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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.42 no.43 Rio de Jeneiro July/Dec. 2020

 

ARTIGOS

 

Freud e a autonomia: uma interpretação

 

Freud and the autonomy: an interpretation

 

 

Fábio Moreira Vargas*

Universidade de São Paulo - USP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo procura pensar a noção de autonomia através da metapsicologia freudiana, isto é, desenhar a possibilidade de um sujeito autônomo (o que pressuporá que desenhemos brevemente alguns elementos da formação subjetiva) através do próprio circuito das pulsões. Subvertendo a noção clássica de autonomia, Freud daria subsídios, interpretamos, para pensar novas formas de se ser autônomo. Para tal propósito, iremos partir de breves indicações de Theodor Adorno.

Palavras-chave: Freud e a autonomia, Metapsicologia, Circuito das pulsões.


ABSTRACT

This paper tries to think the notion of autonomy through Freudian metapsychology. We will build the possibility of an autonomous subject by the circuits of drives itself. To complete this purpose, it will be necessary that we reconstruct some elements of subjectivity formation by Freudian psychoanalysis. Freud would have subverted the classical notion of autonomy and, in that way, he would have offered new possibilities to think about man's autonomy. For this purpose, we will start from some brief indications by Theodor Adorno.

Keywords: Freud and the autonomy, Metapsychology, Circuits of drives.


 

 

Será possível pensar a autonomia humana através de um autor rigorosamente determinista? Em que não se trate da autonomia pela adequação à regra, como na proposta kantiana (cf. KANT, 2007), em que a dispersividade do desejo que pode determinar a vontade é posta sobre a legalidade da universalidade da lei. Trata-se, nesse caso, de uma autonomia curiosa: o sujeito que se pauta sobre a lei de sua própria razão obedece apenas a si mesmo e, por isso, escapa das influências empíricas, de quaisquer determinações alheias à própria atividade racional. A problemática na perspectiva freudiana é distinta: pode a autonomia ser equacionada em uma teoria do aparelho psíquico onde a rigorosa determinação dos processos faz-se, não só a expensas da compreensão racional, mas, antes por causa da sua ignorância? Dito numa linha: num saber alimentado pela necessária postulação do determinismo das ações psíquicas (sintomáticas, culturais, oníricas, cotidianas, sob as quais repousa o trabalho da decifração psicanalítica) é possível uma autêntica postura autônoma que seja índice da liberdade dos seres humanos?

A problemática é ainda mais grave, pois se trata do desmonte da subjetividade operado pela letra freudiana que se revela, a partir de então, como sendo uma das mais profundas fontes da heteronomia. É claro que há muitos modos de ser arrastado pela determinação alheia e padecer da impossibilidade de ações espontâneas e livres, mas tudo parece mais grave quando pensamos que uma das fontes que impede a possibilidade da autonomia repousa na própria subjetividade humana. A heteronomia, portanto, não apenas é vista na alteridade determinante da sujeição. Se os determinismos das constituições internas (e seus reflexos na tessitura psicológica através de certa causalidade psíquica, a despeito da extrema complexidade dessas mediações) solapam a ideia de racionalidade como livre determinação das próprias produções subjetivas, como defender uma possibilidade de compreensão, via psicanálise freudiana, da autonomia do sujeito humano? O que, claramente, impõe reflexões pregnantes à experiência clínica. É no desejo de esboçar uma interpretação acerca dessa intrincada questão que se move esta breve investigação.

 

Nada de propriamente novo

Retificando a simplista leitura revisionista por alguns adeptos da teoria freudiana, comenta Theodor Adorno:

De fato, para Freud não há mais nada de propriamente novo após as primeiras fases do desenvolvimento. A repetição idêntica de reações psicológicas caracteriza um estágio histórico em que ressurgem os traços arcaicos da civilização (ADORNO, 2007, p. 64).

Postas as coisas nessa perspectiva, está vedada à subjetividade humana qualquer novidade em matéria de fenômenos psíquicos. "Nada de propriamente novo" pode significar que a determinação dos acontecimentos nas fases críticas de desenvolvimento é como padrões mais ou menos previsíveis pela metapsicologia, explicando-as no próprio curso do devir psíquico, mas que se repetem nas suas estruturas determinantes a ponto de o "propriamente novo" não ser uma possibilidade pensada em matéria de psicologia humana. Se há um novo, a letra sugere, ele não possui linhas originais que se lhe possam conferir ineditismo genuíno. Visto desse modo, a autonomia é uma ficção, isto é, recolher os traçados velados da constituição na explicitação dos caminhos tomados pela vida psíquica é a real possibilidade do mapeamento analítico, a saber, compreender por que se age como se age, se é como se é, se deseja o que se deseja é a tarefa real da intervenção quando se pensa a autonomia (e os derivados possíveis dessas iluminações), mas não a integralidade da originalidade que, desta feita, desconsideraria, teórica e clinicamente, a genealogia dos processos fundantes da configuração atual. Há razões explicativas para que os elementos manifestos na vida psicológica sejam como são. Razões que dão inteligibilidade aos percursos de cada subjetividade. Que seriam sempre, direta ou indiretamente, determinadas. Certamente, Adorno tem no próprio Freud elementos que possibilitam ratificar sua posição.

