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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.42 no.43 Rio de Jeneiro jul./dez. 2020

 

ARTIGOS

 

Clínica do traumático: o testemunho como uma confluência de línguas

 

Traumatic clinic: the testimony of a confluence of languages

 

 

Marcos de Moura Oliveira*; Soraya SouzaI, II**

IUniversidade Estadual de Campinas - UNICAMP - Brasil
IIUniversidade do Vale do Paraíba - UNIVAP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho traz uma formulação do conceito de confluência de línguas a partir da Confusão de Línguas de Sándor Ferenczi, na qual a linguagem da ternura de caráter autoplástico, e a linguagem da paixão, que trabalha através de forma aloplástica, ou seja, da modificação do que é externo para o sujeito, se confundem. Na confusão de línguas, pela metapsicologia ferencziana, o sujeito pode construir em busca de uma reorganização psíquica, pela perlaboração, a confluência de línguas. Diante do exposto, a investigação propõe a oportunização à capacidade aloplástica do testemunho em consonância com a evocação de um estado autoplástico no sujeito, dando origem não mais a uma "confusão de línguas", mas a uma "confluência de línguas".

Palavras-chave: Psicanálise, Sándor Ferenczi, Confusão de Línguas, Trauma, Inscrição Psíquica.


ABSTRACT

The present work brings a formulation of the concept of confluence of languages based on the Confusion of languages of Sándor Ferenczi, in which the language of tenderness of an auto plastic character, and the language of passion, which works through alloplastic form, that is, the modification of what is external to the subject, get confused. In the confusion of languages, by Ferenczian metapsychology, the subject can build in search of a psychic reorganization, through perlaboration, the confluence of languages. In view of the above, the investigation proposes the opportunity for the alloplastic capacity of the testimony in line with the evocation of an autoplastic state in the subject, giving rise no longer to a "confusion of languages", but to a "confluence of languages".

Keywords: Psychoanalysis, Sándor Ferenczi, Confusion of Languages, Trauma, Psychic Inscription.


 

 

Sándor Ferenczi (1873-1933) é possivelmente o autor mais polêmico da psicanálise, havendo sido posto à margem da tradição por muitos anos após sua morte. O enfant terible tinha a grande habilidade de tocar os pontos-chave para desvelar o inconsciente, habilidade que assim como seu apelido rendeu-lhe grandes glórias e tristezas.

De acordo com Freud (1919/2019, p. 45) "Infamiliar seria tudo o que deveria permanecer em segredo, oculto, mas veio à tona". Ferenczi foi o mais habilidoso de seus contemporâneos em trazer à tona esse oculto, causar essa infamiliaridade, abalando o recalque de quem quer que leia seus escritos. Se existem "(...) duas espécies de cientistas e duas espécies de ciências. A primeira busca a verdade e esforça-se para despertar a humanidade sonolenta; a outra evita, tanto quanto possível, perturbar a quietude do mundo (...)" (FERENCZI, 1924a/2011, p. 272), é evidente que o autor pertence ao primeiro grupo.

Tanto entre admiradores quanto entre contestadores, um conceito amplamente discutido em Ferenczi é o trauma como confusão de línguas, tanto por evidências do desenvolvimento da ideia em toda sua obra, quanto por seu texto Confusão de línguas entre a criança e os adultos (Id., 1933/2011) ser o último publicado em vida e motivo de desentendimento profundo com Freud, seu mentor.

Outro motivo importante para recorrermos a Ferenczi quando se discute a traumatogênese é a efetividade de sua teoria e técnica na resposta ao problema da perlaboração1 em comparação com as produções de seu tempo, das quais destacam-se o trauma como sedução infantil (FREUD, 1896/2006), o trauma como repetição da cena primária (Id., 1920/2006) e o trauma do nascimento (RANK, 1924/2015).

