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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro Jan./June 2021

 

ARTIGOS

 

Psicanálise e conflito: um diálogo entre Freud e Reich

 

Psychoanalysis and conflict: a dialogue between Freud and Reich

 

 

Antonio Dégas Mendes JuniorI*; David Borges FlorsheimI**

IUniversidade Anhembi Morumbi - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo evidencia as diferentes ênfases dadas aos determinantes culturais ou constitucionais do conflito psíquico nas obras de Sigmund Freud e Wilhelm Reich. Para tanto, revisita o desenvolvimento da teoria pulsional freudiana e o extrapolamento do embate entre Eros e Thanatos ao âmbito da vida em sociedade. Como contraponto, apresenta as principais conjecturas de Reich, como a teoria do caráter e as bases somáticas das neuroses, que o conduziram à compreensão do conflito psíquico como subproduto de um modus vivendi negador das necessidades básicas da unidade biopsicológica.

Palavras-chave: Reich, Freud, Psicanálise, Conflito, Cultura.


ABSTRACT

This article highlights the different emphases given to cultural or constitutional determinants of psychic conflict in the works of Sigmund Freud and Wilhelm Reich. To this end, it revisits the development of Freudian drive theory and the extrapolation of the clash between Eros and Thanatos to the scope of life in society. As a counterpoint, it presents the main conjectures of Reich, such as the theory of character and the somatic bases of neuroses, which led him to understand the psychic conflict as a by-product of a modus vivendi that denies the basic needs of the biopsychological unit.

Keywords: Reich, Freud, Psychoanalysis, Confict, Culture.


 

 

Introdução

Platão, em A república, evoca a figura mitológica de Giges para atestar a dubiedade ética do ser humano. Giges, ao roubar um reluzente anel de ouro do dedo de um cadáver, viu-se apossado de um apetrecho mágico capaz de possibilitar a invisibilidade. Ao girar o engaste do anel para dentro, ele se tornava invisível; ao voltá-lo à posição original, novamente tornava-se perceptível aos olhos de seus semelhantes. A descoberta de tal sobrenaturalidade engendrou o cenário propício para que o pastor Giges se revelasse um ladrão, estuprador, traidor e causador das mais variadas injúrias.

Imaginemos por um instante uma quebra espaço-temporal cujo desfecho colocaria nas mãos de Platão um exemplar do famoso texto freudiano O mal-estar na civilização. A reflexão sobre o pendor humano à ganância e à violência quando garantida a impunidade dos atos se incrementaria, pois mesmo se a invisibilidade de Giges lhe garantisse a consumação de seus pendores mais profundos, não haveria impunidade. Freud (1930/2010), ao evocar o Super-eu como sucedâneo interno das figuras punitivas do mundo externo, enunciara a condição de refém de si mesmo do ser humano. Com o punidor introjetado e quase como infiltrado no campo das volições, o medo de punição, anteriormente sentido como medo da autoridade externa, agora se expressaria como sentimento de culpa, pois nada se poderia esconder da instância interna que pune o eu com a mesma severidade que este gostaria de infligir ao outro.

A partir desta breve alegoria, pretendemos convocar a temática do conflito no que tange às tendências humanas em seu diálogo com a vida coletiva - temática intrincada devido à inexistência de um natural e um cultural puros na vivência humana. Deixemos Platão de lado e coloquemos ao lado do já evocado Sigmund Freud a controversa figura de Wilhelm Reich. A reflexão sobre os pendores avivada a partir da narrativa de Giges, bem como a questão da Lei e da justiça daí emergente, serão agora balizadas a partir dos enunciados metapsicológicos e sociológicos de ambos os autores.

No intento de realizar tal empreendimento, o presente artigo irá esbarrar nas dimensões ontológica e antropológica das obras de Freud e Reich. No que tange à primeira das dimensões, veremos como a teoria pulsional em Freud institui a ontologia do conflito no cerne do funcionamento psíquico e, desta forma, respalda toda a antropologia freudiana em textos como O mal-estar na civilização.  Quanto a Reich, nos dedicaremos a evidenciar como, ao herdar a primeira teoria das pulsões de Freud e levá-la a cabo, assim como o campo das ditas neuroses atuais, o autor chegara a uma compreensão diversa da de Freud sobre a vida pulsional e os fundamentos da cultura. 

O conflito como matéria-prima da psicanálise constantemente nos convida a revisitar diferentes enunciações sobre as dimensões psíquica e biológica em diálogo com o âmbito da vida em sociedade. A discussão se incrementa em importância quando consideramos que os diferentes pesos colocados sobre os determinantes culturais ou constitucionais do conflito psíquico conduzem a diferentes substratos éticos e filosóficos que pautam a prática do psicanalista. Nosso intento é evidenciar de que forma a tônica recai, em Freud, sobre o fator constitucional, enquanto em Reich a ênfase será colada sobre os determinantes culturais.

Comecemos por um breve panorama das derivas da teoria pulsional em Freud - conceito fundamental na compreensão das molas propulsoras do funcionamento psíquico.

 

Caminhos da teoria pulsional em Freud

A noção de pulsão tem um lugar de irrestrita presença na metapsicologia freudiana, constituindo-se como um conceito especulativo e auxiliar na observação e compreensão dos fenômenos psíquicos e até mesmo culturais, como veremos mais adiante. Se por um lado a sexualidade sempre estivera no centro das atenções da psicanálise como fenômeno observável e empírico, a teoria pulsional fornecera subsídios metapsicológicos à sua compreensão e manejo clínico de suas manifestações psicopatológicas.

