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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro Jan./June 2021

 

ARTIGOS

 

Quem acredita na pulsão de morte?

 

Who believes in death drive?

 

 

Octavio Souza*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
Fundação Oswaldo Cruz - FIOCRUZ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com a noção de pulsão de morte, uma especulação ousada em que acreditou, Freud ampliou o campo da clínica ao trazer os processos de simbolização para o foco da investigação psicanalítica. Em sua posteridade, nos trabalhos de Klein, Lacan, Bion e Winnicott, a crença ou a descrença na pulsão de morte passou a ser conjugada nos termos das relações de objeto, dos paradoxos do gozo e da provisão ambiental. Na psicanálise contemporânea, o debate em torno da crença na noção se prolonga em um ambiente ecumênico que visa mais a comparação dos pontos de vista do que o embate polêmico.

Palavras-chave: Pulsão de morte, Crença, Processos de simbolização, Lógica do significante, Gozo, Provisão ambiental, Uso do objeto.


ABSTRACT

With the notion of death drive, an audacious speculation he believed in, Freud broadened the field of clinic by bringing symbolization processes to the focus of psychoanalytic investigation. Later on, in the works of Klein, Lacan, Bion and Winnicott, the belief and disbelief in the death drive came to be conjugated in terms of object relations, the paradoxes of jouissance and environmental provision. In contemporary psychoanalysis, the debate around the belief in the notion extends to an ecumenical environment that aims more at comparing points of view than at a polemical debate.

Keywords: Death drive. Belief. Symbolization processes. Logic of the signifier. Jouissance. Environmental provision. Use of an object.


 

 

É sempre tortuoso abordar a questão da crença em termos pessoais. Acredito na pulsão de morte? Creio que sim... Mas a crença, adianta Lacan, sempre se coloca por sobre o horizonte da dúvida. O sujeito balança. A crença pode cair. Seu alicerce subjetivo é a denegação. Eu sei, mas mesmo assim... Não creio em bruxas, mas mesmo assim... E por esse caminho ela encontra suas raízes no inconsciente.

Gostei muito do convite para falar sobre a crença na pulsão de morte. Esse convite impele a emprestar um cunho mais confessional ao que escolho dizer. Cada analista trabalha com um pano de fundo pessoal, do qual participam muitas crenças teóricas, as quais tem trechos mais conscientemente delineados e outros que se formulam de modo mais impreciso e que convergem com as crenças das fantasias inconscientes.

A pulsão de morte é um conceito psicanalítico. Em quais conceitos psicanalíticos acreditamos? O que é acreditar em um conceito? As questões epistemológicas implicadas na avaliação da relação de um conceito com a realidade são complexas. Vou me esquivar delas e permanecer em um terreno mais superficial do problema. Por exemplo: acreditamos no princípio do prazer? Dentro de qual constelação conceitual acreditamos no princípio do prazer? Como fica o princípio do prazer quando nos afastamos da perspectiva das teorias das pulsões? Como reformular o princípio de prazer em um vocabulário mais próximo das teorias das relações de objeto?

Procurei pensar em um conceito psicanalítico em que definitivamente não acredito. O ego autônomo da psicologia do ego, por exemplo. Difícil pensar em outro. Desse modo, devo dizer que acredito em quase todos os conceitos e noções psicanalíticas. Se acredito, posso vir a não acreditar. Muitos deles uso muito, outros nem um pouco. A questão da crença na pulsão de morte pode então ser recolocada nos termos do uso que dela foi feito pela posteridade freudiana e do que nós mesmos fazemos, cada um, desse conceito, dessa ideia, e das noções que lhe são irmanadas, assim como das que dela derivaram. A pulsão de morte tem pais, irmãos, filhos, sobrinhos e netos, e podemos nos afeiçoar a muitos de seus familiares sem nos determos em sua genealogia.

Uma pergunta. Em que a crença na pulsão de morte, hoje, divide as concepções teórico-clínicas no campo psicanalítico? Diria que não divide muito. Ela não parece separar em campos nítidos as principais contribuições da psicanálise contemporânea. Basta pensar, por exemplo, no quanto o holding winnicottiano da força vital, distante de qualquer referência a pulsão de morte, por um lado, e, por outro, a continência bioniana do turbilhão emocional, tão imediatamente com ela imbricado, são conjugados por muitos de nossos autores contemporâneos prediletos, sem que a passagem pela questão da pulsão de morte se apresente como uma encruzilhada relevante.

Tal como inicialmente formulada por Freud, certamente muito poucos acreditam na pulsão de morte. Principalmente no que diz respeito as elucubrações biológicas sobre as quais se apoia. A tendência da vida em retornar ao inanimado. A esse respeito, Laplanche, por exemplo, afirma não acreditar na pulsão de morte (YORQUE et al., 1986/1988), que a considera um desvio biologizante, mas justifica seu uso apenas para ficar mais próximo de Freud. Green, por sua vez, afirma pensar exatamente como Freud, mesmo não podendo saber ao certo se existe ou não uma tendência da vida de retorno ao inanimado. No entanto, insiste em acreditar que a biologia, com achados como o dos fenômenos da apoptose, virá a trazer fundamentos que poderão melhor justificar a pulsão de morte.