Pensemos, a título de exemplo, nos circuitos identificatórios como elemento importante na formatação da construção do si-mesmo. São famosas as passagens em que Freud desenha, no progressivo grau de importância que se configura o conceito de identificação em sua obra, a formação da subjetividade de modo indissociável da alteridade. O caráter do Eu é afinal um "precipitado dos investimentos objetais abandonados" (FREUD, 1923/2011, p. 63)1, destacando nisso não só a manutenção das relações de objeto para o Id, o que configura um aspecto central da formação de compromisso entre Eu e Id, mas como elemento formativo do próprio sujeito como consciência (e inconsciência). Desde Luto e melancolia, na tênue fronteira traçada entre Eu/objeto, até Psicologia das massas..., com a identificação sendo posta como a primeira e mais original forma de ligação afetiva, (com as possibilidades da regressão das relações objetais à identificação e desta para aquelas) veremos o conceito de identificação ganhar força no sentido de permitir a extrapolação da noção de que o Eu possa identificar-se com os objetos (seja pela sintomatologia patológica, como as múltiplas personalidades ou por alguns casos histéricos, por exemplo) para que estes objetos possam ter atividade formativa sobre o Eu. A noção de identificação, se alçada a tal elemento importante para a formatação subjetiva, não poderia repousar senão, a despeito da longa jornada até chegar nesse ponto de teorização por Freud, na infância. A própria dimensão da derivação da oralidade como momento psicossexual da libido dá conta da precocidade dos processos identificatórios que repousam nas figuras vitais do primeiro momento da vida psíquica. Incorporação e identificação para identidade do infante se conectam intimamente.

Formatado pelos outros, isto é, na relação com os primeiros objetos que permitem não só a sobrevivência biológica do indivíduo, mas uma densa rede de processos psicológicos que se vão sofisticando, na amplíssima complexidade das mediações, conflitos e mesmo contraditoriedades ambivalentes com que se revestem no mundo, o sujeito tem, desde seu caráter até seus estados patológicos, aspectos heterônomos determinantes. Adorno está ratificado.

Mas felizmente (ou infelizmente) as coisas são muito mais complicadas.

 

Que é Eu?

E podemos abarcar a profunda complexidade dessas considerações por duas ordens de razões.

A primeira é que a cidadania do Eu (e, logo, sua possibilidade originária) está longe de ser território ineludível na obra freudiana. Sigamos algumas exemplificações. Não fora preciso 1914 com o estudo sistemático sobre o narcisismo para uma complexificação da discussão acerca do Eu; já nos Estudos sobre a histeria a noção é importante, mas ambígua. Nas últimas etapas da Psicoterapia da histeria há uma vinculação entre o Eu e a consciência, aqui, integração egoica e conscienciosidade do material patogênico parecem ser sinônimas. Mas, no mesmo texto, a relação é problematizada e "o corpo estranho" da Comunicação preliminar vai se converter em "infiltração do Eu", com o caráter de resistência a esse processo sendo pontuado, isto é, a ideia de que partes do Eu sejam inconscientes não é nova para Freud (MONZANI, 1989). No Projeto..., de 1895, são conhecidas as páginas que constroem a necessidade de o aparelho anímico sair do registro alucinatório dos investimentos de desejo. A possibilidade que o aparelho tem, nos momentos iniciais, de trocar o modus operandi passando a vivenciar o sistema de memória como se fosse sistema de percepção, precisa ser de algum modo modificada. O Eu, um sistema diferenciado, é a instância inibidora dos afluxos energético/pulsionais como agente da possibilidade do teste de realidade que regula o caminho dos afluxos para que os processos secundários possam sobrepujar, em certa medida, os primários: o mundo externo deve ser agora considerado quando se trata de pensar o desejo e sua satisfação.

Na Interpretação dos sonhos (1900) há uma redistribuição das funções do Eu e uma tendência a identificá-lo com o sistema pré-consciente/consciente. A virada mais drástica, todavia, se processa em 1914 quando a gênese egoica se apresenta num misterioso passo argumentativo - para além das discussões acerca de Ideal do Eu e Eu Ideal e os caminhos em refluxo da libido objetal, Freud pensa ser uma suposição necessária que:

Uma unidade comparável ao Eu não existe desde o começo no indivíduo; o Eu tem que ser desenvolvido. Mas as pulsões autoeróticas são primordiais; então deve haver algo que se acrescente ao autoerotismo, uma nova ação psíquica, para que se forme o narcisismo (FREUD, 1914/2010, p. 19).

Repitamos: da passagem do autoerotismo para o narcisismo é necessária uma unidade capaz de comportar o próprio investimento para além da polimorfia pulsional; isto seria o Eu como unidade que atua sobre a anarquia das pulsões. Mas o que surpreende é que para esta passagem ocorrer "deve haver uma nova ação psíquica" que, a despeito de sugestões, não é explicada no texto freudiano. É fácil notar que se trata da descrição de um processo mais ou menos confuso, mas não da explicação completa de uma gênese. Essas passagens são conhecidas, inclusive a posição lacaniana sobre as origens da instância egoica através do estágio do espelho (LACAN, 1966) a partir dessas ambiguidades. Mas a complexificação não se detém aí e já é importante notar que as reflexões acerca do lugar e estatuto do Eu estão longe da simplicidade e de uma única leitura genealógica.

