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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro Jan./June 2021

 

ARTIGOS

 

Transformação e invariância em continuidade ao pensamento de Bion12

 

Transformation and invariance in continuity with Bion's thinking

 

 

Albert Ciccone*

Universidade Lyon 2 - França

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir das noções de Bion relativas à transformação, à função alfa e à cesura, o artigo trata da ligação entre a invariância e a transformação, nos processos de representação e no pensamento, propondo que a invariância tem por função atenuar os efeitos difíceis das mudanças, que eventualmente podem ser experimentadas como catastróficas. Essa função permitiria construir uma representação e assegurar uma continuidade, tendo como eixo a ritmicidade que permite a integração das experiências de separação ou de transformação pressupostas na passagem de um estado a outro. A noção de invariante é útil igualmente para pensar a continuidade nos movimentos de descontinuidade, de ruptura, que o trabalho de pensamento necessita para a construção de abstrações.

Palavras-chave: Transformação, Invariância, Continuidade, Ritmicidade.


ABSTRACT

Based on Bion's notions related to transformation, alpha function and caesura, the article deals with the link between invariance and transformation, in the processes of representation and in thought, proposing that invariance has the function of mitigating the difficult effects of changes, which can eventually be experienced as catastrophic. This function would make it possible to build a representation and ensure continuity, having as its axis the rhythmicity that allows the integration of experiences of separation or transformation presupposed in the passage from one state to another. The notion of invariant is equally useful to think about continuity in the movements of discontinuity, of rupture, which the thought work needs for the construction of abstractions.

Keywords: Transformation, Invariance, Continuity, Rhythmicity.


 

 

Vou falar não da transformação, mas da invariância. Vou fazer a "promoção da invariância", para retomar o título de um capítulo de Étienne Klein numa obra sobre Einstein (KLEIN, 2016). Einstein, que lamentava os termos "teoria da relatividade" e que insistia para que fossem substituídos por "teoria dos invariantes", uma vez que a teoria da relatividade é, mais especificamente, uma teoria das invariâncias: invariância da velocidade da luz, qualquer que seja o referencial, independência das leis físicas em relação ao ponto de vista do observador.

Minhas reflexões terão como ponto de partida considerações de Bion, para "transformá-las", prolongá-las.

 

Transformação, cesura e invariância

A transformação é um aspecto central no pensamento de Bion. Diz respeito aos processos de pensamento. Sua noção de função alfa constitui ilustração exemplar disso, é uma função transformadora. Primeiramente pensamos com o aparelho de pensar de outra pessoa, a qual deve receber e conter as projeções brutas, beta, e transformá-las em alfa, "alfabetizá-las", para devolvê-las ao remetente que, por sua vez, progressivamente, vai interiorizar essa atividade de pensamento. Se esse trabalho fracassa, se o destinatário devolve, brutalmente os elementos brutos, a angústia, o remetente volta a interiorizar os elementos projetados, acrescidos da angústia do destinatário, e se vê num "terror sem nome", segundo os termos de Bion, inominável (aproveito para esclarecer que é isso o terror sem nome, porque com frequência o termo é empregado de maneira errônea; o "terror sem nome" é um terror que não foi nomeado, transformado em pensamentos e em palavras).

O modelo da transformação é desenvolvido por Bion, conceituado de uma maneira "matemática" no trabalho Transformations, cujo subtítulo é Passagem da aprendizagem ao crescimento (BION, 1965/1982). (Esse é o Bion epistemólogo - depois do Bion grupalista, do Bion do período "psicose", e antes do Bion filósofo).