Nota-se que o interesse de Sándor Ferenczi pelas formas de expressão das pulsões é presente ao longo de toda a sua obra. Em sua coletânea Les écrits de Budapest (FERENCZI, 1994), no início de sua carreira médica (1899-1906), já demonstrava interesse por temas como hipnose e telepatia; após sua inserção no campo psicanalítico observa-se a continuidade de seus estudos sobre as linguagens por toda a extensão de sua bibliografia.

 

1. A linguagem da ternura e da paixão

Já em seus primeiros anos de escrita psicanalítica, surge no texto Palavras obscenas a ideia de que as palavras podem também ser investidas de libido. Segundo Ferenczi:

Poder-se-ia acrescentar que a aptidão para exprimir desejos por signos verbais formados de características fragmentárias não se adquire de uma só vez. Além da duração relativamente importante do tempo requerido para a aprendizagem da fala, parece que os signos verbais que substituem as representações, ou seja, as palavras conservam por largo tempo sua tendência para a regressão. Essa tendência atenua-se, sem dúvida, progressivamente ou por etapas, até atingir a capacidade de representação e pensamento "abstratos", praticamente livres de elementos alucinatórios (1911/2011, p. 129).

As pulsões são como forças motrizes que levam o sujeito a sair de sua posição em busca de algo, a linguagem é o sistema pelo qual a pulsão transita em direção à sua meta, sendo que, conforme a maturação psíquica, a tendência autoerótica da linguagem, expressa através da regressão, diminui em direção a uma linguagem mais refinada, como se segue:

No neurótico, os afetos flutuantes apoderam-se da palavra indutora a fim de transferir para ela uma parte de sua energia, contentando-se com a associação mais indireta. Completarei as conclusões de Jung acrescentando que não é a palavra indutora que "deflagra" a reação perturbada pelos complexos nos neuróticos, mas são os afetos ávidos de descarga que vão ao encontro da palavra indutora. Para recorrer à nossa expressão recém-criada, diremos que o neurótico introjeta até as palavras indutoras experimentais (Id., 1909/2011, p. 98, itálicos do autor)2.

Da direção apresentada em 1909 por Ferenczi para a linguagem ao avanço até seu último ano de vida, encontra-se a última formulação sobre o assunto, considerada por muitos estudiosos de sua produção como uma das obras-primas ferenczianas, o texto nomeado como Confusão de língua entre os adultos e a criança (Id., 1933/2011).

Em Confusão de língua, Ferenczi expressa haver dois tipos de línguas: a ternura, associada às crianças; e a paixão, associada aos adultos. Ao conceituar cada uma delas, o autor faz uso dos termos "autoplástica" para a forma de ação da ternura e "aloplástica" para a paixão. A ideia de que uma linguagem provoca transformações internas é facilmente compreendida quando o leitor recorre à compreensão das pulsões autoeróticas, enquanto a segunda língua evoca uma relação com objetos externos.

No ensaio Talassa3 (FERENCZI., 1924b/2011), o autor já faz o uso dos termos aloplástica e autoplástica, embora sem os conceitos de línguas, para fazer uma distinção entre tipos de pulsões. Aqui Ferenczi fala sobre quatro tipos de pulsões que, embora se trate de derivações de eros e thanatos (FREUD, 1920/2006), são didáticas para a compreensão da formulação de ternura e paixão, demonstrando a origem dos termos na proposta que surge da bioanálise como processo da vida em geral e passando à condição de formas específicas de organização pulsional do sujeito no encontro traumático em Confusão de língua. De funções comuns à vida (Talassa) para o apelo à vida (Confusão de língua).

A ideia parte de uma pulsão de retorno ao seio materno, uma pulsão de união, completude e, em nome dela, o sujeito desenvolve primeiramente a pulsão oral, aloplástica, destinada a buscar a completude devorando o seio materno, atuando sobre o objeto externo. Após a primeira barragem, o desmame, o sujeito passa a buscar a completude através da pulsão anal, autoplástica, através da contenção de seu produto, pulsão que é barrada pela educação higiênica. Por fim, a última pulsão relatada por Ferenczi nesse ensaio é a pulsão uretal, aloplástica, ligada propriamente aos órgãos genitais e sua atuação sobre o mundo, embora ainda não se fale em organização genital.

