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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.41 no.41 Rio de Jeneiro jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Memória e trauma

 

Memory and trauma

 

 

Jurandir Freire Costa*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto trata da relação entre memória, trauma e defesas egoicas. A tese sustentada é a de que o episódio traumático se caracteriza pela ameaça à ordem vital, isto é, às pulsões do ego ou pulsões de conservação. Desse aspecto, difere das frustrações impostas à ordem sexual. Na ameaça à ordem vital, a memória é requisitada como compulsão à repetição e a defesa egoica consiste, sobretudo, na imobilização do agente traumático. Na frustração libidinal, em contrapartida, a memória emerge na forma de evocação ou repetição e o ego lida com o desprazer substituindo o objeto de satisfação perdido ou fazendo refluir a descarga libidinal inibida para a organização narcísica. As vinhetas apresentadas a título de ilustrações da teoria mostram como a defesa egoica contra o trauma resulta em diversos sintomas clínicos e culturais.

Palavras-chave: Memória, Trauma, Defesa egoica, Pulsão sexual, Reflexividade libidinal, Ordem vital, Pulsão de conservação, Desamparo.


ABSTRACT

The text deals with the relationship between memory, trauma and ego defenses. The contended thesis is that the traumatic episode is characterized by the threat to the vital order, that is, to ego drives or conservation drives. In this respect, it differs from the frustrations imposed on the sexual order. In the threat to the vital order, memory is required as a compulsion to repeat and the ego defense consists above all in the immobilization of the traumatic agent. In libidinal frustration, by contrast, memory emerges in the form of evocation or repetition and the ego deals with displeasure by replacing the object of lost satisfaction or by reflecting the inhibited libidinal discharge into narcissistic organization. The vignettes presented as illustrations of the theory show how ego defense against trauma results in various clinical and cultural symptoms.

Keywords: Memory, Trauma, Ego defense, Sexual drive, Libidinal reflexivity, Vital order, Conservation drive, Helplessness.


 

 

A relação entre memória e trauma é um tema central da teoria psicanalítica. Pode-se dizer, sem grandes riscos de errar, que noções como as de inconsciente, libido, recalque e outras de igual peso teórico são estreitamente dependentes da trama conceitual da memória. Não pretendo, por isso, refazer o percurso psicanalítico dessa noção - tarefa hercúlea! -, mas abordá-lo do ângulo das pulsões de autoconservação. Dado que este polo do conflito psíquico vem sendo teoricamente subestimado na maior parte da literatura psicanalítica, julgo importante rever seu papel na dinâmica do traumatismo. Começo por retomar, de modo breve, a função da memória nas defesas egoicas.

 

1. Sobre a memória

Memória, de forma sucinta, é a extensão da consciência presente a seu passado. Pela memória, a pura existência do organismo humano é subjetivada, isto é, torna-se uma narrativa de eventos dotados de intencionalidade, inscritos no tempo e compreensíveis mediante conceitos de causas, motivos, objetivos ou finalidades.

Da perspectiva psicanalítica, a memória aparece à consciência nas modalidades de rememoração, repetição ecompulsão à repetição. A rememoração, evocação ou reminiscência é a forma padrão de acesso ao passado inconsciente, sexual e infantil do sujeito. Pela rememoração, trazemos à consciência o passado recalcado como sintomas histéricos, fóbicos ou obsessivos; como sonhos; como atos falhos; como chistes; como lembranças encobridoras e como devaneios. Essas formações do inconsciente seriam, por assim dizer, instanciações de estruturas fantasísticas originárias, descritas por Laplanche e Pontalis como cena primitiva, fantasia de castração e fantasia de sedução.

Na repetição, a memória do recalcado retorna à consciência sem o trabalho psíquico da formação de compromisso. Trata-se de um tipo de elaboração rudimentar, a meio caminho entre o conflito original e sua expressão egoicamente censurada. O material inconsciente vem à tona na forma de passagem ao ato ou de formação defensiva integrada à personalidade como traço de caráter, na acepção técnica do termo. A variação metafórica ou metonímica do sintoma é pobre e estereotipada.

A memória, no modo da compulsão à repetição1, é patognomônica das neuroses traumáticas. Como será visto, a função mnésica, nesses casos, é ativada com vista a defender o sujeito de ameaças de morte física ou mental. Por isso, a rememoração relativa ao recalque e a repetição relativa às formações defensivas são processos secundários na evolução deste gênero de conflito. No trauma, de início, a compulsão à repetição é mandatória e encampa a totalidade da atividade psíquica. Sem essa operação preliminar, as funções rememorativas ou repetitivas jamais seriam postas em marcha.

 

2. Trauma e compulsão à repetição

Freud descreve dois grandes tipos de trauma. O primeiro é postulado como uma invariante psíquica, e corresponde à entrada forçosa do sujeito no universo do desejo. Trauma, nesta acepção, é o inevitável impacto do excesso pulsional sobre o aparelho psíquico da criança, excesso descarregado por meio de fantasias sobre a sexualidade dos adultos.

No segundo sentido, trauma é um evento excepcional, mais bem entendido ao analisarmos três pares de noções: 1) angústia - pavor; 2) pulsão sexual - experiência de prazer e 3) pulsões do ego - experiência de dor.

 

2.1 Angústia - pavor

Da perspectiva econômica, trauma significa ruptura das defesas egoicas pelo impacto de grande quantidade de estímulos físicos ou afetivos. O trauma, do aspecto subjetivo, é um evento pré-representacional. Ou seja, é "experienciado" na primeira pessoa como uma desordem afetiva sem significação. A compulsão à repetição, pela memória, visa precisamente trazer à consciência o montante afetivo não representado, para que o sujeito possa significar o acontecimento desorganizador do aparelho psíquico.