Deixando de lado os aspectos biológicos e atendo-nos a sua incidência no tocante a compreensão do funcionamento psíquico, proponho fazer um pequeno percurso sobre algumas consequências da proposta da pulsão de morte sobre o próprio trabalho teórico de Freud, assim como sobre alguns dos grandes autores que participam de sua posteridade. Tiro partido do convite para falar sobre a crença na pulsão de morte para me dar a liberdade de escolher os aspectos da questão que participam mais arraigadamente de minha própria teoria pessoal, aquela que se constrói a cada dia nas leituras e na prática. Nossas teorias pessoais certamente, em muitos pontos, carecem de coerência. E isso é bom. É um convite a sua reelaboração permanente. Nossas teorias pessoais tem um estatuto de crenças pessoais, e nessas crenças nossa posição subjetiva, como já foi dito, balança em função do horizonte de sua possível queda.

No meu percurso pessoal, minha compreensão da pulsão de morte se iniciou na referência ao ensino de Lacan. Essa referência fez com que, para mim, as noções de desejo e gozo em sua relação com o Real em sua dimensão de impossível, intrincação impensável sem a referência genealógica ao papel da pulsão de morte, se tornassem um norte que orienta minha prática, e isso a despeito da inclusão de vários outros nortes que vieram, posteriormente, a exercer atração sobre meu modo de pensar. Esses outros nortes, adianto, podem ser resumidos na referência aos nomes de Melanie Klein, de Bion e de Winnicott, como certamente também na referência aos psicanalistas que na psicanálise contemporânea se inspiraram, e se inspiram, na obra desses autores. Integrar o ensino de Lacan aos desses autores é uma tarefa difícil e que não me proponho nem de longe tentar. Na minha prática, convivem em sua heterogeneidade discordante, ao mesmo tempo que se misturam em paragens que não consigo claramente equacionar.

Apenas para dar uma ideia inicial dos entrecruzamentos a serem considerados, diria que se Melanie Klein, apesar das muitas diferenças, acredita, como Freud, no dualismo da pulsional, Lacan, pelo seu lado, acredita apenas na pulsão de morte: para ele as pulsões sexuais são as pulsões parciais, e as pulsões parciais são "fundamentalmente pulsão de morte" (LACAN, 1964/1973, p. 187), sendo que essas pulsões, para manter a exigência freudiana da dualidade constitutiva do psíquico, se contrapõem ao amor em sua dimensão imaginária e narcísica, não pulsional. Já Winnicott, por sua vez, pode-se talvez dizer, acredita somente nas pulsões de vida, e a dualidade exigida é por ele concebida nos termos da distinção entre a área não pulsional da experiência pré-subjetiva do narcisismo primário e a da experiência pulsional propriamente dita.

Nesse ponto, pode-se forçar uma aproximação entre Winnicott e Lacan, na medida em que para ambos a dualidade não se dá entre duas qualidades de pulsao, mas entre uma área pulsional e outra não pulsional. Mesmo assim, penso que as consonâncias, no que diz respeito a pulsão de morte, são muito maiores entre Klein e Lacan. Para ambos, a relação com o objeto mau, a incidência da pulsão de morte, desempenha papel constitutivo inaugural em suas concepções do devir psíquico.

Retomando minha trajetória pessoal em sua cronologia, eu deveria agora falar de Winnicott, que foi o primeiro autor que frequentei mais seriamente logo após minha deriva para longe de Lacan. Deveria falar também de Balint. Naquela altura do meu percurso, devo dizer, quase deixei de acreditar na pulsão de morte. Prefiro, no entanto, retardar o comentário sobre Winnicott e retomar o fio de Freud, lendo-o com o que logo depois vim a aprender com André Green, principalmente com seu modo de conceber a reviravolta dos anos 20 no pensamento freudiano, a significação das propostas da segunda tópica e da pulsão de morte para a prática clínica.

Para mim, a leitura de Green tornou evidente o quanto a introdução da segunda tópica e da pulsão de morte abriu caminho para uma consideração maior dos processos de simbolização na constituição subjetiva e na prática clínica, coisa que mal se podia entrever no âmbito da primeira tópica freudiana. É importante frisar, antes de adentrar a questão mais substancialmente, o quanto a luz lançada sobre os processos de simbolização pela segunda tópica é inaugural para a psicanálise contemporânea de um modo geral. Hoje em dia todos pensamos em termos da simbolização do sofrimento traumático não simbolizado. Para muitos, essa sensibilidade da psicanálise contemporânea aos processos de simbolização tem início com a valorização do papel do meio-ambiente na constituição da subjetividade, através, principalmente, das contribuições de Winnicott sobre a atenção materna primária e de Bion sobre a reverie materna. Essa é uma avaliação da qual dificilmente se pode discordar. No entanto, o que Green permite entrever é que a atenção ao fator ambiental foi, por assim dizer, encomendada pela ousadia de Freud em fazer questão de incluir, quase a força, a difícil hipótese da força destrutiva da pulsão de morte na concepção da segunda tópica. O que seria da segunda tópica sem o componente quase externo da pulsão de morte?