Em 1921, nos estudos sobre as massas, trata-se da recuperação fundante da identificação2, cujas teorizações mais densas se iniciam quatro anos antes em Luto e melancolia, e a aplicação desta noção numa dimensão essencialmente formativa de traços importantes do Eu. Então, em 1921, a identificação passa a ser, não apenas um mecanismo psíquico, sobretudo na histeria, esclarecendo elementos patológicos, mas assume o papel de construir, de certa feita, o próprio Eu. Todavia, dois anos depois em O Eu e o Id, a gênese do Eu ganha outras determinações: pois o Eu é "sobretudo corporal, não é apenas uma entidade de superfície, mas ele mesmo a projeção de uma superfície" (FREUD, 1923/2011, p. 32). Uma nota acrescida exatamente nessa passagem não permite margem de erros:

Ou seja, o Eu deriva, em última instância, das sensações corporais, principalmente daquelas oriundas da superfície do corpo. Pode ser visto assim como uma projeção mental da superfície do corpo, além de representar como vimos acima, as superfícies do aparelho psíquico (FREUD, 1923/2011, p. 32).

Ora, a complexidade transborda por todos os lados.

O Eu como sistema de mediação dos processos de afluxo energético impedindo a imensa quota de energia livre, inibe, assim, os processos primários. Desde o início pensa-se a vinculação da consciência com o Eu, noutras partes esta estreita conexão é problematizada. O Eu brotando de uma nova ação psíquica que tem como consequência a unificação da dispersividade pulsional do autoerotismo (narcisismo como unificação, Eu é objeto da libido, bem como - não deixemos passar - a gênese do Eu Ideal remontando à projeção do narcisismo primordial, "abandonado"). O Eu estritamente vinculado com o tecido da intersubjetividade presente no mundo externo, isto é, a alteridade dos circuitos das identificações é posta no primeiro plano (o que faz, inclusive - situado este movimento no período estruturante - que o Édipo seja levado em consideração como fase formatadora). Fase da oralidade introjetiva, a identificação se desenha como noção central para "formatação" do Eu. Em OEu e O Id, contudo, o Eu é projeção de uma superfície, sobretudo uma superfície corporal, isto é, o mecanismo projetivo (mais uma vez deixando de ser apenas mecanismo central da patologia) dá conta de lançar uma figura unificada das superfícies de um tecido muscular, sensações corporais, como ato de inteligibilidade do Eu.

Se olharmos com atenção essas complexificações, é preciso notar que existem partes que não se articulam facilmente. A noção de Supereu, por exemplo, junto ao Ideal do Eu poderia ter sua origem explicitada nas identificações em todo seu jogo de espelhos conflituosos, às relações de objeto, etc. Contudo, se em 1933, nas Novas conferências..., o Supereu passa a abarcar a função do ideal do eu, este último deriva, neste texto, "da velha ideia que a criança tinha dos pais, a expressão de admiração de quem os considerava perfeitos" (FREUD, 1933/2010, p. 203). Na Introdução ao narcisismo, todavia, o Ideal do Eu derivava do narcisismo perdido da criança. Coisas bastante distintas, é preciso perceber. Acerca desta noção de narcisismo há novas questões complicadas: para haja um narcisismo, lembremos, é preciso haver uma "nova ação psíquica", isto é, o surgimento do Eu. E, assim, se o Eu se identifica com alguns objetos e esse processo é constitutivo de partes importantes de sua estrutura, então já havia um Eu antes da identificação? Um eu primitivo que se identifica com objetos que, por sua vez, o constituem? Mas isso deveria ser pensado após o narcisismo que é, precisamente, quando há um Eu. Mas em 1921, a identificação é o mais antigo laço afetivo com outra pessoa, diz Freud, então, via modelo oral, estaria desde o início operando? Antes do narcisismo, então? Ou já estamos no registro narcísico? E, nesse caso, o autoerotismo do bebê está situado em que lugar?

Vejamos que as peças são complexas e às vezes não se fixam muito claramente: como pensar de modo unificado, teoricamente ajustado, o surgimento do Eu ora via identificação, ora como "ação psíquica diferenciada", ora como projeção duma superfície corporal? E as funções inibidoras do Eu que são, desde o projeto, reafirmadas? Como se dá essa função se se remonta sua gênese a uma projeção de sensações corporais? Mas se o Eu é, afinal "uma parte do Id, uma parte modificada, adequadamente, pela vizinhança do ameaçador mundo exterior" (FREUD, 1933/2010, p. 219) então retorna o tecido constitutivo das relações intersubjetivas que, de lambujem, reúnem o Eu à associação estreita com o aparelho perceptivo que dá conta do acesso motor ao mundo exterior. Nesse caso, a função inibidora de algum modo está mantida via identificação (via Supereu que é herdeiro do complexo do Édipo e, portanto, introjeção dos avatares da lei e da moralidade que impediriam o afluxo irrestrito das pulsões); mas e quanto à projeção duma superfície? O Eu como projeção de processos do corpo possui funções inibidoras dos processos primários? A modificação do Id se dá pelo vínculo perceptivo identificatório via relações de objeto requeridas pelo próprio Id? A projeção de sensações corpóreas pode ser adequadamente pensada pelas vias objetais? E quando se pensa o Eu oriundo dessa misteriosa projeção das sensações corporais é possível remontá-la à "nova ação psíquica" de 1914?