Em Talassa Ferenczi aponta que, na verdade, o falo é reconhecido como substituto dos dentes, como uma segunda tentativa da busca pelo retorno ao seio materno de forma aloplástica. É válido lembrar que os ensaios sobre sexualidade da primeira geração de psicanalistas apontam para uma organização genital desenvolvimentista, que não condiz com a visão de sujeito fragmentado pelas diversas possibilidades entre o encontro de línguas que ocorrem desde sua concepção, encontrada na própria teoria ferencziana (cf. SOREANU, 2018), porém, sendo as línguas da paixão e da ternura formas de expressão atravessadas pela pulsão, a leitura da confusão de línguas, na tradição ferencziana, é indissociável de Talassa.

A leitura de Talassa traz consigo uma segunda confusão quando apresenta consigo a visão de que ambas as qualidades de transformações plásticas são presentes através das pulsões em um período infantil, enquanto Ferenczi, a posteriori, estabelece que a língua das crianças é apenas a terna, em contraposição ao adulto que estaria apenas em posse da língua da paixão. Sobre esse ponto de divergência adverte-se ao leitor que, embora o uso dos termos de transformação plástica em ambos os textos, bem como sua aproximação em raciocínio teórico, o ensaio sobre a sexualidade trata de uma leitura da vida em geral, enquanto o texto de 1933 demonstra-as como resultados dos mecanismos de defesas da vida subjetiva.

O segundo ponto importante à compreensão, justamente pautada na ideia de que as pulsões diversas atravessam ambas as linguagens, é da prevalência de transformações plásticas determinadas por uma maturidade psíquica. Embora uma criança possa, dependendo de seu estádio de desenvolvimento, estar em exercício de uma pulsão aloplástica, sua capacidade de exercício é limitada para tal, restando-lhe a autoplastia, enquanto para o adulto, embora possa voltar-se a si, há uma maior exigência de investimento pulsional em objetos externos. Desse modo, as línguas da ternura e da paixão caracterizam uma prevalência de recursos de transformação condizentes com as formas de relações do sujeito, embora atravessadas por diversas qualidades de pulsões.

Em seguida, as línguas da ternura e da paixão são formas de desenvolvimentos pulsionais que coexistem na composição psíquica dos sujeitos, classificadas por Ferenczi como comum à criança (ternura), ou comum ao adulto (paixão), embora não se deva esquecer da máxima: "Grattez l’adulte et vous y trouverez l’enfant"4 (FERENCZI, 1909/2011, p. 111).

 

2. O trauma como confusão de línguas

Avançando à interação entre as línguas no sujeito intrapsíquico e no relacional, refletindo sobre o encontro entre esses dois sujeitos, percebe-se a presença do investimento pulsional que permeia qualquer relação humana. Quando o quantum dessa pulsão, dirigido de forma aloplástica, é adequado à capacidade autoplástica de organizar esse investimento, tem-se um encontro pulsional entre os sujeitos.

Mas se, pelo contrário, a ternura do sujeito for incapaz de lidar com a voracidade da paixão do outro, resulta-se em uma reação pulsional da relação, ou, nas palavras de Ferenczi (1930/2011, p. 74), "(...) a primeira reação a um choque é sempre uma psicose passageira", sendo o choque, precisamente, um encontro entre essas duas línguas frente à incapacidade imediata de concordância entre os sujeitos. Segundo Dupont (2008, p. 22) "(...) el agredido, que ve desdobladas sus defensas, se abandona por así decir a su destino ineluctable y se retira fuera de sí, para observar el acontecimiento traumático desde una gran distancia ".

