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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.42 no.43 Rio de Jeneiro July/Dec. 2020

 

ARTIGOS

 

Luto e melancolia nas cores de Almodóvar

 

Mourning and melancholia in Almodovar's colors

 

 

Carla Meneghini Freire Lamarão*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende refletir sobre fronteiras e desenlaces do luto e da melancolia, conforme conceituados no artigo Luto e melancolia, de Sigmund Freud, e em outros trabalhos ao longo da trajetória do autor. Nossa discussão tem como ponto de partida o filme Julieta (2016), do diretor espanhol Pedro Almodóvar, que emprega uma variedade de recursos da linguagem cinematográfica, tais como composição, fotografia e transições cênicas, para expressar nuances da perda do objeto e retratar a trajetória de uma personagem melancólica - com suas perdas, culpas e dores. A partir daí, articulamos a noção freudiana de luto e melancolia com ideias de autores como André Green, Roland Barthes e Maria Rita Kehl.

Palavras-chave: Luto, Melancolia, Perda do objeto, Autoestima, Cinema.


ABSTRACT

In this article, we reflect about Freudian elaborations on mourning and melancholia, as well as its possible outcomes and boundaries. Our starting point is Pedro Almodóvar's Julieta (2016), in which the Spanish director employs a variety of cinematic elements, such as framing, cinematography, and transitions, to express the subtleties of loss of the Object and to convey the story of a melancholic character, with its losses, guilt, and pain. Thenceforth, we articulate the Freudian notion of mourning and melancholia to the ideas of other authors, such as André Green, Roland Barthes, and Maria Rita Kehl.

Keywords: Mourning, Melancholia, Self-esteem, Cinema studies.


 

 

"É isso então o luto. Ela tem a sensação de que um saco de cimento foi derramado dentro dela e logo endureceu"
Alice Munro, Fugitiva

 

1. Introdução

No filme Julieta, de 2016, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar conta uma história de perdas sucessivas, que se empilham umas sobre as outras, convertendo-se em dor crônica e existência estagnada. Neste trabalho, trazemos este que é o 20 º longa-metragem da carreira do diretor com o objetivo de analisá-lo de uma perspectiva psicanalítica, articulando-o com a pesquisa freudiana sistematizada no artigo Luto e melancolia (1917) e valendo-nos de suas situaçõ es dram áticas como oportunidades para discutir as fronteiras e desenlaces desses dois conceitos da metapsicologia.

No roteiro do longa-metragem, baseado em três contos da autora canadense Alice Munro1, a protagonista Julieta (Adriana Ugarte/Emma Su árez) carrega o peso de suas perdas e culpas e vive um processo melancólico, consumida pela dor do desaparecimento da filha, Antía (Blanca Parés), e pela esperança de seu retorno. A angústia pela ausência de Antía ressignifica todas as perdas, dores e lutos anteriores. Para nosso estudo, esse filme foi escolhido porque aqui luto e melancolia são elementos propulsores da trama, encadeando recursos narrativos e estéticos a serviço da subjetividade da protagonista. Com as cores vermelho, azul, preto, branco e roxo, o diretor espanhol pincela suas cenas para expressar as diversas nuances dos quadros do luto e da melancolia, construindo, pouco a pouco, uma comunicação sem palavras que revela a face perversa de uma ausência que se faz sempre presente.

 

2. Panorama teórico

A trajetória de Julieta nos leva a questões mais amplas do ponto de vista psicanalítico: em que diferem luto e melancolia? Quando sabemos que o limite entre um e outro foi cruzado? Como e por que, diante de uma perda de alguém querido, um sujeito se direciona para um ou outro quadro clínico? O luto é mesmo passageiro? A melancolia é sempre permanente? Qual o papel da ambivalência nesses processos? Questões que permanecem atuais, mesmo um século depois da publicação de Luto e melancolia. Nesse c élebre ensaio, escrito em 1915 e publicado em 1917, Freud busca elucidar a gênese e os mecanismos da melancolia e se apoia na comparação com o entendimento do luto para dar contorno à sua teoria, fundamentado no fato de que ambos os quadros coincidem na origem: a perda de um ente amado. O autor inicia sua argumentação diferenciando melancolia e luto, reforçando o primeiro como estado patológico e o segundo como um processo normal da experiência humana. A melancolia se constitui como estrutura psíquica e uma forma mais grave de adoecimento. Cabe notar que embora tenha citado algumas vezes o termo depressão, Freud privilegia o termo melancolia.

A melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação de interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição. Esse quadro se torna mais compreensível para nós se considerarmos que o luto exibe os mesmos traços, com exceção de um: nele a autoestima não é afetada. De resto é o mesmo quadro (FREUD, 1917/2010, p. 173).