Lembremos as primeiras frases da obra:

Um pintor vê um caminho que serpenteia através de um campo salpicado de papoulas e decide pintá-lo: ao fim desse encadeamento de fatos, há o campo de papoulas, e no outro extremo, uma tela cuja superfície ficou recoberta de cores. Podemos reconhecer que a tela representa o campo; eu também suporia que apesar das diferenças entre um campo de papoulas e um quadrado de tela, a despeito da transformação que o artista operou a partir daquilo que via para lhe dar a forma de um quadro, alguma coisa ficou inalterada e que o reconhecimento depende dessa alguma coisa, vou chamar "invariantes" os elementos que dão conta do aspecto inalterado da transformação (BION, 1965/1982, p. 7).

Transformação e invariância são, assim, solidariamente ligadas, em todo processo de representação: a representação do artista, a do analista que constrói uma interpretação a partir do material observado, e poderíamos dizer a representação de todo pensador, representação própria à atividade de pensamento de qualquer um.

Além disso, a mudança que presume ou que produz tal transformação pode estar ligada a uma "mudança catastrófica", diz Bion, que distingue as fases "pré-catastrófica" e "pós-catastrófica" do processo de transformação. A mudança é catastrófica se produz uma subversão da ordem das coisas, se é acompanhada de um sentimento de desastre e se é violenta. Podemos dizer que toda mudança, desse ponto de vista, é catastrófica, ou em todo caso, pelo menos potencialmente catastrófica. A transformação, de fato é, antes de tudo, uma "deformação", diz Bion. Daí a importância, podemos acrescentar, de detectar e considerar os invariantes. A invariância terá por função ou por efeito atenuar os efeitos catastróficos da mudança.

Com esta noção de mudança catastrófica, Bion permitiu que compreendêssemos as resistências, não somente ao tratamento, mas também a qualquer evolução, e a toda ideia nova. Toda mudança sempre faz surgir uma ameaça, todo desenvolvimento contém a ameaça de uma catástrofe para o psiquismo. Para Bion a mudança catastrófica é uma situação emocional profunda, ligada ao temor da aniquilação, da perda do sentimento de existência, e sobrevém especialmente nos momentos de crescimento psíquico. É tributária da tensão entre continente e conteúdo. Ao longo do desenvolvimento, e no decorrer da vida inteira, o aparelho "continente-conteúdo" está incessantemente submetido a tensões internas. Bion (1965/1982, 1966) descreveu a tensão relacional entre um continente e um conteúdo, tensão que se encontra, por exemplo, entre uma ideia e o enunciado destinado a conter essa ideia. Bion (1967/1983, 1970/1974) demonstrou a necessidade de um continente externo adequado ante a violência das formas novas de pensamento. Cada ideia nova que se desenvolve ameaça, em sua pressão expansiva, destruir o continente psíquico interno, daí a importância de um continente externo que não deve ser nem rígido demais nem flexível demais, a fim de fortalecer o continente psíquico interno e permitir a progressão da ideia nova.

Consequentemente, sempre resistimos à transformação, como resistimos sempre a qualquer ideia nova. A rotina é uma ajuda. A situação não deve nunca ser nova demais.

A transformação remete a uma mudança catastrófica, tal como a travessia daquilo que mais tarde Bion virá a denominar "cesura" (BION, 1975a/1980). A "cesura" designa um afastamento, uma fissura, um espaço que possui funções, ao mesmo tempo, de separação e de comunicação. A cesura separa duas zonas psíquicas, duas regiões da personalidade, dois modos de funcionamento, e a travessia dessa zona comporta uma ameaça de mudança catastrófica. A mudança devida à travessia da cesura pode seguir seja no sentido do crescimento, seja no sentido da destruição.

