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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.42 no.42 Rio de Jeneiro jan./jun. 2020

 

ARTIGOS

 

Quem contou os tiros que mataram Mineirinho, quem conta os dias da morte de Marielle? Um olhar psicanalítico para uma comoção

 

Who counted how many shots killed Mineirinho, who counts the days since Marielle's death? A psychoanalytical look at commotion

 

 

Lina CavalcanteI*; Michele Lourinho**; Ana Carolina Borges Leão MartinsI, II***

IFórum do Campo Lacaniano de Fortaleza - Brasil
IIUniversidade Federal do Ceará - UFC - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O que causa nossa comoção diante de uma morte? Por que Clarice Lispector conta os tiros que mataram Mineirinho e uma parcela da população conta os dias da morte de Marielle Franco? Essas são indagações que guiam um olhar psicanalítico para a comoção exposta na crônica Mineirinho, de Clarice, oportunidade em que se realiza um entrelaçamento da psicanálise com a obra literária. Além dessa abordagem, busca-se uma relação entre a narrativa da crônica e o conceito de comoção e vida precária em Judith Butler. Há também um diálogo entre o que traz Butler e a ética trágica da psicanálise.

Palavras-chave: Psicanálise, Mal-estar, Segregação, Comoção, Literatura.


ABSTRACT

What causes our commotion before death? Why does Clarice Lispector count how many shots killed Mineirinho and part of the population counts the days since Marielle Franco's death? These are questions that guide the psychoanalytical look at the commotion exposed in Clarice's chronicle Mineirinho, when there is an interlacing between psychoanalysis and the literary work. Beyond this approach, there is a search for a relation between the chronicle and the concepts of commotion and precarious life as defined by Judith Butler. There is also a dialogue between what Butler brings and the tragic ethics of psychoanalysis.

Keywords: Psychoanalysis, Malaise, Segregation, Commotion, Literature.


 

 

Introdução

A crônica trabalhada neste artigo - Mineirinho, de Clarice Lispector - foi primeiramente publicada em 1962, na revista Senhor, depois, em 1964, na obra A legião estrangeira (LISPECTOR, 1964), e, em 1978, em Para não esquecer (LISPECTOR, 1999). A escritora viveu em Recife e lá teve contato direto com uma realidade de injustiças sociais e misérias. Desde pequena, gostava de defender os desfavorecidos, tema que aparece na crônica O que eu queria ter sido (LISPECTOR, 2004). Por isso, escolheu a carreira do Direito e nela interessou-se pelo Direito Penal. Declarou em textos e em entrevistas que escolheu o curso porque queria reformar as penitenciárias e, em alguns dos seus escritos, ainda na época da faculdade, já era possível perceber a sensibilidade da escritora diante das injustiças sociais.

Há uma influência histórico-social na estrutura da crônica Mineirinho (LISPECTOR, 1999), pois nela o fator social é determinante do valor estético. O fator social é determinante - mas não o limite -, pois é o ponto de partida. A sequência de pensamentos e de angústias narradas pela cronista parte de um acontecimento histórico: o fuzilamento do bandido carioca conhecido como Mineirinho. A obra, porém, não se contenta com a instância do factual e coloca em questão posicionamentos de uma sociedade. É exatamente na forma com que estes questionamentos são colocados que a escritora escapa do relato histórico ou do texto estritamente jornalístico e adentra o universo literário. Pelo que foi dito, opta-se, neste trabalho, por trazer também, mais sucintamente, a comoção de uma parcela da sociedade diante do assassinato de Marielle Franco, não uma bandida carioca, mas uma socióloga e vereadora, mulher, mãe, lésbica, negra, feminista e militante de esquerda. A associação, feita neste trabalho, entre a comoção de Clarice Lispector e a comoção de uma parcela da sociedade diante do assassinato da vereadora se faz necessária, pois não seria possível atualizar a morte de Mineirinho sem lembrar-se de Marielle. Então, Marielle: presente.