De forma distinta às demais fontes de estímulo, como a incidência de uma forte luz sobre os olhos, ou o calor do fogo sobre a pele, as pulsões se caracterizam pelo seu caráter interno e constante1. O pressuposto de um aparelho psíquico que operaria no sentido da busca do decréscimo de estimulação - tal como salientado por Freud desde o seu Projeto para uma psicologia científica (1895) -, implicaria constante empenho pela subtração dos estímulos ambientais. Se por um lado a ação muscular de fuga bastaria para que cessasse a fonte de estimulação inconveniente, por outro, o inevitável afluxo de estímulos internos impossibilitaria a liquidação destes através da mera fuga motora. Nessas circunstâncias, atividades mais complexas e dinâmicas seriam requeridas do organismo. Essa característica interna e constante das pulsões teria sido a mola propulsora para o desenvolvimento de nosso atual sistema nervoso, tal como descreve Freud em seu texto Os instintos e seus destinos (1915/2010).

No esforço de cessar a pressão exercida pelo pulsional, haveria um dispêndio de energia por parte do aparelho psíquico na busca de objetos através dos quais, ou junto aos quais, a pulsão poderia atingir sua meta, ou seja, a retomada do status quo anterior à perturbação. É também nessa busca pelos objetos que as mais diversas frustrações se imporiam ao aparelho psíquico em seu encontro com o mundo exterior.

A incompatibilidade entre as metas sexuais e os propósitos de conservação da integralidade do Eu, compreendido aqui como instância socialmente estruturada e ajustada, levaram Freud (1910/2013) a instituir no seio das neuroses de transferência a oposição entre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação. Exemplo disso o autor encontrará na escopofilia, onde os olhos estariam a serviço das pulsões sexuais e poderiam atrair para si ações defensivas de tamanha magnitude que a função perceptiva do olho, relacionada ao Eu e à consciência, viria a sucumbir. Freud (1910/2013) compreenderá a dissociação entre processos conscientes e inconscientes como fruto do embate entre os distintos grupos de pulsões, como no caso da cegueira de origem psicogênica.

Apesar da serventia inicial da noção de pulsões sexuais e do Eu à compreensão e manejo clínico das afecções estudadas pela psicanálise, mais tarde viu-se abalado o dualismo pulsional com as novas descobertas enunciadas por Freud em Introdução ao narcisismo (1914/2011).

Ao se deparar com os fenômenos concernentes à parafrenia, nome sugerido por Freud para se referir a dementia praecox (Kraepelin) ou esquizofrenia (Bleuler), o autor observara que com frequência as pulsões objetais poderiam ser investidas no próprio Eu a partir de sua retirada do mundo externo. Esta modalidade de alocação da libido, denominada narcisismo, será situada num lugar de regularidade no desenvolvimento sexual do ser humano, não se restringindo apenas à vida psíquica do parafrênico (FREUD, 1914/2011).

A partir da compreensão de que a diferenciação das energias psíquicas seria posterior ao surgimento do investimento objetal, pois inicialmente estariam juntas e indistinguíveis no estado do narcisismo primário, Freud (1914/2011) questionará se não haveria uma única energia a governar o aparelho psíquico, tal como fizera Jung ao coincidir libido e energia pulsional.

Uma resolução provisória então se estabelecera: Freud (1914/2011) altera a fórmula do conflito inaugural das psiconeuroses, antes pensada a partir do conflito entre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação, para o conflito entre libido objetal e libido do Eu, ou investimentos objetais e do Eu. A diferença entre essas duas espécies de pulsões, anteriormente pensada em termos qualitativos, agora se apresentaria como sendo topológica.

Tal reformulação provisória da primeira teoria das pulsões, no entanto, logo se mostrou insatisfatória. Sendo a vida pulsional agora compreendida em termos de constante alternância entre investimentos objetais e investimentos do Eu (enunciado semelhante aos movimentos de introversão e extroversão do monismo de Jung, diga-se de passagem), viu-se abalado o caráter eminentemente dualista da teoria pulsional. Afinal, a ideia de oposição entre forças no seio da vida psíquica pressuporia a existência de grupos qualitativamente distintos em operação.

É em Além do princípio do prazer (1920/2010) que será enunciada a polaridade necessária ao restabelecimento do dualismo pulsional. Pulsões de vida e pulsões de morte passam a ser vistas como os dois princípios fundamentais que regeriam não somente a vida psíquica, mas também toda forma de vida orgânica. Um embate dual entre esses dois grupos de pulsões atuaria de forma inata em plantas, animais e até mesmo em organismos unicelulares, segundo a argumentação do autor. Uma das polaridades seria Eros (pulsão de vida), a força de atração que visaria à união de partes com vistas à formação de unidades cada vez maiores; a outra, Thanatos (pulsão de morte), com sua tendência à destruição, decomposição e, em última instância, à regressão ao estado inorgânico que precederia a vida.

O que levara Freud a conceber um "para além do princípio do prazer" já dava seus indícios desde o texto Recordar, repetir e elaborar (1914/2010), onde o autor evidenciara a existência de uma compulsão à repetição inferida a partir da observação de eventos passados que suscitaram e continuariam suscitando desprazer se repetindo constantemente na vida dos indivíduos através de atos e/ou discursos. Freud dirá que a incapacidade da recordação, que se daria sob as condições da resistência, levaria à repetição através da atuação. É nesse mesmo texto que o autor compreenderá a tarefa psicanalítica como esforço em direção à reprodução das recordações, numa espécie de cerceamento da compulsão à repetição dentro da redoma terapêutica. Nas palavras do autor, "assim a transferência cria uma zona intermediária entre a doença e a vida, através da qual se efetua a transição de uma para a outra" (FREUD, 1914/2010, p. 206).

