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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.41 no.41 Rio de Jeneiro jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

O "estranho" tempo lógico diante das disruptivas fotografias de Diane Arbus

 

The "uncanny" logical time in the face of the disruptive photographs of Diane Arbus

 

 

Mariah Neves GuerraI*; Cristóvão Giovani BurgarelliII**; Daniela ChatelardI***

IUniversidade de Brasília - UnB - Brasil
IIUniversidade Federal de Goiás - UFG - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Qual é o tempo do "estranho"? Que tempo é esse em que se dá a experiência de estar diante da arte e ser estranhada por ela? Aqui parto da minha experiência de olhar as fotografias de Diane Arbus - que, em seu tempo disruptivo, retratava seus freaks, personagens produzidos em sua metodologia íntima de adentrar as casas e cotidianos das pessoas que fotografava. Aproximo esse tempo produzido por Arbus da teorização de Lacan sobre o Tempo Lógico para refletir sobre o tempo da minha experiência, diante da obra da fotógrafa, com o "estranho" - noção cunhada por Freud em 1919 para dizer dos instantes em que um objeto "estranho" provoca o retorno de uma familiaridade até então radicalmente esquecida quando estamos diante dele.

Palavras-chave: Diane Arbus, Tempo lógico, Unheimlich, Psicanálise, Arte.


ABSTRACT

What is the time of the "uncanny"? What time is this in which the experience of facing art and being estranged by it occurs? Here I take a look at the photographs of Diane Arbus - who, in her disruptive time, portrayed her freaks, characters produced through her intimate methodology of entering their homes and daily lives. I bring this time produced by Arbus close to the theorization of Logical Time by Lacan, to reflect about the time of my experience, facing of the work of the photographer, with the "uncanny" - a notion coined by Freud in 1919 to talk about the moments in which an "uncanny" provokes the return of a familiarity hitherto radically forgotten, when we are facing it.

Keywords: Diane Arbus, Logical time, Unheimlich, Psychoanalysis, Art.


 

 

Sentidos do "estranho"

Em 1919, Freud publicou o texto Das Unheimliche, e uma de suas traduções possíveis é "O estranho1", que estaria relacionado ao que é assustador, provocador de medo e horror generalizados. Freud (1919/2010) afirma que há "um núcleo especial [de significado]", por isso justifica-se o uso de um "termo conceitual específico". O autor explicita o caráter de originalidade de suas elaborações ao afirmar que nada disso foi trabalhado pela estética, pois esta se restringiu ao belo, atraente, sublime, aos afetos positivos, aos objetos e às circunstâncias que provocam tal experiência do belo.

No texto freudiano, é possível depreender que a palavra "estranho" tende a coincidir, ainda que não coincida, com o afeto provocado, pois uma palavra/conceito não é o afeto em si. Desse afeto experienciado, o psicanalista cunhou este conceito. Assim, "estranho" é (1) o conceito ao qual se refere, (2) o afeto e, também, (3) um objeto causador, algo provocador deste afeto; todos eles situados no campo da angústia, embora cada um tenha suas peculiaridades. O objeto que causou em Freud (1919/2010) sua experiência com o "estranho" e, por conseguinte, o levou à sua tríplice proposta, foi o conto O homem de areia de E. T. A. Hoffmann. No presente artigo, o objeto a me estranhar é a obra fotográfica de Diane Arbus e é a partir da minha experiência de estranhamento que acrescentarei à noção freudiana de "estranho" um quarto elemento: o tempo.

O "estranho" surge quando, na vida cotidiana e diante das artes, alguns complexos infantis que foram recalcados irrompem como uma surpresa familiar e angustiante. A partir de sua leitura do texto freudiano Das Unheimliche, Didi-Huberman (2010, p. 227) diz sobre o "estranho" o seguinte: "é o lugar onde o que vemos aponta para além do princípio de prazer; é o lugar onde ver é perder, e onde o objeto da perda sem recursos nos olha. É o lugar da inquietante estranheza".

Didi-Huberman (2010) aponta que a palavra unheimlich contém o paradoxo de ser uma palavra do olhar (é o suspectus do latim), do lugar (é xénus, o estrangeiro grego) e, principalmente, do tempo (há muito tempo conhecido e familiar). Assim, o "estranho" evidencia o poder do olhado sobre o olhante, já que "o objeto unheimlich está diante de nós como se nos dominasse, e por isso nos mantém em respeito diante de sua lei visual. Ele nos puxa para a obsessão" (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 228). Trata-se de objeto presente, testemunha e dominante e se dá a ver com a força de saber que sobreviverá ao nosso olhar. Nessa força, sua presença marca um tempo, um tempo no presente, pois olho o que está ali adiante, mas em contratempo há outros atravessamentos que marcam o que do olhar não se reduz à visão. A partir da técnica temporal usada por Diane Arbus em suas fotografias e da noção de tempo lógico de Lacan, farei uma aproximação para escrever sobre o tempo da minha experiência com o "estranho".

 

A metodologia íntima de Diane Arbus

Quando vejo as fotografias de Diane Arbus, um dos primeiros fragmentos de devaneios que me vem é: como ela conseguiu tirar essa foto? Tão íntima! A proximidade mostrada com seus personagens compõe fortemente o efeito Arbus, mas juntamente com o mistério de quem é essa pessoa? Como Arbus chegou a ela?