Notemos que a tarefa de tentar ordenar as peças é imensamente desafiadora.

Mas antes de retornarmos para esse imbróglio das teorizações freudianas, dissemos haver outra ordem de razão que faz a posição adorniana ser, no mínimo, ampliada.

 

O paradoxo do ser si mesmo

Retomemos a posição de Adorno quanto ao "nada de propriamente novo", que interpretamos via circuitos identificatórios. Afundemo-nos nessa suposição para vermos até onde ela nos levará. Se se pensa a personalidade humana sob a ótica do determinismo através da possibilidade de mostrar que derivamos, em última instância, dos ciclos formativos da intersubjetividade que, não só nos influencia, mas nos molda, surge, todavia, uma complexa questão de ordem lógico-filosófica. Se tudo for visto desse modo, gostaríamos de evidenciar uma dimensão tantas vezes perdida da discussão sobre os processos de subjetivação: a dimensão do poder.

Isto significa pensá-lo não como o poder/outro que nos obriga pela norma ou pela força a determinadas ações no mundo, mas algo muito mais incômodo: que de alguma forma o que nós somos é determinado em larguíssima medida pelo outro. Descobrir - e isto é central - que as configurações da mais idiossincrática posição de si derivam, no limite, da alteridade3 (nas suas múltiplas posições intersubjetivas) que, como capacidade de molde, formatação, criação, é precisamente poder e violência. Nessa lógica, a identidade psíquica do sujeito é, de alguma forma, sujeição. Nesse sentido, a conscienciosidade das linhas de força da constituição de si é, maior ou menor, a capacidade de pôr à luz a estrutura da sujeição que o poder exterior cria. Todavia, postos os termos nessa lógica (o que ratificaria mais uma vez Adorno), há uma questão pungente.

"Não podemos pressupor um sujeito capaz de internalização sem que a formação do sujeito seja explicada" (BUTLER, 2017, p. 12). Isto é, se há uma introjeção de aspecto constituinte, a pergunta central é: o que introjeta? Um algo antes de ser criado? Uma atividade flutuante de captação dos poderes determinantes? Um ato de pura atividade desprovido de contornos? Se a capacidade de identificação molda, restaria a questão: moldar o quê? Impõe aqui certo paradoxo da referencialidade, um processo que cria a interioridade egoica, no entanto, encontra um espaço neutro sem linhas já internas que lhe possam, ao menos, ser substrato do processo de introjeção.

Uma possibilidade de resolução é ver a atividade fundante dos objetos de influência da exterioridade criar a distinção interior/exterior (polo opositivo central em Freud, por sinal). O processo de internalização, nesse sentido, criaria a distinção mesma. Tudo, nessa ordem, está por resolver: pois esta posição oferece-nos "uma distinção entre psíquico e o social que difere significativamente do relato da internalização psíquica das normas" (BUTLER, 2017, p. 28). Mas a problemática aqui se torna mais uma vez aguda. Pois se o sujeito é reflexo, mais ou menos explícito, a processualidade própria à vida psíquica é, de fato, também pensada e agida como derivada, isto é, na ordem da subjetividade haveria uma homogeneidade radical entre externo e interno. Não apenas na modelação do caráter (as formações reativas, por exemplo, em que comparecem pulsões e já proibições do tecido sociocultural), mas da própria constituição de aspectos importantes na identidade do sujeito. Se se pensa os processos identificatórios nesta ênfase da heteronomia constitutiva na produção de si mesmo, então não há nada de novo após a derradeira (e misteriosa) internalização. O problema, todavia, é que as coisas não se passam assim, e esta é a nossa segunda ordem de razão para problematizarmos a posição adorniana.

Pois mesmo que se aceite o paradoxo, algo deve ocorrer na vida interior para que o poder, em larga medida determinante da identicidade, quando posto na esfera intrapsíquica, ganhe dimensões próprias, isto é, não seja apenas a reprodução da determinação exterior. Se as coisas não se passassem assim, a repetição perpétua das gerações selaria o destino da vida mental. O repouso da reconciliação filosófica no marco da identidade sujeito e objeto do ponto de vista psíquico estaria alcançado. Algo deve se processar para que a violência externa na sua capacidade de determinar o sujeito, nos processos mesmos identificatórios, ganhe, no interior da subjetividade, uma forma distinta da mera reprodução. A operacionalidade da identidade deve, sob risco de desaparecer como identidade, opor-se ao mesmo núcleo que a gera. Vulnerável, nesse sentido, a um poder que não cria, o sujeito, conquanto criado, precisa opor-se aos processos da sujeição que o determinam. Há, está claro, uma nova qualidade nos circuitos da formação identitária. Uma temporalidade que reponha a dimensão do poder como interno e lhe dê, de alguma forma, uma nova roupagem. Tudo se passa como se a sujeição anterior se tornasse, de algum modo, uma vida psíquica posterior que inaugura outras possibilidades de futuro.