A respeito dessa situação, Ferenczi (1931/2011, p. 90) conceitua:

Isso nos permite entrever o que constitui o mecanismo da traumatogênese: em primeiro lugar, a paralisia completa de toda a espontaneidade, logo de todo o trabalho de pensamento, inclusive estados semelhantes aos estados de choque, ou mesmo de coma, no domínio físico, e, depois, a instauração de uma situação nova - deslocada - de equilíbrio: Se conseguimos estabelecer o contato, mesmo nesses estágios, ficamos sabendo que a criança, que se sente abandonada, perde por assim dizer todo o prazer de viver ou, como se deveria dizer com Freud, volta a agressão contra sua própria pessoa.

Em seguida o autor direciona a compreensão de traumatogênese com um olhar multitemporal assim como Freud, com seu trauma pela via da repetição (FREUD, 1920/2006), mas com uma diferença crucial: Ferenczi apresenta a ideia de trauma não mais como acontecimento exclusivamente intrapsíquico, mas como resultante relacional.

O sujeito então participa de uma interação pulsional à qual a incoerência entre a libido investida da linguagem da paixão do outro e sua capacidade de adaptação da linguagem da ternura resulta nesse estado de choque, o qual terá sua temporalidade direcionada pelos recursos inconscientes de vazão do sujeito para escoar o excesso de pulsão. Em outras palavras, após o atravessamento da paralisação psíquica, o sujeito tentará, à sua maneira, simbolizar a experiência de excesso por via da transferência.

A transferência é o requisito primordial para a eleição de a quem o sujeito direcionará o excesso pulsional. Como o próprio Ferenczi (1933/2011) demonstra, a eleição mais comum da criança traumatizada é dos pais ou adultos mais próximos. A compreensão da situação relacional exposta por Ferenczi, deste modo, é fundamental para o que se segue: Esse sujeito buscará dar testemunho de sua experiência como modo de escoamento pulsional, independentemente do canal de comunicação a ser adotado e, para tanto, novamente precisará da presença viva de alguém que o acolha, de um "endereço da fala" (KUPERMANN, 2017a) e, a partir desse endereçamento, Ferenczi (1931/2011, p. 91) denota a seguinte possibilidade:

O pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática do pensamento ou dos movimentos; é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico.

E completa:

Contra uma impressão que não é percebida não há defesa disponível. Essa paralisia total tem por consequência: 1.º) que o curso da paralisia sensorial será, e ficará, duradouramente interrompido; 2.º) que durante a mesma aceitar-se-á sem resistência toda impressão mecânica e psíquica; 3.º) que nenhum traço mnêmico subsistirá dessas impressões, mesmo no inconsciente, de sorte que as origens da comoção são inacessíveis pela memória (FERENCZI, 1934/2011, p. 129-130).

Assim, o trauma é instaurado após o evento inicial, através da verleugnung do endereço eleito, aquele a quem fora buscada a escuta e a presença viva. Por resultado das duas interações, ocorridas em três tempos, ocorre, nos termos ferenczianos, o trauma como confusão de línguas.

Conforme demonstrado pelo autor, há um tempo intermediário entre o traumatismo e a instauração da trauma patogênico, um tempo que pode mudar o caminho da formação do trauma, que esbarra na verleugnung, nesse desmentido onde o outro falha com a escuta.

(...) se aquele que eu mando juntar à tua caravana ignora tua linguagem, não participa de teus medos, de tuas esperanças e tuas alegrias, se ele se limita a fazer os mesmos gestos que os condutores das tuas montanhas, esse homem apenas encontrará [formará] um deserto vazio (SAINT-EXUPÉRY, 1948/1965, p. 359).

O sujeito atravessado pelo encontro traumático, assim sendo, converte-se em um sujeito fragmentado, um sujeito despedaçado, conforme o desenvolvimento das pulsões - oral, anal e uretal que buscam a reintegração - apontadas em Talassa (FERENCZI, 1924b/2011), caminha por um mundo de relações humanas em busca da organização de seus fragmentos, dando origem a uma verdadeira demanda transferencial.