O trabalho pretende entrelaçar as possibilidades literárias da crônica Mineirinho (LISPECTOR, 1999) com os conceitos psicanalíticos de mal-estar e de segregação, presentes na obra de Freud e no ensino de Lacan, e de comoção e precariedade, em Judith Butler. O que faz com que uma pessoa se comova diante de uma morte? O que está por trás da escolha de uma comoção? Por que Clarice conta os tiros que mataram Mineirinho e uma parcela da população conta os dias da morte de Marielle Franco, enquanto outros, nos dois casos, vociferam que justiça foi feita? Ou que havia motivos para ambos os fuzilamentos? Essas são indagações que guiam um olhar psicanalítico da comoção exposta na crônica Mineirinho, de Clarice Lispector (1999).

Diante das muitas possibilidades de análise da crônica abordada e da riqueza do texto analisado, abre-se espaço para sugestões e críticas que este trabalho possa gerar.

 

O Mineirinho de Clarice e o mal-estar em Freud

Em Mineirinho (LISPECTOR, 1999), encontramos o que talvez seja o mais importante de todos os traços literários: o texto de Clarice é transgressor. Ela coloca o leitor na cena, nos tiros, no corpo morto, na mão que mata, na confusão de quem recebe a notícia, na hipocrisia ou na fuga, que muitas vezes é a forma de se viver em paz. O título Mineirinho - na revista, ele aparece com o complemento um grama de radium - traz, a priori, uma sensação de afeto. As primeiras impressões que se tem ao ler um nome ou um apelido no diminutivo é a de que há uma relação de intimidade. No primeiro parágrafo, a cronista diz que está ali para falar sobre a morte de um facínora, o que implica que o sujeito atuava com perversidade. É possível enxergar traços de ambiguidade em um texto que começa com um apelido no diminutivo, agregando sentimento de afeição, e depois usa o substantivo facínora. A narradora está em conflito, e o texto desperta esse conflito nos leitores.

Em determinado momento, Clarice declara estar nela mesma a explicação do seu sofrimento pela morte de um assaltante. E o que leva a cronista a escrever é entender por que ela sentiu a morte desse homem e "por que é que mais me adianta contar os treze tiros que mataram Mineirinho do que os seus crimes" (LISPECTOR, 1999, p. 123).

Além disso, a narradora se diz um dos representantes de nós. Ou seja, aparece como parte desse contexto que levou o marginal a ser metralhado pela polícia. A alternância de primeira e de terceira pessoa vai acontecer no decorrer da crônica, o que leva o leitor a entender o problema como parte também dele e não só dos envolvidos diretamente no fuzilamento. É uma forma de se implicar no texto, no fato, e em sua comoção e, assim, implicar também o leitor. Ao longo da crônica, fica claro que, para Clarice, não foi apenas a polícia que matou Mineirinho. Aqui, cabe lembrar as palavras de Freud, em O mal-estar na civilização (1930/2010, p. 43), quando cita as fontes de sofrimento para o ser humano e coloca dentre elas "a insuficiência das normas que regulam os vínculos humanos na família, no Estado e na sociedade". Torna-se interessante analisar esse enodamento entre primeira e terceira pessoa levando em conta as palavras de Freud. Ele diz que não podemos compreender por que instituições por nós mesmos criadas não trazem bem-estar e proteção para todos: "nasce a suspeita de que aí se esconderia um quê da natureza indomável, desta vez da nossa própria constituição psíquica" (loc. cit.).

É também disso que Clarice (1999) está falando ao se perguntar: por que foi permitido matar? Por que me comovi com essa morte? A autora fala de uma primeira lei que protege corpo e vida, a lei que diz "não matarás". Trata-se de uma lei bíblica, pois o "não matarás" é um dos dez mandamentos. Diz ser esta lei a sua maior garantia: "Assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim" (LISPECTOR, ibid., p.123). A escuridão aparece para figurar a culpa, e a narradora surge como alguém que tem na impossibilidade de matar a sua segurança. Parece entender que "a existência desse pendor à agressão, que podemos sentir em nós mesmos e justificadamente pressupor nos demais, é fator que perturba a nossa relação com o próximo e obriga a civilização a seus grandes dispêndios", conforme assinala Freud (1930/2010, p.77).

Encontramos no texto uma gradação de reações ao crime cometido pela polícia. A cronista se coloca como ouvinte dos disparos e vai confessando o que sente após cada tiro metaforicamente ouvido por ela:

Mas há alguma coisa que, se me fez ouvir o primeiro tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro (LISPECTOR, 1999, p. 123-124).

