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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro Jan./June 2021

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre o traumático e possibilidades elaborativas a partir do filme Inocência Roubada

 

Reflections on traumatic experiences and elaborative possibilities from the movie picture Little Tickles

 

 

Juliana Milman Cervo*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente trabalho propõe-se a pensar o filme Inocência Roubada (2018), de Andréa Bescond e Éric Métayer, através das possibilidades de elaboração psíquica que tanto a arte quanto a escuta analítica são capazes de propiciar. O ponto de partida será o célebre texto de Freud (1920/2010), Além do princípio do prazer, em sua noção de trauma como excesso pulsional. Também serão destacadas algumas contribuições de Ferenczi (1933-1934/1992) e de autores contemporâneos como Anne Alvarez (1994) e Daniel Kupermann (2017), os quais efetuam um enlace com o social ao refletir sobre os efeitos do testemunho e da presença do outro para a autorização de uma sobrevivência psíquica.

Palavras-chave: Trauma, Repetição, Elaboração, Reparação.


ABSTRACT

The present paper proposes to think about the movie picture Little Tickles (2018), by Andréa Bescond and Éric Métayer, through the possibilities of psychic elaboration that both art and analytical listening are able to provide. The starting point will be Freud's (1920/2010) famous text, Beyond the pleasure principle, in his intrapsychic notion of trauma as a drive excess. Some contributions by Ferenczi (1933-1934/1992) and contemporary authors such as Anne Alvarez (1994) and Daniel Kupermann (2017) will also be highlighted, making a connection with the social sphere when reflecting on the effects of the testimony and the presence of the other for the authorization of a psychic survival.

Keywords: Trauma, Repetition, Elaboration, Repair.


 

 

Introdução

Este artigo busca refletir acerca do traumático e das possibilidades de elaboração de uma experiência muito dolorosa através do vínculo instaurado com o outro. O filme Inocência Roubada (2018) funcionará como disparador para que se discutam noções importantes sobre o campo do traumático, propostas por Freud (1920/2010) e por Ferenczi (1933-1934/1992), e revisitadas por diversos autores na contemporaneidade, dentre eles, Alvarez (1994) e Kupermann (2017). O mote central com o qual se entenderá a experiência traumática é o de que esta é irreversível para o sujeito, mas possível de ser reparada em seu contato com a alteridade.

Inocência Roubada (2018) é o título em português para o filme Les chatouilles, adaptação da peça teatral chamada de Les chatouilles ou La danse de la colère, cuja tradução literal é "As cócegas ou a Dança da raiva". Ambos foram produzidos, escritos e dirigidos pelo ator Éric,Métayer e pela dançarina Andréa Bescond, a qual parte de sua experiência pessoal de ter sido vítima de abuso sexual na infância, para compor uma obra que mescla o trauma e a dança. Bescond também atua e dá corpo a Odette, nome que a personagem define como tendo sido inspirado no cisne branco do balé de Tchaikovsky, O lago dos cisnes. A história é costurada por um fio condutor cambaleante, em zigue-zague, entre a infância e a idade adulta de Odette, bem como entre a realidade, os sonhos e a fantasia. Acompanhamos o seu percurso, desde a criança de nove anos que aprende balé na escola e que está sendo violada em silêncio pelo amigo de seus pais, até a adulta que viaja com o grupo de dança, que grava comerciais para se sustentar e que se afunda nas drogas e em relações fugazes para esquecer o passado. Em meio ao amálgama desses tempos, observamos suas tentativas de reparação psíquica no encontro inusitado com uma terapeuta, a princípio despreparada, mas que compensa a sua falta de técnica no exercício empático de ouvir e de acompanhar Odette.

 

Da compulsão à repetição às tentativas de sublimação

A película nos introduz Odette de forma imediata, quase violenta, a partir de sua dança contemporânea em um fundo preto, embalada por uma música instrumental: ela faz movimentos bruscos, fortes, aludindo a um desespero. Há, posteriormente, um corte de cena, e vemos uma menina desenhando. Um homem entra no quarto e lhe propõe uma brincadeira de boneca, convite que, afinado à linguagem infantil, parece inocente. No entanto, a malícia é explícita, e logo entendemos que se trata de uma investida sexual de um adulto dirigida a uma criança. A porta rosa do quarto pueril onde a menina brinca é, agora, a porta que se abre da sala de uma psicoterapia. Ali, entra a mulher que dançava ao início do filme e, então, compreendemos que ela e a menina são a mesma pessoa: Odette.