A cesura é uma das figuras do ponto de contato entre as diferentes partes da personalidade, entre os diferentes tempos históricos de uma experiência, mas também uma das figuras da intersubjetividade, lugar de desdobramento dos processos de crescimento, dos processos de desenvolvimento psíquico. Lugar de separação e de contato, a cesura é a presa das turbulências emocionais que cabe ao eu conter, organizar - é aí, por exemplo, que situo a "função paterna" (CICCONE, 2014), função psíquica que contém a desorganização que pode ser produzida pela travessia da cesura, e que permite que essa travessia conduza a um crescimento mental. Dentre outros, eu me baseio na maneira como Salomon Resnik (1994) considera a função paterna como função "ponte": uma ponte separa e reúne ao mesmo tempo. A função paterna, de preferência a separar, a introduzir um afastamento, é aquela que garante o laço, que garante as condições do laço. E poderíamos desenvolver esta ideia da função psíquica paterna no processo de transformação, função que diz respeito à permanência dentro desse processo, a função paterna como função a serviço da invariância.

De fato, podemos destacar lá também a importância da invariância na transformação. Ou, melhor dizendo, a importância da permanência na multiplicidade das experiências, ou a importância da continuidade nas experiências de descontinuidade.

É nesse ponto que se revela também, por exemplo, a importância da ritmicidade das experiências no desenvolvimento do pensamento. A ritmicidade dá uma ilusão de permanência, uma ilusão de continuidade, por causa da antecipação que permite. Essa ilusão de continuidade permite tolerar as descontinuidades inevitáveis e necessárias para que o sujeito, e primeiro o bebê, possa descobrir o mundo, possa representar o mundo para si mesmo. Ultrapassar a cesura - aquela que separa o sujeito do objeto, a subjetividade do sujeito da subjetividade do objeto, aquela que separa a experiência da coisa (aquilo que Bion designa por "O", a coisa em si, incognoscível) da representação da experiência. E é aí, portanto, que situo a função paterna, que não está a serviço da separação, mas a serviço do laço, que não realiza uma descontinuidade, mas sim que protege a continuidade.

 

Ritmicidade e invariância

Podemos dizer que a ritmicidade permite a integração de qualquer afastamento, de qualquer experiência de separação, de qualquer experiência de transformação, que pressupõe a passagem de um estado a outro, que presume um crescimento, mesmo que este seja contínuo. Mesmo a transformação mais contínua, a mais suave, pressupõe microrrupturas, pressupõe a passagem ou a travessia de cesuras. O ritmo é o que liga as bordas, o que reduz o afastamento entre as bordas da cesura. O ritmo de base de cada um, "seu ritmo de segurança", como diria Frances Tustin, é um invariante que mantém ligados os dois polos de toda cesura, de toda experiência de separação, de toda transformação.

Eu propus, por exemplo, a hipótese (CICCONE, 2016) de que o ritmo de base de cada um mantém ligados, entre outros, os dois polos daquilo que chamei de bissensualidade psíquica, própria de cada um (todos temos uma "bissexualidade" psíquica, mas também - e isto é o que lhe dá fundamento - uma "bissensualidade" psíquica). Vou-me deter nesta ideia, porque ela ilustra bem a maneira pela qual um invariante não apenas permite a passagem de um polo ao outro, de um estado ao outro, mas também permite a articulação de dois polos ou de dois estados, permite manter juntos dois estados opostos.

Vou dizer inicialmente alguma coisa a propósito dessa bissensualidade psíquica: ela dá prosseguimento às proposições de Frances Tustin (1981/1986) a propósito da "bissexualidade psíquica primária" e o trabalho de "integração primária" que todo bebê deve realizar, de sensações opostas e reagrupadas por Tustin sob as denominações de "sensações de macio" e "sensações de duro". A integração e a articulação desses opostos são condição para a constituição do núcleo do sentimento de identidade, para a tomada em consideração da realidade do mundo, para o surgimento e o desenvolvimento do pensamento.

Eu sustento que a articulação ou a ligação dos polos da bissensualidade psíquica é assegurada pelo ritmo de segurança, pelo ritmo básico próprio de cada pessoa.