A compulsão à repetição, no entanto, parecia incoerente com as afirmações acerca da supremacia do princípio do prazer tal como exposta em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911/2011). Se o aparelho psíquico operaria no sentido de reduzir a tensão fomentada pelo pulsional, como explicar a regular tendência de reprodução do desprazer agora reconhecida por Freud? Um trecho de 1924 parece concatenar a solução encontrada após a chegada da pulsão de morte na teoria das pulsões:

Assim chegamos a uma pequena, mas interessante cadeia de relações: o princípio do Nirvana exprime a tendência do instinto de morte, o princípio do prazer representa a reivindicação da libido, e a modificação dele, o princípio da realidade, a influência do mundo externo (FREUD, 1924/2011, p. 187).

Vale ressaltar que as pulsões de autoconservação e as pulsões sexuais, agora aglutinadas sob o rótulo de pulsões de vida, continuariam sob o domínio, respectivamente, do princípio da realidade e do princípio do prazer, tal como evidencia o trecho acima. No entanto, para que a compulsão à repetição pudesse ser compreendida, fez-se necessário um terceiro princípio. Trata-se do princípio do Nirvana, conceito de Barbara Low tomado de empréstimo por Freud para referir-se à tendência do aparelho psíquico de reduzir a zero seu estado de estimulação - sendo, em última instância, a regressão ao inorgânico.

Freud (1924/2011) irá ressaltar a necessidade de diferenciação entre o trabalho de redução da pressão do montante pulsional, concernente ao princípio do prazer, e a tendência mais abrangente da pulsão de morte. No entanto, apesar de tal diferenciação, o autor também irá destacar um constante entrelaçamento entre esses dois princípios.

Apesar de sua aparente contradição com o princípio do prazer, a compulsão à repetição teria como finalidade domar e tornar suportável a energia vinculada a conteúdos traumáticos. A partir de doses homeopáticas dos conteúdos desprazerosos, como nos casos dos sonhos e sintomas das neuroses traumáticas e das brincadeiras infantis, seria viável ao aparelho psíquico suportar um quantum energético que de outra forma lhe seria insuportável. Só então o princípio do prazer poderia entrar em ação, revelando sua ainda mantida posição de guardião da vida psíquica (FREUD, 1920/2010).

Apesar de a noção de compulsão à repetição fundamentar a existência de uma pulsão de morte, a altíssima densidade metapsicológica do conceito esbarrara, mesmo em Freud, com diversos contra-argumentos que colocavam em risco a sua consistência. Se por um lado a noção de pulsão de vida encontraria respaldo nas manifestações observáveis da sexualidade, quais fenômenos respaldariam o enunciado metapsicológico da pulsão de morte? É a partir da investigação sobre o sadismo e o masoquismo que Freud (1924/2011) encontrará o testemunho para sua hipótese extraclínica.

O masoquismo, tal como apresentado em Os instintos e seus destinos (1915/2010), se delinearia a partir do processo de reversão da pulsão em seu contrário. Tal reversão se efetuaria tanto no âmbito do conteúdo - pendulando do amor para o ódio -, quanto no âmbito da meta pulsional - transformando uma meta ativa em passiva. Tal formulação, contemporânea à primeira teoria das pulsões, tinha como pressuposto o masoquismo e o sadismo como par antitético, sendo o primeiro derivado do segundo.

Mais tarde, Freud enunciará a existência de um masoquismo primário, sustentando-o na descrição do processo de formação da amálgama pulsional e invertendo a lógica de sua formulação inicial: "o instinto de morte atuante no organismo - o sadismo primordial - é idêntico ao masoquismo" (FREUD, 1924/2010, p. 172).

Haja vista que pulsões de vida e pulsões de morte estariam amalgamadas em diferentes proporções, Freud (1924/2010) compreenderá que da transposição do instinto de morte ao mundo exterior, processo importante para o amansamento da tendência autodestrutiva de Thanatos e que se daria por intermédio do sistema muscular, uma porção residual permaneceria libidinalmente presa ao organismo. É dessa porção que Freud inferirá o masoquismo erógeno, qual um indício arqueológico do processo de formação da amálgama pulsional.

Além do masoquismo erógeno, Freud (1924/2011) também considerará a modalidade tida sob o rótulo de masoquismo moral. Enquanto o primeiro consistiria no prazer na dor, o segundo teria sua relação com a sexualidade atenuada e se expressaria em um âmbito diverso, principalmente naquilo que o autor nomeará "necessidade de punição".

O grande perigo do masoquismo moral, dirá Freud (1924/2011), será justamente sua derivação da parcela do instinto de morte não direcionada para fora como agressividade e destruição. O resultado seria um modus operandi autodestrutivo que teria como aliados tanto a inclinação masoquista do Eu - fruto do masoquismo erógeno -, quanto a inclinação sádica do Super-eu - instância formada a partir da transformação da catexia de objeto em identificação e da consequente introjeção do protótipo de severidade e punição dos primeiros objetos libidinais.

Voltamos, então, ao ponto em que começamos: a inutilidade do anel de Giges e a inevitabilidade do conflito. Antes de prosseguirmos para as implicações da ontologia do conflito da teoria pulsional nos enunciados sociológicos de Freud, detenhamo-nos por instante no contraponto que Reich exercerá sobre a questão do conflito envolvendo o pulsional.

 

Reich e a continuidade dos intentos iniciais de Freud

As formulações freudianas anteriores à década de 20 acerca da vida pulsional exerceram forte influência sobre o pensamento de Wilhelm Reich, sendo o conflito entre pulsões do ego e pulsões sexuais o ponto de partida para suas investigações. Num trecho no qual discorre sobre o conflito psíquico a partir da matriz psicanalítica de Freud, Reich dirá:

A diferença entre as pulsões sexuais e as pulsões do ego pode ser resumida como a seguir: pulsões do ego são caracterizadas por (1) sua suscetibilidade de serem adquiridas a partir da ontogenia; (2) a mudança de objetos de acordo com o tempo e o local; (3) o fato de que são subordinadas ao princípio de realidade, ou seja, elas prosseguem na direção do adiamento, modificação e diminuição dos ganhos de prazer (REICH, 1922, p. 128, tradução nossa).