Este conceito é teorizado explicitamente por Freud em Além do princípio do prazer (1920/1970b) e, de forma implícita, em Inibições, sintomas e ansiedade (1926/1970b). No primeiro texto é dito que o sujeito, diante de uma situação de ameaça à vida, experimenta três reações psíquicas: 1) medo, 2) angústia e 3) pavor. O medo pressuporia a presença de um objeto desencadeador do afeto (Id.,ibid., p. 14); a " angustia seria... um estado de espera do perigo, de preparação para o perigo conhecido ou desconhecido" (Ibid.) e, enfim, o "pavor representaria um estado provocado por um perigo atual, para o qual não se está preparado. O que o caracterizaria seria, principalmente, a surpresa" (Id.,ibid.).

Em Inibições, sintomas e angústia, anos depois, Freud explica melhor a ideia de trauma pelo aprofundamento da ideia de angústia. No estudo, ele distingue dois tipos de angústia: 1) angústia automática e 2) angústia-sinal (FREUD, 1926/1970b). A angústia automática seria a angústia nua, pré-representacional. O excesso pulsional, nesta etapa dinâmica, ainda não teria encontrado sua tradução fenomênica. Subjetivamente, essa angústia inicial seria correlata à experiência de separação da mãe por ocasião do nascimento. A separação provocaria intensa comoção afetiva chamada por Freud de desamparo. A função da angústia automática seria a de tentar qualificar emocionalmente este distúrbio econômico primordial, traduzindo-o como mal-estar, pânico, agonia, vivido de desintegração.

A angústia-sinal, por seu turno, seria um derivado da angústia automática, e poderia ser corretamente descrita como angústia de antecipação. Disparada a angústia automática, o ego imediatamente após converteria essa angústia em antecipação imaginária da perda dos objetos protetores de sua autopreservação.

O termo angústia em Além do princípio do prazer é semanticamente equivalente à expressão angústia-sinal em Inibições, sintomas e ansiedade. O pavor, por sua vez, é um estado afetivo similar ao da angústia automática e, como esta última, jamais é reminiscência de um pavor anterior. Nas neuroses traumáticas, o pavor sempre reaparece como se fosse a primeira vez, e é essa sorte de ineditismo, de permanente estranheza do afeto desconhecido, que provoca o sentimento de colapso iminente do ego.

 

2.2 Pulsões sexuais - experiência de prazer

As definições de pavor/angústia, em Além do princípio do prazer, e angústia automática/angústia-sinal, em Inibições, sintomas e ansiedade (FREUD, 1926/1970b, p. 71-164), são o primeiro passo para a elucidação do conceito de trauma, por duas razões. Em primeiro lugar, ao se referir aos dois eventos, Freud descreve uma ameaça ao ego que não decorre primariamente da frustração do princípio do prazer. Em segundo lugar, ao reposicionar o princípio do prazer na nova economia da angústia, retoma a ideia de pulsão de conservação de forma a torná-la protagonista no enredo das causas e efeitos do trauma.

Vejamos, de início, a relação entre trauma e experiência de prazer. Em Além do princípio do prazer, Freud diz:

Chamaremos traumáticas as excitações exteriores fortes o bastante para romper a barreira representada pelo meio de proteção. (...) [excitações] que põem em movimento todos os meios de defesa. Mas é o princípio do prazer que será o primeiro posto fora de combate (FREUD, 1926/1970b, p. 36, grifo nosso).

Em outra passagem, afirma:

A tarefa das camadas superiores do aparelho psíquico consistiria em ligar as excitações instintivas que obedecem aos processos primários. Em caso de fracasso, produzir-se-ia uma perturbação análoga à neurose traumática, e apenas quando as camadas superiores conseguem realizar sua tarefa o princípio do prazer (ou o princípio da realidade que é uma forma modificada dele) pode sem contestação afirmar seu domínio. À espera desse momento, o aparelho psíquico tem por missão tornar-se mestre da excitação, ligá-la, e isto, não em oposição ao princípio do prazer, mas independentemente dele e, em parte, sem levá-lo em conta (Id.,ibid., p. 44, grifo nosso).

Freud repete que "o modo de defesa-padrão contra o trauma é a imobilização psíquica das excitações, e, em seguida, sua descarga progressiva" (Id., ibid., p. 37). Para ilustrar a imobilização e a natureza da energia investida, cita o caso da dor física. Na dor física, o processo imobilizador consiste em atrair para a área afetada todo contrainvestimento de que dispõe o organismo, até que a injúria sofrida seja neutralizada. A natureza da energia do contrainvestimento é claramente descrita como sendo de ordem libidinal (Id., ibid., p. 41). Na dor física, assim, o aparelho psíquico atrai para a zona lesada um enorme volume de libido, condição prévia da reparação do dano sofrido. No choque ou traumatismo psíquico ocorreria algo similar. O ego se esforçaria para "ligar" o fluxo excedente de estímulo por "um formidável contrainvestimento" (loc. cit.), destinado a reparar o desequilíbrio psíquico.

Nos trechos mencionados, Freud enuncia três teses que definem as principais características do trauma. Em primeiro lugar, a tese concernente ao princípio do prazer. A dor, o trauma, a ruptura inesperada das fronteiras egoicas coloca o sujeito na posição de desamparo original e "deixa de levar em conta", "põe fora de combate", o princípio do prazer que, só depois, poderá vir a ser reabilitado. Na ruptura do paraexcitação egoico, o que domina é o empenho do aparelho psíquico em imobilizar o excesso intrusivo. A descarga da tensão pulsional, se vier a ocorrer, será um fenômeno posterior. Como disse Freud de outra forma e em outro contexto, entre "evitar o sofrimento" e "obter o gozo" o sujeito opta pela primeira condição (FREUD, 1930/1971, p. 21).

Em segundo lugar, no trabalho do investimento contratraumático a libido é usada para obter efeito de estase e não de escoamento de seu fluxo, segundo as leis do processo primário. A constância "energética" como requisito da autopreservação foi tematizada por Freud desde os escritos iniciais. Nas etapas posteriores da teoria, concluiu, finalmente, que o investimento antitraumático deve-se 1) à libido narcísica (1970a) ou 2) à dessexualização da libido egoica (1970b, p. 199). Em suma, uma libido narcísica ou "dessexualizada" a serviço de um ego que a utiliza com função antitraumática, eis outra tese de Freud sobre o trauma.