Se eu fosse apenas curiosa, seria muito difícil dizer a alguém 'quero ir à sua casa, estimular você a falar e ouvir você me contar a história de sua vida'. As pessoas me responderiam: 'Você está maluca'. Além do mais, ficariam muito precavidas. Mas a câmera é uma espécie de licença. Muita gente quer que prestemos a elas muita atenção e esse é um tipo razoável de atenção para se prestar (ARBUS, apud SONTAG, 1977, p. 104)

Arbus, na parte mais relevante de sua carreira, a década de 60, usava uma câmera Rolleiflex 6x6, que produzia fotos quadradas, o que se tornou uma de suas marcas. Ela procurava suas fotos perto de sua casa, em Nova York. Ia a bailes de travestis, hotéis mantidos pela previdência social, carnavais em Maryland, campos de nudismo em Nova Jersey e na Pensilvânia, Disneylândia e hospitais psiquiátricos. Sua busca estava no cotidiano. Assim, o que importava era seu olhar para encontrar as aberrações e, mesmo ao fotografar pessoas consideradas normais, Arbus descobria nelas a excentricidade.

Não havia um momento específico, um acontecimento determinado para a câmera de Arbus. Todos os momentos do cotidiano têm importância para uma estranha foto acontecer. Veja a fotografia Mother Holding Child de Arbus (1967), leitor. A câmera de Arbus transformava qualquer pessoa em alguém angustiado, perturbado, louco: um bebê chorando se torna transtornado, em uma cena que é assustadora também pela expressão da mãe e pela sombra obscura de um sujeito ao fundo. A fotógrafa também encontrava repetidamente o angustiante em pessoas que tinham alguma semelhança ou que fossem gêmeas, como se na repetição comum do dia a dia houvesse algum mistério, alguma obscuridade.

Na obra de Arbus, houve a produção de ao menos dois efeitos artísticos: ela pôs o espectador em seu lugar de fotógrafa e tornou familiar o freak, que é uma palavra inglesa de origem etimológica imprecisa que pode ser entendida como aberração ou monstro. No dicionário de língua portuguesa, freak é também "singularidade, excentricidade; capricho, veneta, veleidade, fantasia, extravagância; anomalia, aberração, monstruosidade, monstro, aborto; fã, admirador, entusiasta; esquisito, estrambótico, excêntrico, esdrúxulo, grotesco, singular" (MICHAELIS, 2009, p. 115). Arbus ficou conhecida como a fotógrafa dos freaks, fazendo pessoas ditas "normais" e até mesmo rostos célebres parecerem estranhos, bisonhos e desequilibrados (KURAMOTO, 2006).

Há a presença constante da ambivalência na obra de Arbus, seja na palavra freak, nas pessoas fotografadas, na experiência, no efeito diante de suas fotografias. Na foto Mother Holding Child, por exemplo, o que haveria de interessante em um bebê chorando? O olhar de Diane Arbus torna essa cena cotidiana um evento, e "diz veja bem isso!" A mãe do bebê se dirige a mim, espectadora, para mostrar algo que está ali e não estou vendo muito bem, algo que cintila no dia a dia dessa mãe, nos olhos desse bebê angustiado. Veja isso!

Além de transformar as pessoas consideradas "normais" em freaks, Arbus fez, principalmente, o caminho inverso. Fotografava as pessoas consideradas aberrações em sua época (como anões, gigantes, loucos, travestis) em seus espaços mais íntimos - em suas casas, com seus pais, em bancos de praça, nus em frente ao espelho, em suas camas -, explicitando suas vidas tão comuns quanto as vidas dos sujeitos considerados normais. Com isso, nas fotografias de Arbus não havia somente a presença física das anomalias e dos marginais; também era feito um trabalho de retratar essas pessoas em seus mundos.

O estranhamento não está nas fotografias de freaks em suas casas de horrores, em seus shows ou manicômios, e sim no fato de que eles estão em suas casas, numa intimidade comum e familiar a qualquer um. Assim, o que há de mais singular nesses fotografados pode tocar no que há de mais íntimo em quem os vê. As fotografias de Diane Arbus fazem irromper o movimento de torção entre familiaridade e estranheza. Mas será que isso se daria somente por essa face do que é marginal/estrangeiro?

"Sempre pensei em fotografia como uma maldade - e esse era um de seus pontos prediletos, para mim, e quando fotografei pela primeira vez, me senti muito perversa", disse Diane Arbus (apud SONTAG, 1977, p. 13). Sontag atribui essa fala da fotógrafa à sua escolha temática, os freaks. E antes de ultrapassar a linha entre pesquisadora e psicanalista sem ser convidada por Arbus - como o fizeram tantos psicanalistas em análises psicobiográficas -, trago as falas da fotógrafa para ecoarem através de seu trabalho. Aqui, nesta escrita, as frases de Diane Arbus importam como composição, como parte de sua obra, e não em seu aspecto biográfico.

Numa dessas frases, lê-se: "A fotografia era uma autorização para eu ir aonde quisesse e fazer o que desejasse" (ARBUS apud SONTAG, 1977, p. 28). Uma de suas fotos mais emblemáticas é A jewish giant at home with his parents in the Bronx, N.Y., de 1970. Arbus demorou dez anos para chegar a essa foto em que a mãe olha para o gigante com espanto e o pai com desprezo. Como aponta Kuramoto (2006), foram milhares de negativos tirados do gigante judeu em situações bem triviais para que Arbus chegasse à sua tão desejada foto. O trivial não seria espantoso somente por sua banalidade. Ela desejou encontrar alguma estranheza em torno do gigante, quis ir além de mostrá-lo em sua casa e encontrou o desconforto no desprevenido olhar dos pais.