Podemos dizer que um ritmo em geral consiste sempre em alternar um elemento "duro" e um elemento "macio", para retomar as expressões de Frances Tustin. O ritmo cardíaco, por exemplo, alterna a pressão da sístole e a receptividade da diástole. O ritmo da marcha faz alternar o apoio e a pressão de um pé com o impulso no espaço do outro pé. O ritmo da respiração alterna contração e relaxamento do diafragma. O ritmo da música alterna sons plenos e silêncios abertos, e assim por diante. Podemos dizer que o "duro" na experiência rítmica fecha, protege. O "macio", por sua vez, abre, corre o risco do encontro.

Uma paciente autista tinha me mostrado essa busca de ligação entre dois polos bissensuais através dos ritmos próprios de suas estereotipias ou de suas manobras. É uma experiência que foi emocionante para mim. Na verdade, se trata de uma paciente, já adulta, que voltou a me ver quase quinze anos depois de um tratamento de vários anos. Eu a tinha acompanhado desde quatro anos de idade, durante vários anos. Tinha sido um trabalho inaugural, desafiador para mim. A angústia a invadia e a automutilação era frequente; aferrava-se a manipulações impossíveis de reprimir, masturbava-se muito, era frequente que buscasse fezes nas suas nádegas, em suma, o contato era difícil, a relação era muito complicada.

Depois de muitos anos, com uma evolução relativamente favorável, a família se mudou para uma região distante. O atendimento foi interrompido, mas eles sempre se mantiveram em contato comigo. Os pais (que eram admiráveis, investiam bastante no atendimento, eram muito dedicados, mas evidentemente muito afetados e sofrendo bastante diante dessa criança enigmática) regularmente me mandavam notícias. Uma vez por ano eu recebia uma carta que a criança tinha escrito para mim. Vou chamá-la de Manon.

Uns quinze anos mais tarde, recebo um pedido de consulta para a família, porque Manon queria me rever. Seus pais me perguntavam se eu poderia recebê-la por ocasião de uma próxima passagem na região.

Quando fui buscá-la na sala de espera, eu me dei conta de que Manon estava sentada numa poltrona que outrora ficava no meu consultório e eu me lembro de que ela a utilizava muito.

O reencontro foi muito carinhoso e fiquei emocionado de revê-las, ela e sua família. Manon evoluiu bastante, ela pôde integrar um ESAT no qual trabalha. Os pais organizaram um aposento na casa deles, no qual Manon pode experienciar relativa autonomia.

Depois desse reencontro, convidei Manon a entrar no meu consultório. Ela descreveu para mim todos os elementos novos na minha sala, e me falou da poltrona que tinha reconhecido na sala de espera. Eu lhe disse que ela gostava muito dessa poltrona.

Eu tinha muitas transcrições de observações de Manon, mas reli mais tarde a observação que tinha feito por ocasião da primeira sessão com ela, quando ela tinha quatro anos.

Logo que entrou pela primeira vez no meu consultório (cerca de vinte anos antes, portanto), Manon imediatamente se instalou naquela poltrona que tem uma forma particular: uma forma esférica (os dois braços se juntam, formando um arco de círculo). Ela experimentou a circularidade da poltrona. Fez a volta do arco de círculo, cheirou-o, enroscou-se dentro dele, e ao mesmo tempo se balançava repetitivamente até quase cair. Durante essas manobras, ela disse: "são duros esses braços". Depois, se excitou e procurou masturbar-se.
Em seguida apanhou elementos esféricos que se encaixam: a cada um deles, examinou a dureza da ponta que ultrapassa (para vir encaixar-se no outro elemento) com a boca e com a língua, depois explorou com a língua o buraco do elemento (no qual vem encaixar-se o outro), e em seguida o deixou cair.
Depois se balançava ritmadamente para trás olhando para mim e segurava as mãos, com uma das mãos puxando-a de volta para diante.
Quando coloquei em palavras o que ela parecia estar me mostrando, ela tornou a encontrar o ponto de equilíbrio, e desenhou círculos fechados.
Depois de desenhar diversos círculos, atirou a folha e não prestou mais atenção. Etc.