Para Freud, tanto no luto quanto na melancolia a perda do objeto ocasiona desinteresse pelo mundo externo e ambivalência, sendo o diferencial do quadro melancólico a regressão da libido para o Eu. Assim, o  luto  retira a energia de lembranças do objeto perdido para mover de novo as engrenagens do presente, paulatinamente a libido é desinvestida do objeto perdido por força da prova de realidade, tornando consciente o fato de que este não existe mais. O trabalho de luto trata de deslocar essa libido para um novo objeto, enquanto a melancolia, ao contrá rio, é uma espécie de pacto com a perda. O melancólico sofre um abalo profundo em sua autoestima e  vive à sombra da pessoa perdida, da conquista perdida. A libido é atraída de volta ao Eu, num movimento de regressão narcísica, instaurando uma identificação do Eu com o objeto perdido.

No luto, vimos a inibição e a ausência de interesse explicadas totalmente pelo trabalho do luto que absorve o Eu. Na melancolia, a perda desconhecida terá por consequência um trabalho interior semelhante, e por isso será responsável pela inibição que é própria da melancolia. Mas a inibição melancólica nos parece algo enigmático, pois não conseguimos ver o que tanto absorve o doente (FREUD, 1917/2010, p.175).

Portanto, Freud localiza a melancolia como um estado depressivo mais grave e complexo, um "estado esmagado do Eu", uma espécie de enigma que pode ser decifrado com o apoio do modelo do luto. Mas o que leva um sujeito, diante de uma perda significativa, a seguir do luto para o adoecimento melancólico? Para Freud existe uma disposiçã o patol ógica que define que algumas pessoas adoecem e outras não, resultando em luto ou em melancolia. O autor assinala que "em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto; por conseguinte, suspeitamos que essas pessoas possuem uma disposiçã o patol ó gica " (Ibidem, p. 249). Para entendermos essa disposição patológica do processo melancólico, cabe destacar o caráter narcísico específico da melancolia. No artigo Introdução ao narcisismo (FREUD, 1914/2010), o autor distingue duas escolhas do objeto amoroso, a anaclítica e a narcisista. Na primeira, o sujeito ama aquele que o protege, aquele outro que cuida dele, tendo como referência os cuidados maternos. Já na escolha narcísica o sujeito busca a si mesmo no objeto amoroso, ama sua própria imagem refletida no outro, ama a si mesmo. Assim, quando ocorre a perda do objeto, na primeira escolha, o Eu comprova pela via da realidade que o objeto não existe mais e é capaz de deslocar seu investimento para outro objeto, ainda que esse processo lhe cause sofrimento. Já na escolha de objeto narcísica, que predispõe para a melancolia, o Eu é identificado com o objeto perdido, como se o outro fosse ele mesmo e, portanto, ao perdê-lo, algo do próprio Eu perde-se também. A partir da perda surgem recriminações, culpa, castigos, que se voltam contra o próprio Eu.

Em seu livro Luto e melancolia - À sombra do espetáculo, Sandra Edler revisita o artigo freudiano e ressalta outros elemento s importante s na composição do quadro melancólico, o sentimento de isolamento e incompreensã o:

Invisível aos olhos dos que o cercam, o melancólico está completamente absorvido nele. É como se o mundo interno tomasse tal dimensão que eventuais demandas ou estímulos do exterior lhe fossem pouco significativos, quando não irritantes, tal a falta de disponibilidade para eles. (...) Freud observa a extraordinária diminuição do sentimento de si, como se o melancólico estivesse destituído de autoestima, e percebe, também, algo que falta no luto: um enorme empobrecimento do Eu. No luto, o mundo se torna pobre e vazio; na melancolia, o próprio eu do sujeito sofre esse processo de empobrecimento, esvaziamento e aridez (EDLER, 2018, p. 30).

A autora lembra também que Luto e melancolia antecede grandes formulações metapsicológicas, como o conceito de supereu, que ainda surgia com uma definição incipiente e não havia sido nomeado. No texto de 1917, Freud faz referência a uma "instância crítica", que na melancolia pode se tornar implacável e direcionar o paciente para uma condição paranoica, caracterizada por tendência radical à autopunição, podendo chegar, em casos extremos, a motivar o suicídio. "Há além desse desligamento da realidade externa, um rebaixamento no sentimento de si, que se expressa em auto-recriminações e auto-insultos, podendo chegar a uma expectativa delirante de punição" (EDLER, 2018, p. 29).

Devemos lembrar que na obra freudiana, a introdução da melancolia é anterior à publicação de Luto e melancolia, encontrada nos manuscritos pré-1900, nos primórdios da psicanálise. No Manuscrito E, Como se origina a angústia, Freud (1894) aborda o mecanismo da melancolia postulando que os melancólicos são "anestésicos" e não apresentam necessidades de relação sexual "mas têm um grande anseio de amor em sua forma psíquica - uma tensão erótica psíquica poder-se-ia dizer. Nos casos em que esta se acumula e permanece insatisfeita, desenvolve-se a melancolia" (FREUD, 1895/1972, p. 272). É no Manuscrito G, de 1895, que o autor faz um estudo mais detalhado do quadro clínico da melancolia identificado com sintomas de anestesia sexual, apatia, prostração, desinteresse pela vida e inibição da sexualidade. Nesse trabalho Freud diz: "O afeto correspondente à melancolia é o luto, ou seja, o desejo de recuperar algo que foi perdido. Assim, na melancolia, deve tratar-se de uma perda, uma perda na vida pulsional". Ainda no Manuscrito G, Freud esclarece que há uma grande perda de quantidade de excitação sexual psíquica que leva a uma "retração para dentro" na esfera psíquica, retirando as excitações que não conseguem ser investidas. Desse movimento, decorre um empobrecimento de excitação, uma "hemorragia interna" que o autor compara a uma ferida que dói, sendo a melancolia entendida como uma perda na vida pulsional, uma anestesia sexual compatível com o luto por uma perda considerável da libido.