Em terceiro lugar, vem a questão da dor. No exemplo da dor, a compulsão à repetição procura neutralizar a injúria física pela concentração da libido no local afetado. No caso do traumatismo, porém, não existe um ponto de efração localizável. O espaço subjetivo é, justamente, uma ilustração do que os fenomenologistas chamam de espaço sem superfície, espaço sem "lugar absoluto" ou "espaço-atmosfera" (SCHMITZ, 2016). Tendemos imaginariamente a fazer coincidir o "espaço" subjetivo com os limites do espaço corporal. Essa imagem, porém, é teoricamente equivocada. A ideia de um homúnculo mental feito à imagem e semelhança da Gestalt corporal mostra como a multiplicidade constitutiva do aparelho psíquico pode ser imaginariamente unificada. Seria ingênuo, entretanto, reificar esta "derivação metafórica" do ego (LAPLANCHE, 1970) como sendo a descrição realista de uma inefável entidade mental decalcada de nossa imagem especular. A hipótese de uma divisão do ego em partes extrapartes contradiz a ideia de totalidade egoica predominante na teoria. Por essa razão, é importante retomar as teses de Freud sobre pulsões do ego e dinâmica da dor para elucidar o mecanismo de proteção do psiquismo nos episódios traumáticos.

 

2.3 Pulsões do Ego - experiência de dor

A noção de pulsão de autoconservação, de autopreservação, de sobrevivência, de "interesses do ego" ou simplesmente "pulsões do ego" foi relegada ao rol das ideias obsoletas. Argumenta-se que, depois da hipótese 1) da "ação psíquica" que dá origem ao ego narcísico e 2) da pulsão de morte, os textos sobre autoconservação não teriam utilidade prática nem teórica2.

Ao pensarmos, contudo, sobre os acontecimentos traumáticos a questão da autoconservação volta a ganhar fôlego heurístico. Naturalmente, a noção usada nesse contexto teria que ser redescrita, e não empregada de modo literal. Retomemos, para tanto, o texto Pulsões e destinos da pulsão (FREUD, 1915/2004). Nele, Freud distingue os destinos das pulsões do ego e das pulsões sexuais diante da perda do objeto. No que tange às primeiras, ele afirma que os objetos visados pela pulsão são aqueles dos quais temos "necessidade" e não aqueles que amamos.

Como veremos adiante, isto implica dizer que o luto dos objetos de amor é menos penoso porque podemos fantasiar objetos substitutos com menos custo emocional. Estes últimos, além de suporte da descarga libidinal desviada do objeto original perdido, permitem que o investimento recebido possa voltar ao ego. Nos termos de Geyskens (2005), a dinâmica da sexualidade se presta 1) ao deslocamento do afeto do objeto perdido para seu substituto e, se necessário, 2) à recaptação egocentrípeta do investimento, descrita por ele como reflexividade pulsional3. Em outras palavras, o investimento dirigido ao objeto original ou ao objeto substituto pode retornar ao ego, e, desta forma, evitar que o sujeito viva a perda como ataque à unidade psíquica.

No caso das pulsões de conservação o movimento é outro. A privação da necessidade resulta em dor porque o objeto de necessidade não se presta à metaforização ou metonimização direta, como acontece com o objeto libidinal. O investimento malogrado da ordem vital não pode ser compensado nem na forma da fantasia sexual substitutiva nem na forma da reabsorção narcísica. Seu curso espontâneo é o ódio, o desejo de destruição dirigido à causa da frustração:

O Eu odeia, abomina, persegue com intenções destrutivas todos os objetos que se tornem para ele fontes de desprazer, sem levar em conta se são um obstáculo à satisfação sexual (grifo nosso) ou à satisfação das necessidades [Bedürfnisse] de conservação (grifo nosso). Podemos até mesmo afirmar que os verdadeiros modelos de relação de ódio não provêm da vida sexual, mas da luta pela sobrevivência e para se impor (grifo nosso) (FREUD, 2004, p. 160).

Dor e ódio são, por isso, efeitos imediatos da perda do objeto que satisfaz as necessidades das pulsões de autopreservação. Freud, por vezes, descreveu tais pulsões como sinônimo de "instintos" do organismo físico. O uso do termo, porém, mostra que ele possui extensão bem maior do que seu emprego vernacular sugere. Por exemplo, no Projeto de uma psicologia científica, Freud, ao se referir "à satisfação das necessidades vitais" do recém-nascido, diz que tais necessidades são satisfeitas pelo mecanismo da "ação específica" (1973b, p. 336). Este mecanismo só pode funcionar com a "ajuda exterior", a "ajuda alheia" ou a de um "humano ao lado" (TORRES, 2011, p. 3).

Haveria, então, um tipo de "necessidade" físico-mental, cuja satisfação depende necessariamente do outro. O sujeito, em caso de ausência, incapacidade ou recusa do outro em "ajudá-lo", sentiria sua autopreservação ameaçada. Relida nesta chave, pulsão de conservação é o circuito da experiência de satisfação que exige o outro como condição sine qua non de sua realização plena. São assaltos a esse circuito que podem produzir trauma e dor.

Como se vê, diversamente da materialidade física, na ordem vital, a dor não é sentida num lugar determinado da superfície espacial. A dor traumática é o que aparece em Inibições, sintomas e ansiedade como "desamparo". Pulsão egoica, portanto, é a abreviação teórica de uma montagem fantasiosa na qual o impedimento da descarga pulsional é tão disruptivo que Freud decidiu denominá-la de "desamparo", equiparando-a à dor física e não ao desprazer de natureza sexual. Na perda sexual tout court, o sujeito perde o objeto; no desamparo, perde a si mesmo.