 

3. O trauma e as fragmentações

A referida fragmentação, tradução aqui adotada para o termo splitting, que também pode significar cisão, diferentemente do uso mais conhecido por leitores de psicanálise, não é ligada obrigatoriamente à psicose, mas faz referência ao sujeito que, em sua incapacidade de permanecer no estado de integração, ou no sentimento oceânico de Freud (1927/2006), se despedaça frente à experiência da confusão de línguas, não por mera destruição de si, mas como um apelo à vida.

Na nota de 21 de fevereiro de seu Diário Clínico, Ferenczi (1932/2008, p. 83) postula:

El sujeto que resigna su mente sobrevive entonces corporalmente a la <<muerte>> y vuelve a vivir con una parte de su energía; incluso logra unirse con la personalidad pre-traumática, es cierto que casi siempre con ausencias del recuerdo, amnesia retroactiva para diversos períodos. Pero justamente este fragmento amnésico es en verdad un fragmento de la persona, que sigue <<muerta>> o se debate en la agonía de la angustia.

Assim compreende-se que viver o contato traumático, a confusão de línguas, é um constante fragmentar-se, é sobreviver à morte voraz causada pela paixão do outro dividindo-se entre essa parte viva, pré-traumática, e o fragmento amnésico, um fragmento que segue afetado pela angústia. "Um exame detalhado dos processos do transe analítico ensina-nos que não existe choque, nem pavor, sem um anúncio de clivagem da personalidade" (FERENCZI, 1933/2011, p. 119).

Quanto a esses movimentos de fragmentação, Soreanu (2018) expõe:

In his work, we find a series of original formulations of processes of splitting, such as autotomy (Ferenczi, 1921, p. 160), or identification with the aggressor (Ferenczi, 1933, p. 162); and new kinds of psychic fragments, such as the Orpha fragment of psyche (Ferenczi, 1932a), functioning, as we shall see, between the life drive and the death drive, or the teratoma (Ferenczi, 1929, p. 123), a parasitic deadened "double" of the self, living inside the psyche.

Essa multiplicidade de possíveis fragmentações demonstra, por um lado, a constante luta do sujeito pela vida, e por outro, uma luta pela preservação do amor. E sobre isso, não é a toa que Ferenczi nomeia a língua da paixão, uma vez que, embora no trauma haja excessos pulsionais, tudo se inicia em uma investida apaixonada, e depois, por muitas vezes estes sujeitos externos - principalmente os eleitos para o testemunho - são pessoas privilegiadas no círculo relacional do sujeito.

A identificação ao agressor, referida por Soreanu, é postulada por Ferenczi como se segue:

Por identificação, digamos, por introjeção do agressor, este desaparece enquanto realidade exterior, e torna-se intrapsíquico; mas o que é intrapsíquico vai ser submetido, num estado próximo do sonho - como é o transe traumático -, ao processo primário, ou seja, o que é intrapsíquico pode, segundo o princípio de prazer, ser modelado e transformado de maneira alucinatória, positiva ou negativa (FERENCZI, 1933/2011, p. 117).

Nesse movimento de fragmentação é bem clara a ilustração do esforço ao qual o sujeito se presta em nome da manutenção da vida e das relações, podendo identificar-se tanto ao primeiro agressor quanto ao que recusa seu testemunho. Essa fragmentação também será decisiva no desenvolvimento desse sujeito, em sua forma de amar e de usar sua língua da paixão.

Mas imaginando-se a metáfora original proposta por Ferenczi, a Confusão de língua entre os adultos e a criança, considerando-se a criança que é exposta ao traumatismo e tem sua experiência desmentida por esses adultos, por esses pais, a criança, em vias de ter que lidar com o trauma sozinha, encontra-se em situação de abandono, e essa experiência de desamparo denomina-se orfandade. Desse modo, em seu diário clínico, encontra-se outro movimento de fragmentação muito importante, a "função órfica".