As hipóteses formuladas naquele momento só foram devidamente desenvolvidas e respondidas mais tarde, com o surgimento dos escritos metapsicológicos e a sistematização empreendida em 1917 - que perdura até o final de sua obra e mantém-se relativamente válida até hoje. Entre essa primeira formulação e a posterior, de 1917, vemos uma transição conceitual: Freud abandona a ideia de que a melancolia seria caracterizada por uma perda na vida pulsional e uma anestesia sexual e passa a articular a melancolia à teoria do narcisismo, que naquele momento também florescia. O autor passa a entender a melancolia a partir de uma perda objetal que se torna uma perda do Eu. Dessa forma, a libido investida do objeto perdido retorna para o próprio Eu, gerando uma identificação do Eu com o objeto perdido, tal como sugere o autor no trecho que se tornou famoso:

Assim, a sombra do objeto recai sobre o próprio Eu, e a partir de então este pode ser julgado por uma instância especial como um objeto, o objeto abandonado. Desse modo a perda do objeto se transformou numa perda do Eu, e o conflito entre o Eu e a pessoa amada, numa cisão entre a crítica do Eu e o Eu modificado pela identificação" (FREUD, 1917/2010, p. 181).

Portanto, na concepção freudiana, a chave da dinâmica da melancolia está em sua conexão com a noção do narcisismo, que coloca a perda do objeto como fundamental na constituição do Eu e aponta para uma clivagem do Eu: "detenhamo-nos por um momento na visão que a doença do melancólico nos oferece da constituição do Eu humano. Vemos como uma parte do Eu se contrapõe à outra, faz dela uma avaliação crítica, toma-a por objeto" (Ibidem, p. 178).

A face mais perigosa da melancolia, aponta o autor, está nessa cisão do Eu, que se expressa na autorrecriminação e na expectativa de castigo, o que Freud chamou "delírio de pequenez", podendo traduzir-se na autopunição e, em casos extremos, no suicídio. Tomado pela ambivalência e tratando a si mesmo como Outro, o sujeito pode agredir a si mesmo com a violência com que atacaria um inimigo.

No quadro clínico da melancolia, a insatisfação moral com o próprio Eu é destacada relativamente a outras coisas: defeitos físicos, feiúra, debilidade, inferioridade social, muito mais raramente são objeto da autoavaliação; só o empobrecimento ocupa lugar privilegiado entre os temores ou dizeres do paciente (FREUD, 1917/2010, p. 179).

Gomes (2017) nota que o melancólico, em seu modus operandi patológico, retira um certo prazer desse processo de autopunição e rebaixamento, que tende a emergir livre do filtro da vergonha. Na verdade, há certo orgulho e senso de justiça nessa postura.

Tudo que os melancólicos dizem que diminui a si mesmos (tudo o que falam mal de si mesmos) é, no fundo, dito de outra pessoa. Estão bem longe de testemunhar, em relação ao seu meio, a humildade e submissão que conviria a pessoas tão indignas. Ao contrário, atormentam os outros, sempre se comportando como se uma grande injustiça lhes tivesse sido feita. (...) O melancólico, ao contrário da pessoa normal, parece encontrar uma satisfação em expor aquilo que recrimina em si mesmo, não se limitando pela vergonha diante dos outros ( GOMES, 2017, p. 179-180).

No próximo item, seguimos para a análise em si do filme Julieta, do cineasta espanhol, decupando o percurso de dores e lutos da protagonista, articulado com os conceitos citados da metapsicologia freudiana.

 

3. Percurso melancólico em cores

É nesse território das sombras que se desenrola a trama do filme Julieta. Nele, a protagonista vivencia uma sequência de perdas e lutos, apresentando um quadro depressivo tão brutal que modifica seu Eu constituído, ficando tão esvaziado e rebaixado que Julieta torna-se praticamente uma outra pessoa aos olhos do espectador. Seu Eu é ameaçado e de fato transformado em outro. Para traduzir esse processo do Eu da personagem para a linguagem cinematográfica e dar a dimensão de seu processo depressivo, Almodóvar lança mão de arrojado jogo de cena: a certa altura do filme, troca a atriz que faz a personagem principal. Inicialmente, Julieta é interpretada pela jovem Adriana Ugarte até que o papel passa para a atriz Emma Suárez, cerca de duas décadas mais velha que sua antecessora. A troca ocorre durante uma cena que mostra Julieta saindo do banho e sendo cuidada e enxugada pela filha e sua amiga, em que uma toalha na cabeça tapa-lhe o rosto, possibilitando a transição, como num piscar de olhos. Com a edição sem corte aparente, fica claro que a imagem envelhecida da protagonista não é consequência da passagem do tempo, mas sim do desgaste sofrido no trabalho melancólico. Notamos que Almodóvar exige extremo abatimento de suas atrizes em vez de lágrimas.