Retomemos mais detidamente a questão. Na insatisfação sexual stricto sensu a resolução do conflito pulsional passa 1) pelo autoerotismo ou 2) pelo narcisismo4. Nos dois casos, o ego pode recuperar o gozo dissipado descolando o sujeito 1) da necessidade da função vital, no autoerotismo, e 2) da dependência do objeto sexual, no narcisismo. No autoerotismo oral, por exemplo, a sexualidade se emancipa da função de alimentação e desliza para o gozo das zonas erógenas. O prazer da excitação dos lábios, induzido pela tomada do leite e pela presença do peito, se cinde da necessidade de nutrição e passa a se satisfazer com a autoestimulação autoerótica, como no chupeteio. No narcisismo, o mecanismo seria semelhante. O sujeito pode retirar o investimento libidinal do objeto e dirigi-lo, num movimento reflexivo, para o ego. Sempre que se trata de satisfação da pulsão sexual trata-se, por conseguinte, de um prazer que pode dispensar a "ajuda externa" do "humano ao lado" e vir a se realizar na autossuficiência do erotismo corpóreo ou do narcisismo.

A dinâmica das pulsões de autoconservação é outra. Como mostram as passagens citadas no Projeto de uma psicologia científica, emPulsões e destinos da pulsão, emAlém do princípio do prazer e em Inibições, sintomas e ansiedade o que está em jogo aqui, é a impossibilidade de o princípio do prazer vir a ser alcançado pela autossuficiência corporal ou egonarcísica. Em síntese, Freud chama de pulsões do ego, de autoconservação ou de autopreservação o impulso sexual cuja satisfação está irremissivelmente acorrentada à ação do outro. O que equivale a dizer que, nestes casos, a ausência do outro não pode ser compensada pelo refluxo da pulsão ao corpo ou àGestalt egoica, como na pulsão sexual de vida, para falar como Laplanche. Em vez disso, a privação da satisfação é sentida como impotência para realizar sem "ajuda alheia" a "ação específica" que faria cessar a "necessidade" em questão.

Neste sentido, ainda segundo Laplanche, a autoconservação não é um termo da gramática que descreve a vida biológica pré-psiquica - se é que isto existe. A autopreservação já está inscrita na esfera da representação. A pulsão egoica mostra simplesmente que a ordem biológica, na dimensão orgânica individual, é duplamente insuficiente para levar a cabo sua intencionalidade. Não apenas depende imperativamente do "humano ao lado" para satisfazer seus impulsos próprios como também precisa fazer-se representar para existir psicologicamente como necessidade. (LAPLANCHE, 1970, p. 84-85)5.

É esta disposição pulsional que constitui a ordem vital. Ordem vital é a rede de representantes sígnicos da vida biológica que tem como referente 1) a imaginária unificação egoica da existência subjetiva e 2) a irremediável dependência do outro para assegurar a possibilidade mesma desta existência.6 Do ponto de vista genético, é como se houvesse uma fase inicial do desenvolvimento na qual o laço libidinal do ego ao "outro auxiliar" é tão intenso que a ameaça de sua ruptura compromete a "ação específica" requerida para a satisfação da necessidade. Donde a angústia de desamparo, abandono, aniquilamento.

 

3. Trauma e ordem vital

As carências das necessidades vitais que redundam em traumatismo são de dois principais tipos. O primeiro refere-se ao sentimento de impotência derivado da incapacidade do sujeito de obter sozinho o que necessita para sobreviver. Trata-se de trauma por omissão do "humano ao lado". No segundo, o "humano ao lado" está presente, mas de forma violentamente intrusiva7. É a clássica imagem das neuroses traumáticas como invasão abrupta do paraexcitação egoico. Nos dois casos, o objeto traumatizante se torna compulsivamente solicitado, quer tenha sido ausente, quer tenha estado presente de forma desagregadora.

Esse aparente paradoxo - trazer à consciência repetitivamente a situação ou objeto traumáticos - representa a tentativa que o sujeito faz para passar do estado de carência de necessidades inelutavelmente alterdependentes para o estado de reflexividade libidinal ou reversão narcísica/autoerótica do prazer. O "trabalho do trauma" consiste, assim, no deslocamento do sujeito da órbita da ordem vital para a da ordem sexual. O que quer dizer, desidealizar ou desfetichizar 1) a onipotência imaginária do "humano ao lado" e 2) a imaginária imutabilidade da montagem da "ação específica". Consideremos em mais detalhes e de forma breve, os destinos da sexualidade no trauma.

 

3.1 Trauma e defesa egoica

A ordem sexual, no trauma, sofre três grandes redirecionamentos. No primeiro, o princípio do prazer é desviado de seu curso usual, qual seja, a descarga da tensão pulsional. O que monopoliza o aparelho psíquico são as fantasias de ódio ao agressor que põe em risco a ordem vital. A memória é mobilizada, sobretudo no intuito de controlar ou destruir o perseguidor.

No segundo, ocorre uma espécie de sexualização em segunda instância do laço vital ameaçado de ruptura. Clinicamente, o sujeito tenta lidar com o traumatismo sem deixar traço mnésico do medo de aniquilação e do ódio ao objeto causa da dor psíquica. A cena consciente é tomada pelo semblante de um conflito originalmente sexual. O semblante, contudo, é apenas uma tentativa agônica de reduzir o vital ao sexual, cujo fim é a restauração do poder do ego de recaptar reflexivamente o investimento frustrado. A desenvoltura sexual teatralizada carrega, porém, a marca subjacente do vivido de abandono. Os conflitos amorosos são sempre paroxísticos, sempre à beira do histrionismo e da desorganização egoica. Esse é um dos traços semiológicos que mostram a tentativa vã do sujeito de recobrir as ameaças à ordem vital com a aparência de conflitos da ordem do prazer/desprazer.