Arbus não fotografava vítimas de guerras, de fome ou exilados políticos. Seu interesse era relativo aos desastres privados. Se o espectador pressupõe sofrimento em travestis, anões, gigantes, não é isso que ele encontra nessas fotografias, e sim autonomia e alheamento, às vezes alegria e expressões triviais, cotidianas de quaisquer pessoas, como em A Mexican Dwarf, In His Hotel Room (1970). A angústia está mais presente nas fotos de pessoas "normais", como em Mother Holding Child (1967). Contemple, leitor.

 

O retrato nada documental e o tempo disruptivo de Arbus

Antes, leitor, dê um passeio por A naked man being a woman (1968). Diane Arbus tem seu trabalho reconhecido pela excentricidade de sua obra, que se inicia na relação forma-conteúdo de suas fotos. Na forma, Arbus mantém o estilo pictográfico clássico de retratos, com características como frontalidade, centralidade e solenidade, além de traços do estilo documental. Ainda na forma, utiliza, ao mesmo tempo, técnicas como a luz estourada, que simula precariedade técnica e desleixo em suas produções. Esta é uma ironia intencionada e se acentua no encontro com os conteúdos das fotos.

Em sua dissertação sobre Diane Arbus, Emy Kuramoto (2006) comenta que, na obra da fotógrafa há constantemente o contraste entre aparência e essência numa espécie de jogo entre técnica e conteúdo, que acabam por se diluir um no outro. A apresentação dos personagens em close-up lhes dá a qualidade de ícones em linguagem fotográfica, privilegiando a singularidade de cada fotografado.

Na tradição fotográfica, o retrato, com seu ato de fazer o fotografado encarar a câmera, significa solenidade e franqueza, sendo por isso uma técnica muito utilizada no registro de cerimônias formais. O retrato - técnica presente em quase toda a obra de Diane Arbus - torna sua fotografia ainda mais impressionante, pois as pessoas fotografadas não se apresentariam tão abertamente, tão gentilmente à câmera, seja por seu posicionamento social marginalizado, seja pelo contexto (como nas casas de nudismo, por exemplo). O retrato evidencia que houve cooperação mútua para o acontecimento da foto, efeito da intimidade conquistada por Arbus.

As fotografias de Arbus também eram produzidas por seus personagens que, incentivados por ela, criavam a si mesmos no processo. E apesar de toda a produção de personagem desenvolvida por Arbus e pelo fotografado, suas fotos captavam o que as próprias pessoas não queriam mostrar. Tecnicamente, a fotografia era capturada em um momento anterior ou posterior ao tempo padrão, produzindo, assim, a lacuna entre o efeito da foto e a intenção do fotografado (KURAMOTO, 2006). Na fotografia, eram retratados o estranhamento e o desconforto diante da pose idealizada pelo personagem que não foi realizada pela fotógrafa em sua captura. Depois, ao verem a foto pronta, os fotografados se estranhavam em suas imagens, pois o que emergia era desconhecido deles mesmos.

A fotógrafa não espionava as pessoas; ela as conhecia e se tornava íntima delas, o que produzia um ambiente tranquilizador, confortável e familiar para fotografá-las. Muitas vezes, elas estavam literalmente em casa. Alguns de seus fotografados olhavam o resultado final na foto com desconforto, pois Arbus conseguia capturá-los relaxados e fora da pose, indo ou saindo da pose desejada; o estranhamento se produzia nesse intervalo desconcertante em que a foto era tirada.

Em Arbus, a semelhança entre os personagens não produz a confluência no olhar, e sim a divergência. A identidade entre os freaks é produzida pelo uso das mesmas roupas, pelo fato de serem gêmeos ou através de máscaras, enfatizando o quanto são diferentes, não se reduzindo uns aos outros. Nas fotografias de Diane Arbus, a pose nunca acomoda a semelhança, "a pose nunca parece ser suficiente: há demasiado desconforto e inquietude. A semelhança escapa" (LISSOVISKY, 1999, p. 95).

O instante da pose retratado por Arbus é curto e descentrado, átono. Assim, toda a produção da pose que ela compunha com os freaks era feita para que a fotógrafa capturasse o que escapava à posição ideal, e ela dizia que "fotografar não tem nada a ver com estar confortável, nem para o fotógrafo, nem para o modelo" (ARBUS apud LISSOVISKY, 1999, p. 96).

Arbus não é o caçador paciente que assenta sua armadilha no terreno, e nem o granjeiro sedentário. Ela atua, às vezes, como um toureiro, que, simultaneamente, seduz e desvia. Mas, de modo geral, encurrala e açula o instante até que ele se projete em um quase fora-de-si da figura (LISSOVISKY, 1999, p. 104).

Nas fotos de Arbus, o instante é instigado, é produzido como se fosse preciso chegar à foto certa. Para Lissovisky (1999), a fotografia de Arbus é sempre a fotografia certa como resposta à demanda feita aos seus personagens: mostre-se! Em oposição ao retrato tradicional, em que o modelo vê, mas não olha (ele é retratado para ser olhado), Arbus, em seus retratos, provoca o olhar de seus freaks para que eles não apenas sejam vistos, mas que também a olhem. O olhar desses personagens que olham é um dos principais produtores do desconforto e do espanto que se experimenta diante das fotografias de Arbus. A estrutura da fotografia de Diane Arbus é de flagrante desconcerto.