A escritora quer ser o outro. A esse respeito, Freud (1930/2010, p. 78) assinala que:

A civilização tem que recorrer a tudo para pôr limites aos instintos agressivos do homem, para manter em xeque suas manifestações, através de formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o uso de métodos que devem instigar as pessoas a estabelecer identificações e relações amorosas inibidas em sua meta.

Por que alguns podem matar, por que alguns vão se comover? Clarice conta os tiros que mataram Mineirinho. E os sente metaforicamente. Parte da população conta os dias da morte de Marielle, crime até hoje não solucionado. São 699 dias. Outros quebram a placa que homenageia a vítima. Questão ampla que aqui apenas tocamos. Em Freud (1930/2010, p. 80-81), vemos que "sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade". A cronista critica a justiça, lamenta precisar dela e então se coloca como sonsa. Freud (ibid.) nos diz que a civilização espera prevenir os excessos de violência conferindo a si mesma o direito de praticar violência contra os infratores. É importante não esquecer o que Clarice (1999) nos disse logo no início: que ela nos representa.

Mineirinho agora é o erro da escritora e de toda uma sociedade: "E eu sei que não nos salvaremos enquanto nosso erro não nos for preciso. Meu erro é o meu espelho, onde vejo o que em silêncio eu fiz de um homem" (LISPECTOR, 1999, p. 124). Na questão social, aparecem para a cronista duas pessoas que não se olham porque não podem se entender. O entendimento seria o descompasso da casa. A metáfora da casa nos leva a inúmeras possibilidades para, depois, se enraizar na de que a casa fechada e frágil é também a justiça: "Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu" (id., ibid., p.124).

A culpa, diz-nos Freud (1930/2010), não aparece apenas quando se faz um mal, pode aparecer quando se reconhece em si o propósito de fazê-lo. O mal é aquilo que ameaça uma perda de amor e, por medo dessa perda, é preciso evitá-lo. Há, assim, uma relação entre renúncia pulsional e sentimento de culpa. E todos nós que vivemos em civilização passamos por um e por outro. Freud (ibid.) aponta duas origens para o sentimento de culpa: o medo da autoridade e o medo ante o supereu. Em Clarice (1999), vemos surgir uma questão semelhante, relacionada ao reconhecimento de um mal estranhamente familiar, que tanto se relaciona à perda das satisfações egoísticas como também se localiza no princípio do cuidado ético para com o outro: "Essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, não me perdi, experimentei a perdição" (id., ibid., p. 125).

Voltando à provocação que Clarice (ibid.) faz acerca da Justiça, surge uma pergunta: pode a Justiça ter uma prática de segregação?

 

Práticas de segregação em Lacan e possíveis entrelaçamentos

Askofaré, em seu artigo Aspectos da segregação (2009), assinala que Lacan fala em dois conceitos de uma segregação: uma segregação como causa ou como princípio (estrutural) e os chamados efeitos de segregação. São citados três textos importantes no tocante a esse assunto em Lacan: Proposição de 9 de outubro de 1967, Pequeno discurso de Jacques Lacan aos psiquiatras (1967) e Seminário, livro 17 (1969-1970/1992). É possível falar, então, de um mal-estar que se difere daquele já citado aqui pelo viés freudiano. Sobre a segregação estrutural, Askofaré (2009) cita Lacan em uma associação entre segregação e fraternidade:

Não conheço senão uma só origem da fraternidade (...), é a segregação. (...) Na sociedade (...), tudo que existe está fundado sobre a segregação e, em primeiro lugar, a fraternidade. Nenhuma outra fraternidade não se concebe mesmo, não tem o menor fundamento, (...), o menor fundamento científico, se esta não for somente porque se é isolada ao mesmo tempo, isolada do resto (LACAN, 1991, p. 132, apud ASKOFARÉ, 2009, p. 347).

Já sobre os efeitos da segregação, fala-se de uma prática ou de fenômenos de segregação:

Os progressos da civilização universal vão se traduzir (...) por uma prática, em que você verá que ela vai se tornar cada vez mais estendida, que não se fará sem demora ver sua verdadeira face, mas que tem um nome que se transforma ou que não quererá dizer a mesma coisa e que vai acontecer: a segregação (LACAN, 1967, p. 15, apud ASKOFARÉ, p. 352).

