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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.42 no.43 Rio de Jeneiro jul./dez. 2020

 

ARTIGOS

 

Vicissitudes do Encontro Psicanalítico ou O susto com o momento presente1

 

Vicissitudes of the Psychoanalytic Meeting or The fright with the present moment

 

 

Luís Claudio Figueiredo*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho da psicanálise é apresentado como tendo o encontro psicanalítico e suas vicissitudes como a sua condição, o seu objeto e o seu instrumento. As teorias da psicanálise viriam da atualidade do encontro e das suas vicissitudes e referem-se a elas, mesmo quando se pretendem muito abstratas e historicizantes. Nos encontros são privilegiados o susto, as turbulências e as respostas automáticas sob a forma de reações estereotipadas e repetitivas de transferência e contratransferência.

Palavras-chave: Encontro psicanalítico, Susto, Turbulência, Transferência.


ABSTRACT

The work of psychoanalysis is presented as having the psychoanalytic encounter and its vicissitudes as being its condition, its object, and its instrument. The theories of psychoanalysis came from the actuality of the encounter and its vicissitudes and referred to them, even when they are intended to be very abstract and 'historical'. In the psychoanalytic meetings are privileged the scare, the turbulences and the automatic responses to it in the form of stereotyped and repetitive reactions of transference and countertransference.

Keywords: Psychoanalytic encounter, Scare, Turbulence, Transference.


 

 

Se o analista se desse conta da turbulência emocional que pode surgir em qualquer sessão ele entraria em pânico antes do atendimento.
(Frase atribuída a Wilfred R. Bion)
Se o analista pudesse prever os longos períodos de encrenca e estagnação que podem vir depois, pensaria duas vezes antes de começar uma análise
(Autor desconhecido)

 

O momento presente - o instante

Após alguns séculos de existência aventurosa, incluindo a experiência da bissexualidade e da transexualidade, o herói de Virginia Woolf, Orlando, é afetada por súbita intensificação dos sentidos; em especial,

Sua audição ganhou em acuidade...e o relógio tiquetaqueou mais e mais alto até que ocorreu uma tremenda explosão junto ao seu ouvido. Orlando deu um salto como se houvesse sido golpeada violentamente na cabeça. Foi atingida dez vezes. Na verdade, eram dez horas da manhã. Do dia 11 de outubro. Do ano de 1928. Era o momento presente.
Ninguém precisa se surpreender por Orlando ter se assustado, levando a mão ao coração e empalidecendo. Pois pode haver revelação mais terrível do que se saber no momento presente? O fato de sobrevivermos ao choque só é possível porque o passado nos protege de um lado e o futuro de outro (WOOLF, 1928).

No entanto, quando Wilfred R. Bion (1970) nos recomenda escutar sem memória, sem desejo e sem compreensão prévia, está nos sugerindo abrir mão justamente dessa experiência de uma temporalidade mundana, contínua, previsível e rememorável. É como se precisássemos escutar com a audição mais aberta que nunca o tiquetaque do relógio e as batidas das horas: o instante momento presente, um acontecimento. Seremos capazes de suportar o susto do momento presente quando renunciamos às defesas a que Orlando também não pode recorrer no dia 11 de outubro de 1928?

E Bion vai além (1970), nos recomendando o cultivo de uma "capacidade negativa", isto é, uma atitude de espera indefesa do inesperado, o que contraria a humana procura de segurança, previsão e controle. É preciso coragem para enfrentar o momento presente sustentando a capacidade negativa.

 

Entrando no tema: VICISSITUDES DO ENCONTRO

Tudo pode ficar ainda mais assustador se o instante - o momento presente - é, mal ou bem, compartilhado. Lemos em Bion (1979):

Quando duas personalidades se encontram, uma tempestade emocional começa. Se fazem contato suficiente para se darem conta uma da outra, mas mesmo suficiente contato para não se darem conta uma da outra, produz-se, pela conjunção desses dois indivíduos, um estado emocional perturbado que dificilmente pode ser visto como uma melhora em relação ao estado emocional de cada um caso não se tivessem encontrado. Mas desde que já se encontraram, e a tormenta emocional ocorreu, as duas partes da tempestade podem decidir "tirar o melhor proveito de um mau negócio 'to make the best of a bad job'" (BION, 1979, p. 246).