 

O tempo lógico na fotografia de Diane Arbus

O que acontece no momento em que vejo os freaks e o "estranho" me olha? A temporalidade irruptiva que a obra de Diane Arbus provoca é um importante fator na escrita sobre essa "estranha" experiência. O limiar que a arte nos revela, que se abre entre o que vemos e o que nos olha é a abertura que carregamos em nós, nossa ferida sempre aberta. Esse é o acontecimento, mas em que temporalidade essa experiência se dá? Através do tempo lógico lacaniano, é possível pensar essa temporalidade.

A experiência do "estranho" é da ordem do acontecimento, de algo que irrompe e toma o sujeito num espanto, no tempo do inesperado. Na escrita de Lacan há a presença, a insistência e a repetição de palavras como arrebatamento, surpresa, azáfama, extático. Há o tempo do instante demarcado por esses termos, que se aproxima da súbita e fugidia experiência do "estranho".

Acrescida a sua face objetal, está a questão temporal de Unheimliche. O "estranho" se repete, e esse movimento de irrupção repetitiva pode ser lembrado em uma das experiências trazidas por Freud (1919/2010), quando ele andava pelas ruas e de repente se percebeu novamente em uma rua pela qual já havia passado, e isso se repetiu à noite. Voltava a caminhar em direção ao seu destino, mas em algum momento percebia naquelas ruas a semelhança com as anteriores até estar diante das mesmas. Lacan (1962/2005), ao falar sobre o "estranho", traz a experiência do labirinto, que também apresenta essa irrupção seguida de um esquecimento, para dali irromper novamente.

Além da presença do tempo instantâneo na própria estrutura de uma fotografia, a obra de Arbus traz também outras formas de temporalidade que corroboram com seu "estranho" efeito. A experiência de estar diante das fotografias de Diane Arbus apresenta a temporalidade irruptiva do "estranho" a partir de cada fotografia, uma a uma. O efeito de cisão no espectador que a olha acontece a partir da demora diante de uma foto, produzindo a experiência de ver os freaks e ser olhado de volta pelo "estranho" objeto. Para pensar esse efeito nas fotografias, trago o Tempo lógico elaborado por Lacan e a Nota azul de Didier-Weill, que pensa o tempo lógico para a experiência com a música.

'Súbito', 'de repente' - vocês sempre encontrarão essas expressões no momento da entrada do fenômeno do unheimlich. Encontrarão sempre em sua dimensão própria a cena que se propõe, e que permite que surja aquilo que, no mundo, não pode ser dito (LACAN, 1962/2005, p. 86, grifo do autor).

Essa breve angústia logo se extingue, mas sem ela, sem esse tempo introdutório, não há o trágico ou o cômico: é o que afirma Lacan (1962/2005) quanto ao "estranho". Lacan (1945/1998), em O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada: um novo sofisma, situa o tempo a partir do campo da lógica e o estabelece como o tempo de constituição do sujeito. O psicanalista inicia o texto apresentando um problema de lógica, no qual um diretor de prisão propõe uma prova a três prisioneiros, sendo que, ao final, com a resolução, um prisioneiro terá a liberdade. Na prova, há cinco discos, sendo três brancos e dois pretos; um disco será colocado nas costas de cada prisioneiro, de forma que o mesmo não saberá sua cor e verá somente os discos dos outros dois, não podendo haver comunicação entre eles. O primeiro que acertar a cor de seu próprio disco e fizer uma narrativa lógica de como o descobriu, será libertado, ficando "convencionado que, tão logo um de vocês esteja pronto a formulá-la, ele transporá esta porta, a fim de que, chamado à parte, seja julgado por sua resposta" (LACAN, 1945/1998, p. 198). Eles aceitam a prova e o diretor usa somente os discos brancos, de forma que cada um dos três possui um disco branco.

Para fazer a discussão, Lacan (1945/1998) estabelece o sujeito real A e os sujeitos refletidos B e C. A única situação em que esse problema se resolveria sem hesitação seria se houvesse dois discos pretos e um branco, pois, o prisioneiro que os visualizasse teria a certeza de ser branco. Na segunda situação possível, sendo um disco preto e dois brancos, haveria hesitação para os dois sujeitos com disco branco, pois cada um veria um disco preto e um branco, mas percebendo a hesitação no outro, se saberia branco, já que, caso houvesse dois pretos, algum dos sujeitos não hesitaria, como apresentado na primeira situação. Na terceira situação - a que acontece no sofisma - os três prisioneiros estão com discos brancos e a resolução se dá a partir de dois momentos de hesitação até chegarem à conclusão, sendo esta apontada por Lacan como a solução perfeita: após um certo tempo analisando o problema, os três prisioneiros dão passos e cruzam a porta simultaneamente, ao que dizem a mesma resposta:

Sou branco, e eis como sei disso. Dado que meus companheiros eram brancos, achei que, se eu fosse preto, cada um deles poderia ter inferido o seguinte: 'Se eu também fosse preto, o outro, devendo reconhecer imediatamente que era branco, teria saído na mesma hora, logo, não sou preto'. E os dois teriam saído juntos, convencidos de ser brancos. Se não estavam fazendo nada, é que eu era branco como eles. Ao que, saí porta afora, para dar a conhecer minha conclusão (LACAN, 1945/1998, p. 198).