O conceito de função órfica é formado em resposta do sujeito ao abandono. A respeito disso temos a figura do bebê sábio (FERENCZI, 1923/2011), que faz referência a um sujeito fragmentado, ao mesmo tempo infantil - corpo de criança - e sábio - cabeça de adulto. Mais à frente em sua obra, o autor conceitua: "Pensa-se nos frutos que ficam maduros e saborosos depressa demais, quando o bico de um pássaro os fere, e na maturidade apressada de um fruto bichado" (Id., 1933/2011, p. 119), e segue:

No plano não só emocional mas também intelectual, o choque pode permitir a uma parte da pessoa amadurecer de repente. Recordo-lhes o sonho do "bebê sábio" que isolei há tantos anos, em que um recém-nascido, uma criança ainda no berço, põe-se subitamente a falar e até a mostrar sabedoria a toda a família. O medo diante de adultos enfurecidos, de certo modo loucos, transforma por assim dizer a criança em psiquiatra; para proteger-se do perigo que representam os adultos sem controle, ela deve, em primeiro lugar, saber identificar-se por completo com eles. É incrível o que podemos realmente aprender com nossas "crianças sábias", os neuróticos (Ibid, p. 120).

Na fragmentação traumática o sujeito, no objetivo de sobreviver à hipercatexização sofrida e preservar as relações de amor, direciona os excessos pulsionais à hiperfaculdade das línguas da paixão - a cabeça do bebê sábio - e da ternura - o corpo de bebê. Ferenczi (Ibid., p. 119) expõe:

A criança que sofreu uma agressão sexual pode, de súbito, sob a pressão da urgência traumática, manifestar todas as emoções de um adulto maduro, as faculdades potenciais para o casamento, a paternidade, a maternidade, faculdades virtualmente pré-formadas nela. Nesse caso, pode-se falar simplesmente, para opô-la à regressão de que falamos de hábito, de progressão traumática (patológica) ou de prematuração (patológica) (itálicos e parênteses do autor).

Observa-se então que, ao mesmo tempo em que a experiência traumática implica diversas possibilidades de fragmentações, a psique pode operá-las de forma simultânea e dinâmica. Tão logo, retorna-se à questão de línguas inerente ao sujeito, que nascem do encontro relacional com o outro e são intensificadas pela mesma razão. O adulto e a criança coexistem no sujeito da confusão de línguas, retomando a máxima ferencziana já citada, "raspem o adulto e sobrará a criança".

 

4. A confluência de línguas e o testemunho

Observa-se que, por um lado há um sujeito que necessita comunicar sua emoção, como no pequeno verso de Lessing: "Somnum/ Alba mihi semper narrat sua somnia mane/ Alba sibi dormit: somniat Alba mihi."5 (LESSING apud FERENCZI, 1913/2011, p. 19), porém, pelo outro, há o interlocutor que é tocado e transformado pelo encontro.

Retomando a autoplastia da linguagem da ternura, Vieira (2019) esclarece:

Devemos lembrar que linguagem da ternura é tanto suave quanto sacana, capaz de delicadeza e ao mesmo tempo de suspender o pudor da repressão. Seu uso implica no resgate da força da pulsão a serviço da articulação com objetos que possam servir aos propósitos dos seus desejos.

Assim sendo, temos na confusão de línguas uma linguagem da paixão tentando assujeitar um alvo incapaz de compreender tal linguagem e tendo seu mundo interno violado. Em outras palavras, podemos compreender o conflito entre as línguas como, por um lado a incapacidade da língua terna de compreender o investimento externo e, por outro, uma imposição pulsional do sujeito operante da língua da paixão. " - Só as crianças sabem o que procuram - disse o principezinho. - Perdem tempo com uma boneca de pano, e a boneca se torna muito importante, e choram quando ela lhes é tomada..." (SAINT-EXUPÉRY, 1940/2000, p. 75).