O espectador é drasticamente lançado à experiência de abuso sexual que Odette vivenciou em sua infância de forma recorrente, por Gilbert Miguié - amigo íntimo de seus pais, o casal Le Nadant. Filha única e amedrontada com a exposição radical a um universo adulto esmagador, Odette silencia o que está vivendo e precisa se submeter à presença constante de Gilbert. O filme se utiliza de um recurso narrativo precioso para abordar a impossibilidade de narração decorrente do trauma: em nenhum momento, escutamos Odette contar o ocorrido, mas sim, nos transportamos com ela e com a psicóloga diretamente às cenas, o que consiste em uma incorporação do passado que nunca deixou de ser presente.

No primeiro contato com a terapeuta, que não possui um nome no filme, Odette lhe diz que veio sem indicação, que encontrou o seu número ao acaso. Ela força uma aproximação com a psicóloga, sentando em sua mesa e exigindo não ser chamada de mademoiselle, que, para a cultura francesa, denotaria um distanciamento maior correspondente ao pouco grau de intimidade que as duas partilhavam no momento. A reação inicial da terapeuta é a de encaminhar Odette para um colega com maior experiência, visto não se sentir preparada para atender um caso tão delicado. Mas Odette é incisiva, insistindo que permanecerá com aquela terapeuta, pois já havia verbalizado algo que nunca havia dito em voz alta para alguém, e não o faria de novo com outro profissional. A terapeuta aceita a construção de um vínculo que vai exigir tempo para se consolidar, embora Odette chegue com sua voracidade e com sua sede de uma ligação imediata.

Odette fica cinco anos em psicoterapia, mas interrompe esse processo muitas vezes por diversas razões - seja por viajar em turnê com a dança, seja por dificuldade de acessar a sua dor. Ela suspende o tratamento, alegando que vai tentar fazer com que o passado a esqueça, pois só falar não parece estar adiantando. Contudo, ainda há esperança em Odette, necessidade de entendimento, e ela sempre retoma as sessões com a psicóloga. Acompanhamos as suas viagens com a companhia de dança em uma intercalação de festas e de apresentações, com Odette tendo relações sexuais com muitos parceiros e fazendo uso de drogas. Nós a vemos tombar fatigada na cama em diversos takes sucessivos, uma sequência que dá a ver a inquietude e a exaustão que permeiam o seu corpo.

Em seu texto Além do princípio do prazer, Freud (1920/2010) questiona a concepção formulada até o presente momento de que o aparelho psíquico busca sempre o prazer. Ao observar o neto pequeno entretido em uma brincadeira, Freud (1920/2010) percebeu que aquele jogava repetidamente o carretel, seguro pelo cordão, para dentro do berço, emitindo o som "oooo" - o que significava, em alemão, fort (foi embora). Depois, ao ver reaparecido o carretel, o menino exclamava da! (está aqui!), saudando a sua presença. A partir desse jogo, Freud (1920/2010) compreendeu o quanto o neto pôde elaborar a ausência da mãe, que estava longe, repetindo ativamente uma situação dolorosa que vivera passivamente e se tornando dono da situação.

Aliado a essa descoberta, Freud (1920/2010) formulou o conceito de compulsão à repetição, através do qual o paciente repete o reprimido como vivência atual, em vez de recordá-lo como parte do passado. Desse modo, há uma tentativa de atenuar a intensidade da vivência que deixou forte impressão originalmente. Na compulsão à repetição, a pessoa busca uma dor novamente, e não o prazer. Freud (1920/2010) afirma que essa repetição tem sempre como base parte da vida sexual infantil e pode se expressar na transferência. Pacientes, por vezes, interrompem o tratamento incompleto, criando uma impressão de desdém. Era assim que Odette se relacionava com os seus objetos: em ligações ávidas e efêmeras, rompendo inúmeras vezes com a terapeuta, vínculo mais estável que ela possuía. Além disso, por não ter condições de elaborar o trauma sofrido, Odette repetia uma série de atuações, expondo-se a situações de risco em que tentava se autodestruir.