Fingermann (2009) aponta que este é um texto fundamental para o ensino lacaniano e o psicanalista irá retomá-lo em diversos momentos, desdobrando-o na confluência de suas elaborações. Todo sofisma apresenta desde o início um erro lógico. Porge (1998) em "Psicanálise e tempo: o tempo lógico de Lacan" destaca que os impasses ao problema fundamentam o sofisma de forma que a solução se dá a partir das paradas e jogadas do sujeito. Desta forma, o erro e a pausa estão integrados ao raciocínio lógico, sendo intrínsecos à sua validação.

Para discutir como chegou à solução perfeita, Lacan (1945/1998) escreve sobre a modulação do tempo, que se dá através do (1) instante do olhar, passa pelo (2) tempo para compreender, até chegar ao (3) momento de concluir. O primeiro e o terceiro intervalos ocorrem instantaneamente, sendo que somente o tempo para compreender demanda uma duração para que o sujeito se precipite no momento de concluir. No entanto, como se trata de tempos lógicos e não cronológicos, o "tempo para compreender pode reduzir-se ao instante do olhar, mas esse olhar em seu instante pode incluir todo o tempo necessário para compreender" (LACAN, 1945/1998, p. 205).

O sofisma não é possível ser pensado sem o encadeamento do tempo (1) para o (2) e o (3). No entanto, o tempo lógico, para além desse conto, não precisa acontecer nessa sequência. Diante das fotografias, ficcionalmente o primeiro tempo coincide com o instante do olhar, mas depois não é possível saber qual será o seguinte - se será o tempo para compreender ou o momento de concluir. Inclusive, o que não há são garantias, pois um tempo não garante que o próximo aconteça. O momento de concluir pode acontecer anteriormente ao momento de encontro com a obra de arte e vir a tomar corpo imagético diante da fotografia. O sujeito pode passar pelo instante de ver e ficar preso no tempo para compreender e não concluir, ou mesmo concluir no instante de ver sem o tempo para compreender. E mais, é possível que o sujeito nem passe do instante de ver, o que, no campo da arte, se refere ao momento em que se está diante de alguma obra e não é produzido qualquer efeito.

A objetividade do tempo lógico é incerta em seu limite, não sendo possível situar nele uma cronologia. Lacan (1945/1998) afirma que, como ficção, essa experiência não irá decepcionar quem tem "certo gosto pelo espantar-se" (p. 199), pois apesar de o tempo para compreender demandar uma passagem temporal, alguma duração, o instante de ver e o momento de concluir são instantâneos, rápidos e intensos como um espanto.

No sofisma, o tempo zero, ou momento de fulguração, é o instante de olhar os discos. Aqui o sujeito é impessoal e noético: Sabe-se que... diante de dois pretos, sou branco; mas o sujeito está diante de dois brancos, o que já o leva à segunda suposição e ao tempo de compreender. Aqui o espectador se situa diante de uma fotografia de Arbus e a vê.

Pausa, leitor. Só olhe A young man in curlers at home on West 20th Street.

Feita a parada, eu sigo daqui: Sabe-se que essa é a foto de um jovem de bobs em casa...

O tempo de compreender é o momento de construção da hipótese do sujeito A, que se dá através da não ação, do tempo de parada de B e C. Nesse segundo tempo, há a duração de uma meditação em que o sujeito A se coloca no lugar de B e C para supor sua própria cor, sendo por isso o tempo dos outros - o sujeito aqui é recíproco e indefinido. Quanto a esse tempo dois, o sujeito está na ordem imaginária de uma pura reciprocidade, de forma que só um dos sujeitos - o A - se espelha e se reconhece nos outros.

Vejo essa foto e me vem: quem é ela? Como Arbus conseguiu tirar essa foto? Que relação elas tiveram? O que ela escutou de Arbus ou estava sentindo para se expressar assim, meio melancólica, meio indiferente, quase-diva não fosse essa melancolia que me encara? Essa meia luz e esse roupão... Você recebia Diane à noite? (já converso diretamente com ela) Parece cansada... Que retrato próximo; deviam ser íntimas para estar assim tão, tão de perto...

Após a parada, no terceiro tempo aparece a função da pressa que faz o sujeito se afirmar como branco; no momento de concluir, o sujeito se precipita para que sua demora não faça os outros também concluírem que são brancos e tenham a liberdade antes dele - daí a função da pressa, pois o final ocorre como se A já estivesse em atraso: "Lacan descreve esse momento como uma iluminação que eclipsa a objetividade do tempo para compreender" (QUINET, 2002, p. 62).

E minha melancolia? Meu cansaço? M(eu).

A conclusão é uma ação pela urgência. Assim, a certeza antecipada produz um ato. Lacan (1945/1998) fala de uma asserção antecipada, pois caso permaneça na dúvida, o sujeito não se arriscará para a libertação, já que só através da ação ele poderá chegar à certeza de que será libertado ou não. Assim, nesse momento, o sujeito do enunciado e o sujeito da enunciação coincidem em: "eu sou branco". A declaração marca o momento de constituição do sujeito e a asserção de si é motivada pela angústia; para sair da angústia, o sujeito se confirma em uma certeza antecipada.

O momento de concluir tem a importância de fazer o sujeito se separar do Outro para se afirmar como ser desejante. Diante de seu desejo, o sujeito é apontado para sua falta, para sua falta-a-ser, em que não há um só significante que possa dizer o que ou quem ele é. Na asserção de si, o sujeito, ao se autodeclarar, também declara que não há totalidade do sujeito, pois não há a certeza da cor de seu disco, há uma hipótese e um ato arriscado para sua libertação.