Numa rêverie teórica, observei, na ocasião, que Manon procurava juntar os polos bissensuais. Quando examinou a dureza dos "braços" e tentou dominar as angústias de queda desse continente, foi a excitação que tomou o lugar da continência, como se ela se defendesse agarrando-se a um movimento masturbatório, mas também como se o encontro do "duro" e do "macio" vulnerável produzisse uma excitação transbordante.

Do mesmo modo, a manipulação de elementos que se introduzem pode ser compreendida como exploração de um encaixe que não cabe, mas também como tentativa de aproximar os polos bissexuais: a ponta que ultrapassa e o buraco que se encaixa (no mesmo elemento).

Quando se balança para trás me olhando, tudo parece se passar como se ela procurasse no olhar esse equilíbrio entre o duro arredondado e o vulnerável aberto, para se sentir contida e poder desenhar círculos fechados, evidência de uma experiência de fechamento (círculos que, não obstante, acabarão por ser jogados).

Mas hoje Manon me dá outros elementos de compreensão e confirmação.

Ela me diz que aquela poltrona era "um ventre". Respondo que ela provavelmente muitas vezes ouviu essa palavra da minha parte. Ela continua: "Eu me agarrava para não cair para a frente". "É uma sepultura", acrescenta. E aí fico assombrado com a associação cair-sepultura3, porque repentinamente eu me lembro que a mãe de Manon, quando estava grávida dela, durante algum tempo acreditou estar levando um bebê morto.
"Eu escutava o meu coração, eu me balançava com o meu coração", diz Manon. Compreendo que ela se balançava ao ritmo de seu coração. Ela me diz que sempre faz isso, e que adormece todas as noites escutando bater seu coração. E me revela outra manobra: ao mesmo tempo que sente bater seu coração, ela realiza movimentos com os olhos fechados: desenha figuras geométricas (e me mostra isso com seu dedo no espaço). Trata-se de uma espécie de losango: os olhos à direita, depois no alto, depois à esquerda, depois embaixo, etc. E me diz "Os olhos saltam". E faz os mesmos movimentos e desenha as mesmas figuras com a língua dentro da boca. Adormece assim todas as noites.
Mais adiante na discussão falamos de música. Eu me lembro que quando era pequena ela tocava clarineta. Parou, diz ela, porque "as notas saíam voando". Agora toca bateria. "Porque não há notas", diz (o que não é exatamente assim), e que "as batidas ressoam".

Em suma, vemos como as manobras rítmicas tentam fazer com que os polos bissensuais se juntem, tentam criar uma continuidade na qual o apoio permite subir (o batimento cardíaco, os olhos e a língua desenhando um losango, as batidas na bateria que ressoam) para que o sensível persista sem endurecer (como os braços duros demais que se tornam uma sepultura), e sem se perder, sem "sair voando" (como as notas da clarineta).

Nos estados de grande sensibilidade, de angústia extrema, agarrar-se a uma oscilação rítmica sensual, bissensual, vai tentar manter essa continuidade perdida, manter um sentimento de continuidade de ser, de continuidade na experiência de estar viva, a qual pressupõe continuidade entre os polos sensoriais ou sensuais.

Entretanto, esse batimento rítmico se encontra em toda comunicação. Toda comunicação é feita de abertura e de fechamento, de troca e retraimento. A ligação contínua presume, integra essa oscilação. A oscilação rítmica constrói ao mesmo tempo que repousa sobre um invariante que faz juntar-se os polos de uma experiência de separação, de uma experiência de travessia de um espaço de separação, como em toda comunicação entre um sujeito e outro sujeito.

 

Trabalho de pensamento e invariância

A noção de invariante é útil igualmente para pensar a continuidade, nos movimentos de descontinuidade, de ruptura, de cesura, que o trabalho de pensamento pressupõe.