Mas ao desdobrarmos a possibilidade do paradoxo, algo se desenha: se se pensa a formação do sujeito como um processo a não permitir "nada de propriamente novo", aceita-se, assim, este esquema mais ou menos complicado da formação/solidificação através da externalidade e a exclusão radical da autonomia. Por outro lado, vimos que a cidadania da identidade (vista pela ótica do Eu) na obra freudiana é repleta de armadilhas e está longe da translucidez. Desdobrados os problemas (aceitação da formação pelo poder exterior e/ou a complexidade de pensar a identidade por meio das noções de Eu) o que resta é enveredarmos por outro caminho.

Para que a introjeção funde o interior, para que a identidade nasça das malhas da complexidade do mundo com seus sujeitos outros que não o infante, é preciso aceitar que não há um algo definido antes da formação. Este o problema: há um antes.

 

O antes do antes

E no início... era Id.4 O que não podemos perder de vista quando se trata de pensar a determinação da identidade (e aqui, a sua autonomia) bem como os contornos próprios da consciência humana é que ela é processo temporalmente secundário. Já havíamos percorrido pistas quando do breve percurso pela noção de Eu, mas agora sejamos claros: é a construção dos componentes pulsionais, via metapsicologia, que nos pode ajudar nesse emaranhado. Topologicamente, há um antes dos inícios dos processos formativos (mesmo que de direito); dinamicamente, é a conflituosidade das dimensões distintas no interior da vida anímica que dão o movimento da inadequação fundante no interior da identidade e, não menos importante, é a perspectiva energética em sua circulação pelo aparelho que possibilita quebrar alguns paradoxos elencados acima. E justamente esse incurso nos recolará defronte à autonomia. Não pela primeira vez, a originalidade freudiana pode ser subversiva.

Dissemos que antes da internalização há o Id; precisemo-lo: a dinâmica pulsional nos faz atentar para o fato de que, internamente às suas possibilidades, essa formatação intrínseca às dimensões identificatórias serão, sempre, necessariamente, requeridas e ao mesmo tempo inadequadas pela dinâmica pulsional. Na lógica mesma do aparelho anímico repousa a indissolúvel potência do negativo, isto é, as partes não se estabilizam. Nas descrições acerca da natureza da pulsão, encontraremos elementos importantes para circunscrever esse "antes do antes" como uma atividade que não pode ser posta de lado: "A substância percipiente desse ser terá adquirido, na eficácia de sua atividade muscular, um ponto de apoio para distinguir um 'fora' e um 'dentro'" (FREUD, 1915/2010, p. 55) A interioridade e a exterioridade, no primeiro momento das especulações pulsionais, são derivadas da presença da pulsão como "força constante" interna, isto é, à diferença dos estímulos puramente fisiológicos, a perpetuidade da força pulsional advinda da internalidade configura o espaço mesmo do dentro. Se não é possível liquidar a incessante força pulsional (FREUD, 1915/2010), a própria dimensão do objetivo da pulsão, a saber, a satisfação, é tornada, no limite, inalcançável se se entende por isso a "supressão do estado de estimulação na fonte da pulsão" (FREUD, 1915/2010, p. 58). A essência mesma do impulso (Drang) é a atividade incessante (FREUD, 1915/2010). É preciso, primeiramente, termos isso claro.

À mais antiga destas localidades ou áreas de ação psíquica damos o nome de Id. Ele contém tudo o que é herdado, que se acha presente no nascimento que está assente na constituição - acima de tudo, portanto, as pulsões, que se originam da organização somática e que aqui encontram uma primeira expressão psíquica, sob formas que nos são desconhecidas (FREUD, 1940/1974, p. 103).

Isso é central porque o sentido do entrelaçamento com o mundo nos tecidos intersubjetivos precisará, de direito, passar pela quantificação pulsional que, exigência de trabalho, demanda ser suprimida: a pulsão como um conceito limítrofe exige trabalho das camadas superiores do aparelho e, nessa lógica, há um transbordamento da esfera "pessoal" que alcança um mundo psiquicamente colorido, uma realidade humanizada pela dinâmica dos impulsos - significativa, valorada. A realidade exterior, assim, não é da ordem da neutralidade, antes, ela é investida de interesse na medida em que pode, ou não, cessar a impetuosidade pulsional via satisfação. O que se configura aqui por pressuposto, atentemo-nos, é a dimensão do desamparo constituinte da ordem humana: é isso que possibilita pensar que o mundo entra em cena quando da frustração da realização do desejo de modo alucinatório: é necessário considerar o mundo externo uma vez que a criatura humana, sozinha, não pode suprir-se. Estamos dizendo que é da dinâmica pulsional que se engendra o transbordamento para a cogitação do mundo, os estreitos limites da individualidade (como corpo psicofisiológico) precisam ser rebentados uma vez que neles a insuportabilidade da exigência pulsional se faria esmagadora e, no limite, desestabilizadora da própria continuidade da vida. Sendo o objeto o que há de mais variável na pulsão, trata-se da mobilidade própria dos representantes que possam emergir como potenciais de satisfação. É no circuito da força, como essência do movimento pulsional, que brota a necessidade do encontro com o mundo. Isto já nos pode auxiliar a reformular algumas peças.