O trecho acima sublinha o caráter ontogênico das pulsões do ego, ou seja, o fato de que a estrutura egoica se desenvolveria a partir da experiência do sujeito em sua interação com o mundo. Ao evocar a ontogenia, Reich também faz alusão a sua contrapartida, ou seja, o lugar ontológico das pulsões sexuais como fator biologicamente arraigado. Outro importante ponto citado, que retoma os enunciados de Freud em Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico (1911/2011), será sobre o princípio da realidade. Este, sendo o guia do ego em seu ajustamento social, inevitavelmente imporia certas restrições às exigências libidinais, intersectando o ontológico e o ontogênico.

No que tange às pulsões sexuais, vale ressaltar que a libido será compreendida tanto por Freud quanto por Reich como energia e manifestação da sexualidade, como a luz de uma lâmpada tornando visível e manifesto o fator eletricidade. No entanto, enquanto em Freud a tônica recairá sobre os processos de interação entre as distintas forças atuantes no seio da vida psíquica, em Reich o fator econômico se sobressairá. Tal afirmação se evidencia quando analisados os tópicos anteriores do presente artigo. Desde a primeira teoria das pulsões, Freud situara o dualismo pulsional no cerne do conflito neurótico, contrapondo as qualidades das diferentes forças atuantes. Reich, por seu turno, ao destacar o fator das quantidades inevitavelmente irá se debruçar sobre o aspecto econômico do conflito.

Se as distintas sendas teóricas de cada autor serão apenas insinuadas neste momento inicial, referindo-nos ao ano de 1922 do trecho citado, Reich progressivamente irá grafar suas próprias considerações na metapsicologia freudiana a partir de suas constatações clínicas. Apesar do desfecho da dissidência, pode-se dizer que o jovem Reich dera continuidade aos intentos iniciais da psicanálise, enquanto Freud se afastava progressivamente com a chegada da pulsão de morte. Tal afirmação se sustenta no fato de que Reich encontrará nos pressupostos da primeira teoria das pulsões, assim como no campo das neuroses atuais, a matéria-prima de suas próprias formulações.

Em sua obra de 1942 intitulada A função do orgasmo, Reich comenta que na época em que entrara em contato com os escritos do pai da psicanálise seu interesse se voltara muito mais para a teoria das neuroses atuais do que para as interpretações e significados das ditas psiconeuroses, estando estas últimas no cerne do posterior desenvolvimento da teoria psicanalítica.

Em contraposição às psiconeuroses, as neuroses atuais, segundo os escritos iniciais de Freud, não possuiriam uma etiologia psíquica. Antes, envolveriam um fator contemporâneo relacionado ao acúmulo de excitação sexual que se transformaria de forma direta em angústia sem mediação psíquica. A neurastenia e a neurose de angústia, tipos clínicos das neuroses atuais, serão colocadas por Freud fora do terreno da psicanálise, pois diriam respeito à ordem do somático. Por outro lado, foi a afirmação inicial de Freud de que haveria um cerne neurótico atual em toda psiconeurose que incitara seu discípulo a percorrer o caminho rumo às bases somáticas das neuroses, tal como comenta Reich (1942/1975) em A função do orgasmo.

Reich irá amplificar a relação inicial estabelecida por Freud entre estase libidinal - ou seja, acúmulo de libido - e conflito neurótico ao afirmar que "não há neurose sem perturbações da função genital" (REICH, 1927/1977, p. 35). Ao constatar a presença de um cerne neurótico atual em toda psiconeurose e uma superestrutura psiconeurótica em toda neurose estásica, Reich levantará a discussão acerca da real necessidade de distinção entre a neurose de angústia fisiogênica e a psiconeurose psicogênica, tal como pretendia Freud ao dividir o campo das psiconeuroses e das neuroses atuais. Reich instituirá ao lado da etiologia histórica, que equivaleria à origem psicogênica-infantil do conflito, uma etiologia atual, ou seja, o fator somático (estase libidinal) que nutriria os conflitos de outrora, por si só inofensivos.

Sendo a estase libidinal o fator primordial da sustentação das afecções neuróticas, a regulação da economia sexual ocupará, em Reich, um lugar de centralidade no processo de cura. Esta, por sua vez, será diretamente vinculada à noção de potência orgástica:

Por potência orgástica entendemos a capacidade no ser humano de atingir uma satisfação de acordo com a estase libidinal do momento; mas também a capacidade de atingir frequentemente essa satisfação, permanecendo pouco sujeito às perturbações da genitalidade, que afetam por vezes o orgasmo mesmo num indivíduo relativamente são. A potência orgástica existe sob certas condições, que encontramos apenas no indivíduo capaz de satisfação e de atividade; no indivíduo neurótico, estas condições estão total ou parcialmente ausentes (REICH, 1927/1977, p. 41).

Surgem, então, algumas perguntas. Haja vista a influência dos interditos culturais na restrição e inibição não só da genitalidade2, mas da sexualidade como um todo, de que forma alcançar a potência orgástica? Bastaria que das instituições e convenções sociais o indivíduo se livrasse para que uma economia libidinal saudável se estabelecesse? Novamente o anel de Giges se revelaria insuficiente, pois nem mesmo invisível aos olhos das figuras externas punitivas o indivíduo se veria livre de suas inibições sexuais. No entanto, enquanto em Freud a inutilidade do anel se respaldará, em última instância, no dualismo pulsional - com a manifestação da pulsão de morte na instância superegoica como necessidade de punição -, em Reich, a noção de caráter será evocada na compreensão da relação do indivíduo com o pulsional.