O pensamento presume, de fato a conjunção de elementos invariantes, por um lado para que advenha como pensamento, por outro lado para que sobreviva ao luto gerado pela passagem da experiência da coisa ao pensamento sobre a coisa (remeto aos desenvolvimentos de Hanna Segal, por exemplo, acerca do pensamento como processo de luto, e a ligação entre a emergência dos pensamentos e a posição depressiva) (SEGAL, 1981/1987).

Lembremos o exemplo que Bion propõe em Aux sources de l'expérience (1962/1979) para ilustrar a emergência do conceito: o bebê vê um homem em relação ao qual tem o sentimento de ser amado, e ouve sua mãe repetir: "esse é o papai"; o próprio bebê repete "pa-pa-pa" e sua mãe responde: "isso mesmo, papai". O bebê abstrai dessa experiência emocional determinados elementos que, quando forem reproduzidos em conjunto em outras situações, vão receber o nome de "papai". A hipótese chamada "papai" corresponde, portanto a "um enunciado segundo o qual determinados elementos estão constantemente juntos", invariavelmente juntos. Tal enunciado é um conceito. É isso que faz, aliás, com que as primeiras palavras de um bebê não designem um objeto, uma coisa, a mãe, o pai... Designam uma situação, uma constelação de elementos conjuntos, invariantes (o bebê que diz "papai" quando um estranho bate à porta e entra, não está confundindo seu pai e esse estranho, como pensam algumas pessoas que observam essa cena: esse bebê está nomeando a situação de alguém que entra sempre dessa maneira em seu espaço familiar íntimo).

Tomemos o exemplo de uma noção proposta por Daniel Stern (1993), para descrever esses pensamentos primitivos, emergentes, e que ilustra bem ainda essa ideia de invariância. Trata-se da noção de "envelope pré-narrativo".

O que vem a ser esse envelope pré-narrativo? Com esse nome, Stern designa uma primeira forma de representação de uma unidade de experiência subjetiva: trata-se de uma construção que surge da experiência subjetiva do bebê e que é constituída por uma constelação de elementos invariantes ligados a diferentes modalidades da experiência. Por exemplo, um envelope pré-narrativo vai ser constituído a partir da experiência da fome e de seu alívio, a unidade da experiência vai reunir: a sensação de fome, que se modifica desde o momento em que aparece a mãe ou o pai até o momento em que o mamilo ou a mamadeira estão na boca (a sensação primeiro decresce e depois se intensifica); o afeto que vai seguir o movimento da sensação; a percepção visual da mãe ou do pai, que o bebê vai olhar intensamente; o contato tátil no momento do início da mamada; os movimentos corporais desordenados até o momento em que começa a mamada. Uma segunda unidade de experiência, segundo envelope pré-narrativo, vai ser constituído pela mamada até o alívio da fome, reagrupando outras características das mesmas modalidades de experiências. Em suma, tudo isso encontra perfeitamente as concepções e descrições de Bion (1962/1979) a propósito do aparecimento dos pensamentos.

E o que é especialmente interessante, nessa passagem, é que Stern mostra que essa unidade de elementos invariantes é uma abstração, uma verdadeira construção a partir das variações de invariantes. E cada um desses invariantes já é uma construção, uma abstração, à imagem, por exemplo, da maneira pela qual o bebê reconhece um rosto: cada vez, de fato, que o bebê vê o rosto da mãe, este é diferente, ao longo do dia: porém, o bebê vai extrair dessas percepções diferentes os invariantes que permanecem constantes e que vão constituir o rosto materno. Bion, como acabamos de ver, já tinha desenvolvido esse modelo segundo o qual a conjunção constante de elementos retirados e abstraídos de experiências emocionais repetidas conduz ao surgimento do conceito. Mas o que é interessante pensar, é que o bebê vai não apenas extrair, vai também construir esses invariantes. Stern se baseia em experiências de psicologia experimental para demonstrar essa capacidade de abstração do bebê4, o bebê construindo um protótipo de algo que realmente nunca viveu: a experiência média, matematicamente média, prototípica, não foi vivida, é construída, a média é construída a partir de todas as experiências de mesmo registro que tenham sido vividas.