Se lermos mais atentamente todas as ambiguidades na formulação de Eu, há algo que sempre se mantém, direta ou mediatamente, presente. Precisamente a interligação do Eu com a atividade da pulsão. Mesmo nas funções que são próprias ao Eu, podemos ver a presença do Id. Se se pensa o componente identificatório, as figuras centrais do circuito são objetos da pulsão (uma vez que respondem à possibilidade de satisfação), isto é, a dinâmica pulsional está vinculada à possibilidade da identificação. A incorporação do objeto não se dá sem mais. É a necessidade da demanda pulsional que dá inteligibilidade ao processo: força constante (exigência de trabalho) - desamparo - necessidade de processos que atendam a esta demanda.

Se se pensa, por outro lado, o caráter inibidor da atividade do Eu, questão defendida até o fim da letra freudiana, principalmente quando a partir de Inibição, sintoma e angústia o Eu passa a ser sede da angústia e comparece a ideia de "sinal" como acionador do princípio do prazer e ativação do recalcamento, afinal, quando investigamos essa função do polo egoico, como são possíveis as energias próprias da funcionalidade do Eu? Não se tratará, no complexo jogo de diferenciação entre Eu e Id, da ideia de um elemento que age com forças emprestadas? Sendo uma parte modificada do Id, não há uma continuidade de gênero, e não apenas de grau, entre eles?

Se o foco for a relação entre Eu e a atividade perceptiva, que o vincula ao mundo, não é a posição densamente elaborada em A negação que demonstra que desde o início as atividades próprias das atribuições dos juízos que emergem do Eu não visam justamente reencontrar no mundo o objeto possibilitador da satisfação quando do retorno das necessidades pulsionais? Isto é, nas funções judicativas de atribuição de existência e qualidade não é a dinâmica pulsional que engendra a necessidade da averiguação do mundo? Mesmo na misteriosa "nova ação psíquica" que Introdução ao narcisismo nos põe, não se trata de um corpo atingido pela anárquica dimensão da pulsionalidade polimorfa perversa que demanda, na ordem na ininterruptabilidade, alguma forma de unidade?

Sejamos claros: mesmo estando evidente que as ambiguidades não se dissipam facilmente, e essa certamente não seria nossa intenção, seria profícuo perceber que seja pela identificação, seja de sua derivação corporal, quando se pensa os contornos da formação do Eu/identidade a pulsão está sempre presente. A ordem da atividade pulsional é a anterioridade que precisa ser levada em consideração quando se pensa o momento auroral da formação subjetiva. Isso nos parece central por algumas razões.

A nova qualidade que o paradoxo da atividade da sujeição nos exigia pode ser adequadamente esclarecida à luz desta posição: motor da transformação da constituição determinante via outro em algo de sempre e necessariamente não idêntico a ele, é a exigência pulsional que, por princípio, não é idêntica aos seus objetos. Se o que permite o fundo possibilitador da introjeção é a dinâmica pulsional com suas exigências, estas jamais serão da ordem do estável, há um choque constituinte do desejo com a possibilidade de sua satisfação, mesmo no nível interno. Trata-se de pensar que se o mundo é cogitado quando da falência da resolução pulsional nos limites do próprio corpo, quando este mundo for central para, nos processos de amadurecimento e desenvolvimento, modelar o sujeito, esta formatação já é da ordem do negativo em relação à dinâmica pulsional. O vínculo entre demanda e objeto não é determinado em nenhuma das instâncias, seja nos circuitos sociais de objetos possíveis, seja através dos objetos introjetados para construção do si mesmo.

Há uma permanente tensão no coração da identidade. O Eu é os objetos de amor como resíduos abandonados, mas também não é; é os ideais perdidos, guia-se por eles, mas também não é; este corpo que é sentido como demanda é, de fato, o corpo conhecido, mas também não o é; é-se as exigências morais da regulação do desejo, tanto quanto não se é.

Mas então, que é o sujeito? O que falta em nosso percurso é perceber algo fundamental: que na letra freudiana a verdade do sujeito não repousa no Eu. Mas também não está no Id, como uma essência descoberta por detrás do fenômeno. A verdade do sujeito humano é a manifestação patológica tanto quanto sua processualidade oculta; é a conscienciosidade da norma tanto quanto a possibilidade do desejo de sua transgressão. Algo como um jogo de forças psicossomáticas que se manifesta em suas múltiplas ordens, legalidades e estatutos. Na exata medida em que uma única "localidade" não poderia dar conta da subjetividade, o sujeito, para Freud, não é o Eu consciente lutando contra suas próprias inibições, desejos, normas, resistências e recalcamentos, mas também não é o caldeirão fervilhante dos feixes pulsionais e afetos ininterruptos. O sujeito é isto tudo na sua irredutível complexidade dinâmica. O descompasso é uma forma de laço subjetivo, a descontinuidade é uma concepção constituinte e imanente. Isso nos parece central - Freud não teria descoberto o sujeito lá onde a manifestação deslocada, condensada, associada, se mostrasse "pura", lá onde além das restrições culturais, além do desenvolvimento nos estágios da libido, mais além das patologias reinasse algo da ordem da natureza que, reprimida pela vida socializada, detivesse a verdade da alma humana. Passa-se, e a própria metapsicologia é esta construção, como se o sujeito, no limite, não fosse senão a resultante mais ou menos inapreensível de toda processualidade dinâmica da vida anímico-social.

Isto posto: a identidade nunca é apenas sua formatação pelos objetos, pelas projeções, pelas inibições, mas sempre uma tensão disruptiva de inadequação em relação a eles.