E assim chegamos ao tema desta comunicação: vicissitudes do encontro, em especial, do encontro analítico.

Todos os encontros trazem essa turbulência descrita por Wilfred Bion e produzem esse susto: é a hora H do bad job, como nos adverte Bion em seu último e pequeno texto, Making the best of a bad job (1979), cujo primeiro parágrafo apresentamos acima. O bad job é justamente o momento presente, o instante do encontro, anterior ao acionamento das defesas que protegem aqueles que se encontram do peso das badaladas em que o futuro parece estar sendo decidido sem aviso prévio e sem protelações; alguns falariam em "encontro com o real", antes de toda simbolização.

Muitos evitam ao máximo o momento presente e chegam aos encontros com pautas e planos. Não é o caso, ou não deveria ser o caso, dos encontros psicanalíticos. Nós enfrentamos, indefesos, as turbulências emocionais dos encontros, e para isso convidamos nossos parceiros, os analisandos. Em outras palavras, o momento presente do encontro analítico - uma adversidade, como nos sugere Bion, seja dizendo algo, seja silenciando - deixa-nos necessariamente jogados - nós e os analisandos - entre a aventura da descoberta do novo e a segurança do já sabido.

Somos então atraídos pelos automatismos a serviço da segurança: a segurança dos reencontros com os antigos objetos (ainda que proibidos, falhos e frustrantes), a segurança das repetições de padrões já experimentados de relação com o mundo (ainda que proibidos ou fracassados), ou apenas a segurança da pura insistência pulsional em um arcaico "manter-se vivo", sobreviver. Isso engloba todo o campo do que se entende por transferência e contratransferência em jargão psicanalítico, incluindo as reedições e a compulsão às repetições. Evidentemente, as vicissitudes dos encontros estendem-se a todo esse território de reencontros e desencontros e às repetições quase intoleráveis.

Mas haverá sempre, diante das turbulências emocionais produzidas pelos encontros no momento presente, uma outra via: a criação e a expansão da mente a serviço da aventura, da descoberta, da invenção. Para enveredarmos pela reflexão sobre essa outra via, será necessário considerarmos alguns outros elementos.

 

As vicissitudes dos encontros: uma aproximação analítica

O encontro psicanalítico: o susto e seu poder de atração e concentração

Os campos que se formam nos encontros nos intimam e intimidam: são verdadeiramente instantes, no sentido preciso de que instam, requerem com insistência toda a nossa presença. Daí seu poder de atração de todas as fantasias e defesas e resistências que compõem nosso modo de estar no mundo, diante dos outros e das coisas. É evidente que nossas defesas e resistências procuram reduzir o susto, a intimação e a intimidação. Contudo, paradoxalmente, essas tentativas de nos proteger do instante nos entregam a ele: eis-nos aqui e agora tal como somos e sem disfarces, com nossos impulsos eróticos e agressivos e nossas defesas operando (quase) "à luz do dia".

No encontro analítico, porém, cabe a nós analistas tentarmos reduzir ao máximo esses procedimentos defensivos para deixarmo-nos de fato assustar, acompanhando, ao mesmo tempo, como os analisandos experimentam o susto do encontro e a ele reagem. Em acréscimo, cabe-nos ir criando as condições para que uma tal disponibilidade para o novo vá se tornando possível também para o analisando.

O encontro psicanalítico: o susto e seu poder de irradiação e dispersão

E como o susto do instante, frequentemente, é grande demais e ultrapassa os limites do próprio encontro, ao lado do seu poder de atração, precisa ser reconhecido o poder de irradiação e dispersão das turbulências ali geradas. Isso foi certa vez chamado de "transferência como situação total". É como se as imediações espaciais e temporais do encontro analítico fossem também inundadas e coloridas pelas fantasias, pelos afetos e pelas ideias nele produzidas. Assim sendo, a turbulência se dissemina, com o agravante de que os ambientes e sujeitos que habitam esses espaços ao redor, não estão nem preparados para elas, nem obrigados a manter alguma serenidade diante delas. Isso faz com que as vicissitudes do encontro possam entrar numa escalada de perturbações e transtornos.