Também [eu] estou nessa fotografia. Sigo sem saber quem é ela, quem sou, como essas fotos aconteciam...

O sujeito só chega à asserção de si através de uma verdade que não é absoluta e que pode ser posta em dúvida, mas que só pode ser verificada se antes for afirmada. Amor (2015) aponta que o acesso ao ser se dá pelo não-ser e que a certeza antecipada é uma inferência que aponta para a experiência do real, que é ligado ao que é traumático na origem. Para ser libertado, o prisioneiro, em seu ato de risco, conjugará o real e o simbólico a partir da função do tempo. Nessa conjugação, o imaginário também está presente pela visão dos discos e pela pura reciprocidade aos outros prisioneiros, mas somente pelas inferências a partir do olhar - que é atravessado pelo simbólico e está para além da visão - é que o sujeito pode caminhar para a liberdade. O simbólico dá suporte ao olhar devido à falta existente na imagem. No sofisma do tempo lógico, a falta é o não-saber de si, da cor de seu próprio disco; assim, a falta é referente ao próprio sujeito, e é na falta que o prisioneiro precisa afirmar sobre si.

Para chegar à asserção de si, o sujeito passou por descontinuidades temporais e por mudanças de posições subjetivas feitas por inferências quanto à posição dos outros e à sua. A inferência sobre si se dá quando o sujeito objetiva em ato a certeza antecipada, se lançando em um futuro anterior. Assim, a "liberdade, obtida com a solução do problema, será alcançada somente por meio da dedução do que se é pelo que não se é" (AMOR, 2015, p. 48). No momento de concluir, o sujeito faz emergir, em sua originalidade, o risco corrido pela asserção de si e sua afirmação em ato, o que só é possível ao romper com o tempo do outro e com a relação de reciprocidade.

No tempo lógico, para se chegar à asserção de si na certeza antecipada, antes o sujeito busca saber a cor do disco do outro, colocando-se no lugar dele para saber de si. A pergunta "que disco sou?" só é respondida por antes haver a buscar de ver e saber sobre o disco do outro. Para Fingermann (2009), a principal questão do apólogo é como concluir o jogo ainda que na falta de saber, sem a certeza de si. A precipitação do sujeito ao se afirmar em meio ao não-saber de si não decorre somente da visão do disco do outro, pois isso não leva o sujeito à certeza de si, podendo ficar eternamente paralisado na dúvida. É na descontinuidade sobre o saber do Outro que o sujeito conclui em risco sobre si.

Ainda que em dúvida, o sujeito se precipita na lógica assertiva, em um movimento que, "aspirado entre o instante de seu início e a pressa de seu fim, parecera estourar como uma bolha" (LACAN, 1945/1998, p. 209). O valor de juízo, desde Descartes, está atrelado à dúvida. Na lógica lacaniana, o juízo se aproxima da certeza antecipada para concluir o tempo lógico, sendo que a dúvida está ligada à suspensão do tempo de compreender.

Lacan (1945/1998) escreve que, no sofisma, a angústia aparece em sua forma ontológica no momento de concluir, quando o sujeito se afirma. Essa asserção de si é motivada pelo que se apresenta na expressão "por medo de que", pois, o medo do erro pela demora faz o sujeito se afirmar com a cor do disco que supõe possuir. Passado o transitivismo especular do "se..." ocorrido no segundo tempo, o sujeito lógico em asserção assume a forma "pessoal do sujeito do conhecimento", o [eu] lacaniano. O [eu] é a última pessoa do tempo lógico, mas também é a única, pois essa forma de referência marca o nascimento do sujeito ocorrido a partir de decantação do próprio tempo lógico. Por isso, é preciso ultrapassar a dúvida angustiante para finalizar o processo, caso contrário o sujeito fica paralisado no angustiante "se...", ou diante da arte.

No sofisma, o tempo se dá por escansões, e não em uma continuidade. Lacan (1945/1998) evidencia que para o sujeito dizer de si, para se constituir como sujeito, o tempo lógico é intrínseco a esse processo. Amor (2015) lembra que Lacan foi influenciado pelo ensino de Kojève sobre Hegel. Isso se evidencia com a priorização da dimensão temporal em prol da espacial no ensino lacaniano. Segundo Amor (2015), Kojève afirma que o ser do homem, se alimentando de desejos insatisfeitos, em seu devir terá uma forma temporal, e não espacial. Há uma prioridade da dimensão temporal sobre a espacial, sendo que o sofisma só se realiza porque, para além do momento de ver os discos (espaço), há o tempo de inferência sobre o que não se vê (os discos pretos).

Kehl (2009) comenta que o tempo lógico lacaniano faz referência ao sujeito freudiano que advém de um intervalo, e não de um lugar na lógica espacial. A relação de saber possível ao sujeito da psicanálise - saber inconsciente - se dá através da experiência temporal. Quando Erik Porge (1998, p. 502), no Dicionário enciclopédico de psicanálise, conceitua o que é o Sujeito, refere-se a uma "pulsação... fenda por onde algo de não sabido - de inconsciente - se abre e se fecha assim que é apreendido pela consciência... O sujeito não é nada de substancial, ele é o momento de eclipse que se manifesta num equívoco". O desconhecido inconsciente emerge em intervalos súbitos e exclui a familiar imagem do eu, revelando a cisão constitutiva ao sujeito.