No terceiro, por fim, o sujeito procura deixar o espaço da dor traumática, recorrendo a um "outro auxiliar" idealizado e fetichizado. No plano cultural como no pessoal esse estado corresponde ao fascínio pelo grande mestre, pelo guru demagogo ou messiânico bem analisado por Sennett (1974), no estudo sobre o "carisma secular", e, ça va sans dire, por Freud, em Psicologia das massas e análise do eu (FREUD, 1921/1970b).

 

3.2 Vinhetas clínicas e sintomas culturais

Apresentaremos, em seguida, vinhetas clínicas ou da psicopatologia da vida cotidiana que ilustram o que foi afirmado.

 

3.2.1 O ódio refratário à metaforização

Trata-se do caso de um jovem moralmente assediado em quase todo o segundo grau da vida escolar. A marca dos abusos prolongou-se na adolescência e no começo da idade adulta, e foi intensificada no curso de dois relacionamentos amorosos, nos quais foi rejeitado. O resultado foi uma enorme inibição social, intelectual, emocional, a que se seguiu um confinamento doméstico grave com abandono de cuidados de higiene, de saúde e forma corporal, além do retraimento de atividades profissionais, sociais ou de lazer.

O rancor provocado pela lembrança dos assediadores e da omissão dos adultos responsáveis por sua proteção era devastador e monopolizava toda a esfera do desejo. O mundo parecia o cenário de uma cidade fantasma esvaziado de substância humana. A metaforização da frustração era quase impossível; os horizontes sublimatórios, precários e distantes. O sujeito tinha sofrido um verdadeiro "assassinato da alma", como o de Schreber. O resultado foi uma melancólica desistência de existir. Era como se conhecesse a famosa máxima de Lucrécio e fornecesse sua própria versão. Onde há morte, não há eu e onde há eu, não há morte. Escolhendo ser ninguém, nem poderia morrer, nem viver.

 

3.2.2 A metamorfose do ego

Neste caso, o ego, ameaçado de morte física ou moral, não é dominado pela pontaria aguda, certeira e mortífera do ódio consciente ao objeto traumático. A defesa utilizada é, em primeira instância, a busca pela transformação de si em objeto dócil, passivo, oferecido ao perseguidor em troca do direito à vida. Apenas num segundo plano vemos, nas entrelinhas, surgir o ódio ao objeto ameaçador.

Trata-se do relato de um dos sonhos compilados por Charlotte Beradt no livro (2017) Sonhos no terceiro reich - Com o que sonhavam os alemães depois da ascensão de Hitler. No sonho, um homem relata a seguinte cena:

Goebbels chega à minha fábrica. Manda os funcionários se alinharem em duas filas, uma à direita, outra à esquerda. Eu devo ficar entre elas e fazer a saudação a Hitler com o braço. Levo cerca de meia hora para levantar o braço apenas alguns milímetros. Goebbels observa meu esforço como se assistisse a um espetáculo, sem expressar nem aprovação nem desagrado. Quando finalmente consigo erguer o braço até o fim, ele diz apenas seis palavras: 'Eu não desejo a sua saudação'. Daí vira-se e vai na direção da porta de saída. Eu fico exposto daquela maneira em minha própria fábrica, entre meus próprios trabalhadores, com o braço levantado. Fisicamente, só posso ficar assim. Então, fixo o olhar no pé torto de Goebbels, enquanto ele se retira, mancando. E permaneço nessa mesma posição até acordar (BERADT, 2017, p. 30).

Note-se o impasse vivido pelo sujeito. A violência nazista, na figura de Goebbels, levou-o a sonhar com a rendição à força bruta. A imagem do braço parado no ar sinaliza, entretanto, a hesitação entre defender a vida ou permanecer fiel às convicções. Não se trata, como se vê, de frustração libidinal, e sim de defesa da ordem vital. Como não pode substituir o objeto violentador por outro benevolente, o sujeito tenta modificar a si mesmo. A paralisia do gesto, no entanto, mostra que ele nem consegue trair seus ideais de eu nem aceitar a represália assassina dos nazistas. O resultado é o ódio que se infiltra na imagem do pé torto de Goebbels.

 

3.2.3 Neste outro sonho, de um médico, citado no mesmo livro, lemos:

Perto das nove da noite, depois de minhas consultas, quando quero me esticar calmamente no sofá com um livro sobre Mathias Grünewald, minha sala e meu apartamento ficam de repente sem paredes. Olho apavorado ao meu redor e, até onde meus olhos conseguem alcançar, os apartamentos estão todos sem paredes. Ouço gritarem em um megafone: "De acordo com o edital sobre a eliminação de paredes, datado do dia 17 deste mês... (BERADT, 2017, p. 43-44).

A metáfora do desamparo do sujeito, pela ruptura do paraexcitação egoico, é quase fotográfica. Observe-se, contudo, que o pavor da intrusão mostra sinais de elaboração. A vivência bruta já se faz representar, não apenas por figurar cenicamente a invasão da intimidade pelo poder totalitário, mas também por exibir a marca de resistência subjetiva ao agressor, que aparece num pequeno pormenor do sonho. Ao terminar o relato com a frase que enuncia a datação do edital, o sujeito desnuda a violência de quem quer fazer do próprio gozo a lei. No detalhe grotesco do decreto sobre a "eliminação de paredes" surge a reação do sujeito à ameaça de aniquilação de sua vida interior, e não meramente à frustração do princípio do prazer.

Se um dos objetivos do terror totalitário é fazer com o sujeito se dessubjetive pela perda da articulação emocional e cognitiva do mundo interno, neste caso, o objetivo malogrou. O sonhador mostra no disparate da legalização do absurdo que consegue distinguir justiça e ignomínia, farsa e legitimidade, autoridade e autoritarismo, enfim, potência e violência. Enquanto a distinção for acessível à sua consciência, a ordem vital permanece num nível de constância compatível com a autoconservação.