A compulsão à repetição aniquila a passagem do tempo. Odette não conseguirá enunciar o passado em um primeiro momento. Marguerite Duras (1986), em seu livro ficcional O deslumbramento, escreve sobre uma personagem, que dá nome à narrativa, a qual ficou para sempre capturada em uma cena traumática em que seu noivo, Michael Richardson, se vê fatalmente atraído por outra em um baile. Diante dos olhares de todos os convidados, Lol V. Stein é abandonada por Michael e substituída no mesmo instante por Anne-Marie Stretter, uma mulher mais velha e enigmática. Dado o súbito apaixonamento e o posterior desaparecimento de ambos, estes ficam presentes na história de Lol como fantasmas. Foucault (2009), ao escrever sobre o livro de Duras (1986) define-o belamente como uma "memória sem lembrança" (FOUCAULT, 2009, p. 357), aludindo à sensação de vislumbrarmos uma espécie de bruma intermitente, em que a memória é infinitamente apagada por outra, de modo indefinido e vago. Lol V. Stein, assim como Odette, não possui lembrança. Em complemento a esta noção, Hèléne Cixous (2009) vai dizer ao filósofo: "é como se a memória não chegasse a se apresentar, como se o passado fosse tão passado que, para que haja lembrança, seja necessário ir ao passado. Ser passado. O passado não retorna" (CIXOUS, 2009 apud FOUCAULT, 2009, p. 358).

Em sintonia com essa ideia de que é preciso ir até o passado e ser o passado para poder elaborar, Pontalis (2005) usa como metáfora a imagem de uma instantânea, fotografia sem data que emerge como aparição - e não como recordação. De acordo com o autor, "o que se repete - não o que se rumina, mas o que insiste - é aquilo que não teve lugar, que não encontrou seu lugar e que, ao não ter conseguido advir, não existiu como um acontecimento psíquico" (PONTALIS, 2005, p. 19). Repetimos o que está fora do texto, o incrustado - e não o que foi oficialmente redigido e pensado. Ferenczi (1934/1992) aponta que há uma função útil na tendência à repetição na neurose traumática, que é a condução do trauma a uma resolução. O sonho é uma tentativa de elaboração, buscando lidar retroativamente com a situação traumática. Portanto, repete-se por também se conservar um pouco de esperança, por desejo de que se encontre alguma compreensão.

Odette, ainda criança, vai para Paris ficar um mês para fazer o teste para ser aceita na Opera House, mas não é aprovada na ocasião. O que vemos é a reatualização de uma memória frustrante, em nível de fantasia, pois uma Odette agora adulta rodopia no mesmo palco em que foi rejeitada no balé clássico, em uma dança zombeteira, contemporânea. E é em Paris que Odette conhece o seu melhor amigo que, no futuro, se tornará traficante e a introduzirá ao mundo das drogas pesadas, como a heroína. O filme utiliza com maestria o recurso de match cut, que é, para o cinema, um corte entre dois planos, em que o fim do plano combina com o início do outro. Assim, a memória é retratada em seus tempos condensados, e vemos uma Odette caminhando com seu amigo, ainda crianças, em seguida se transformarem em adultos identificados com a cultura das ruas. Há também uma passagem em que Odette, adulta, janta com seus pais. Quando lhe falam que, com Gilbert, vieram a Paris, cidade em que Odette estava morando, esta volta a ser criança novamente. Vemos uma Odette de nove anos, vestida com roupas de gente grande, com um vestido largo e sensual, na mesa com seus pais.

Em entrevista para Vincent Formica (2018), Andrea Bescond explica a construção do seu filme como tentativa de acessar as camadas da memória de Odette. A montagem da película é bastante ágil, remetendo por vezes à sensação de continuidade e, por outras, à sensação de fragmentação. Embora em algumas cenas fiquem confusos para o espectador os limites entre a realidade e a fantasia, Bescond firma que tal efeito é intencional, pois era assim que Odette se sentia. Apesar de aparentar ser um filme caótico, no sentido do excesso de texturas e de alternâncias em seu ritmo, Bescond explica que ela e Métayer redigiram um esqueleto muito preciso. Ambos definiram o presente, o passado, as dimensões, os estratos da memória traumática e sensorial. No filme se trata, enfim, de uma homenagem à memória.