É pelo recurso à experiência prototípica, não somente memorizada, mas construída, isto é, abstrata, que o bebê vai garantir para si mesmo uma continuidade, diante das divergências. É a partir das experiências repetidas e de suas variações sucessivas que o bebê vai construir seus protótipos e seus invariantes.

Vemos, portanto, a dupla importância e a dupla função da invariância no processo de transformação que o surgimento do pensamento pressupõe: construir uma representação e garantir uma continuidade.

Poderíamos fazer a mesma demonstração com situações e experiências de aprendizagem, por exemplo. A situação de aprendizagem impõe uma experiência de alteridade, de separação, que pode ser dolorosa, e esta só será superada se uma invariância der algum apoio, uma segurança de base. Para retomar ainda formulações de Bion, podemos dizer que aprender presume tolerar o não saber, a incerteza, a dúvida e a frustração que ferem o narcisismo, e suportar a tensão emocional que esse estado produz. É a "capacidade negativa" de que falava o poeta John Keats (1817/2010) e ao qual Bion muitas vezes tomou emprestado o termo (Cf. BION, 1970/1974, 1974-1977/1980, 1975b/2010, 1978/2006), capacidade indispensável a todo processo de crescimento. A capacidade negativa traz de volta uma invariância suficiente, suficientemente segura.

Poderíamos igualmente evocar as experiências traumáticas, que impõem uma transformação "catastrófica", no sentido de Bion, e que conduzem o sujeito a empregar defesas maníacas, a instalar uma "posição maníaca", verdadeira "zona de descanso", como diz Anne Alvarez (1992/1997), etapa de transição entre o período "pré-catastrófico" e o "pós-catastrófico", para falar como Bion. Não podemos pensar em permanência da catástrofe, do traumatismo, nem mesmo para elaborá-los. Precisamos encontrar um estado anterior ao trauma. Precisamos esquecer suficientemente o traumatismo, ficar em contato com a lembrança de um mundo sem essa experiência devastadora, para poder em seguida integrar, pouco a pouco, fragmento por fragmento, a experiência traumática. A posição maníaca instaura uma invariância necessária à integração da transformação imposta por uma experiência traumática.

 

Formações "trans"

Poderíamos falar também não de "trans-formações", mas de "formações trans". Formações que podemos encontrar, por exemplo, no "transgeracional", no "transubjetivo", e que dizem respeito a elementos que passam através, que não são modificados. Todas essas formações que ultrapassam as singularidades, que transcendem as experiências, são formas de invariantes. Os invariantes de diferentes variações. Garantem, eles também, a transformação, protegem os processos de transformação ao garantir uma continuidade.

Por exemplo, quando tentamos pensar os rearranjos ao dispositivo psicanalítico, os ajustes às problemáticas singulares de sujeitos, de pacientes, determinamos os invariantes, e construímos os ajustes. É o que fizeram, por exemplo, Didier Anzieu (1979) e René Kaës (1979) quando elaboraram a noção de análise transicional. Na análise transicional, ajustada aos estados limites (no que se refere a Anzieu) ou aos grupos (para o que se refere a Kaës), há invariantes e ajustes que são variações. Para alguns os invariantes são suficientemente desprezíveis para excluir esse tipo de prática do campo da psicanálise; para outros, são a garantia de que as práxis nesses dispositivos sejam autenticamente psicanalíticas (a psicanálise que, diga-se de passagem, estando do lado de uma prática clínica mais próxima do sujeito, deve necessariamente ajustar-se aos contextos subjetivos, e não ficar exigindo que todos os sujeitos se adaptem a um protocolo padronizado).