Mas esse é apenas um dentre tantos recursos estéticos e narrativos do diretor para revelar o percurso afetivo de Julieta, com suas muitas camadas de sofrimento. Também é notório o uso das cores nas composições cênicas, que pincelam a tela a todo tempo, pontuando afetos. Podemos destacar as cores preto, branco, vermelho, azul e roxo como portadoras de significado especial no desenvolvimento do enredo e na caracterização dos estados psíquicos dos personagens, como veremos a seguir em nossa análise do longa-metragem.

Nessas primeiras sequências, as roupas de Julieta são vermelhas, assim como suas unhas e a parede de sua casa. O vermelho, popularmente identificado como a cor do amor e do coração, tem presença constante neste filme, em praticamente todas as cenas - nos figurinos, objetos e ambientes. Porém, Almodóvar faz uma aplicação mais complexa dessa cor, utilizando-a para pontuar aquilo que na psicanálise nomeamos ambivalência, um elemento relevante tanto no trabalho de luto quanto na melancolia. Segundo Laplanche e Pontalis, a ambivalência pode ser entendida como "a presença simultânea, na relação com um mesmo objeto, de tendências, atitudes e sentimentos opostos, fundamentalmente amor e ódio" (LAPLANCHE; PONTALIS, 1984/2016, p. 17). Assim, são os sentimentos de amor e ódio da protagonista, seja por outras pessoas, seja por ela mesma, que moverão as engrenagens da história e ganham expressão nos pontos vermelhos que surgem na tela a cada cena, atraindo os olhos do espectador - como na tatuagem do marido, nos figurinos em momentos-chaves, nos bolos de aniversário, no carro que Julieta dirige. Como ressalta Freud em Luto e melancolia, ao descrever o mecanismo da melancolia: "ambivalência certamente constitui a mola do conflito" (FREUD, 1917/2010, p. 193).

Ao longo do filme, também o azul é muito explorado. Esta cor, frequentemente identificada com a tristeza, a depressão e a melancolia, principalmente na língua inglesa2, surge aqui em sua tonalidade mais vibrante, o azul royal. Para o diretor, não há suavidade na tristeza, não há frieza na depressão, não há serenidade na melancolia; para Almodóvar, o sofrimento é intenso, é ardente e é gritante. Não passa nunca despercebido. O azul surge em elementos variados que colorem a tela nos momentos em que Julieta é abatida pelo luto, como na sequência em que a protagonista vê a tempestade levar embora a vida de seu marido e quando ela, enlutada e deprimida, dá a notícia da morte dele à filha.

 

4. Luto em preto e branco

Na parte inicial do filme, temos um longo flashback de Julieta, ainda jovem, quando vive um trauma. Em um vagão de trem, ela se depara com um homem, a quem nã o d á muita atenção. Ainda durante a viagem, o estranho comete suicídio, e Julieta passa a carregar a culpa por sua falta de ação diante do sofrimento daquele homem, cujo "pedido de socorro" teria sido ignorado por ela. Nessa mesma viagem, ela conhece o pescador Xoan (Daniel Grao), por quem se apaixona imediatamente e com quem concebe, também naquela noite, a filha Antía. Uma paixão, portanto, surgida em meio ao sentimento de culpa pela morte do suicida desconhecido. Ao descobrir a gravidez, Julieta decide ir atrás do pescador e chega à sua casa, onde descobre que ele é casado. Por acaso, naquele dia Xoan havia perdido sua esposa, Ana, que tinha estado em coma havia cinco anos. Lá, Julieta é confrontada por Marian (Rossy de Palma), empregada da casa, que impõe um feminino amargo, territorial, invejoso e pessimista, uma espécie de instância de observação e julgamento da protagonista, como uma representante de seu supereu, sempre disposta a puni-la, recriminá-la e culpá-la.

Apesar da culpa envolvida, o casal permanece junto, e a crianç a nasce e cresce. Torna-se uma garota vivaz, Antía, que gosta de pescar com o pai, como uma "loba do mar". Quando completa nove anos, vai para um acampamento com os amigos. Durante sua ausência, uma tempestade se aproxima. Julieta e Xoan discutem e brigam por causa da lealdade dele a Marian e de seus encontros com sua antiga amante, a escultora Ava (Inma Cuesta). Ele sai atormentado com seu barco para enfrentar o mar revolto e morre em alto mar. Julieta é inundada pela tristeza e pela culpa.