Na primeira tópica, pode-se dizer, os processos de simbolização são pressupostos, tidos como já dados. O inconsciente, como subsistema, é já, nele mesmo, articulado em representações. O inconsciente sempre se expressa, fala por entre as linhas, mas fala o tempo inteiro, na pulsação de seu abrir e fechar, e todo o problema que se coloca para o analista é o de escutá-lo na trama do retorno do recalcado. É nessa medida que podemos considerá-lo como indestrutível. Lacan, deste ponto de vista, é um autor que privilegia a primeira tópica. O inconsciente lacaniano é forjado no terreno da primeira tópica, terreno certamente complexificado pela elaboração radical dos achados da segunda tópica, os quais, por assim dizer, são rebatidos sobre a primeira tópica. Veremos isso adiante.

Com a segunda tópica e a pulsão de morte, passamos a poder considerar os caminhos dos processos da simbolização primária pelos quais o inconsciente dinâmico da primeira tópica se constitui, como também os caminhos pelos quais, pelo fracasso destes mesmos processos, ele pode chegar a não se constituir. O próprio desejo, inscrito nas trilhas traçadas pela história dos encontros e desencontros das experiências pulsionais, pode ficar ameaçado pela força destrutiva da pulsão de morte. As trilhas, as facilitações inconscientes, podem não chegar a se fazer, ou podem ser estilhaçadas ou submergidas pela invasão das pulsões destrutivas. O movimento desejante do inconsciente dinâmico está sujeito aos resultados de um trabalho prévio de ligação (realizado pelo ego em sua relação com o id e com a realidade), trabalho de simbolização dos excessos pulsionais, em conexão com os processos de fusão e desfusão das pulsões de vida e de morte.

Nesse ponto, é importante considerar o deslocamento efetuado por Freud na posição dos processos de ligação nas duas tópicas. É por esse deslocamento que os processos primários de simbolização se tornam visíveis. Na primeira tópica, os processos de ligação operavam na passagem do princípio do prazer para o princípio da realidade, entre inconsciente e pré-consciente. Já na segunda tópica, os processos de ligação são chamados a incidir sobre o além do princípio do prazer, sobre os excessos energéticos da desfusão pulsional no id, com vistas a possibilitar o funcionamento do próprio princípio do prazer e, por conseguinte, do inconsciente dinâmico. Os processos da energia "desligada" do inconsciente dinâmico são possibilitados por um trabalho prévio de ligação, encomendado pela compulsão a repetição. O inconsciente propriamente dito, a rigor, passa a ser tido como já ligado.

A própria concepção do id, em sua diferença para com o inconsciente dinâmico, implica a necessidade de uma simbolização primária, anterior ao trabalho de simbolização secundária efetuado pelo reconhecimento do desejo através da interpretação analítica tal como pensada no âmbito da primeira tópica. Na segunda tópica, o id é concebido como um caldeirão pulsional desprovido de representações, e o trabalho de simbolização, de ligação das moções pulsionais as representações, é pensado principalmente nos termos do trabalho de ligação do ego (como também pela fusão entre as pulsões de vida e de morte ou, até mesmo, conforme a leitura, pela compulsão a repetição).

A esse respeito, Freud observa, em Angústia e vida pulsional: "Não devemos exagerar a diferença entre o ego e o id, e não devemos ficar surpresos se o ego puder fazer com que sua influência alcance os processos no id" (FREUD, 1933, p. 93). A partir dessa observação, Freud passa ao comentário do efeito da maior ou menor distância entre ego e id sobre os destinos da angústia. Sem entrar em detalhes, é importante aqui ressaltar o quanto esse modo de conceber a dinâmica entre subsistemas do aparelho psíquico seria impensável na primeira tópica. Nesta última, o máximo que se poderia admitir a respeito da influência do pré-consciente sobre o inconsciente seria a censura e a devolução da representação ao inconsciente, o qual, por sua vez, trataria dessa representação com seus próprios meios, deslocamento e condensação, a distância de qualquer influência do pré-consciente. No id, diferentemente, não há nem condensação nem deslocamento. A ideia é a de um caldeirão de moções pulsionais desprovidas de representação em ebulição. Nesse caldeirão as pulsões de vida e de morte buscam representações que lhes permitam se combinar, se fusionar pelo processo de ligação. E nisso, o trabalho do ego é preponderante.

Nesse ponto, cabe nos determos sobre uma importante diferença entre as leituras de Green e Lacan a respeito do valor teórico-clínico das duas tópicas. Como já adiantei, Lacan é um autor da primeira tópica, ao passo que Green é um autor da segunda. Diante da novidade que a segunda tópica traz a respeito da função da ligação como condição da constituição do inconsciente, a estratégia de Lacan ao longo da quase totalidade de seu ensino, sem contar o último Lacan, foi a de renovar a primeira tópica, relendo-a através dos achados da segunda.

