observar alguns fenômenos residuais dos nossos atendimentos, algo que permanece reverberando após alguma sessão. Nós temos que nos haver com restos que os analisantes nos deixam, fruto do seu próprio trabalho de análise e os nossos restos que também de alguma forma surgem desse trabalho de forte pressão transferencial e contratransferencial. No caso do analista existe a análise pessoal para fazer desse resto algo que possa dar pistas sobre seu funcionamento inconsciente, algo que possa ser revestido de alguma valia.

Tal como a atividade artesanal o trabalho de uma análise demanda tempo e a paciência é um fator fundamental para alguém se tornar psicanalista. Saber usar sua liberdade amparada pelos preceitos teóricos pode conduzir a uma inventividade necessária para o desempenho dessa tarefa, principalmente no que se refere ao manejo da transferência na atividade. Em um processo de análise o analisante tende a repetir sistematicamente seus sintomas e suas histórias. A repetição é uma forma de recordação que desaparecerá uma vez que a elaboração permita precisamente superá-la. O recordar substitui a repetição e a elaboração tem nisso sua maior finalidade. Freud considera que a elaboração é, em essência, elaboração da resistência especialmente da resistência a rememorar, ou seja, associar (FREUD, 1914/2010).

 

Considerações finais

As aproximações que fazemos neste artigo precisam ser cautelosas, pois são trabalhos distintos. O objetivo deste artigo foi usar o exemplo do trabalho do artesão ourives para nos fazer pensar sobre nossa prática dentro do consultório e nossa formação. Em uma análise quem está no lugar de trabalhar é o analisante, pois ele deve fazer as associações e produzir um saber; no caso do ourives quem está no lugar do trabalho é o próprio artesão. Vemos que essa aproximação é insuficiente para poder representar a complexidade da práxis do psicanalista, mas tem a função de permitir um olhar a partir do potencial metafórico do trabalho do ourives.

Interessante pensarmos que o inconsciente é atemporal, logo, não segue a lógica do tempo serial; portanto, foge um pouco à lógica do sistema capitalista. A velocidade que o mundo tem hoje, com tantas tecnologias inovadoras, comunicações instantâneas e a internet, vem mudando a forma de nos relacionarmos com os outros e com o tempo. Diversos são os efeitos dessa nova lógica social em que todos estamos inseridos. Hoje é comum nos depararmos com essas questões nos consultórios: pessoas cada vez mais ansiosas, impacientes e buscando soluções mágicas, como se estivessem demandando que seu sofrimento fosse interrompido por um decreto.

Cabe a nós enquanto analistas saber usar o tempo a favor do processo analítico, pois cada sujeito responde a essas questões contemporâneas de forma singular. Não podemos, por exemplo, impor a um artífice que faça uma obra-prima, isso não segue uma lógica serial e sim uma vivência de um tempo de salto em que existe em uma ruptura ou um insight como possibilidade de novas construções sobre si mesmo ou sua obra.

Em uma sessão de psicanálise não temos como prever quando alguma elaboração mais complexa a respeito da verdade do sujeito vai surgir. Esse fenômeno é algo ligado ao tempo de salto. As sessões psicanalíticas não possuem um tempo determinado e não se encontram no plano da burocracia e sim da lógica do inconsciente: a temporalidade não pode ser externa à sessão analítica.

A formação do psicanalista, tal qual a do artesão ourives, está relacionada com a vivência dos três tempos propostos por Ramos (1981). Uma reflexão a partir dessa conceituação nos permite lançar um olhar sobre o modo como vivenciamos nossa formação como psicanalistas a partir de uma lógica temporal complexa e multideterminada. Para que algo seja apropriado por um sujeito de maneira duradoura, leva-se tempo. Tanto na formação como psicanalista quanto na condução das análises dos analisantes, a questão do tempo está sempre presente, ao mesmo tempo que estamos imersos em uma lógica serializada do tempo, precisamos romper com ela a todo momento.

A vivência do tempo de salto e do tempo convivial, a meu ver, não é incentivada na nossa sociedade. Pelo contrário, somos incentivados a vivenciar uma serialização do tempo imposta pelo modelo econômico. O ócio, o silêncio, são necessários e produtivos (DE MASI, 2000). Precisamos de tempo para processar as informações, precisamos de tempo para que uma análise seja levada a cabo, a vivência de saltos temporais nos remete ao funcionamento do inconsciente que nos mostra o efeito da reatualização do passado no presente e assim permite novas articulações, invenções de si e possibilidades de fazer uso da palavra para escrevermos nossa história a partir de novas posições subjetivas.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 06/05/2019
Aprovado para publicação em: 15/06/2019

Endereço para correspondência
Felipe de Lima e Ferreira
E-mail: felipe.paetal@gmail.com
Eliana Rigotto Lazzarini
E-mail: elianalazzarini@gmail.com

 

 

*Mestrando em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB). Brasília, DF, Brasil.
**Professora adjunta do programa de pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB). Brasília, DF, Brasil.

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