Na cena em que a protagonista faz o reconhecimento do corpo do marido, Julieta veste preto, entregue ao luto. O ambiente, porém, é dominado pela cor branca, assim como o lençol que cobre o cadáver. Comumente identificado com o luto, o preto traz a referência à "bile negra", que acreditava-se na antiguidade ser a causa dos estados depressivos - dando inclusive nome à melancolia, que tem origem no grego melagcholía ou mélas (negro) cholé (bílis). Entretanto, o cineasta d á nova dimens ão ao enlutamento, usando também o branco para dar conta de sua complexidade afetiva. O branco surge como signo da angústia, do vazio deixado pela morte do marido. Em seu artigo A mãe morta (1980), André Green relaciona determinadas cores e estados psíquicos, apontando a existência de uma "angústia branca", um "luto branco", de caráter narcísico. Para Green, embora o preto dê conta do estado sombrio da depressão e do ódio, este seria um "produto secundário, uma consequência mais do que uma causa, de uma angústia 'branca' que traduz a perda sofrida ao nível do narcisismo".

Evidentemente todas as formas de angústia vêm acompanhadas de destrutividade, a castração também, já que a ferida é produto da destruição. Mas esta destrutividade não tem qualquer relação com uma mutilação sangrenta; ela tem as cores do luto: preto ou branco. Preto como a depressão grave, branco como nos estados de vazio aos quais se dá agora uma atenção justificada (GREEN, 1988, p. 243).

É nesse luto branco, nesse vazio, que mergulha Julieta após a morte de Xoan, torna-se uma pessoa ausente, apática, absorta em si mesma, alheia ao mundo externo, como uma morta-viva. Na tentativa de dar conta de uma dor sem fim, aprisionada pelo remorso, Julieta tem um movimento de regressão narcísica, de infantilização, deixando-se aos cuidados da própria filha e de sua amiga Bea (Michelle Jenner). "As coisas aconteciam sem minha participação, premonizando-se umas às outras", diz a protagonista, fixada na culpa e na ideia de que seu castigo estaria a caminho de forma inevitável, como uma maldição. É nesse momento do filme que ocorre a troca de atrizes no papel principal. Teria Julieta cruzado a fronteira entre o luto e a melancolia? O quadro depressivo de Julieta parece cumprir os pressupostos da melancolia, apresentando retração radical da libido, negação da alteridade e drástica diminuição da autoestima, como descreve Freud:

O melancólico ainda nos apresenta uma coisa que falta no luto: um extraordinário rebaixamento da autoestima, um enorme empobrecimento do Eu. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio Eu. O doente nos descreve seu Eu como indigno, incapaz e desprezível; recrimina e insulta a si mesmo, espera rejeição e castigo (FREUD, 1917/2010, p. 175).

Porém, em seguida na trama, com o passar de alguns anos, Julieta consegue superar a condição depressiva e retomar uma vida de certa normalidade, quando muda de casa e volta a trabalhar. Sua condição, portanto, revela-se passageira e aproxima-se do que entendemos como luto patológico, que segundo Edler difere enormemente da melancolia, mesmo sendo extremo e complicado.

Por mais difícil que seja, o sujeito está lidando com algo que, na realidade, perdeu. No caso da melancolia, sempre tendo como referência a divisão do Eu, Freud observa que o mecanismo de identificação narcisista faz desencadear o ódio contra si mesmo e, paralelamente, uma satisfação secundária com o próprio sofrimento (EDLER, 2018, p. 36).

Absorta em seu processo depressivo, em negação da alteridade, Julieta tornara-se cega em relação ao sofrimento da própria filha que, mesmo em silêncio, sofria seu próprio luto, afinal de contas, tinha perdido seu tão amado pai, tendo a ferida da orfandade aberta. Diferentemente da depressão ostensiva e "azul royal " de Julieta, o enlutamento de Antía é silencioso e discreto, embora potencialmente tão destrutivo quanto. Tomada pela culpa por estar ausente, divertindo-se no acampamento no momento do falecimento do pai, e pelo ódio que sente por Julieta, por ter provocado a briga que o levou à morte, Antía sofre calada, em sua angústia em preto e branco, que só se revelará mais tarde, com sua fuga inesperada. Assim, a menina vive um luto duplo: pelo pai morto e a mãe enlutada, que se tornou mais do que ausente, uma verdadeira morta-viva, compatível à "mãe morta", conforme conceituada por Green:

Depois de a criança ter tentado uma vã reparação da mãe absorta por seu luto, que lhe fez sentir a medida de sua impotência, depois de ter vivido a perda do amor da mãe e a ameaça da perda da pró pria m ãe e que lutou contra a angústia através de diversas maneiras ativas, (...) o Eu vai pôr em açã o uma s érie de defesas de outra natureza. A primeira e mais importante será um movimento único com duas vertentes: o desinvestimento do objeto materno e a identificação inconsciente com a mãe morta. O desinvestimento, sobretudo afetivo, mas também representativo, constitui um assassinato psíquico do objeto, realizado sem ó dio ( GREEN, 1988, p. 244).

Não pretendemos aqui dizer que Julieta teria se tornado para sua filha uma "mãe-morta" no sentido delineado por André Green no artigo referido, já que Antía tinha então nove anos e portanto um Eu já constituído. Porém, a descrição que Green nos traz dessa "clínica do vazio" nos ajuda aqui a elucidar o tipo de abatimento que passa a dominar a existência de Julieta - e que se traduz também na negação da filha e de seu sofrimento.