Para Lacan, como entende J.-A. Miller (2012), o significante, a linguagem, ao incidir sobre as necessidades vitais do organismo, mortifica a vida, mortifica o gozo, deslocando-o para o horizonte infinito do trajeto do desejo, desejo de morte, em última instância. É no Seminário sobre a ética que ele fala do desejo como desejo de morte. O vazio da Coisa, o real, o objeto mau expulso pela pulsão de morte para a formação do ego-prazer, objeto desprovido de representação, é concebido como centro atópico em torno do qual o desejo se significa na representação de um significante para outro significante. Retomaremos esse argumento adiante. Subsequentemente, no Seminário sobre os quatro conceitos fundamentais, Lacan virá a trazer os objetos a para o lugar da Coisa, fazendo a carne habitar o lugar antes reservado ao vazio. Mas, ainda aí, os objetos a continuam a ser compreendidos como efeito do poder mortificante da linguagem, como recortes do significante efetuados sobre o corpo biológico. Nessa perspectiva, o significante permanece sendo correlativo da pulsão de morte. Todo ser vivo pode ter alguma coisa próxima as pulsões de vida, os instintos de vida, por que não? Somente o ser humano, o ser falante, é afligido pela pulsão de morte, trazida por seu acesso ao simbólico, pela incidência mortificante da linguagem sobre o corpo biológico.

É nessa medida que se pode dizer que a lógica do significante efetua o rebatimento da segunda tópica, da compulsão a repetição da pulsão de morte, por sobre os mecanismos inconscientes do deslocamento e da condensação da primeira tópica. Para Lacan, a compulsão a repetição se dá através dos mecanismos inconscientes do deslocamento e da condensação. É o deslizamento do não representado da pulsão de morte que causa o trabalho do inconsciente. Dito de passagem, essa concepção certamente seria objeto de discussão na leitura greeniana da segunda tópica. Na perspectiva de Green, em sua teoria geral da representação, há uma distinção importante a ser feita entre compulsão a repetição e compulsão a simbolização. Mas o modo de Lacan compreender a compulsão a repetição lhe permite integrar a categoria do fora-representação da pulsão de morte ao mecanismo do recalcamento que ocorre entre o inconsciente dinâmico e o pré-consciente. Esse procedimento está na base da transformação da energética representacional de Freud na lógica do significante. Na lógica do significante, o movimento metaforonímico do deslocamento e da condensação é tido como um processo regido pela compulsão a repetição. A compulsão a repetição é concebida como o deslocamento metonímico do fora-representação da pulsão de morte, resto que não se deixa inscrever na série infinita das condensações metafóricas das realizações do desejo ao longo da vida do sujeito.

São duas as observações a serem feitas sobre o destino da noção de ligação na lógica do significante. Em primeiro lugar, enquanto em Freud a compulsão a repetição é localizada em uma região tópica distinta daquela em que se dão os processos através dos quais o desejo se realiza, em Lacan, como já foi visto, a compulsão a repetição, a repetição do fora-representação que insiste por se significar, é o próprio motor que impulsiona o desejo. Paradoxalmente, para Lacan, o além do princípio do prazer é o que empresta movimento ao próprio princípio do prazer. Como para o Freud da primeira tópica, para Lacan, o inconsciente fala o tempo todo, ça parle! É indestrutível em sua essência. O problema não está em que não fale, como o id desprovido de representação da segunda tópica deixa imaginar, nem em que possa vir a não falar, como a ideia de desfusão pulsional deixa entrever, mas em que não se o escute. Não se trata de ligar, de simbolizar o não simbolizado, como concebem os psicanalistas que se interessam pelos processos de simbolização, mas de reconhecer o desejo em sua insistência repetitiva. O não simbolizado é estrutural, já está presente no deslocamento desejante como sua causa, e responde pela incompletude estrutural do Outro do significante. Cabe ao analista buscar, através da pontuação do não sentido, desfazer as ligações já fixadas em sentidos impeditivos da trajetória assintótica do desejo em sua relação com o impossível. O analista não simboliza, ele, por assim dizer, dessimboliza.

Contudo, e aqui se encontra a segunda observação sobre o destino da noção de ligação na lógica do significante, o movimento metaforonímico do desejo pressupõe uma operação prévia ao seu estabelecimento, a operação da metáfora paterna que, esta sim, pode ser tomada como o que permanece em Lacan da noção freudiana de ligação em sua acepção mais própria. Na lógica do significante, o lugar da ligação freudiana é a operação pela qual o sujeito, como efeito do significante, vem a ocupar uma posição singular na estrutura. Tal posição é determinada, em parte, pelo discurso familiar que antecede o sujeito, e, em outra parte, pela "escolha" defensiva que preside o posicionamento do sujeito em relação ao traumático do discurso familiar. Por isto mesmo, estrutura torna-se um termo mais apropriado do que o de ligação. A partir de seu posicionamento em relação ao Nome do Pai, o sujeito liga, ao seu jeito, o não simbolizado, o real foracluído pela incompletude do simbólico, estruturando-se na neurose, na perversão ou na psicose. O sujeito não liga, mas é, ele mesmo, efeito da ligação do traumático de sua relação com o Outro. A ligação, neste caso, não se apresenta como um processo aberto ao seu devir, mas como posição singular do sujeito na estrutura.