Para Reich, o caráter se localizaria na fronteira entre a vida biopsicológica e o mundo exterior, tal como uma concha que recobriria o ego com vistas à sua proteção contra perigos internos e externos. Sua função inicial de evitamento dos perigos concretos seria substituída, em um momento posterior do desenvolvimento, pela proteção contra a angústia interna e pela absorção do excedente pulsional gerado pela impossibilidade de satisfação através da descarga.

Reich (1933/1995) apontará a timidez infantil como exemplo de um primeiro vestígio de um caráter em formação, consistindo num mecanismo ainda rudimentar de evitamento de situações que possivelmente excitariam as pulsões mantidas sob o jugo da repressão. No entanto, essas primeiras formas de reação incorporadas ao ego não seriam suficientemente eficazes na contenção pulsional. Nas palavras do autor "as repressões têm de ser cimentadas, o Ego tem de endurecer" (REICH, 1933/1995, p. 189). Tendo em vista a necessidade de recursos economicamente mais eficazes, atitudes crônicas e automáticas se incorporariam ao modus operandi egoico. Nesse sentido, o caráter surgiria da necessidade de contenção das exigências pulsionais e depois de moldado e cimentado economizaria no grande dispêndio que a constante necessidade de repressão exigiria.

Tendo em vista as afirmações anteriores, nota-se que aspectos qualitativos e quantitativos se entrelaçariam e se influenciariam de forma retroativa no caráter. Isso posto que a forma como o indivíduo lida hoje com a sua economia sexual dependeria diretamente da dimensão histórica. Dito de outra forma, a complexa gama circunstancial que imprime no caráter os seus modos típicos de relação com o pulsional, bem como os pontos de fixação da libido, influenciariam a atual economia libidinal. É a partir dessas considerações acerca das diferenças quantitativas e qualitativas do caráter que Reich (1929/1995) justificará a postulação do seu protótipo de saúde nomeado caráter genital, contrapondo-o ao caráter neurótico.

Sobre a diferenciação entre os dois modelos de caráter, enquanto os meios normalmente empregados pelo caráter neurótico na retenção da angústia consistiriam na formação de reações e nos prazeres pré-genitais, o caráter genital se serviria do prazer orgástico genital e da sublimação. Essa diferença qualitativa também se expressaria quantitativamente no que diz respeito à congestão libidinal, pois o atendimento das necessidades do aparelho pulsional dependeria diretamente dos meios empregados na satisfação. Reich (1929/1995) justificará a designação de "genital" ao modelo de caráter que mais se aproximaria da saúde ao afirmar que somente a potência orgástica e a primazia genital seriam capazes de proporcionar uma economia da libido regulada.

Vale ressaltar que o caráter neurótico e o genital são apenas protótipos conceituais. Na realidade, ambos se encontrariam mesclados em proporções variadas. Como parâmetro de localização do caráter no continuum que dividiria os polos da saúde e da doença, o autor utilizará o aspecto da flexibilidade: "o grau de flexibilidade do caráter, a habilidade de se abrir ao mundo exterior ou fechar-se a ele, dependendo da situação, constitui a diferença entre uma estrutura orientada para a realidade e uma estrutura de caráter neurótico" (1933/1995, p. 188).

Ainda sobre o trecho acima, Reich se refere ao caráter genital como estrutura orientada para a realidade. O neurótico, por sua vez, pela constante congestão libidinal, estaria submerso em fantasias sexuais, em constante contorcionismo em busca de meios substitutivos de satisfação pulsional, como no caso da dissimulada satisfação através dos sintomas. Se por um lado o superego3 neurótico estaria carregado de proibições sexuais, não haveria no caráter genital grandes tensões entre os desejos do id e a instância superegoica. Antes, existiria saudável alternância entre tensão e satisfação decorrentes da capacidade de autorregulação da ação.

A partir desta breve sumarização da noção de caráter em Reich, um ponto se sobressairá em importância aos fins do presente artigo: o caráter genital como vislumbre da possibilidade de bem-estar biopsicológico. Desta forma, os enunciados de Freud posteriores à década de 20, que instituem um conflito de origem biológica na raiz dos fenômenos psíquicos, serão questionados.

 

Agressividade, destruição e masoquismo

Com a chegada de Thanatos como polaridade oposta a Eros em sua metapsicologia, Freud (1920/2010) institui os fenômenos biológicos de assimilação e desassimilação no cerne dos fenômenos psíquicos. Como visto nos tópicos precedentes, o autor evocara o dualismo pulsional na explicação de fenômenos tais como a agressividade, a destruição e o masoquismo. Reich, por seu turno, mantivera a antítese entre pulsões objetais e pulsões do Eu, originalmente pensadas como pulsões sexuais e pulsões de autoconservação, no cerne dos conflitos psíquicos, o que levara o autor a colidir frontalmente com as explicações de Freud acerca dos fenômenos da destrutividade, da agressividade e do masoquismo.

A começar pelos fenômenos da agressividade e da destruição, Reich os derivará da angústia acarretada pelo embate entre a unidade biopsíquica e o mundo externo frustrador. Vale ressaltar que o autor conservará a concepção inicial de Freud segundo a qual a angústia consistiria num escape narcisista logo que a pulsão se deparasse com a frustração - concepção mais tarde alterada em Sintomas, angústia e inibição (1926/2014). Sendo uma das principais funções do caráter a eliminação da angústia, diferentes mecanismos seriam empregados a depender do modus operandi típico de cada caráter. Nas palavras do autor "o caráter histérico refugia-se na presença do perigo; o caráter compulsivo quer destruir a origem do perigo" (REICH, 1933b/1995, p. 348). Logo, a chamada pulsão de destruição se resumiria a um dos possíveis mecanismos empregados pelo caráter no evitamento e na resolução da tensão que de outra forma se converteria em angústia.