O que salva é que todo esse movimento de irradiação retorna ao ponto de partida, incidindo novamente no instante presente de cada encontro analítico, onde, se a sorte ajudar, encontrará um analista capaz de sustentar a serenidade sem recorrer a respostas prontas e automáticas, isso é, sem se deixar tomar cegamente por suas próprias contratransferências, mas deixando-se ainda assim afetar pelas turbulências inerentes aos encontros de que participa.

Os encontros, as turbulências emocionais e as defesas inconscientes

Retomando: todos os encontros, mas em especial aqueles nos quais colocamos muitas fichas e muitas esperanças, geram turbulência emocional, e inevitavelmente provocam transferências, ou seja, acionam antigos padrões de pensamento, atitudes e reações afetivas. É uma maneira de tentar enquadrar o susto, reduzi-lo, embora esses padrões produzam também dramas, tensões e suas próprias "encrencas". Ou seja: as vicissitudes incluem tanto as turbulências quanto essas "encrencas" mais ou menos estereotipadas e cronificadas que podem encobrir as turbulências com o manto de uma certa "pasmaceira". É o que vai constituir a "realidade clínica" (cf. COELHO JUNIOR, 1995) e será o objeto privilegiado da análise, no caso de ser um encontro analítico.

As transferências, positivas e negativas, são deslocamentos e encenações, narrativas e performances que trazem para o plano das falas e das condutas, os impulsos, desejos, medos, angústias, esperanças e desesperos, e modos de defesa que se organizaram ao longo da vida de cada um. Apesar de se terem originado em várias fases e épocas do passado, fazem parte atual do mundo interno e da personalidade daquela pessoa.

Tudo isso que escutamos e sofremos na carne nos afeta de uma forma ou de outra: são as contratransferências (e transferências) positivas e negativas do analista a que não podemos nos furtar ou desconhecer.

É o entrejogo das transferências e contratransferências que tece a temporalidade das repetições resistenciais, as "repetições do mesmo", em oposição ao instante do momento presente, o acontecimento do encontro. Podemos dizer que a prática da psicanálise procura reencontrar o instante, com seu horizonte de descobertas e invenções, em oposição à mera repetição do mesmo: os mesmos dramas, as mesmas queixas, as mesmas tolices, as mesmas procuras e escolhas erradas, os mesmos impasses, as mesmas ilusões, as mesmas angústias e medos, os mesmos retrocessos e as mesmas decepções consigo próprio e com o mundo etc. É a cronificação da encrenca.

O encontro psicanalítico como o principal tema da psicanálise

Em certa medida, é verdade dizer que as vicissitudes do encontro analítico - sejam as turbulências por ele geradas, sejam, mais ainda, as tentativas de reduzi-las aos velhos modos de enfrentá-las, os padrões já conhecidos e geradores das "encrencas" transferenciais e suas monótonas repetições - são o grande tema da psicanálise. Não nos interessa o passado, como muitos imaginam, mas o atual. Melhor dizendo, o que, do passado, se atualiza a cada encontro como reação automática às turbulências.

Por isso, ao contrário do que alguns pensam, o que nos vale não é apenas nossa capacidade de afetação em termos de contratransferência - nossa própria contribuição para a formação das "encrencas" - mas a possibilidade de transpô-la no que, começando com uma resposta empática inédita, já foi denominado de "metatransferência" (FÉDIDA, 1978). É necessário que a mente do analista abra espaço interno para um lugar de observação, auto-observação e reflexão - um lugar "terceiro", como nos ensinou Ronald Britton (1989) - que lhe possibilite uma atividade livre de pesquisa e procura da verdade emocional do que se passa entre ele e seu analisando (cf. CAPER, 2020).

Essa procura de contato com a vida mental própria e alheia requer algumas condições internas, habilidade e coragem. Mas é desse contato que podem advir interpretações, na forma de sentenças ou atos, capazes de proporcionar descobertas que permitam uma expansão das mentes implicadas no encontro (cf. CAPER, 2020). Quando isso acontece, é porque uma psicanálise está acontecendo, e com ela uma mudança significativa na temporalidade: saiu-se da temporalidade previsível da repetição resistencial para a temporalidade do "instante-acontecimento" (se me perdoam o neologismo).