Não se sabe o tempo necessário para o tempo de compreender, daí a incerteza sobre a duração. O terceiro tempo ocorre quando o sujeito se desprende da rigidez imaginária e das identificações, assumindo o próprio risco do saber inconsciente. Esse despregamento não ocorre em dependência da demanda do tempo apressado do Outro:

... o tempo ocioso que antecede as descobertas criativas, os "achados" aparentemente espontâneos...é o tempo do pensamento inconsciente. O instante do Eureka! na criação artística, na pesquisa intelectual, no setting analítico etc, depende de um tempo interior, singular para cada sujeito e impossível de determinar (KEHL, 2009, p. 119).

Ainda que tudo isso pareça ocorrer em alta velocidade cronológica, como dito anteriormente, o que aparece como ato fulgurante não exprime a duração que foi necessária para essas elaborações. Assim como ocorre no movimento de ver e ser olhado, esses instantes carregam uma condensação temporal de impressões que marcaram o sujeito também em outras experiências. O que acontece ao estar diante de uma foto advém do próprio momento, da foto em si, mas também dos traços do dia a dia que marcam e se depositam no psiquismo.

 

A torção temporal quando vemos e somos olhados de volta

Didier-Weill (1976-77) se apropria do tempo lógico de Lacan para pensar a experiência do ouvinte na música, a partir da instantaneidade da Nota Azul. A Nota Azul é uma metáfora feita sobre a obra de Chopin, que o psicanalista usa também para nomear o momento em que a música nos captura, nos enfeitiça. O autor se faz a seguinte questão: "De que magia a música retira este poder de nos transportar de um estado para o outro?" (DIDIER-WEILL, 1976-77, p. 57).

Ao falar sobre a música, Didier-Weill (1976-77, p. 88) parte "da ideia de que, se escutamos uma música - estou falando de uma música que nos fala ou que nos 'musica'- é como ouvintes que primeiramente funcionamos, que consideramos essa música". A arte - e no caso de Didier-Weill, a música - não somente torna o sujeito sensível por presentificar seu desejo inconsciente, ela diz mais: diz que esse desejo não é só dele. Isso porque, ao escutá-la, supomos que o sujeito que a criou também possui esse desejo, também é testemunha dele e faz da sua criação resposta a ele, não se paralisando ou se angustiando. Assim, o ouvinte, em seu lugar de Outro e colocando o artista no lugar de sujeito, tem notícia de seu desejo e não se angustia ao supor que ele seja compartilhado.

... um Sujeito - o criador de música - nos dá testemunho de que a presença do desejo do Outro que somos pode não funcionar para ele como esse "che vuoi? " angustiante. Nesse caso é até mesmo o contrário que se produz, pois se a questão formulada pelo Outro no "che vuoi? " deixa o Sujeito sem resposta, aqui o Sujeito, ao nos responder, faz surgir em nós a presença de uma questão cuja natureza se revela não esterilizante, mas fecundante para ele... (DIDIER-WEILL, 1976-77, p. 70, grifo do autor).

Aqui, sobre as fotografias, é possível dizer de uma fotografia que nos fotografa. No primeiro momento desse tempo lógico, estou como quem vê a foto - este é o instante de ver. Nesse primeiro tempo, a foto produz em mim o efeito de uma resposta, o que me provoca a antecipação de uma pergunta que já me habitava, mas que eu desconhecia. Em Arbus, a resposta sempre é: freaks e suas ambiguidades de estranheza familiar, pose e desconcerto, intimidade e alheamento, máscaras e closes... Como vidente, sou Outro, não sujeito. Com a emergência dessa questão que me habitava na posição de Outro, que ocorrera pela resposta antecipada dada pela fotografia quando me afetou, suponho que Arbus se inspirou por ela e compôs sua obra, que seria a resposta à pergunta anterior. Assim, é pela existência da foto/resposta que há a produção da pergunta no sujeito que a vê.

Didier-Weill (1976-77) fala do instante de afetação pela música como ouvinte como um momento de comemoração de nossa falta fundamental, o objeto a. A resposta mágica dada pela Nota Azul - a música que afeta - nesse átimo depende que ela evidencie que o Outro e o sujeito só podem se encontrar ao conjugarem, ao conciliarem o inconciliável, que é o que lhes há em comum: o objeto a. É como se, nesse rápido momento de escansão temporal, sujeito e Outro se encontrassem pelo reconhecimento do que lhes falta em comum e comemorassem a impossibilidade que os funda.

Na segunda virada, o vidente que está como Outro retira o artista da posição de sujeito e coloca a fotografia como sujeito suposto saber. Quando ocorre esse processo dialético, em que seu efeito só se dá com a arte afetando o vidente e este se afetando por ela, o espectador deixa de ser quem vê a fotografia; é a fotografia que passa a reconhecê-lo. Assim como na música, o vidente que há em mim se movimenta para o outro lado e passa a me olhar. Na música, há a transformação do ouvinte em escutador; na fotografia, a passagem é de vidente a olhador. Nesse lugar de olhador, o que é olhado, o que se revela a mim? O que me revela?

Se, de fato, nos acontece de sermos abalados pelo que nos aparece como tão "familiar" nessa nostalgia musical, não é que nós a reconheçamos: é que nós somos reconhecidos por ela. Como se, de repente, o ouvinte que havia em nós passasse para o outro lado e começasse a nos escutar (DIDIER-WEILL, 1976-77, p. 75-76).