Segundo Aleida Assmann (2011), a imagem, assim como a escrita, é metáfora e medium de memória. Para ela, a recordação é sempre fragmentada, assistemática, aleatória e incoerente. Assim, a lembrança será "sempre descontínua e inclui necessariamente intervalos da não presença. Não se pode recordar alguma coisa que esteja presente. E, para ser possível recordá-la, é preciso que ela desapareça temporariamente e se deposite em outro lugar, de onde se possa resgatá-la" (ASSMANN, 2011, p. 166). A lembrança é vivida como emaranhamento, como mistério incompreensível. Odette, mergulhada em seu trauma, não consegue ter distanciamento e espaços de não presença. Em sua compulsão à repetição, ela está permanentemente vivendo o passado, tornando-se muito difícil lembrar, pois o passado é o que há de mais vigente em sua vida.

Freud (1920/2010) tenta entender a origem das neuroses traumáticas a partir da explicação econômica do trauma psíquico. O autor busca diferenciar os conceitos de terror e de angústia, alegando que esta seria um estado de expectativa para o perigo, mas o terror enfatizaria o fator surpresa. As neuroses traumáticas se originariam desse elemento inesperado, do terror sem nomeação, quando não há um preparo de antemão para o perigo. Segundo Freud (1920/2010), "as excitações externas que são fortes o suficiente para romper a proteção nós denominamos traumáticas" (FREUD, 1920/2010, p. 192) Um evento traumático é capaz de mobilizar todos os meios de defesa e de perturbar o gerenciamento de energia do organismo. Em uma situação inusitada, como não há um investimento considerável nos sistemas perceptivos que recebem primeiro o estímulo, tais sistemas não conseguem ligar o excesso de excitação que os acomete. A energia encontra-se não ligada, flui livremente, capaz de transbordar e de precisar ser descarregada de outras formas. Desse modo, pode-se pensar a neurose traumática como um período de transbordamento pulsional que não foi integrado. Para Odette, aquilo que ficou sem ligação se expressou pela via do não verbal, em seu uso recorrente de heroína, em seu corpo fatigado de tantos estímulos e de parceiros sexuais. A escolha por permanecer na dança talvez consiga ser nomeada como sublimação pela arte: a dança como representação do corpo que sofre violência. Odette é objeto, mas também sujeito dessa violência. Contudo, apesar de ser inicialmente muito promissora no balé, Odette necessita atuar em vários comerciais para pagar as suas contas, bem como não parece muito identificada com muitas das apresentações que faz, o que nos remete à sua dificuldade de se ver crescida profissionalmente e de investir de forma efetiva em seu potencial. Odette, antes de conseguir amadurecer e traçar planos, precisa dar vazão catártica a sua inundação pulsional.

Ferenczi (1934/1992) complementa essa teorização ao entender o choque traumático como aniquilação do sentimento de si. Ele irá empreender o termo Erschutterung para se referir ao trauma, palavra que pode ser traduzida como comoção psíquica e que deriva de Schutt - que significa restos, destroços, aludindo a um desmoronamento. Assim como Freud (1920/2010), o autor pontua que a comoção não é antecedida por preparação. A angústia é decorrência imediata do traumatismo, associada a uma sensação de impossibilidade de adaptar-se à situação desprazerosa. Tal sensação seria vivenciada posteriormente, nos sonhos e, no caso de Odette, no corpo que pulsa. Ferenczi (1934/1992) escreve que "o desprazer cresce e exige uma válvula de escape. Tal possibilidade é oferecida pela autodestruição, a qual, como fator que liberta a angústia, será preferida ao sofrimento mudo" (FERENCZI, 1934/1992, p. 111). Dessa forma, o que poderia ser mais facilmente destruído é a consciência, promovendo um estado de desorientação psíquica. Em sua vida adulta, Odette está claramente desorientada, sem perceber que houve uma passagem do tempo e sem realmente compreender que sofrera abuso. O choque age como anestésico: sem resistência, a personalidade fica desprotegida e se submete a diversas situações desprazerosas e angustiantes. Odette se descuida a ponto de nos comovermos junto a ela, de ficarmos anestesiados em nossa capacidade de pensar.