 

3.2.4 Caso similar é a defesa da ordem vital elaborada de forma a preservar o sentido de continuidade da existência.

Trata-se do sonho de uma mulher liberal e cultivada:

Quadros são colocados em cada esquina para substituir as placas de rua, proibidas. Esses quadros anunciam, em letras brancas sobre um fundo negro, vinte palavras que o povo está proibido do pronunciar. A primeira palavra é LORD - por precaução, devo ter sonhado em inglês, e não em alemão. As outras, esqueci ou provavelmente nem cheguei a sonhar com elas, com exceção da última: EU (BERADT, 2017, p. 45).

No sonho, a proibição da palavra LORD indica que o sujeito está proibido de recorrer ao "Outro ao lado" protetor. Em seguida, vem a proibição de enunciar o pronome EU. Nesse nível, a reação da ordem vital se exprime de forma sutil. Ao sonhar com atos de censura à liberdade de expressão, o sujeito põe à mostra o lado caricato do totalitarismo e afirma que não foi completamente esmagado pelo terror. Impedir alguém de pronunciar a palavra EU implica supor que ele conheça seu significado. Mas, uma vez admitida a pressuposição, pouco importa se vierem a proibi-lo de pronunciá-la: a consciência da existência do Eu está implícita na proibição. O impronunciável não é o inexistente, o indizível ou o incognoscível.

A defesa da ordem vital funcionou. O custo da operação defensiva, entretanto, é a vigilância angustiada. No mundo onírico, o sujeito procura enganar o perseguidor, usando a palavra Lord e não seu equivalente alemão. É esse tipo de sequestro do investimento libidinal, posto a serviço da autossobrevivência, que empobrece o investimento em objetos sexuais ou objetos sublimados capazes de mobilidade, flexibilidade, variedade e reflexividade.

 

3.2.5 O ego embusteiro e a moeda sexual

Trata-se do caso de uma mulher nascida numa família carente, material e emocionalmente. Na infância, foi vítima de contínuas e intensas violências verbais, por parte do pai, e contínua omissão e indiferença por parte da mãe. Na relação familiar, os irmãos e irmãs sempre foram claramente os preferidos. Na idade adulta, começou a utilizar a tática da estridência do comportamento sexual como forma de defesa. Embora extremamente insegura, sempre desafiava os costumes familiares com atitudes sexualmente provocadoras, na visão de parentes e amigos. Passou a ter, nos próprios termos, uma "vida desregrada". Embora sofresse de persistente incapacidade de satisfação orgástica, não podia dispensar múltiplos parceiros sexuais. O aparente "desregramento" tinha uma dupla finalidade: servia para escandalizar, dominar e maltratar a família, vingando-se da rejeição que sofrera, e para garantir a presença de parceiros que funcionavam como provedores de necessidades materiais. Cada vez que corria o risco de perder um dos parceiros, entrava em pânico. A ideia de que pudesse ficar novamente entregue à hostilidade e ao desprezo familiar, levava-a a recorrer a inúmeros ardis para retê-los, mesmo ao preço de sentimentos de autodepreciação.

A mascarada sexual funcionou por longo tempo. Seu círculo de convivência passou a vê-la como uma pessoa leviana, imatura, incapaz de funcionar na vida como uma mulher adulta. Na verdade, o que existia sob a tempestade sexual era um grande sentimento de incompetência para viver sem a presença de um "humano ao lado". O verniz sexual era a ponta do iceberg da ressexualização da ordem vital. Dissimulando o pavor do abandono com o teatro da desinibição sexual, ela tentava acreditar que dispunha de uma autonomia do gozo sexual que, de fato, nunca possuiu. Ao romper as relações, para pouco depois reatá-las, imaginava ser capaz de reaver egonarcisicamente a libido investida no outro. Num dado momento, o artifício revelou sua fragilidade. O autoengodo da liberdade sexual desfez-se. A angústia veio à tona como potencial desorganizador das origens. A antecipação da perda do protetor tornou-se paulatinamente mais evidente, e ela pôde dar-se conta da falácia da moeda sexual usada para comprar um seguro de vida emocional que nunca teve.

 

3.2.6 A divisão do ego e o objeto-fetiche protetor

Estes casos possuem dinâmica semelhante ao caso anterior. Aqui, no entanto, a ressexualização narcísica passa pelo fetiche do objeto protetor e o contexto da montagem é, sobretudo, cultural. O exemplo do "desenraizamento" é particularmente elucidativo deste processo.

Por desenraizamento, entendo a experiência de perda do solo firme da cultura ou da forma de vida na qual o sujeito forma seus desejos, atitudes, crenças e julgamentos básicos. Simone Weil chamou atenção para a desordem, o medo e a insegurança como componentes fundamentais do desenraizamento (WEIL, 2017). Os três sentimentos produzem severa angústia da imprevisibilidade, posto que o sujeito, impedido de saber quais deveres está moralmente obrigado a cumprir e quais prazeres lhe são franqueados, vê-se congelado numa vida sem projetos. O governante despótico, entre outras iniquidades, subtrai ao sujeito o poder de imaginar livremente o futuro.

Hannah Arendt, por sua vez, enfatizou o papel do isolamento psicológico como elemento central no desenraizamento. Nas sociedades capitalistas de massa, diz ela, os indivíduos, minguando na situação de desolação psicológica provocada pela competição, pela compulsão consumista ou pela pobreza de laços emocionais duráveis podem buscar refúgio no tribalismo, no racismo, no autoritarismo ou no totalitarismo (ARENDT, 1979).8

A experiência de desenraizamento pode ser ainda mais deletéria se o indivíduo se subjetivou como "normopata", "normótico" ou "self de cercado". A expressão, criada por Bollas (2018), define pessoas que são conformisticamente "enraizadas", isto é, pessoas cuja identidade mantém-se pela aderência total aos papéis sociais dominantes e aos clichês morais, estéticos e cognitivos de sua mofina paróquia cultural. Desprovidos de qualquer outra saída identitária, exceto a imposta pelo ethos hegemônico da "raça", da "etnia", da "religião", do "gênero sexual", do "status socioeconômico" ou outros, esses sujeitos se comportam como "andróides" na defesa insana de seus preconceitos. Por isso mesmo, costumam reagir com ódio míope aos novos estilos de viver que, porventura, ameacem furar a blindagem de seus universos de sentido (BOLLAS, 2018, p. 44-47). No vocabulário de Freud, o normopata e seu self de condomínio reage à mudança como se fosse um trauma à ordem vital.