Quando o outro direciona o olhar e a escuta atentos à linguagem terna é possível observar a suavização e a referida sacanagem - ato de tentar evadir o sujeito do recalque - uma vez que a suspensão do pudor do recalque pode facilitar o acesso à via do autoerotismo, capaz de causar como resultante, tanto prazer quanto desordem psíquica.

De tal modo, o encontro do sujeito com um outro acolhedor, poderá operar um evento organizador que através do testemunho possibilitará uma resolução à questão da perlaboração. Como bem disse Heráclito, num rio não se pode banhar duas vezes, assim são os da pulsão em constante atualização. Nessas atualizações, quando dois rios se encontram, criam uma nova configuração, como os rios pulsionais, nomeados aqui linguagem da ternura e da paixão, cruzam-se em um ponto marcado pelo evento apaziguador, resultando em uma confluência de línguas.

Assim sendo, se, na fala de Kupermann (2019), "O trauma é o congelamento da palavra", através do acolhimento há uma confluência de línguas capaz de apaziguar a confusão, o trauma, como o próprio texto ferencizano diz, que é uma Confusão de línguas.

Ferenczi nos mostra que entre um sujeito e um outro há uma busca em direção a um objeto que promova a segurança e o testemunho do traumatismo, como ele segue:

O pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento ou até mesmo ser espancado e repreendido quando se manifesta a paralisia traumática do pensamento ou dos movimentos; é isso sobretudo que toma o traumatismo patogênico. Tem-se mesmo a impressão de que esses choques graves são superados, sem amnésia nem sequelas neuróticas, se a mãe estiver presente, com toda sua compreensão, sua ternura e, o que é mais raro, uma total sinceridade (FERENCZI, 1931/2011, p. 91).

Sem idealizar-se, porém, uma saída fora do campo neurótico como Ferenczi afirmara, uma vez que o desamparo é constituinte da subjetividade6, podemos compreender que, se por um lado o amparo no pós-traumatismo é capaz de reduzir a voracidade de seu efeito, por outro, esse acalento imperfeito faz parte da formação do mesmo. Bartucci (2001, p. 12) demonstra como essa escuta sensível atua no movimento psicanalítico:

Assim, a experiência psicanalítica é, também, um "lugar" que pressupõe necessariamente um outro que escute, que silencie, que interprete; um outro que, para além de "suposto saber", seja ele mesmo esse lugar, encarne esse lugar, para que no momento que nele, lugar, adentremos, deixe ele mesmo de ser este corpo, para estar este lugar.

Assim, compreende-se na exposição metapsicológica da traumatogênese de Ferenczi um processo similar à constituição do sintoma freudiano, em que, se nas palavras do escritor-aviador, "Quando o mistério é impressionante demais a gente não ousa desobedecer" (SAINT-EXUPÉRY, 1940/2000, p. 12), o que seria a angústia de castração se não um choque da criança com uma falta de testemunho, com uma denegação da experiência traumática?

Da mesma forma, se após essa primeira fase o sujeito afetado pelo traumatismo estabelece um desequilíbrio, seria tal "equilíbrio" diferente do recalque que resulta em sintoma?

A aproximação entre a traumatogênese ferencziana e a formação de compromisso freudiana mostra-se possível, há algo a que a primeira permite uma grande contribuição à segunda. Ferenczi (1931/2011, p. 91) afirma que: "As falas apaziguadoras e cheias de tato, eventualmente reforçadas por uma pressão encorajadora da mão e, quando isso se mostra insuficiente, uma carícia amistosa na cabeça, reduzem a reação a um nível em que o paciente volta a ser acessível", demonstrando o poder do testemunho no rumo da formação tramática/sintomática.