 

A fundação da linguagem da empatia: criação de um novo ritmo

É Odette quem dita o ritmo de contato com as cenas traumáticas, evadindo do cenário quando é necessário. A psicóloga a acompanha nesse processo intercalado de idas e vindas, sobrevive junto da paciente à concretude e à brutalidade das imagens. Vemos Gilbert buscá-la no balé e se masturbar em sua frente, focalizando apenas a expressão de nojo de Odette. Vemos ainda o final de semana na casa da montanha da família de Gilbert, em que este acordou Odette, que fingia dormir, e lhe infligiu seus dedos, alegando que era "gostoso sentir coceirinha", eufemismo para confundir a percepção da criança, a qual exclamava sons de dor. Neste momento, não vemos Odette, apenas a face de Gilbert. Posteriormente, é a psicóloga que elucida para uma Odette adulta, confusa de suas percepções, quando ambas estão projetadas no mesmo ambiente em que o episódio ocorreu: "isto foi um estupro, Odette".

Ferenczi (1933/1992) explica que a criança se encontra sob o regime da linguagem da ternura, a qual seria lúdica e experimental. Já o adulto estaria sob o domínio da linguagem da paixão, marcada pelos recalcamentos e pela culpa de uma sexualidade significativamente diferente da infantil. A confusão se imprimiria quando o adulto negligencia a diferença entre o modo infantil de amar e o seu, impondo a linguagem da paixão sobre a criança. No entanto, o que acentua a confusão para a criança é justamente quando o adulto, mesmo assumindo a sua forma erótica, preserva uma comunicação no nível da ternura. Gilbert confere um caráter lúdico ao abordar Odette, dizendo que se trata de uma brincadeira de bonecas ou que ele está apenas fazendo-lhe cócegas. Tal enunciado gera imprecisão na percepção da menina, que passa a desconfiar do que sente em contraste com o que lhe é transmitido pelo adulto.

Ferenczi (1933/1992) acredita que, depois de ocorrido o abuso, o primeiro movimento da criança seria o da recusa e do ódio. Porém, essa reação inicial seria inibida por um medo intenso, colocando a criança em posição frágil diante da força do adulto. Esse medo a obriga a se submeter diretamente ao desejo do agressor, sem apresentar resistência possível. Além disso, persiste uma certa identificação com o agressor que Ferenczi (1933/1992) capta como introjeção, como realidade intrapsíquica. A criança fica em estado de profunda ambivalência ao introjetar um sentimento de culpa que pertenceria originalmente ao adulto. Segundo esse autor, a criança está "dividida, ao mesmo tempo inocente e culpada, e sua confiança no testemunho de seus próprios sentidos está desfeita" (FERENCZI,1933/1992, p. 102). O autor ainda realça que, em geral, quando há situações assim, não se encontram relações de intimidade com uma segunda pessoa para quem se possa relatar o que foi vivenciado, implicando uma quebra na possibilidade do testemunho. O pai de Odette, embora afetuoso, parece se desconectar da filha e não perceber o excessivo interesse de Gilbert na menina, algo que até mesmo um vizinho deduz ao observar os dois na piscina. Já a mãe é cruel com Odette, forçando a filha a passar o final de semana na casa da montanha de Gilbert, mesmo com Odette claramente não querendo ir, como castigo por esta não ter arrumado o seu quarto. Quando Odette está lavando a calcinha, suja de sangue em função do abuso, a mãe fica emocionada e entende o sangue como menstruação, incapaz de intuir que Odette ainda estava distante desse momento: ela era pequena, mirrada, sem indícios de mudança hormonal.

A criança que sofrera abuso pode se tornar alguém que obedece automaticamente ou que se fixa em uma atitude obstinada. Odette, quando criança, é excessivamente contida e subjugada à vontade dos mais velhos. Quando cresce, parece ainda estar fixada nesse período para sempre corrente. Mesmo que Gilbert tenha parado de abusar dela logo que o seu corpo se transformou em um corpo de mulher, há uma marca não inscrita que exige reatualização persistente. Odette torna-se uma adulta desnorteada pois, quando pequena, "para proteger-se dos adultos sem controle, ela devia, em primeiro lugar, saber identificar-se por completo com eles" (FERENCZI, 1933/1992, p. 105). Como defesa diante da angústia, podemos pensar em uma clivagem, como proposta por Ferenczi (1933/1992): de um lado, há uma identificação com o agressor, em seu descontrole e em sua culpa; de outro, resiste um núcleo sensível, e é nele que a psicóloga de Odette vai apostar para a promoção de uma reparação psíquica.