Se num momento inicial Reich dirá que "temos, portanto, de admitir que se a excitação sexual não é nem absorvida no sintoma nem bloqueada na angústia da estase, passará para o instinto de destruição." (REICH, 1927/1977, p. 210) - colocando, desta forma, a manifestação da pulsão de morte como dependente da estase libidinal - mais tarde, a existência e manifestação de Thanatos será não somente relativizada, mas negada e refutada. Para o autor era inconcebível a existência de qualquer princípio biológico e primário que não estivesse sob o domínio de Eros.

Passemos, então, ao tópico do masoquismo. Em O caráter masoquista (1932/1995) Reich, a partir de suas constatações clínicas, afirmará que (1) o fenômeno do masoquismo, utilizado como justificação para a hipótese metapsicológica da pulsão de morte, poderia ser explicado a partir da angústia orgástica, (2) o masoquismo não seria uma pulsão biológica, mas uma pulsão secundária formada a partir das repercussões que a repressão dos mecanismos naturais de prazer teria sobre o organismo, (3) tendo em vista as afirmações anteriores, não existiria na unidade biopsicológica nada que se assemelhasse à noção de pulsão de morte tal como propunha Freud.

No que tange à segunda das afirmações, Reich (1932/1995) irá criticar as modificações efetuadas na fórmula original que Freud propusera para o masoquismo. Nesta, a pulsão frustrada e impelida pelo medo a regressar à própria pessoa se manifestaria como autodestruição. No entanto, em O problema econômico do masoquismo (1924/2011) o sadismo será compreendido como um masoquismo às avessas, ou seja, dirigido ao mundo exterior. A noção de que todo sentimento destrutivo seria resultado da inibição pulsional, tal como previa Freud em um momento inicial de sua obra, fora então revisada. Agora, o masoquismo era tido como uma formação biológica primária, um masoquismo erógeno, sendo o sadismo a sua extrapolação para o mundo.

Servindo-se da pulsão de morte, Freud presumira uma necessidade de castigo, fruto do sentimento de culpa, na raiz dos atos de autoinflição de sofrimento. No entanto, as constatações clínicas de Reich apontavam para outro sentido. Segundo o autor, o masoquista não buscaria o desprazer sob o jugo da necessidade de castigo. Antes, haveria nesses indivíduos uma "forte intolerância de tensões psíquicas" (REICH, 1932/1995, p. 272). Esse rebaixamento no limiar de suportabilidade das tensões faria com que experiências normalmente tidas como prazerosas por outros indivíduos fossem experienciadas com alto grau de desprazer. Desta forma, o masoquismo será deslocado de seu lugar constitucional para um lugar de formação secundária, ou seja, uma refração do princípio dominante da busca pelo prazer.

 

Do submundo psíquico à praça pública

Como visto até aqui, o caráter eminentemente dualista da teoria pulsional freudiana trouxe consigo o conflito como fator constitucional do ser humano. Tal afirmação se sustenta no fato de que ambos os grupos de pulsões serão compreendidos por Freud (1920/2010) como forças biológicas e, portanto, primárias. Reich (1933b/1995), por seu turno, discordará quanto à isonomia entre as distintas forças envolvidas no conflito psíquico ao afirmar que não haveria uma antítese localizada na unidade biopsicológica, pois um dos polos se encontraria no mundo exterior.

Das discrepâncias entre Freud e Reich no âmbito do pulsional, emergirão distintos enunciados sociológicos. Enquanto para o primeiro a inevitabilidade do conflito intrapsíquico também seria válida à vida em sociedade - o que nos remete diretamente à afirmação de Freud (1921/2012) sobre a estreita relação entre psicologia individual e psicologia social, para o segundo as mazelas humanas residiriam no descompasso entre as tendências do organismo biopsicológico e os ditames culturais.

A começar por Freud, um procedimento recorrente ao longo de sua obra será a utilização de analogias formais entre o conflito psíquico e o conflito na cultura. Em obras tais como O mal-estar na civilização, Freud extrapolará sua teoria pulsional ao âmbito dos fenômenos culturais: o embate entre Eros e Thanatos, como fundamento do funcionamento psíquico, envolveria as mesmas forças antagônicas que andariam lado a lado no processo de evolução cultural, sendo, inclusive, as guerras entre humanos expressões amplificadas do eterno conflito entre os grupos de pulsões.

Como contraponto à ação de Eros na unificação de indivíduos em massas cada vez maiores, da família à humanidade, a ação destrutiva de Thanatos se imporia como perigoso empecilho. No entanto, como agente aplacador do risco de desintegração da vida em sociedade, caso não cerceado o pendor humano à agressão, Freud evocará a instância superegoica:

A agressividade é introjetada, internalizada, mas é propriamente mandada de volta para o lugar de onde veio, ou seja, é dirigida contra o próprio Eu. Lá é acolhida por uma parte do Eu que se contrapõe ao resto como Super-eu, e que, como "consciência", dispõe-se a exercer contra o Eu a mesma severa agressividade que o Eu gostaria de satisfazer em outros indivíduos. À tensão entre o rigoroso Super-eu e o Eu a ele submetido chamamos consciência de culpa; ela se manifesta como necessidade de punição (FREUD, 1930/2010, p. 92).

O trecho acima parece nos remeter novamente ao pobre Giges e seu inútil anel: o denso lamaçal da culpa e da inibição nem mesmo precisaria de espectadores. Mesmo renunciando, a agressão intencionada seria suficiente para que o indivíduo se sentisse digno de culpa, vergonha e autopunição.