Lacan (apud ASKOFARÉ, 2009) usa como exemplo os campos de extermínio nazistas e os campos de concentração soviéticos, fazendo uma relação entre efeitos de segregação e o discurso da ciência. Ao pensar nesses efeitos de segregação, podemos citar os loucos, os criminosos ou um tipo de criminoso agora tão em voga: o corrupto. Até mesmo a mulher, negra, feminista e militante de esquerda? E fica o receio de que essa lista esteja aumentando rapidamente. Então, aponta-se a possibilidade de uma relação entre Justiça e práticas de segregação, pelos olhares de Clarice Lispector e de Lacan.

A relação entre a justiça social e as práticas de segregação não passou despercebida a Freud (1930/2010), em sua concepção civilizatória fundada no poder de Eros em constituir unidades coesas e cada vez maiores. A igualdade entre os membros se torna condição necessária para o laço social, onde "ninguém deve querer salientar-se, todos devem ser o mesmo e ter o mesmo" (FREUD, 1921/1996, p. 130), implicando uma renúncia das satisfações egoicas em prol da coletividade. O argumento freudiano nos encaminha à ideia de que esse sacrifício pulsional não será em vão, sendo devidamente recompensado pelo amor do pai, ou do Estado, em sua função reguladora das relações sociais.

No entanto, a vertente ambivalente dos laços libidinais introduz o problema do encaminhamento da destrutividade, no contexto em que a civilização se define como uma fratria enlaçada pelo amor entre iguais. O "dever ser" e o "dever ter", enquanto marcadores da igualdade, inevitavelmente estabelecem o contraponto especular daqueles que "não são" e "não têm", para onde será endereçado o ódio. Vemos, portanto, o quanto o ideal de igualdade em jogo na justiça social se mostra muito restrito, incidindo apenas sobre o círculo fechado das massas, mas com o custo de estabelecer dialeticamente uma zona externa, de exclusão, em que impera a injustiça. Contudo, como são estabelecidos os limites fronteiriços entre o dentro e fora, entre a massa e o excluído, a justiça e a injustiça? Por que algumas vidas conquistam o estatuto de cidadania, tornando-se dignas do cuidado e da proteção do Estado, e outras não? São esses enquadramentos próprios à psicologia das massas que determinam o fluxo das comoções diante da morte e da vida.

Clarice (1999) fala do elemento radium e diz que a irradiação vai acontecer a todos, seja pelo amor, ou pela destruição. Talvez a mesma violência exista em cada pessoa e só não tenha sido irradiada, pensa a cronista. Pulsão de vida, pulsão de morte, "essa luta é o conteúdo essencial da vida, e por isso a evolução cultural pode ser designada, brevemente, como a luta vital da espécie humana. E esse é o combate de gigantes que nossas babás querem amortecer com a 'canção de ninar falando do céu'" (FREUD, 1930/2010, p. 91).

 

A comoção em Judith Butler e a ética trágica da psicanálise

Sobre a comoção, pode-se ir além dos estudos de literatura e de psicanálise, para tentar compreender melhor os caminhos que nos permitem articulá-la com o caso de Mineirinho. Empreende-se uma reflexão com base na obra de Judith Butler, Quadros de guerra: quando uma vida é passível de luto? (2018a) e em uma possível relação com a ética trágica para a psicanálise.

À luz da reflexão empreendida por Butler (ibid.), traça-se uma analogia entre a narrativa da crônica Mineirinho (LISPECTOR, 1999) e as reflexões da autora acerca do luto seletivo diante das mortes em contextos de guerra. Ela ressalta que, em sociedades erguidas pela ideologia da guerra, há vidas que importam e são enlutadas quando perdidas, e outras não; que nossas respostas morais diante de certas mortes são seletivas e que a comoção social parte sempre de um Outro lugar, onde a precariedade intrínseca a toda forma de existência e a percepção de interdependência entre uma vida e as demais costumam ser negligenciadas.

A filósofa constata que essa invisibilidade é politicamente induzida por meio de dispositivos de poder que controlam como a violência deve ser interpretada e percebida pelo público. Ela empreende uma análise crítica dos enquadramentos normativos que induzem a referida seletividade e explica que as reações, mesmo as mais primárias e afetivas, resultam de uma apreciação moral sobre o outro e sobre o tipo de vida que lhe é atribuída. Tais enquadramentos colocam à disposição dos indivíduos os recursos necessários à interpretação da realidade, o que a faz deduzir que nenhuma comoção é estritamente de origem particular, embora considere, em todo caso, a posição subjetiva de cada um.