Na concepção não estrutural dos psicanalistas que se detem nos processos de simbolização das experiências traumáticas, os processos de ligação acontecem ao longo da vida do sujeito e cabe ao analista favorecer seu desdobramento através da atenção dedicada aos modos do funcionamento psíquico não só do analisando, como também do próprio analista. Diferentemente do que sugere a concepção lacaniana do "desejo do analista" como desejo purificado de escuta da diferença da posição do sujeito face ao Outro da linguagem, equação que exclui o componente da pessoa do analista do processo analítico, entendem que o analista contribui nos processos de simbolização através do uso de sua própria análise, como também de sua imaginação. Não se trata apenas de escutar o já simbolizado nas séries do desejo inconsciente, mas de produzir essa mesma simbolização no encontro analítico.

Cabe aqui uma observação sucinta sobre a diferença entre as concepções da oposição entre as pulsões de vida e de morte em Klein e Lacan. Para Melanie Klein, que com suas contribuições inaugura para a psicanálise o longo trabalho de elaboração que até hoje prossegue sobre a importância das relações objetais nos processos de simbolização, as pulsões de vida e de morte são igualmente atuantes no interior do aparelho psíquico e estão representadas, ou presentificadas, lado a lado, paralelamente, no mundo interno, pelos objetos bons e pelos objetos maus que são projetados e introjetados pelo ego. Para ela, a pulsão de morte não é silenciosa, ela está presente nos barulhos dos objetos maus. O desenvolvimento do sujeito, o processo de simbolização, é pensado nos termos da síntese dos objetos bons e maus no objeto total, assim como pelos processos de reparação que daí decorrem. Lacan, por seu lado, apoiando-se nas observações de Freud sobre o mutismo da pulsão de morte, radicaliza a heterogeneidade da oposição, retirando-lhes o paralelismo presente em Klein. Para ele, os objetos bons são representados no eu-prazer, enquanto o objeto mau, como já foi dito, vem a ocupar o lugar do real da Coisa, sendo, nessa medida, irrepresentável. O objeto mau não é introjetado, nem projetado. Ocupa um lugar de interioridade externa em relação ao conjunto das representações. Seu lugar é o lugar da falta de representação, da representação que não há. Por esse mesmo passo, o objeto mau se torna igualável ao objeto do desejo como impossível. Como compreender essa equação? Em que medida o objeto do desejo é o objeto mau?

Para Lacan, a própria experiência original de satisfação com o seio, por mais satisfatória que possa ter sido, independentemente de qualquer experiência de frustração, é marcada por uma insatisfação estrutural, efeito direto da incidência da ação mortificante do significante sobre o gozo do corpo. O significante, em sua função de corte, divide o gozo da experiência da satisfação originária entre o gozo obtido e um outro gozo que faltou para que o gozo fosse experimentado como completo. Se eu não gozo desse outro gozo que o significante permite descortinar no horizonte, então foi o Outro quem gozou, miragem que Lacan nomeia como o gozo do Outro. Objeto mau é um dos nomes do gozo do Outro. O objeto do desejo é o objeto do gozo do Outro. E, nessa medida, todo o trajeto do desejo passa a ser pensado não mais nos termos da síntese e da reparação, como em Klein, mas nos termos da castração. Trata-se da questão da realização, pelo sujeito, da castração do Outro. Trazer o não sentido para o lugar dos cenários fantasísticos que encenam o gozo do Outro.

Em Klein a noção que se impõe como mais próxima das teorias de Lacan sobre o desejo em sua relação com o gozo é a da inveja primária, introduzida tardiamente em sua obra. Com a inveja primária, Klein embaralha os lugares dos objetos. Antes, os bons presentificavam as pulsões de vida e os maus a pulsão de morte. Com a noção de inveja primária, a pulsão de morte passa a incidir sobre o próprio objeto bom. E isso é o mais puro Lacan! O desejo é invejoso. Se em Klein o objetivo é domesticar a inveja e a capacidade de suportar a frustração pelo desenvolvimento dos sentimentos de gratidão, em Lacan o objetivo é levar o sujeito a atravessar a fantasia que encobre o real com cenários em que um Outro não castrado goza de um gozo infinito que não há. Se a castração imaginária do sujeito impele o desejo na perseguição de um gozo equivalente ao gozo do Outro não castrado, a realização subjetiva da castração do Outro, por sua vez, dá acesso a uma experiência de des-ser, que revela o vazio que a fantasia encobre, e em torno do qual o desejo rodopia. É nessa medida que o que chamamos de realização da castração é equivalente a realização, pelo sujeito, de que não há Outro a fazer gozar.

As sucessivas teorias lacanianas do desejo e do gozo são parentes próximas da inveja primária kleiniana. Nessa última se trata de ligar e simbolizar, nas de Lacan, de desligar e dessimbolizar. No entanto, a perspectiva de Lacan de privilegiar a experiência do não sentido pode ser, até certo ponto, aproximada da perspectiva da simbolização, na medida em que o objetivo da análise, para Lacan, é o de retirar o sentido das simbolizações já dadas para que estas possam se ressimbolizar em circuitos ainda não frequentados pelo sujeito.