 

5. Julieta e o luto inelaborável

Enfim, Julieta parece ter cumprido seu trabalho de luto, quando, inesperadamente é abandonada pela filha, que ao completar 18 anos viaja para um retiro espiritual e não retorna mais. Antía parte vestida de branco, como vazia por dentro, em busca de algo que preencha sua alma, depois de sofrer anos de negligência de sua mãe, tão absorta em sua própria dor delirante que se esqueceu de prestar qualquer apoio à filha que ficara órfã de pai.

Em um carro vermelho e vestindo roupa vermelha, conduzida pelo amor e pelo ódio, Julieta dirige até o retiro, pensando que encontraria Antía, mas recebe a notícia de que a filha havia partido, decidida a não mais ver a mãe. Essa nova perda despenca sobre Julieta, fazendo-a relembrar suas perdas e dores anteriores - o suicídio do desconhecido, a morte do marido amado, a mãe acometida pela demência e presa num quarto. A fuga de Antía derruba Julieta e faz ecoarem vivências que podemos apenas imaginar, faltas e fissuras em suas relações de objeto originárias. E, assim, Julieta entrega-se à melancolia. Para Freud, "O luto leva o Eu a renunciar ao objeto (desaparecido), declarando o objeto morto", entretanto, a falta de Antía é permanentemente sustentada pela incerteza de sua volta, é um luto que não pode avançar na sua elaboração pela esperança de um possí vel retorno. Constitui-se portanto um quadro agudo de melancolia pela perda voluntária e não avisada da filha, que parece estar morta em vida, aproximando-se da descrição de Freud:

As ocasiões para a melancolia geralmente não se limitam ao caso muito claro de perda em virtude da morte, e abrangem todas as situações de ofensa, menosprezo e decepção, em que uma oposição entre amor e ódio pode ser introduzida na relação, ou uma ambivalência existente pode ser reforçada (FREUD, 1917/2010, p. 184).

Entre idas e vindas, a história de Julieta vai se construindo sobre o eixo central das perdas, especialmente a perda da Antía, que a mantém num estado de suspensão, imobilizada no tempo, sem poder voltar nem tampouco seguir adiante. A ausência da filha preenche sua vida ao mesmo tempo em que a destrói, levando Julieta ao ato extremo de ser atropelada por um veículo, num ato de caráter suicida. Antía não quer contato com Julieta, mas lhe impõe o conhecimento de que está presente na sua ausência por meio dos envelopes vazios que envia para a mãe, como se quisesse apenas pontuar que ela ainda existe, ainda está viva. Ela é um vazio que se faz presente, como por vingança.

A devasta ção de Julieta é expressa em seu ritual de comprar bolos de aniversário para Antía, ano após ano, apenas para depois jogá-los no lixo. Tomada pela expectativa constante de retorno da filha - e pelo ódio por saber que seu desaparecimento foi voluntário - a cada ano, a protagonista alimenta seu ciclo de dor e automartírio, que se revela prazeroso, com um viés sádico. Sofrer pela ausência da filha de certa forma expia sua culpa, é como um castigo merecido. Julieta impõe essa punição a si própria como se fosse uma condição de vida, como se precisasse reviver a perda repetidas vezes para sentir-se ela mesma viva, dando corpo ao que Freud afirma em Luto e melancolia :

O automartírio claramente prazeroso da melancolia significa, tal como o fenômeno correspondente na neurose obsessiva, a satisfação de tendências sádicas e de ódio relativas a um objeto, que por essa via se voltaram contra a própria pessoa (FREUD, 1917/2010, p. 184).

Esse viés de prazer pela tristeza, abordado no longa-metragem, é mostrado com precisão em outra obra, que pode adicionar elementos à nossa pesquisa: Diário de luto, de Roland Barthes. Nela, o semiólogo francês registra suas impressões e afetos frente ao luto da mãe, Hemiette Binger, falecida aos 84 anos. Organizado em 330 fichas, escritas quase diariamente durante quase dois anos, o livro reúne fragmentos de desabafo e registra os duros passos do trabalho de luto do autor. Observando-se, como um espectador de si mesmo, Barthes mostra-se pleno de desinvestimento do mundo externo, com uma rotina de vazios, insônia, tédio e lamentos. "Ao tomar estas notas, confio-me à banalidade que existe em mim" (BARTHES, 2009, p. 25). Embora evidentemente a experiência de Barthes seja diferente da de Julieta em diversos aspectos, Diário de luto nos convoca à reflexão sobre o trabalho do luto, convergindo nesse ponto com o filme.

Descreve a primeira noite após a morte da mãe, o regresso à casa vazia, as mudanças das paisagens de Paris a cada estação, que agora parecem destituídas de sentido, a repetição de rituais cotidianos sem a presença da mãe - ou numa ausência que se faz presente. Há um prazer nesse processo, um gozo na escritura da dor: "Habito minha tristeza e isso me faz feliz. Tudo o que me impede de habitar minha tristeza é insuportável para mim" (Ibidem, p. 169).