A autora adota como principal eixo teórico o conceito de vida precária, uma nova apreensão da vida e das condições que a tornam ou não possível de ser vivida e enlutada, identificando na precariedade sua qualidade essencial. Afirmar que a vida é precária seria reconhecer uma relação original e permanente de interdependência entre os seres vivos, bem como acolher o fato de que nossa sobrevivência e continuidade estão subordinadas a um amplo e complexo aparato social capaz de "oferecer os suportes básicos que buscam minimizar a precariedade de maneira igualitária: alimentação, abrigo, trabalho, cuidados médicos, educação, direito de ir e vir e direito de expressão, proteção contra os maus-tratos e a opressão" (BUTLER, 2018a, p. 41), sem as quais um ser vivo se desenvolve à margem do que é reconhecido como humano e digno.

É também interessante a noção de responsabilidade nessas formulações de Butler (ibid.), pois a capacidade de produzir respostas afetivas, de natureza ética, diante dos mortos nas guerras, depende de que tenhamos "apoios sociais" que permitam a nossos sentidos absorverem certos fenômenos como lamentáveis, dolorosos e passíveis de reparação, concluindo que "se estamos falando de luto público ou de indignação pública, estamos falando de respostas afetivas que são fortemente reguladas por regimes de forças e, algumas vezes, sujeitas à censura explícita" (id., ibid., p. 66).

A partir dessa reflexão, podemos formular uma questão: como lamentar a morte de um facínora em uma sociedade erguida sobre uma clara distinção entre cidadãos de bem e inimigos públicos da coletividade? Essa indagação conduziu a análise da crônica de Clarice (1999). Não se trata aqui de propor um novo enquadramento acerca da experiência cotidiana da violência, mas certamente operam certos deslocamentos na percepção de seus leitores quanto ao que é inteligível em termos de bem comum e de responsabilidade de um ponto de vista ético.

O que Clarice (ibid.) propõe ao leitor é a entrada na mesma cena pública em que coloca a si mesma e o homem Mineirinho, situando-nos diante da que poderia ser caracterizada como uma cena trágica, perspectiva muito semelhante à adotada por Lacan (1959-1960/1997), em seu seminário sobre a ética da psicanálise, quando busca no teatro grego, por meio do personagem de Antígona, o fundamento do que seria a experiência ética da psicanálise.

É do lado dessa atração que devemos procurar o verdadeiro sentido, o verdadeiro mistério, o verdadeiro alcance da tragédia - do lado dessa comoção que ela comporta, do lado das paixões certamente, mas das paixões singulares que são o temor e a piedade, já que por seu intermédio di 'eleoukaiphobou, pelo intermédio da piedade e do temor somos purgados, purificados de tudo o que é dessa ordem (LACAN, ibid., p. 300).

Nessa peça, segundo Lacan (ibid.), o que interessa ao psicanalista é a dimensão trágica da relação do sujeito com seu ato, no que concerne à noção de responsabilidade e de desejo na clínica psicanalítica. O drama da heroína grega retrata o antigo dilema entre as leis da cidade, referindo-nos aqui às imposições originadas nas instituições sociais da época, e as leis não escritas dos deuses, principal referência simbólica na qual se apoia Antígona para defender seus ancestrais e garantir a inscrição de sua linhagem, embora seu ato ultrapasse essa dimensão.

Diante do decreto de Creonte de proibir o sepultamento do irmão Polinices, ritual que permitiria o luto por sua morte, a heroína contraria as ordens do rei e realiza a cerimônia, mesmo sabendo que isso significaria sua sentença de morte. Tal ato reflete, para Lacan (ibid.), a posição de sujeito de Antígona, responsabilizando-se em ato por seu desejo, no que este ato pode expressar uma submissão à lei simbólica, não aquela editada por um código ou costume, mas a que advém de um Outro lugar e que não se confunde com a moral a serviço dos bens e nem se espelha em um ideal de cidadão. Foi assim com Antígona, e por que não dizer o mesmo de Clarice (1999), em seu desafio de escrever sobre Mineirinho?