Retomando o curso do comentário sobre a importância da reviravolta dos anos 20 para a compreensão dos processos de simbolização, devemos acrescentar, ainda acompanhando Green, que foi necessário mais um passo para que esses processos entrassem em linha de consideração no interior da própria situação analítica. E esse passo consistiu em lançar luz sobre o papel aí desempenhado pelo objeto. Essa luz, nos limites do conjunto de personagens que admiti no presente trabalho, foi trazida primeiramente por Melanie Klein, com a concepção de que o trabalho do ego, em sua função de prover o id com representações, só poderia ser levado a efeito em parceria com o objeto bom. Como já tive a oportunidade de dizer em outras ocasiões, esse é um dos momentos mais impressionantes da história da psicanálise. O do nascimento da amizade entre o ego e o objeto bom.

O papel do objeto nos processos de simbolização, em seguida a Klein, foi trazido, de modo mais concreto e qualitativo, por Winnicott e Bion, através das noções de holding e de continência. Holding das pulsões de vida. Continência das pulsões de morte. Avaliar as transformações das teorias sobre a pulsão de morte em seguida a introdução do papel do meio ambiente nos processos de simbolização seria o objeto de um trabalho dedicado exclusivamente a esse tema. Hoje, vou me deter em apenas alguns comentários sobre Winnicott.

Winnicott, como se sabe, é o mais notável contraditor da pulsão de morte, a qual, para ele, é o correspondente, em psicanálise, a ideia de "pecado original" (WINNICOTT, 1971, p. 70). De seu ponto de vista, a pulsão de morte foi concebida por Freud, e conservada por Klein, devido a falta de atenção por eles dedicada ao fator das condições da dependência do sujeito em relação ao meio ambiente. Nessa medida, propõe uma compreensão dos componentes agressivos da subjetividade como um aspecto dos impulsos vitais, não derivado da raiva contra o objeto da pulsão de morte kleiniana, mas do caráter impiedoso do amor, do ruthless love, no início da vida, na indiferenciação entre eu e não-eu que acontece no narcisismo primário. A agressividade, nessa medida, não visa o outro, mas o contato para as fontes vitais. Na sequência desse arrazoado, introduz um de seus mais importantes conceitos, o do uso do objeto (WINNICOTT, 1971). O uso do objeto é a resposta winnicottiana a pulsão de morte. Além das funções de holding, o outro materno também deve suportar a agressividade do bebê, não se deixando destruir pelos aspectos agressivos de seu amor impiedoso. Ele não deve nem retaliar, nem se afastar, nem se deixar destruir. A agressividade deve ser enfrentada pelo outro cuidador, assim como pelo analista, nos termos da manutenção da provisão ambiental.

No que segue, farei um breve percurso através de algumas observações de cinco autores, os quais, embora próximos a Winnicott, parecem demonstrar reticências (os tres primeiros de modo explícito, os dois últimos apenas implicitamente) para acompanhar, em todo o seu alcance, as implicações clínicas do gesto winnicottiano de exclusão da noção de pulsão de morte do conjunto de fundamentos metapsicológicos da teoria psicanalítica.

Stephen Mitchell considera que Winnicott, juntamente com outros autores, como Guntrip e Kohut, compartilha uma concepção do processo analítico que ele propõe chamar de "modelo do desenvolvimento paralisado" (Developmental-Arrest Model). Nesse modelo, o paciente tende a ser visto

como um self infantil em um corpo de adulto, fixado em um momento do desenvolvimento e a espera de condições interpessoais que tornarão possíveis novos desenvolvimentos. Desse ponto de vista, o que faltou permanece faltando e necessita ser provido, essencialmente na mesma forma em que faltou nos primeiros tempos (MITCHELL, 1988, p. 170).

A esse modelo, Mitchell contrapõe o "modelo do conflito relacional" (Relational-Conflict Model), no qual prefere ser incluído. O modelo do conflito relacional, é importante frisar, parte das mesmas premissas do modelo anterior no que se refere ao papel patogênico das falhas primárias nas relações com os cuidadores. No entanto, do ponto de vista desse último modelo, as falhas ambientais não deixam as necessidades infantis congeladas a espera de condições relacionais mais propícias. Elas distorcem as relações objetais subsequentes (Id., ibid., p. 289), produzindo o que se pode chamar de enclaves intersubjetivos destrutivos, não redutíveis a agressividade do amor impiedoso do bebê. Tais enclaves não podem ser elaborados unicamente pela via da provisão ambiental, mas requerem uma abordagem interpretativa da relação transferencial-contratransferencial, certamente devedora, em última instância, da tradição teórico-clínica que se origina das considerações freudianas sobre a pulsão de morte e que prossegue com os desenvolvimentos kleinianos sobre as relações de objeto.