O diário inscreve, assim, com seu discurso descontínuo e lacunar, o vazio da morte e o indizível da dor, que só encontra expressão à altura nas elipses, entre um e outro fragmento. É no escrever que o autor exerce sua autopunição, mas é também no escrever que ele dá contorno ao trabalho de luto, não somente no que é dito, mas também no não-dito. Não somente pelo que fala, mas também pelas lacunas, pelo que silencia.

Assim como Barthes, Julieta, no filme de Almodóvar, encontra na palavra um instrumento de autopunição e de trabalho de luto, por meio da carta que escreve para Antía enquanto relembra os acontecimentos. A protagonista escreve para a filha de endereço desconhecido, mesmo sem saber se sua carta será efetivamente lida. Sua escrita é resposta às cartas e cartões sem palavras enviados pela menina, na tentativa de estabelecer um diálogo, ainda que silencioso e imaginário. Já o silêncio de Antía expressa ódio, perdura seu trabalho de luto pelo pai, nunca concluído, e reafirma a presença de sua ausência. Curiosamente, o título inicial do longa-metragem era "Silêncio"; e é no indizível que mora o trabalho do luto, tanto de Julieta - em seu isolamento e sua dor silenciada pela culpa - quanto da filha, que envia para a mãe cartões sem texto algum. O silêncio e a espera são o gozo de Julieta. Escrever para Antía é a forma de aproximação do seu gozo. Para Julieta, falar da perda é entrar em contato com a dor, com a morte em vida, é tornar consciente uma perda de objeto que não pode contar com a materialidade da morte - a real extinção do corpo e seus rituais de velório e sepultamento.

 

6. Trabalho de luto: elaborar a dor

Tanto a experiência de Julieta, na história, quanto a de Roland Barthes, em seu Diário de luto, nos mostram a importância do trabalho de luto, processo em que o sujeito se coloca ativamente na tarefa de elaborar sua própria dor. E é nessa atividade, a qual se revela uma via de gozo, que consiste o processo. "Jamais ocorre ver o luto como um estado patológico e indicar tratamento médico para ele, embora ocasione um sério afastamento da conduta normal de vida. Confiamos que será superado após certo tempo" (FREUD, 1917/2010, p. 172). Mas cabe questionar: será mesmo o luto passível de elaboração? Em Luto e melancolia, Freud apresenta o luto como processo passageiro e dito normal, apesar de seu caráter potencialmente patológico.

O luto profundo, a reação à perda de um ente amado, comporta o mesmo doloroso abatimento, a perda de interesse pelo mundo externo (...), a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor (...), o afastamento de toda atividade que não se ligue à memória do falecido. Logo vemos que essa inibiçã o e restri ção do Eu exprime uma exclusiva dedicação ao luto, em que nada mais resta para outros intuitos e interesses. Na verdade, esse comportamento só não nos parece patológico porque sabemos explicá-lo bem (Ibidem, p. 173).

Na concepção freudiana de 1917, a dedicação ao processo de luto se faz na inibição e no árduo e necessário trabalho empreendido pelo sujeito, que consiste na aceitação da prova de realidade: o objeto amado não existe mais e, ao tornar esse fato consciente, a libido investida por parte do sujeito deve ser retirada desse objeto. O autor ressalta que essa execução da ordem da realidade é algo imensamente doloroso, mas que depois do tempo necessário para a conclusão do trabalho de luto, o Eu ficaria novamente livre e desinibido, corroborando a visão do fenômeno do luto como um comportamento passageiro e não patológico.

Ficou para a clínica contemporânea a tarefa de aprofundar a pesquisa sobre o processo do luto e suas particularidades. O tema é abordado no contexto dos processos depressivos por Maria Rita Kehl em seu livro O tempo e o cão e também em sua apresentação da obra freudiana Luto e melancolia, direcionando uma leitura sobre o luto articulada à noção de trauma. Para Kehl, embora o luto - seja por morte ou abandono - tenha um caráter passageiro no que se refere à inibição e ao desligamento da libido em relação ao objeto, seu impacto sobre o Eu é estruturante, deixando marcas permanentes no Eu constituído, já que a perda de objeto implica também uma perda de referêncial.

Ter sido arrancado de uma porção de coisas sem sair do lugar: eis uma descrição precisa e pungente do estado psíquico do enlutado. A perda de um ser amado não é apenas perda do objeto, é tamb é m a perda do lugar que o sobrevivente ocupava junto ao morto. Lugar de amado, de amigo, de filho, de irmão (KEHL, 2011, p. 19).

Assim, entendemos que no luto a perda se dá de forma consciente, mas o significado dessa perda é inconsciente e deixa marcas profundas no Eu, estabelecendo novas configurações subjetivas em relação ao objeto e também em relação a novos objetos. O psicanalista norte-americano Robert Stolorow avança nessa pesquisa sobre o luto, pontuando que o trabalho de luto vai além da relação de objeto, implica também a subjetivação da perda, que pode levar o sujeito a uma "desconstrução massiva" de sua percepção de existência e de mortalidade, levando à angústia. E nesse sentido, afirma o autor, o luto não seria um fenômeno passageiro, mas uma marca permanente no psíquico.