Seguimos, apesar da perturbação, a acompanhar a vida de uma Odette de nove anos. Esta foi aprovada no teste do Conservatório Nacional de Dança e passa a ser uma bailarina reconhecida pela professora Madame Maloc em seu grupo de balé infantil. Há uma cena especialmente poética: no ensaio para a apresentação de balé, Odette voa enquanto todos os demais alunos seguem no chão. A mãe de Odette, que estava presente no ensaio, olha para Madame Maloc, e ambas deslocam a sua mirada para cima, onde supomos que Odette está. Madame Maloc, então, diz: "é natural ela voar, ela está em terapia. Voe, Odette, e não esqueça de suas boas lembranças". Nesse sentido, apesar de se tratar de um tema pesado, o filme consegue lançar mão do humor como contrapartida e do caráter lúdico das fantasias e da imaginação. A própria escolha da paleta de cores do filme é inusitada - são cores leves e suaves, como o rosa e o azul claros. Há um excesso de luminosidade para contrastar com a violência. Assim, percebemos que a cineasta Andrea Bescond almeja fazer seu filme do ângulo da reparação e da reconstrução, para evitar que Odette fosse reduzida à posição de vítima e para encorajar a aproximação do espectador a um universo colorido, que não se restringe à dor.

Freud, no começo de seus estudos com as pacientes histéricas, formulou a sua "teoria da sedução", a partir da qual acreditava que todas elas haviam sofrido um trauma real na infância. Posteriormente, Freud (1920/2010) remodela essa premissa e, ao valorizar as fantasias sexuais infantis, passa a se ocupar tanto da realidade intrapsíquica que, em algum momento, deixa de lado o fato de que alguns abusos efetivamente ocorrem - o que Ferenczi tratou de resgatar e de expandir. Este autor irá ampliar tal ideia ao pensar que a traumatogênese consiste também em sua relação com o outro, envolvendo um laço social. Portanto, depreendemos que o aparelho psíquico pode lidar com o traumático, mas nunca sozinho. O trauma será sempre uma ferida coletiva, e não apenas individual. O processo de reparação se dará no contato com a alteridade: seja a partir da criação de um filme como ferramenta artística de identificação social, seja a partir da escuta sensível na clínica.

Ferenczi (1934/1992) conceitua um trauma que se daria em três tempos. O primeiro seria o tempo da violência propriamente dita, que aqui podemos pensar no abuso sofrido que a criança não consegue nomear. Daniel Kupermann (2017) o denomina de tempo do indizível, capaz de produzir choque e dor. O segundo seria marcado pela possibilidade de compartilhamento, o que pode ser feito também através de sintomas e, no caso da personagem, da dança. Seria, segundo Kupermann (2017), o tempo do testemunho. O terceiro seria, para Ferenczi (1934/1992), ali onde o trauma efetivamente ocorreu - o tempo do desmentido, marcado pela incerteza quanto ao que é verdadeiro ou falso, em que há uma recusa do outro em reconhecer que houve uma violência com o sujeito. O desmentido pode acontecer por uma série de razões, seja por defesa ou por ser insuportável escutar. Kupermann (2017) explica o conceito de Verleugnung, traduzido originalmente como negação, mas que depois passou a ser nomeado como "descrédito" e "desmentido". Este autor sugere também pensarmos em uma "desautorização", no sentido de realçar uma "desapropriação subjetiva promovida no sujeito em estado de vulnerabilidade pelo encontro traumático. Auto, do grego indica aquilo que é próprio, "de si mesmo" (KUPERMANN, 2017, p. 51).

Podemos inferir que o tempo da "desautorização" teve realmente um efeito retraumatizante para Odette. Há uma cena em que seus pais encontram a toalha que Gilbert havia dado de presente para a menina, mas o objeto está totalmente sujo de esperma. No entanto, não conseguem pressentir o que ocorria, e a mãe vai responsabilizar Odette por ter sujado a toalha com uma cola gosmenta. Essa negação aumenta no espectador o sentimento absurdo de injustiça, e Odette parece se sentir impotente. Quando adulta, a psicóloga sugere que Odette compartilhe com mais alguém o que ocorreu, ideia que Odette repudia. Contudo, antes de dançar no aniversário de um cliente, Odette está no banheiro com duas colegas e encontra toalhas idênticas às que Gilbert usava com ela. De forma intensa, Odette exclama como descarga: "são as toalhas que Miguié usava depois de ter me violado", e as arremessa para longe. Suas colegas de trabalho ficam em silêncio, extasiadas com o desabafo, sem saber como se aproximar. A toalha, aqui, funciona como elemento que resgata uma cadeia associativa. É a única vez que ouvimos Odette nomear o que aconteceu, em uma aparente banalização. Uma das colegas consegue apenas dizer que, agora, o comportamento destrutivo de Odette parece fazer sentido. O tempo do desmentido se enreda essencialmente quando Odette decide revelar aos seus pais o que sofrera passivamente. Novamente, não a escutamos falar. Observamos a reação de seus progenitores. O pai fica enfurecido, quer punir Gilbert. É tomado por uma culpa paralisante e pede o perdão da filha. Já a mãe questiona se Odette não poderia estar inventando ou ter ela própria seduzido Gilbert, que era um homem bonito e bem-sucedido e que, afinal, não possuía uma "cara de pedófilo". É nesse instante que a desautorização se instala de forma brutal, pois a mãe minimiza o sofrimento de Odette, além de hostilizá-la.