A compreensão da importância do papel daquele a quem a fala é endereçada (KUPERMANN, 2017a) naquilo que passa do traumatismo ao trauma social, que estará ligado ao modo de relação desse sujeito para com o mundo. Nesse sentido, o encontro entre os inconscientes pode gerar no sujeito do trauma um efeito resultante da pulsão criadora, possibilitando assim a confluência de línguas e uma nova organização do sintoma. Deste modo, a intervenção relacional seria capaz de provocar algo na ordem da ressignificação da visão do sujeito acerca de suas próprias relações, no sentido de "a quem se fala" (KUPERMANN, 2017a, p. 129)? "É um dos privilégios do escritor poder deixar-nos na incerteza!" (FREUD, 1907[1906]/2006, p. 24).

 

Considerações finais

O objetivo proposto neste trabalho foi, a partir da Confusão de Línguas de Sándor Ferenczi, formular o conceito de confluência de línguas. Parte-se do pressuposto de que o encontro do sujeito com um outro acolhedor gera uma afetação que interage nas atualizações pulsionais e se manifestam nos testemunhos permitindo a perlaboração do traumático.

A questão do traumático é um assunto que transcende gerações. Dentro do campo psicanalítico ela é objeto de estudo presente na obra de diversos autores, dos clássicos aos contemporâneos. Conforme exposto no presente trabalho, é inegável a questão do trauma instaurado como fonte de fragmentação e consequente lente de interpretação de mundo. É fato também que o trauma provoca no inconsciente uma fragmentação que leva o sujeito a uma repetição cíclica em busca do testemunho impossibilitado.

Sendo de interesse geral da psicanálise o trabalho de perlaboração, a relação entre sujeito do trauma e o do acolhimento constrói uma ressignificação que permite uma reconfiguração dessa subjetividade atingida pelo traumático através da confluência das linguagens da ternura e da paixão. Em outras palavras, o encontro entre a linguagem terna, autoplástica e o acolhimento através do uso sensível da linguagem da paixão é capaz de possibilitar a perlaboração do trauma de uma forma pacificadora.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 18/02/2020
Aprovado para publicação em: 11/09/2020

Endereço para correspondência
Marcos de Moura Oliveira
E-mail: marcos.psicologo91@yahoo.com
Soraya Souza
E-mail: soraya.sza@bol.com.br

 

 

*Pós-Graduado em Psicanálise, Teoria e Técnica pelo Departamento de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP). Psicólogo pela Universidade Paulista (UNIP). São José dos Campos, SP, Brasil.
**Pós-Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Docente das Especializações Lato Sensu em Psicanálise, Teoria e Técnica e Psicopedagogia Clínica e Institucional na Universidade do Vale do Paraíba (UNIVAP). Avaliadora da Revista UNIVAP on-line. São José dos Campos, SP, Brasil.
1O termo alemão ausarbeitung possui uma multiplicidade de traduções possíveis, dentre as quais destacam-se elaboração, na tradução do inglês para o português da editora Imago nas obras completas de Freud, translaboração, na tradução do francês para o português da editora Martins Fontes nas obras completas de Sándor Ferenczi e perlaboração na tradução do alemão para o português da editora Autêntica nas obras incompletas de Freud. Adotou-se no presente artigo o uso do termo perlaboração por sua maior aproximação com o termo original, em alemão. Para uma maior compreensão ver a nota do editor para o texto Lembrar, repetir e perlaborar (FREUD, 1914/2016).
2Aqui Ferenczi faz referência a "JUNG, C. Diagnostische Assoziations - Studien, J. A. Barth, Leipzig, 1906".
3Talassa foi, no mito grego, uma das primeiras personificações femininas do mar Mediterrâneo e, por extensão, de todo o oceano. A adoção de Ferenczi pelo nome como título de seu ensaio sobre sexualidade se deve ao apoio na teoria lamarckista e sua ideia de retorno à água/líquido amniótico. Nota-se também uma similaridade com o sentimento oceânico (FREUD, 1927/2006).
4"Raspem o adulto e por baixo dele encontrarão a criança".
5Do sonho/ Alba conta-me sempre seu sonho pela manhã/ Alba dorme para ela: Alba sonha para mim.
6Sobre esse tema ver O quarto golpe e a virtude freudiana (KUPERMANN, 2017b).

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