Esta ideia de tensão nos ajuda a reorganizar as peças. A dinâmica pulsional não só permite a compreensão, em linhas gerais, da necessidade da constituição de uma subjetividade unitária capaz de - organizada -, ter controle das demandas. Também nos mostra que a ideia de uma identificação que nos constituísse sem brechas para a originalidade é ilusória. A potência da inadequação é também movimento de criação, movimento de incessante confronto de si para consigo. A qualidade nova que é preciso pensar da transformação do poder/influência que cria para o poder que, internamente alojado, se torna atividade contra a sua origem é uma qualidade que pode ser engendrada pela e na pulsionalidade humana. Pela força da demanda pulsional identifica-se aos objetos, mas constituído, não se é simplesmente como eles. Esta distância intransponível entre a força que formata aspectos do sujeito e aquilo que nele resiste (como a insistente imperfeição na inadequação do desejo a seus objetos) é o que se pode chamar nascedouro metapsicológico da autonomia. Neste caso, ela não é apenas racionalidade diretora da ação, liberdade de servir-se do próprio entendimento ou atividade contrária à vida do desejo. Mas uma potência imperativa irrecusável de se ser, sempre, outra coisa.

Não é ninguém menos que Adorno que, em outra ocasião, postula:

O modo pelo qual - falando psicologicamente - nos convertemos em um ser humano autônomo, e, portanto, emancipado, não reside simplesmente no protesto contra qualquer tipo de autoridade... É o processo - que Freud denominou como desenvolvimento normal - pelo qual as crianças em geral se identificam com uma figura de pai, portanto, com uma autoridade, interiorizando-a, apropriando-a, para então ficar sabendo, por um processo muito doloroso e marcante, que o pai, a figura paterna, não corresponde ao eu ideal que apreenderam dele, libertando-se assim do mesmo e tornando-se, precisamente por essa via, pessoas emancipadas (ADORNO, 2010, p. 177).

O confronto no interior da identificação é a tensão dos objetos constituintes contra aquele irredutível percurso de inadequação em relação ao qual as demandas se configuram. É do interior da dinâmica pulsional, assim, que os laços com o mundo são produzidos, que elementos da identidade são construídos, mas que também podem ser negados. O confronto com a autoridade é central, nessa posição, para construção de uma real autonomia que vise negar o poder como criador de si. Há uma ordem que atua em nossa determinação e que nos forma, mas somos palco de uma anomalia irredutível em relação a esta ordem atuante do mundo.

Logo, retomemos: é possível pensar a autonomia em um autor que constrói uma teoria de rigorosa determinação? É justamente porque determinado, isto é, rigorosamente unido às heteronomias que algo no sujeito se lhes opõe perpetuamente. É a tensão não eliminável entre as partes (para a saúde e para a doença) o espaço legitimador de novas configurações. A autonomia certamente deverá passar pela racionalidade e pela real possibilidade do fortalecimento do Eu, mas não podemos nunca perder de vista que uma das mais interessantes subversões freudianas é que mesmo tal trabalho concluído, uma ficção da personalidade genuinamente autônoma, isto é, um sujeito integrado a sua própria experiência subjetiva, mesmo assim algo em sua interioridade será sempre potência de inadequação. A lenta e progressiva construção teórica que Freud executa sobre os vínculos sempre provisórios entre objeto e pulsão e esta sendo pensada como exigência de trabalho à psique incidirá precisamente sobre a ideia de autonomia na medida em que o sujeito (este algo inabarcável que é ao mesmo tempo todas as suas instâncias e nenhuma delas em particular) tem na tensão constitutiva que habita o aparelho psíquico a força promotora de desestabilização dos processos constituídos. Nas interessantes passagens em que Freud descreve o Eu como servindo a três implacáveis senhores (FREUD, 1933/2010, p. 220) é todo o sujeito que está implicado nesse processo: na luta das defesas contra os arroubos energéticos do Id, ambos compõem a subjetividade; na luta entre atividade do Eu e as exigências da instância moral, ambas as "partes" são o sujeito. No limite, dada a lógica pulsional, tanto as restrições superegoicas às exigências de satisfação quanto a necessidade de atenção ao mundo externo conduzem a compreensão de que a subjetividade é pensada como tensão ineliminável que, contudo, garante a impossibilidade das estabilizações. O paradoxo do sujeito sujeitado via poder da determinação alheia pode ser pensado como um aspecto do problema, mas não sua totalidade, pois algo está sempre determinando o sujeito, mas algo está sempre, inevitavelmente, inserindo tensões e movimentos no interior das formas e estruturas determinadas. E, com isso, a forma de se pensar a ideia de autonomia, ao menos no âmbito da vida psicológica, ganha novas determinações.