Alguns trechos da literatura de testemunho ilustram com nitidez essa afirmação teórica. São passagens extraídas do livro de Svetlana Aleksiévitch, O fim do homem soviético (2013). Numa das passagens, uma entrevistada diz sobre a antiga União Soviética:

Aquele era o meu país, agora eu moro num pais que não é o meu. Vivo num país estranho. (64)...Não corremos atrás da liberdade, corremos atrás de jeans... de supermercados. Fomos corrompidos por embalagens brilhantes. É uma fartura. Mas... não tem nenhumar elação com a felicidade. Com a glória. Era um grande povo! Transformaram esse povo em vendilhões e especuladores... E querem me convencer de que um trapo de Versace ou do Armani é tudo aquilo de que uma pessoa precisa....Tenho orgulho da época soviética! Ninguém tinha uma vida elegante, mas tinha uma vida normal. Tinha amor e amizade... vestidos e sapatos. As pessoas ouviam com gosto os escritores e os artistas, mas agora pararam com isso" (ALEKSIÉVITCH, 2013, p. 64, 69, 74 e 75).

Outra mulher relata o que sentiu, voltando a Moscou, anos após o desaparecimento do regime soviético:

O vento arrastava pelas ruas embalagens sujas, pedaços de jornais, fazia um barulho de garrafas vazias de cerveja quando nós andávamos.... Por todo lado, várias pessoas cinzentas, vendendo um monte de miudezas... como nos filmes sobre a guerra. Só lá eu vi isso... Muitos mendigos... De onde vinham tantos? Aleijados... Tinham tanto medo de nós... e agora É isso! Um montão de cacarecos... Do império, necas! (ALEKSIÉVITCH, 2013, p. 124-125).

Após descrever o choque que sofreu ao ver flâmulas e medalhas da hierarquia político-militar soviética sendo vendidas como curiosidades ridículas, diz que chorou ao visitar o tumulo de Lênin, e confessa à autora que precisa falar,

De como éramos imensamente felizes!... E éramos contentes! Acreditávamos que o amanhã seria melhor que hoje, e que o dia depois de amanhã seria melhor que ontem. Tínhamos futuro. E um passado. Tínhamos tudo" (Id., ibid., p. 127).

No mesmo diapasão, um homem diz:

Nossos pais venderam um pais grandioso por um par de jeans, um pacote de Marlboro e um chiclete... Não foram os obtusos bolcheviques que fizeram merda com o país, nem os canalhas dos intelectuais que destruíram o país para poder ir para o estrangeiro e ler O arquipélago gulag... Fomos nós mesmos que destruímos tudo com nossas próprias mãos. Sonhávamos com o dia em que abririam um McDonald's e todo mundo poderia comprar uma Mercedes, um vídeocassete de plástico. E venderiam filmes pornôs nas bancas... "A Rússia precisa de uma mão forte. De ferro. De um capataz com um porrete. Assim foi o grande Stalin! Viva! Viva! Akhromiêiev poderia ter virado no nosso Pinochet... É uma grande perda (Id., ibid., p. 146-147).

Em outro trecho, havia dito:

Pergunte... Você tem que perguntar como isso se combinava: nossa felicidade e o fato de que vinham buscar gente de madrugada, vinham pegar alguém. Alguém desaparecia, alguém soluçava na outra porta. Por algum motivo, eu não me lembro disso. Não me lembro. Eu me lembro.... das impressionantes paradas esportistas e dos nomes formados por corpos humanos cheios de vida e por flores na praça Vermelha: Lenin, Stálin. Eu fiz essa mesma pergunta para minha mãe...

As longas citações visam mostrar a violência do desenraizamento e a resposta pela fetichização do protetor imaginário. Em face da perda do mundo no qual estavam simbioticamente enraizados, os depoentes, narcisicamente esvaziados, projetam nos ditadores soviéticos a autoestima que lhes foi roubada pela nova e truculenta ordem capitalista. A impotência subjetiva se transfigura em idolatria, ao preço do desmentido e da idealização megalomaníaca do outro. Desmentido, porque o líder, para manter a função de fetiche, exige do devoto um trabalho psíquico exaustivo. O fetiche não pode ser castrado. Ele é um simulacro da completude; um "mito" ao qual todo poder deve ser concedido.

Quanto à idealização, ela ocorre pela metamorfose extravagante da paixão narcísico-fanática em arremedo da lei. Ao contrário do sonho em que a proibição da palavra eu parecia derrisória, nos casos acima descritos, o pavor do autocrata torna-se adoração. O líder fetichizado se torna herdeiro magnificado do eu ideal do indivíduo que foi reduzido à sombra de si mesmo. Presos entre os escombros do stalinismo e o entulho degradado do capitalismo, os sujeitos tentam acionar a sexualidade para voltarem a investir a ordem vital. Desta feita como parasita que tenta colorir a angústia com um tom libidinal cadavérico.

É o que se vê na forma como a paixão pelo autocrata leva o sujeito a escotomizar o lado mais soturno de ditaduras assassinas, fazer o elogio de Pinochet é escabroso, assim como é escabroso lembrar apenas das "impressionantes paradas esportistas e dos nomes formados por corpos humanos cheios de vida e por flores na Praça Vermelha: Lenin, Stálin". Entretanto, mais escabroso ainda é "esvaziar de sentido" as cenas de sequestros ilegais de dissidentes e dos gritos e soluços atrás das portas das vítimas do stalinismo. Esse "esquecimento" que prega a volta ao poder de Pinochet ou Stalin não é simplesmente recalque; é uma sorte dealucinação negativa, de automutilação psíquica em que o sujeito esburaca o passado e borra o futuro para viver num limbo sem memória e sem desejo (FERENCZI, 1955). Prova disso é a forma despudorada pela qual um depoente diz que perguntou a "mãe" qual era sentido das atrocidades stalinistas, por não se sentir capaz de entender o significado das perseguições levadas a cabo pelos serviços de repressão soviéticos. O exemplo de regressão superlativa mostra o tamanho da devastação provocada pelo desenraizamento cultural.