Há anos eu me interesso pela questão de saber o que é que cura no tratamento. O que é que trata de verdade. Não aquilo que é dito que trata ou que se acredita que trate, mas aquilo que trata de verdade. E defendo, entre outras ideias, que o que trata no tratamento, o que constitui o essencial da relação de tratamento, o cerne dos processos de tratamento, não é exclusividade de uma disciplina, uma práxis, um enquadre, e ultrapassa a singularidade das disciplinas e das práxis, passa através de suas diferenças (CICCONE et al., 2018). Os efeitos de tratamento, no contexto do tratamento psíquico, presumem aquilo que chamo de "posição transdisciplinar" do terapeuta. Trata-se de uma posição interna que absolutamente não exige ser especialista em todas as disciplinas, nem mesmo conhecê-las, uma vez que essa posição é o inverso de uma posição onipotente e onisciente, se afasta de qualquer ponto de vista pluri ou multidisciplinar, talvez mesmo interdisciplinar, que procura um saber onisciente, total, global. A posição transdisciplinar presume, ao contrário, humildade e humanismo. Defendo a ideia de que o tratamento psíquico, em sua essência, em seus fundamentos, segue perspectivas que atravessam as barreiras disciplinares, apoia-se em invariantes que não podem ser imputados a uma nem a algumas disciplinas ou práxis, mobiliza "formações trans".

Iniciei com Étienne Klein falando de Einstein, e vou encerrar com Étienne Klein sempre falando de Einstein, e acerca dessa ideia de "formações trans" e da transdisciplinaridade. Einstein obedecendo ao princípio fundador de sua teoria dita da "relatividade", que de fato é não uma teoria da relatividade, mas sim uma "teoria dos invariantes", como eu o lembrei, não cessava de repetir que "as coordenadas não têm sentido físico, todos os sistemas de localização no espaço-tempo são equivalentes" (EINSTEIN, apud KLEIN, 2016, p. 230). Dito de outro modo, "nenhum sistema de coordenadas pode ser considerado como ‘especial', fundamentalmente diferente dos outros. Essa ‘invariância por difeomorfismo' (assim foi denominada) convida a considerar que o que se passa no espaço-tempo é, no fim de contas, mais fundamental do que o modo de descrição do próprio espaço-tempo, sempre arbitrário" (KLEIN, 2016, p. 231).

Podemos realmente aplicar essa reflexão às nossas disciplinas, às nossas maneiras, arbitrárias, de descrever o mundo.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 10/05/2021
Aprovado para publicação em: 10/06/2021

Endereço para correspondência
Albert Ciccone
E-mail: a.ciccone.99@gmail.com

 

 

*Psicólogo, Psicanalista e Professor de psicopatologia e psicologia clínica na Universidade Lyon 2. Presidente da ALPACE. França.
1Trabalho apresentado no Colóquio Symbolisation et Transformation organizado pela Université Lumière Lyon 2, nos dias 04 e 05/12/2020.
2Tradução de Pedro Henrique Bernardes Rondon (Abepps) e Revisão de Regina Orth de Aragão (CPRJ).
3No original, tomber-tombeau. (N. do T.)
4Ver a experiência de Strauss, na qual é mostrada a um bebê de uns dez meses, a intervalos regulares, uma série de desenhos diferentes de um rosto. Nessa série em cada desenho sucessivo um traço do rosto foi modificado (nariz mais comprido, orelhas mais baixas, etc.). Em seguida, é pedido à criança que escolha dentre outros desenhos aquele que representa melhor a série de desenhos vistos anteriormente. A experiência mostra que o bebê escolhe um desenho que corresponde à média matemática das diferentes localizações dos traços do rosto que ele viu na série original, e o desenho escolhido não faz parte desta série. STRAUSS, M. S. (1979), "Abstraction of prototypical information by adults and ten-months-old infants", Journal of experimental psychology: human learning and memory, nº 5, p. 618-632.

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