O encontro psicanalítico como o meio da psicanálise

Fica evidente que, sendo o próprio objeto da psicanálise, o encontro analítico e suas vicissitudes (tanto as turbulências do encontro como as "encrencas" transferenciais e contratransferenciais e suas estagnações) são também o meio de alcançar os fins a que uma psicanálise pode se propor. São as próprias vicissitudes do encontro que abrem a possibilidade para a mudança de temporalidade a que nos referimos acima.

O encontro psicanalítico como o instrumento da psicanálise

Finalmente, é o próprio encontro o único instrumento que nos permite operar essa transformação no regime temporal, essa libertação diante dos circuitos repetitivos estagnados.

Das práticas do encontro às suas teorizações

Será da procura das verdades dos encontros que emanam nossas tentativas de teorização, mesmo quando se busca reconstruir o passado nas "teorias psicanalíticas do desenvolvimento". No fundo, mais do que teorias do desenvolvimento, são "mitos etiológicos" (GREEN, 1990), ou seja, tentativas de introduzir uma dimensão genética ao que se mostra do mundo interno nas suas transferências para o aqui e agora - o instante - de cada encontro.

Uma outra tentativa de reconstrução do 'mundo interno' se dá nas chamadas "teorias psicopatológicas psicanalíticas". Em outro plano, ainda mais pretensioso, construímos (ou adotamos) teorias metapsicológicas para criarmos alguma ideia - muito especulativa, na verdade - do "aparelho psíquico". Mas por mais longe que possamos chegar, que fique claro que tudo se origina do que se produz e se pode observar no encontro e em suas vicissitudes.

Essas teorias, que enquanto teorizações sempre me pareceram ser muito precárias e valer muito pouco, embora indispensáveis, precisam ser acomodadas em um lugar muito discreto em nossas mentes para não nos obstruirem o caminho para a experiência do encontro e, desde esse lugarzinho meio escondido, exercerem sua função metatransferencial. É onde a máxima de Bion, "sem compreensão prévia", mais precisa ser lembrada, para que se mantenha nossa capacidade de estar presentes e nos deixarmos surpreender e assustar com o que vivemos, vemos e escutamos.

 

Para concluir

Não seremos psicanalistas se não pudermos acompanhar João Guimarães Rosa, que disse em um dos seus contos notáveis algo decisivo sobre os encontros e suas vicissitudes: "A vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos é apenas milagre; salvo melhor raciocínio".

E ainda: "Só quem entendia de tudo eram os gregos. A vida tem poucas possibilidades". (GUIMARÃES ROSA, Fatalidade)

Entre essas poucas, e que valem a pena, os encontros psicanalíticos. Mas sempre no limite do impossível.

 

 

Referências

BION, W. R. Attention and interpretation. London: Tavistock, 1970.         [ Links ]

BION, W. R. Making the best of a bad job. In: Clinical Seminars and Four Papers. London: Brunner-Routledge, 1979.         [ Links ]

BRITTON, R. O elo perdido. A sexualidade parental no Complexo de Édipo. In: O Complexo de Édipo Hoje. Rio de Janeiro: Imago, 1989.         [ Links ]

CAPER, R. Bion and thoughts too deep for words. London: Routledge, 2020.         [ Links ]

COELHO JÚNIOR, N. E. A força da realidade na clínica freudiana. São Paulo: Escuta, 1995.         [ Links ]

FÉDIDA, P. "La topique de la théorie". In: L'Absence. Paris: Gallimard, 1978.         [ Links ]

GREEN, A. A loucura privada. Psicanálise dos casos-limite. São Paulo: Escuta, 1990.         [ Links ]

ROSA, J. G. Fatalidade. In: Rosa, J. G. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1962.         [ Links ]

WOOLF, V. Orlando (Penguin). São Paulo: Companhia das Letras, 1928.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 05/10/2020
Aprovado para publicação em: 13/10/2020

Endereço para correspondência
Luís Claudio Figueiredo
E-mail: lclaudio.tablet@gmail.com

 

 

*Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, SP, Brasil.
1Apresentado na XXIII JORNADA da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro (SPCRJ). Agradeço a Andréia Rocha de Vasconcellos, Alfredo Naffah Neto, Daniel Kupermann, Ignacio Gerber, Nelson Coelho Júnior, Octavio Souza, Patrícia Getlinger, Paulo de Carvalho Ribeiro e Paulo Sérgio Lima Silva pela leitura e sugestões.

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