Participar da megalomania imaginária do ditador tem ainda um ganho secundário para o normopata: recobrar o direito moral de odiar a todos os pretensos responsáveis por sua miséria. Sem esse álibi, o ódio ao perseguidor teria que ser anulado ou voltado para si mesmo. A invenção persecutória do inimigo do povo, da raça, da nação, de "Deus" ou do "país" permite, ao mesmo tempo, um ganho sexual pela identificação ao líder-fetiche e um ganho destrutivo pela projeção no inimigo externo do ódio deslocado do opressor. O que não poupa o sujeito de pagar caro pela participação no gozo do dominador malevolente.

De fato, a segurança obtida com a fusão à onipotência do déspota é sistematicamente abalada pela incerteza do amor dele pelo sujeito. Qualquer déspota só admite a legitimidade e a fruição de seus prazeres, desejos, atos, julgamentos e projetos, por bizarros e sinistros que sejam. Desse modo, produz uma incerteza crônica nos seguidores, que temem o tempo inteiro ser banidos da corte de bufões se não acertarem na dose exata de servilismo requerido ou se forem traídos por concorrentes ao posto de serviçal favorito. Ou seja, a defesa contra o trauma restaura as condições originais que o produziram. Contra o trauma a única saída, se e quando existe, é a freudiana: imobilizar a ameaça de morte para, em seguida, reinvestir no desejo de que a vida vale a pena ser vivida.

Tudo mais é dessubjetivação, desumanização. Tudo mais é a desolação resumida na pergunta de Simone Weil: "Pode haver algo mais monstruoso e mais triste do que uma idolatria sem amor? " Esta é a idolatria dos indivíduos em tempos de trauma.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 30/09/2019
Aprovado para publicação em: 07/10/2019

Endereço para correspondência
Jurandir Freire Costa
E-mail: freirecostaj@gmail.com

 

 

*Psiquiatra, psicanalista. Membro Efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Professor titular do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1Esta distinção entre repetição e compulsão à repetição foi sugerida por Fletcher, John. Freud and the scene of trauma. New York: Fordham Univesity Press, 2013.
2Costuma-se argumentar que apenas em A perturbação psicogênica da visão na concepção psicanalítica (FREUD, 1973, p. 167-175), Freud tentou, de fato, mostrar clinicamente a disputa entre sexualidade e a autoconservação pelo comando de uma função orgânica. Desse aspecto a questão pareceria, então, ainda mais anacrônica.
3Entre outras referências, ver o seguinte trecho de Freud: "... as moções pulsionais de caráter sexual são extraordinariamente plásticas (grifo do autor), por assim dizer. Podem substituir-se umas às outras; uma pode tomar sobre si a intensidade das outras; quando a satisfação de uma é frustrada pela realidade a outra pode oferecer um ressarcimento pleno" (FREUD, 1917/1989, p. 314).
4Esta distinção se baseia, em linhas gerais, na teoria de Laplanche sobre pulsão sexual de vida e pulsão sexual de morte. Ao lado disso, acrescentamos as contribuições de Tomas Geyskens para formular a ideia de pulsões do ego ou de autoconservação que agora estamos expondo. Aos leitores que quiserem aprofundar o tema, sugiro a leitura das obras dos dois autores, mencionadas na bibliografia.
5A relação do trauma com a experiência de desamparo poderia, igualmente, ser descrita da perspectiva das ideias de "destino" -Ananké - ou de "compulsão de destino". No primeiro caso, o da Ananké, a ideia de destino está referida às considerações metapsicológicas sobre a relação do sujeito com o mundo e sobre a ideia de indeterminação em última instância da singularidade da vida subjetiva. No segundo caso, o da "compulsão de destino", a expressão está, sobretudo, relacionada aos casos clínicos estudados como "neuroses de destino" ou "neuroses de fracasso". O desenvolvimento das respectivas noções e sua relação com os mecanismos de defesa egoicos contra o trauma exigiria um trabalho conceitual à parte. Abordar os dois aspectos do trauma - 1) necessidade com expressão das pulsões de autoconservação e 2) necessidade como expressão da Ananké e da compulsão de destino - num mesmo artigo implicaria perder a densidade do tema discutido. Sobre a ideia de necessidade/desamparo como Ananké e da necessidade/ desamparo como "compulsão de destino" (Cf. ARAUJO, 2015).
6Essa concepção coincide, em parte, com a ideia de Freud sobre o ego como "conceito coletivo" que engloba conjuntos "de representações", "sempre organizados de formas diferentes", e que se destinam a recalcar as representações pulsionais incompatíveis com a autoconservação (Cf. FREUD, 1973a, p. 169).
7Esta divisão inspirou-se, em linhas gerais, na noção winnicottiana de "impingement". A equivalência com o vocabulário freudiano, no entanto, mereceria um aprofundamento que não entra no escopo deste trabalho.
8Nas palavras de Arendt: "O que torna a solidão tão insuportável é a perda do próprio "eu" que pode realizar-se quando está a sós, mas cuja identidade só é confirmada pela companhia confiante e fidedigna dos meus iguais". Nesta situação, o homem perde a confiança em si mesmo como parceiro dos próprios pensamentos, e perde aquela confiança elementar no mundo que é necessária para que se possa ter quaisquer experiências. O "eu" e o mundo, a capacidade de pensar e de sentir, perdem-se ao mesmo tempo" (ARENDT, 1979, p. 246).

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