A cena é trágica porque nos situa diante do desamparo de nossa condição humana, frente ao que se apresenta como real e inassimilável pelas vias simbólicas: o fuzilamento de um homem. Carecemos de um saber universal acerca do que é justiça, de noções relativas a um bem supremo que nos oriente em nossas ações, porém, não é certo dizer que, no campo das emoções, esse vazio se imponha. É isso o que Clarice (ibid.) nos faz sentir e perceber. Nossas reações são domesticadas pela tranquilidade que sustenta nossa casa e, ao mesmo tempo, pela indiferença com o que acontece na casa do outro, no terreno onde cresceu Mineirinho. Confrontada com seu próprio horror, com sua sonsice, percebe quão tênue é a fronteira que nos separa de Mineirinho, o criminoso: o outro sou eu em algum momento e medida.

 

Breves conclusões: Mineirinho e Marielle entre a vida e a morte

A discussão sobre a crônica Mineirinho (LISPECTOR, 1999) remete-nos aos limites simbólicos que separam a vida e a morte, questão que enlaça as políticas do Estado às práticas de segregação social. Será que o argumento de universalidade, no qual se fundamentam as leis do Estado, de fato compreende e protege a multiplicidade de corpos que habitam o laço social? Ou algumas vidas seriam consideradas "menos" vidas e, portanto, não seriam dignas de serem protegidas pelas leis do Estado e pranteadas pela sociedade civil, caso sejam abatidas pela morte?

Ao ser esteticamente enquadrada pela escrita de Clarice (ibid.), a vida de Mineirinho recuperou um estatuto de humanidade. É justo esse estatuto que nos toca intimamente, criando fluxos de comoção onde antes não havia, por se tratar da morte de um criminoso, daquele que supostamente "teve o que mereceu". Como Mineirinho, muitos são aqueles que hoje se alojam no limiar entre a vida e a morte, tornando-se invisíveis, ininteligíveis: negros, pobres, trans, homossexuais, mulheres... a distribuição da precariedade torna-se muito desigual quando alguns estão mais vulnerabilizados e expostos à morte que outros.

Seria de se esperar que essas e outras vidas recorressem ao Estado em busca de reconhecimento e de proteção, interrogando os limites do enquadramento normativo em jogo na sociedade civil, o qual separa as cidadanias das sub/não cidadanias. Mas, o fato é que "elas recorrem ao Estado em busca de proteção, mas o Estado é justamente aquilo de que elas precisam ser protegidas" (BUTLER, 2018b, p. 47, grifo do autor). Em um contexto em que a lei que deveria sustentar a vida é a mesma que nos vulnerabiliza e mata, o grito de Antígona não poderia ser mais atual: há de se fazer um apelo a uma dimensão simbólica maior, humanizadora, leis não escritas, responsáveis por estabilizar o estatuto ético-político do laço social.

É nesse ponto que a articulação entre a literatura e a psicanálise permite não apenas questionar os enquadres existentes, como também arriscar em novas inteligibilidades, conferindo um tratamento simbólico às tragédias cotidianas. Se a contagem dos dias da morte da vereadora Marielle Franco presentifica a vida (e a sua história), de modo semelhante, o discurso analítico também se mostra uma importante estratégia política de "contagem", por colocar em cena aqueles que se contam, na clínica e no laço social. A ética da psicanálise, ao posicionar em primeiro plano o desejo e a fala, torna-se, assim, uma ética da vida, potencialmente capaz de fazer frente às necropolíticas do Estado.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 17/02/2020
Aprovado para publicação em: 29/05/2020

Endereço para correspondência
Lina Cavalcante
E-mail: cavalcante.lina@gmail.com
Michele Lourinho
E-mail: michele_lourinho@yahoo.com.br
Ana Carolina Borges Leão Martins
E-mail: carolinablmartins@gmail.com

 

 

*Psicanalista em formação permanente. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza. Especialista em Semiótica Aplicada à Literatura e Áreas Afins pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Fortaleza, CE, Brasil.
**Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza, CE, Brasil.
***Psicanalista. Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora adjunta do curso de Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), campus Sobral, e do Mestrado Profissional em Psicologia e Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará (UFC), campus Sobral. Membro do Fórum do Campo Lacaniano de Fortaleza. Fortaleza, CE, Brasil.

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