No olhar também ocorre essa torção de o vidente estar inicialmente como Outro, passando depois à posição de sujeito? Proponho que sim, e é esse o acontecimento na torção: vejo freaks, eles me olham, sendo a posição final resultante do movimento provocado pelo "estranho". Do primeiro tempo para o segundo acontece uma virada: se antes eu me reconhecia como vidente da fotografia, agora é ela que me olha. No segundo tempo, sou reconhecida pela fotografia e ela se torna "uma questão que me convoca como sujeito a respondê-la" (DIDIER-WEILL, 1976-77, p. 77). No segundo tempo, a foto se torna sujeito, deixa de ser resposta e se torna questão, e eu respondo a essa questão feita por esse sujeito suposto olhar2.

Quanto ao objeto a, Didier-Weill o coloca como metamorfoseado pela música que transformou a tristeza da falta de objeto em nostalgia - felicidade em estar triste - do objeto. Na nostalgia, a tristeza da falta se torna felicidade, amor pela falta. Penso que isso não acontece nas fotografias de Arbus, pois em alguns momentos persiste o estranhamento como externo, como estrangeiro, alheio a mim, ainda que me afete. Diante das fotografias de Arbus, o prazer é de outra ordem, vigorando mais o estranhamento, a suspensão, o não-saber, e não tão diretamente a confirmação de um prazer ou felicidade. E é devido a essa suspensão que o meu olhar persiste, se demora e continua diante delas.

No terceiro tempo, aparecem novos sujeito e objeto. O vidente sai da posição de Outro e passa à posição de sujeito, como se ele mesmo tivesse produzido a fotografia que o atravessa. No momento de concluir, acontece uma virada em que nos é dada a revelação de que o Outro somos nós, sou [eu], e é através disso que é possível passar para posição de sujeito. Para reiterar sua posição sobre angústia na Nota azul, Didier-Weill (1976-77, p. 75) afirma que nesse reviramento de Outro a Sujeito, ainda que a nova posição guarde alguma familiaridade, esta "não é acompanhada por uma 'inquietante estranheza'" referenciada pelo estranho freudiano.

Aqui marco novamente uma diferença entre a minha posição sobre a fotografia de Arbus em relação à posição de Didier-Weill sobre a música: é através do efeito do estranho que pensamos o próprio tempo lógico nas fotografias de Diane Arbus. Importante relembrar que, como evidencia Freud (1919/2010) no início de O "estranho ", este efeito se situa no campo da angústia e, ainda que, dentro deste campo, o estranho tenha suas peculiaridades, especificidades, ele se estrutura a partir da angústia. Assim, a angústia é estruturante do efeito "estranho" nas fotografias.

Agora, deslocando-me do texto de Didier-Weill (1976-77) sobre a Nota azul para a fotografia de Diane Arbus: no 1º tempo lógico, a fotógrafa traz ao vidente uma resposta, fazendo surgir a antecedência de uma questão; num 2º tempo, essa resposta significante vai topologicamente inverter-se e constituir-se como a questão a partir da qual o vidente, não mais solicitado como Outro, será convocado a se posicionar como sujeito no campo fotográfico dessa nova questão significante.

Na fotografia de Arbus, há uma maior sustentação da dúvida, uma continuação do Che vuoi? do tempo de compreender até o final do tempo lógico. Persistir diante da "estranha" fotografia faria suspender um pouco mais a escansão temporal até o fechamento da questão. Desta forma, ao final de todo esse processo de afetação, o que se confirma não é o amor ou a felicidade, como pensados por Didier-Weill na música. A abertura do não-saber como efeito da suspensão provocada pelas fotografias faz abrir um encadeamento e continuá-lo através das perguntas/hipóteses do olhador: que foto é essa? É sobre isso, isso, isso... é difícil dizer, não sei, mas tem isso, isso, isso... mas tem isso que não sei...

Diante do "estranho", há a abertura da cadeia sustentada pela angústia, mas também é preciso que o tempo para compreender tenha fim. A asserção de si se dá fazendo com que a cisão do sujeito não seja uma constante porta aberta para a angústia; a constância na angústia é outra coisa que não o "estranho". É na ambiguidade, na báscula entre confortável e angustiante, trivial e impressionante, retrato e distância que o "estranho" se dá. Seu tempo irruptivo que provoca minha disrupção acontece como surpresa pelo seu contraste com a mesmice cotidiana, a aparente calmaria do dia a dia que guarda algo à espreita em alguma curva do labirinto.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 08/07/2019
Aprovado para publicação em: 24/10/2019

Endereço para correspondência
Mariah Neves Guerra
E-mail: mariahnguerra@gmail.com
Cristóvão Giovani Burgarelli
E-mail: crgiovani@gmail.com
Daniela Chatelard
E-mail: dchatelard@gmail.com

 

 

*Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB). Brasília, DF, Brasil.
**Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pós-Doutorado pela Université Paris 8 - Vincennes-Saint-Denis. Professor Associado II da Universidade Federal de Goiás (UFG). Goiânia, GO, Brasil.
***Doutorado em Filosofia pela Université Paris 8 - Vincennes-Saint-Denis. Professora Associada do Programa da Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). Brasília, DF, Brasil.
1Dentre tantas traduções possíveis para Das Unheimliche, escolhi "o estranho" por se aproximar da palavra freak utilizada na obra de Diane Arbus.
2Aqui transformo a referência de Didier-Weill (1976-77), que chama a música de "sujeito suposto ouvir" (p. 93), como analogia ao sujeito suposto saber, que é o lugar em que se coloca o psicanalista no processo de análise através da transferência.

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