Se recuperarmos brevemente a posição kantiana que citamos acima veremos que o sujeito pode ser pensado como autônomo na medida em que segue apenas a lei dada pela própria razão, isto é, é possível que a vontade humana seja determinada de diversas formas, mas quando ela se determina por dever, seguindo a lei presente na própria razão, quando a vontade não é agente de ações movida por prazer, ou por motivos exteriores, ou por móveis empíricos, mas apenas pela lei capaz de determinar universalmente a vontade humana, então o sujeito está sendo autônomo precisamente porque segue apenas a lei outorgada por si mesmo. Autonomia, liberdade e determinação formal pela lei racional presente em nós são conceitos intimamente relacionais na posição kantiana, afinal, uma das mais profícuas e profundas formulações sobre a moral no Ocidente. Quando a discussão que fizemos acima centraliza a dimensão metapsicológica das posições de Freud, as peças são deslocadas de lugar, pois, agora, a autonomia, isto é, a capacidade de guiar-se apenas por si mesmo sem ser determinado por nada exterior precisará ser pensada de forma radicalmente diferente. Não é a razão, quando se torna razão prática, que determina a vontade e impede a heteronomia tão presente na condição humana, não é negando os desejos e os móveis empíricos que se pode pensar o ser autônomo mas, ao contrário, é a tensão constitutiva do desejo e dos circuitos da atividade da pulsão que, como potências de desestabilização das leis internalizadas, das identificações assumidas, dos objetos investidos está, de alguma forma, impedindo a ideia de sujeito sujeitado. Na letra de Freud, certamente haverá muito a dizer sobre a vinculação entre razão, Eu e autonomia, mas percebamos que essa discussão jamais estará completa se não nos atentarmos para a lógica da pulsão como atividade disruptiva e perturbadora que diz respeito, diretamente, a possibilidade de desestabilização das normas. Nesse caso, ocorre uma interessante associação absolutamente aberrante para a filosofia kantiana: é a pulsão como outro da razão, são os circuitos pulsionais ininterruptos como heteronomia para a consciência e o Eu que possibilitam pensar uma forma peculiar de autonomia: aquela que recusa, de saída, qualquer norma como absolutamente estabelecida, qualquer objeto como perpetuamente investido, qualquer síntese do Eu (FREUD, 1933/2010, p. 218) que tivesse esgotado as tensões e elaborado psiquicamente suas negatividades por completo.

Se todas as posições acerca da luta contra a determinação por outrem não são nunca definitivas, então o primeiro passo da ideia de autonomia talvez seja a incessante circulação da tensão que, ao não permitir a estabilização, esteja sempre e ao mesmo tempo abrindo novas formas de se ser sujeito.

Nos seus melhores momentos, a clínica da psicanálise não desejou outra coisa.

 

 

Referências

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ADORNO, T. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 2010.         [ Links ]

BUTLER, J. A vida psíquica do poder. Teorias da sujeição. São Paulo: Autêntica, 2017.         [ Links ]

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FREUD, S. (1940). Esboço de psicanálise. São Paulo: Abril Cultural, 1974.         [ Links ]

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FREUD, S. (1933). Novas conferências introdutórias à psicanálise. 31. A dissecção da personalidade psíquica. São Paulo: Companhia das letras, 2010.         [ Links ]

FREUD, S. (1923). O eu e o id. São Paulo: Companhia das letras, 2011.         [ Links ]

KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2007.         [ Links ]

LACAN, J. Le stade du miroir comme formateur da la fonction du Je. In: LACAN, J. Écrits. Paris: Seuil, 1966.         [ Links ]

MONZANI, R. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Editora Unicamp, 1989.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 21/07/2019
Aprovado para publicação em: 11/08/2020

Endereço para correspondência
Fábio Moreira Vargas
E-mail: fabio.vargas@usp.br

 

 

*Professor. Bacharel e Licenciado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrando em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil.
1Servimo-nos aqui à maioria das vezes da tradução de Paulo César de Souza das obras de Freud. Todavia, lá comparece instinto, e aqui, deliberadamente e sob nossa responsabilidade, alteramos para pulsão; bem como Supereu, etc. Acreditamos não se configurarem problemas maiores.
2As reflexões acerca de identificação, como atesta a correspondência com Fliess, não se iniciam somente nesses textos em relação aos interesses de Freud. Tomamos aqui essa rápida cronologia para nossos interesses. Acerca dessa questão, recomenda-se fortemente o texto de J. FLORENCE. L'identification dans la théorie freudienne. Bruxelas: F. U. S., 1978.
3Reflitamos brevemente sobre esta questão: não estamos afirmando que a alteridade é constitutiva da totalidade do aparelho psíquico tampouco que suas malhas sociais possam ser inteligíveis sem o circuito pulsional. Na letra freudiana, são as pressões pulsionais que mobilizam o aparelho psíquico às séries de modificações que conduzem tanto a sofisticação dos modos de funcionamento mental quanto as ligações, cada vez mais complexas, com os objetos externos. Freud precisa dar conta da socialização da psique, da inserção do sujeito numa comunidade socialmente estabelecida e é claro que a família, a sociedade, suas leis, estruturas etc., desde o início jogam um peso fundamental. Mas isso não é possível de ser compreendido na metapsicologia freudiana sem a atividade da pulsão como trabalho à psique que atinge como força ininterrupta o aparelho psíquico. Aqui, para nossos explícitos interesses, focalizamos a dimensão da identificação. Estes pontos serão abarcados mais detidamente nas próximas páginas.
4Não problematizaremos neste trabalho as questões atinentes à passagem da primeira tópica para o modelo estrutural da segunda, tampouco passaremos pelas polêmicas acerca das pulsões de morte, as funções e as tendências a que elas seguem (após 1920). Interessantes questões, mas aqui não nos interessarão.

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