Quanto a Eros, Freud (1930/2010) irá comparar metaforicamente a cultura com uma tribo que submetera outra camada, metaforicamente equivalente à sexualidade, à sua exploração. O temor da revolta dos oprimidos evocaria os mais sofisticados mecanismos de precaução, tais como a negação da sexualidade desde a infância, a normatização do amor genital heterossexual e a monogamia. O caráter primevo de Eros como amor plenamente sensual, que se ao léu dos indivíduos transformar-se-ia na antiga disputa pelo lugar de chefe da horda, seria convertido em pulsões de meta inibida. Isso se expressaria na ternura das relações no ambiente familiar e extrafamiliar, relações fundamentais à manutenção da vida em sociedade. No entanto, as pulsões sexuais inibidas em sua meta garantiriam somente satisfação parcial às intempestivas exigências libidinais, cravando a insatisfação como marca da vida sexual em sociedade.

O ponto central da explanação de Freud acerca dos graves prejuízos pulsionais será sua compreensão de que tais fenômenos não diriam respeito a determinadas culturas ou sociedades. Antes, seriam uma característica inerente à cultura. Exemplo disso encontramos na proposição de Freud de que a domesticação do fogo só foi possível graças à renúncia do desejo infantil de apagá-lo com um jato de urina, numa espécie de disputa homossexual com a natureza fálica do fogo:

Quem primeiro renunciou a este prazer, poupando o fogo, pôde levá-lo consigo e colocá-lo a seu serviço. Ao amortecer o fogo de sua própria excitação sexual, havia domado a força natural do fogo. Essa grande conquista cultural seria então o prêmio por uma renúncia instintual (FREUD, 1930/2010, p. 50).

Tal argumentação coincide com o pressuposto freudiano segundo o qual a cultura se formaria a expensas da satisfação pulsional, sendo a capacidade sublimatória central na transformação das metas originalmente sexuais em empreendimentos culturalmente relevantes. Haja vista que todo ato de repressão pulsional se desdobrará na transformação dos componentes libidinais em sintomas e na transformação dos componentes agressivos em sentimento de culpa, torna-se inevitável o decréscimo de felicidade do indivíduo e o persistente mal-estar na vida em sociedade.

Se por um lado Reich também enfatizará os efeitos danosos dos interditos sociais, por outro o autor não os extrapolará ao âmbito geral dos fenômenos culturais. Antes, Reich (1936/1966) delimitará a repressão sexual como sendo própria da cultura patriarcal. Parte desta compreensão o autor respaldará nos estudos etnográficos de Malinowski, onde será constatada a existência de sociedades onde haveria pouca presença de repressão sexual e nenhuma incidência de neurose. Logo, enquanto em Freud tem-se o fenômeno da repressão e da abstenção como condição para a formação da cultura, em Reich a repressão será compreendida como instrumento específico da sociedade patriarcal que serviria à manutenção do poder de certos grupos dominantes.

Reich (1936/1966) prosseguirá em sua crítica aos enunciados sociológicos de Freud ao subverter a ideia de que a sublimação necessariamente conduziria à antítese entre sexualidade e cultura. Pelo contrário, o autor afirmará que uma economia libidinal seria condição para a sublimação. Quanto maior fosse a congestão da libido, mais dificilmente sublimáveis seriam as pulsões pré-genitais, tal como visto anteriormente na definição do caráter genital e do caráter neurótico. Logo, quanto mais orgasticamente potente o indivíduo, maior seria a sua capacidade sublimatória e a sua aptidão para o trabalho e para os empreendimentos culturais.

 

Da praça pública à natureza

Pinceladas algumas questões ontológicas e antropológicas na obra de Reich e Freud, passemos agora aos distintos modelos de ser humano, no que se refere às suas tendências e pendores fundamentais, presentes em suas obras.

A começar por Reich, sua célebre frase e epígrafe de seus livros parece nos apontar para as premissas sobre as quais o autor fundamentará sua visão mais abrangente sobre o ser humano. Nela, o autor institui o amor, o trabalho e o conhecimento como as fontes da vida, concluindo, desta forma, que deveriam também governá-la. Em relação ao amor, é desnecessário reforçar que a genitalidade, no sentido reichiano do termo, tem papel de centralidade em seu escopo teórico - basta recobrarmos a noção de potência orgástica. Sobre o trabalho e o conhecimento, basta também que relembremos que a sublimação das pulsões parciais seria matéria-prima dos empreendimentos culturais. Para que fossem sublimáveis, no entanto, uma adequada economia da libido seria condição, ou seja, tudo aquilo que se reuniria sob o rótulo de amor.

Cabe dizer que o trabalho apontado por Reich em sua célebre frase não tem relação com o trabalho compulsório e frenético dos moldes capitalistas. Antes, faz referência ao natural pendor humano à vida coletiva, bem como à criatividade. Da mesma forma, o conhecimento não consistiria na mera racionalização dos motivos inconscientes e irracionais que impulsionariam o caráter neurótico, mas na busca racionalmente motivada e na curiosidade genuína.

Se por um lado Reich apontará no sentido de um pendor à vida social como fundamento primário do ser humano, Freud o colocará como expressão secundária: "o sentimento social repousa, portanto, na inversão de um sentimento hostil em um laço de tom positivo, da natureza de uma identificação" (FREUD, 1921/2012, p. 83). Trata-se do ciúme o sentimento hostil ao qual Freud se refere. Segundo o autor, uma tendência gregária não se manifestaria na criança desde o princípio. Sua ontogênese remontaria à época em que as disputas pelos objetos de amor começariam a se intensificar, como a disputa entre irmãos frente às figuras parentais. Diante da impossibilidade de aniquilação de seus inimigos (irmãos) sem que isso acarretasse prejuízos para si, a criança seria obrigada a substituir sua hostilidade pela identificação com as outras crianças - processo que se repetiria no ambiente extrafamiliar, como na escola. Freud (1921/2012) afirmará, então, que o ser humano não seria um animal de rebanho, mas de horda.