A pessoa enlutada passa a perceber aspectos da existência que antes eram velados pelos horizontes absolutistas da normalidade cotidiana. Nesse sentido, há um abismo entre os mundos das pessoas enlutadas e das outras pessoas, onde um sentimento angustiante de estranhamento e solidão toma forma (STOLOROW, 2007, p. 16).

 

7. Considerações finais

No ensaio A transitoriedade, escrito um ano após Luto e melancolia, Freud conversa com um jovem poeta sobre a dificuldade de fruir da beleza do mundo por saber de sua condenação à morte. Tomado pela antecipação de morte e destruição da Primeira Guerra Mundial, então em curso, o autor reflete sobre o luto, revisitando a articulação entre seu mecanismo e a teoria do narcisismo, e o apresenta como fenômeno enigmático - termo antes empregado para caracterizar a melancolia.

O luto é um grande enigma, um desses fenômenos que em si não são explicados, mas a que se relacionam outras coisas obscuras. (...) Se os objetos são destruídos, ou se os perdemos, nossa capacidade amorosa (libido) é novamente liberada; pode então recorrer a outros objetos em substituição, ou regressar temporariamente ao Eu. Mas por que esse desprendimento da libido de seus objetos deve ser um processo tão doloroso, isso não compreendemos, e não conseguimos explicar por nenhuma hipótese até o momento. Só percebemos que a libido se apega a seus objetos e, mesmo quando dispõe de substitutos, não renuncia àqueles perdidos. Isso, portanto, é o luto (FREUD, 1917/2010, p. 250).

Por expor o aspecto enigmático, as incongruências e complexidades do luto, consideramos importante agregar A transitoriedade à nossa discussão. Vemos que a questão que persiste é o significado da morte sobre nós e o impacto do contato do Eu com sua própria mortalidade. No contato com a morte, a perda do objeto tem possibilidade de ser superada por meio do trabalho de luto, que consiste em um enorme esforço de desinvestimento libidinal. Porém, o impacto desse contato não se apaga. Ele persiste em nosso inconsciente e modifica nossa relação com objetos substitutos, como se o Eu construisse novas relações de objeto sobre as ruínas do objeto perdido. É possível erguer novos edifícios, mas as ruínas da estrutura anterior seguem presentes à base, mesmo que não estejam à vista.

O longa-metragem Julieta mostra como a protagonista é marcada num acúmulo crescente de dores, que parecem se empilhar, de forma que cada nova perda retoma os lutos anteriores: primeiro pela morte de Xoan - e antes até por sua experiência frente ao suicídio do estranho, passageiro do trem. Em seguida, Julieta vive o abandono da filha, retomando seu processo melancólico aparentemente do ponto onde havia parado. Como se a morte fosse uma enigmática personagem que a visitasse de tempos em tempos, em ondas de perda que vêm e vão, deixando o futuro em suspensão.

Mas o que separa também pode unir. Na cena final do filme, Antía relata por carta sua recente perda do filho mais velho e, num momento de luto, recorre a Julieta, que vai ao seu encontro. A morte de Xoan as separou, mas agora a morte de um filho - e neto - aponta para um reencontro. Julieta veste, pela primeira vez, um figurino todo roxo, cor que é a mistura do vermelho e do azul, e nos lembra de toda a carga de amor, ódio e tristeza que ela carrega nesta viagem de possível reunião. No caminho, Julieta diz a seu companheiro, Lorenzo (Dario Grandinetti): "Não vou perguntar nada a ela". Assim, Julieta mais uma vez tenta se comunicar por meio do silêncio, que reflete a dor que não pode ser nomeada, compreendida ou representada, na confiança de que essa dor indizível e silenciosa possa reaproximá-la de sua filha.

O filme termina embalado pela música "Si no te vas ", de Cuco Sanchez, na voz de Isabel Vargas. Em sua poesia, a canção condensa aspectos afetivos do quadro melancólico e do luto, encerrando habilmente o longa-metragem e fechando aqui nossa reflexão sobre o tema, que não se propõe a esgotá-lo, mas a encorajar novos estudos, leituras e articulações sobre o luto.

Si tú te vas
Se va a acabar mi mundo
El mundo adonde solo vives tú
No quiero que te vayas
No te vayas, porque si tú te vas
En ese mismo instante muero yo.
3

 

 

Referências

BARTHES, R. (1979). Diário de luto. São Paulo: Martins Fontes, 2011.         [ Links ]

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Artigo recebido em: 18/06/2019
Aprovado para publicação em: 11/08/2020

Endereço para correspondência
Carla Meneghini Freire Lamarão
E-mail: carla.lamarao@gmail.com

 

 

*Membro em formação do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1Os três contos referidos constam do livro Fugitiva, da ganhadora do Nobel de Literatura Alice Munro. São eles: "Ocasião", "Daqui a pouco" e "Silêncio". Pedro Almodóvar costurou os três em uma única história e transpôs a ação do Canadá para a Espanha.
2Como sugere a expressão americana feeling blue, relacionada à sonoridade melancólica do gênero musical blues.
3Se você se for
Meu mundo vai acabar
O mundo onde só você mora
Não quero que você vá
Não vá, porque se você for
Naquele exato momento eu morro
(Cuco Sanchéz)

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