James Grotstein, por sua vez, acredita ser importante lançar uma advertência contra o perigo em que o analista pode vir a se encontrar ao se deixar orientar de modo exclusivo pelo modelo descrito por Mitchell como o do desenvolvimento paralisado, e que ele prefere descrever não como um modelo, mas como uma crença na inocência original do sujeito. Referindo-se implicitamente a crítica de Winnicott da pulsão de morte como representando a ideia de pecado original na teoria psicanalítica, Grotstein divide o panorama contemporâneo da psicanálise em dois conjuntos maiores. O do pecado original e o da inocência original. De um lado, os psicanalistas que acreditam que o desenvolvimento do sujeito acontece a partir do pecado original do desejo (e da pulsão de morte, eu acrescentaria). Neste conjunto inclui Freud e Klein. De outro lado, aqueles que, como Winnicott, acreditam na inocência original do sujeito. Ele mesmo se posiciona como tendo um pé em cada uma dessas crenças. Adianta que na maior parte das vezes a interpretação empática com o sofrimento do sujeito, privilegiada pelos autores que creem na inocência original, é a mais recomendada. Ela revela que o analista compreendeu a aflição do desamparo e que desse modo entende que o sujeito foi obrigado a tomar as medidas defensivas que tomou. No entanto, observa, em muitas ocasiões isso não deve ser feito, pois o analista deve estar atento se sua interpretação empática do desamparo está sendo oferecida para o inimigo, ou seja, "para a parte da personalidade que mantém o sujeito inocente em cativeiro" (GROTSTEIN, 2005, p. 10).

Na mesma linha de raciocínio, mas de modo particularmente ácido, Green, em sua malcriada conferência em homenagem a Winnicott, em Londres, Play and reflection in Donald Winnicott’s writings, afirma acreditar que Winnicott estava errado ao confundir a agressividade do amor impiedoso com o que é pura e simples destruição, descartando, por essa via, a consideração da pulsão de morte do corpo do seu pensamento clínico. Prossegue dizendo que não julga suficiente encarnar a mãe boa no tratamento do paciente. Que não basta apenas sair do consultório quando a paciente atua sua destrutividade quebrando toda a mobília (aqui deve estar se referindo ao tratamento de Margareth Little com Winnicott). E conclui: "Deixem-me dizer que penso que é melhor saber contra qual inimigo se está lutando do que procurar salvá-lo mostrando-lhe que você não foi destruído, ou que a mãe boa ainda está presente" (GREEN, 2005, p. 12).

Em outra linha de raciocínio, é também interessante observar alguns desdobramentos que autores, ainda mais próximos a Winnicott, propõem para a noção de uso do objeto. Penso em René Roussillon e Jan Abram. Acredito que algumas das elaborações, por eles sugeridas, sobre o conceito de uso do objeto, não deixam de trazer para esse campo conceitual noções aparentadas a noções que devem sua origem a crença na pulsão de morte.

Buscando destacar a função do uso do objeto no momento da saída do narcisismo primário, momento no qual, através da diferenciação entre eu e não-eu, o sujeito realiza sua relação de dependência com o outro materno, Roussillon adianta a hipótese de que essa saída não se faz, como muitas vezes se admite, pela frustração das necessidades e pela desilusão progressiva da onipotência na qual o bebê se experimenta como criador do seio. Para ele a ilusão que é frustrada, nesse momento, é a ilusão primária negativa de estar na origem da destruição do seio (ROUSSILLON, 2007, p, 113). O bebê é desiludido dessa experiência, que Roussillon também chama de experiência de culpabilidade primária, pela função do uso do objeto, para ele tornada possível pela mãe que não se deixa destruir por sua agressividade. A constatação da sobrevivência do objeto aos seus ataques agressivos é o que permitirá ao sujeito vir a experimentar suas relações de dependência de modo menos traumático e mais transicional. Nos casos das falhas maternas, quando a mãe responde a agressividade do bebê com retaliação ou abandono, a consequência será a da transformação da agressividade vital em enquistamentos destrutivos instalados nos níveis intrapsíquicos e intersubjetivos do funcionamento mental do sujeito. Os desdobramentos trazidos por Roussillon a noção de uso do objeto parecem trazer um elemento que não está presente em Winnicott, que é o de entender o narcisismo primário como constituído por dois tipos de experiência: o da ilusão positiva e o da ilusão negativa. Para Winnicott, o narcisismo primário é concebido apenas nos termos da ilusão positiva da criatividade primária. De algum modo, admitir duas qualidades experienciais no funcionamento psíquico do narcisismo primário, uma criativa, outra destrutiva, é reintroduzir a dualidade pulsional em um momento do desenvolvimento que Winnicott preferiria conceber em termos exclusivamente vitais.

Jan Abram, por sua vez, sugere um desdobramento da teoria winnicottiana do uso do objeto, propondo a ideia da internalização, pelo bebê, tanto da mãe que sobrevive aos ataques agressivos do amor impiedoso, quanto da mãe que não sobrevive, processo que dá origem a formação, no mundo interno, de objetos sobreviventes e objetos não sobreviventes, os "objetos moribundos" (ABRAM, 2013, p. 323). A autora admite a proximidade desses conceitos com os de objeto bom e objeto mau de Melanie Klein. Procura distanciá-los das concepções kleinianas de pulsão de vida e morte, enfatizando a efetividade concreta do vivido das relações com o objeto primário, em detrimento das projeções das pulsões inatas de vida e morte. Mas, mesmo assim, é de se notar, a ideia de um objeto moribundo no mundo interno convida o analista a pensar em estratégias diferentes das de apenas não se deixar destruir pela agressividade do amor impiedoso, na medida em que, no mundo interno, passam a ser admitidas partes inocentes e partes não tão inocentes assim. Partes inimigas, como diria Grotstein, que se trata de enfrentar em meio a relações objetais dificultosas, e não apenas de sintonizar empaticamente sem se deixar destruir. Jan Abram parece, nessa passagem, pensar com Winnicott, mas não sem adicionar alguns temperos colhidos no campo conceitual da pulsão de morte.