Tudo aquilo que se designaria como consciência comunitária ou dever moral se reduziria a um tratado entre indivíduos para que as massas se mantivessem. Dito de outra forma: "justiça social quer dizer que o indivíduo nega a si mesmo muitas coisas, para que também os outros tenham de renunciar a elas ou, o que é o mesmo, não possam pretendê-las" (FREUD, 1921/2012, p. 82). Neste sentido, as sociedades humanas consistiriam num pacto coletivo de interdições, condição sem a qual o caos e a barbárie se instituiriam. O cálculo da satisfação aponta para prejuízos: o ilimitado desejo humano, frente aos restritos objetos de desejo, haveria de se contentar à falta.

Pode-se dizer que o esboço de ser humano encontrado em Freud corresponderia, em termos descritivos, ao caráter neurótico de Reich. No entanto, em Freud não se encontram as otimistas possibilidades vislumbradas no caráter genital. Reich (1936/1966), ao considerar o natural pendor humano à vida comunitária, à bondade e ao amor, concluirá que a ordem social deveria ser continuidade da ordem natural. Tal esboço parece refletir a corrente filosófica encabeçada por Rousseau e baseada na máxima de que o ser humano é bom por natureza e é a sociedade que o corrompe. Freud, por seu turno, dirá que "a crença na 'bondade' da natureza humana é uma dessas ilusões ruins das quais os homens esperam que facilite e embeleze a vida, quando apenas acarreta danos, na realidade" (FREUD, 1933/2010, p. 253).

O trecho acima citado se aproxima do Homo homini lupus [O homem é o lobo do homem] de Hobbes, fazendo ressurgir em Reich e Freud a antiga questão filosófica acerca da natureza humana. Giges ressoa.

 

Considerações finais

As teorizações de Freud e Reich levantadas de forma sumária até aqui nos forneceram subsídios mínimos para a discussão inicialmente proposta, ou seja, o delineamento das tendências e pendores humanos e sua interseção com o âmbito da cultura.

Sobre o primeiro dos pontos, vimos que ao instituir o embate entre Eros e Thanatos no seio do funcionamento orgânico e psíquico, Freud delineara duas tendências primárias: a tendência erótica, movida pela força da libido, e a tendência agressiva, que ora se manifesta em sua meta masoquista primária, ora encontra no mundo a gratificação de seu pendor originário à agressão. Sendo a sexualidade humana rechaçada, institucionalizada e cerceada das mais diversas formas, bem como a agressividade, as possibilidades de satisfação pulsional são restringidas e lesadas. Tem-se, então, um ser humano em constante busca de expressões dissimuladas de seus impulsos mais primários. Tais dissimulações engendram o cenário propício para as mais variadas formas de expressões simbólicas, tais como a arte, a religião e, num nível mais parco em termos sublimatórios, a diversidade sintomática das psicopatologias.

Reich, por seu turno, descartará a tendência agressiva e destrutiva como força primária e enfatizará o aspecto erótico, ou seja, a irrevogável busca pela satisfação libidinal. Além disso, enfatizará a tendência ao trabalho e ao conhecimento como expressões genuínas das tendências humanas. Todo o pendor agressivo e destrutivo de Giges quando apossado de seu anel nada mais seria do que expressões secundárias e eclipsadas. No entanto, por se encontrar submerso em matrizes socioeconômico-culturais, enraizadas, por sua vez, na estrutura do caráter, o ser humano seria um estranho frente à sua própria natureza.

Por fim, vale ressaltar que as divergências expostas até aqui também tocam no substrato ético e filosófico das obras de ambos os autores - dimensão que subjaz a todo escopo técnico e teórico. É presumível que ao se conceber uma natureza erótica, amorosa e sociável, os esforços terapêuticos recaiam sobre o campo profilático, das reformas sociais e na confiança sobre o aspecto autorregulador da unidade biopsicológica. Por outro lado, ao se conceber uma natureza antissocial, agressiva e hostil, o fardo do cerceamento moral e institucional engendra o cenário propício para o trabalho sobre os conteúdos psíquicos e suas expressões simbólicas como forma de reparo, elaboração e redirecionamento dos danos inalienáveis da vida em sociedade.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 20/09/2020
Aprovado para publicação em: 13/04/2021

Endereço para correspondência
Antonio Dégas Mendes Junior
E-mail: antoniodegasjunior@gmail.com
David Borges Florsheim
E-mail: davidborgesf@hotmail.com

 

 

*Graduando em Psicologia na Universidade Anhembi Morumbi. São Paulo, SP, Brasil.
**Graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Especializado em Psicologia da Saúde e em Psicoterapia Psicodinâmica dos Transtornos de Personalidade pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP/Escola Paulista de Medicina). Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP - Núcleo de Psicanálise). Doutor em Psicologia Experimental pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP - Linha de pesquisa: História e Filosofia da Psicologia). Professor da Universidade Anhembi Morumbi. São Paulo, SP, Brasil.
1Freud (1915/2010) utiliza o exemplo de uma luz incidindo sobre os olhos em contraposição ao ressecamento da mucosa da faringe (durante a fome) para diferenciar os estímulos fisiológicos daqueles propriamente pulsionais.
2Vale ressaltar que para Reich sexualidade e genitalidade não são sinônimos - assim como em Freud, a sexualidade será compreendida em seu polimorfismo. No entanto, em sua noção de potência orgástica, Reich (1927/1977) dirá que os prazeres pré-genitais estariam subordinados à genitalidade, desempenhando papel importante nas preliminares, sem, no entanto, se sobressaírem como meta última do ato sexual. Desta forma, as pulsões parciais estariam à disposição para a atividade sublimatória, como será explicitado mais adiante.
3Optou-se por utilizar o termo "Superego" para Reich e "Super-eu" para Freud para que a fidelidade às traduções aqui utilizadas se mantivesse. Da mesma forma, o termo "Ego" é utilizado para o primeiro, enquanto "Eu" é utilizado para o segundo. Apesar de tal diferença nas traduções, os termos fazem referência aos mesmos conceitos.

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