Ao relatar os comentários desses cinco autores meu objetivo principal não é defender a crença na pulsão de morte. Trago-os, antes, como exemplos para mostrar o quanto ainda não deixamos de navegar nas vagas desencadeadas por Freud ao introduzi-la como um desafio teórico a clínica psicanalítica. Nos dias de hoje, existe quase unanimidade em considerá-la na dependência do fator primordial da provisão ambiental. A ênfase na provisão ambiental, para alguns, implica a recusa da crença na pulsão de morte; para outros, implica a renovação da compreensão das condições de suas manifestações. Contudo, como já foi dito, a crença na pulsão de morte não parece, hoje, dividir em campos opostos as orientações que compõem o panorama pós-escolas da psicanálise contemporânea. As discussões sobre o tema tendem a acontecer em um clima ecumênico, de modo implícito, em torno da análise das consequências clínicas das crenças teóricas de cada um. Nessas discussões, aqui e ali, podemos perceber a questão da pulsão de morte se imiscuindo, em filigrana, como um visitante inesperado que pode, conforme o viés adotado, passar despercebido.

Como concluir, se o fio do que procurei expor, como disse de início, diz respeito a pontos nos quais minha teoria pessoal encontra bifurcações e se ramifica sem encontrar síntese? Tendo em vista oferecer uma maior coerência ao conjunto dos argumentos até aqui apresentados, acredito que caberia, ainda, tentar melhor desenvolver a significação do amplo espaço que reservei as reflexões de Lacan sobre a pulsão de morte. De alguma maneira, estas últimas, as vezes, parecem se destacar como um subconjunto a parte dos demais, dificilmente a eles integrável. É fato que as conversas entre psicanalistas não lacanianos sobre a qualidade do fator ambiental e de sua incidência na história do sujeito costumam ser naturalmente acompanhadas por conversas sobre os tipos de relações objetais que as falhas ambientais não deixam de desencadear na transferência e na contratransferência. A relação analítica, nessas circunstâncias, podendo ser pensada nos termos das funções do holding e da continência que o analista pode prover em análise. Nessas conversas, contudo, os elementos derivados das intuições de Lacan sobre fantasia, gozo e castração, estão, na maior parte das vezes, ausentes, ou, presentes apenas de modo críptico.

Embora atualmente, e já há muito tempo, eu me situe bem mais próximo dos psicanalistas que se dedicam ao desenvolvimento das ideias relativas aos processos de simbolização das experiências traumáticas, o que implica atenção tanto as condições de provisão ambiental, quanto as da interpretação dos enclaves transferenciais e contratransferênciais, para mim, o interesse nas formulações lacanianas se justifica, entre muitos outros fatores, por fornecerem uma luz singular para a compreensão das experiências traumáticas. De modo geral, a ideia de trauma tende a ser compreendida, pelos autores que privilegiam a provisão ambiental e os processos de simbolização na situação analítica, principalmente nos termos do desamparo subjetivo, assim como das defesas empregadas contra os sofrimentos e as angústias. Por outro lado, as concepções de gozo com as quais Lacan recobre o traumático das experiências de desamparo, parecem enriquecer as possibilidades de compreensão das situações em o sujeito se encontra fixado em repetições destrutivas, em culturas da pulsão de morte. Para Lacan, o sujeito sofre, não apenas pela falta de simbolização e pela repetição do trauma que ali passa a insistir, mas, também, pela fixação na qual seu gozo o amarra.

No momento pós-escolas da psicanálise contemporânea, os desenvolvimentos teórico-clínicos que compõem seu espectro se fazem, em grande parte, pelo trabalho de integração das intuições inauguradas, principalmente, por Klein, Bion e Winnicott. Nesse panorama, a obra de Lacan, assim como o lacanismo das instituições que se reúnem em torno do seu ensino, parecem permanecer a parte, oferecendo resistência ao trabalho ecumênico de integração que orienta, hoje, os esforços reflexivos da psicanálise contemporânea. No momento pós-escolas da psicanálise contemporânea, as escolas lacanianas parecem se formar, talvez, como um último enclave, voltado para sua própria ortodoxia. Os fatores que contribuem para isso são muitos. Dificuldades e culpas distribuídas por todos os cantos. Não cabe aqui esboçar sua análise. Resta desejar que, aos poucos, encontros entre analistas das mais diversas orientações possam incluir analistas lacanianos mais naturalmente, e que o diálogo possa começar a se estreitar de modo mais proveitoso do que até hoje se mostrou possível.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 27/06/2021
Aprovado para publicação em: 30/06/2021

Endereço para correspondência
Octavio Souza
E-mail: octaviosouza@gmail.com

 

 

*Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Pesquisador do Instituto Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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