Anne Alvarez (1994), ao dedicar-se à terapia de crianças que sofreram abuso, sugere quase uma teoria do esquecimento:

Enquanto o paciente mais moderadamente traumatizado, cujo distúrbio está afetando sua personalidade no nível neurótico, pode precisar lembrar o trauma para poder esquecer, as crianças mais danificadas, cujo trauma é mais severo e mais crônico, podem precisar esquecer o trauma para poderem ser capazes de lembrar (ALVAREZ, 1994, p. 161).

A autora explica que o lembrar talvez implique milhares de ínfimas integrações, algumas delas podendo exigir que outros aspectos do abuso sejam obliterados. Para a psicanalista, "talvez cada aspecto isolado do abuso, os fragmentos da experiência, em especial se ela foi crônica, tenha que ser digerido um de cada vez" (ALVAREZ, 1994, p. 164). Assim, a possibilidade de esquecer por alguns momentos pode ser fundamental para que o lado que não sofreu abuso do paciente se fortaleça. O processo de aceitação do ocorrido não precisa ser necessariamente verbalizado. Alvarez (1994) menciona os caminhos possíveis do trauma, como o encapsulamento, em que não há possibilidade de integração do material traumático com os demais conteúdos; e um caminho mais danoso, quando o trauma começa a colorir toda a personalidade da criança e a afeta em seu comportamento. Poderíamos pensar que, em Odette, persiste um encapsulamento e que sua personalidade fora tingida pelo abuso. Alvarez (1994) indica que o ideal seria se a terapia ocorresse o mais precocemente possível. Porém, segundo a autora, a maioria das crianças que sofreram abuso busca ajuda somente muito depois do evento, visto estarem amedrontadas e sem possibilidade de acessar as marcas traumáticas.

Afinado a essa ideia, Kupermann (2017) ressalta que toda situação traumática requer um processo singular de elaboração, sendo necessário compreender a escolha de muitos pelo silêncio. O autor cita Barthes ao afirmar que obrigar a dizer pode ser tão violento quanto forçar a calar (BARTHES apud KUPERMANN, 2017, p. 54). Alvarez (1994) também vai reforçar a importância da continência do terapeuta, o qual pode ser capaz de suportar a experiência e de conter os sentimentos indesejados do paciente. Odette descobriu em sua terapeuta um objeto não abusivo, apto a tolerar a ação violenta e transformá-la junto à paciente em metáfora.

De acordo com Alvarez (1994), os terapeutas devem discriminar quando há tentativa apenas de negar o ocorrido de quando há esforço de superar, o que talvez implique que a parte da personalidade que tenta esquecer o abuso necessite de mais atenção do que aquela parte que não cessa de lembrá-lo. Portanto, o movimento para se distanciar da experiência original pode ser visto não somente como evasão, mas como tentativa de exploração do ocorrido em solo mais tolerável, através de deslocamentos, projeções e substituições. Isso é encenado lindamente no filme, com a psicóloga e Odette se deslocando juntas para terrenos mais seguros, distanciando-se quando é preciso. Nesse sentido, a terapeuta de Odette é extremamente cuidadosa e atenta à paciente. Ela não obriga a paciente a falar, respeita as interrupções necessárias ao longo do período que passaram juntas.

Apesar de inicialmente sentir que não daria conta do caso, a psicóloga e Odette desenvolvem uma relação bem-humorada, lúdica, que acessa o lado infantil da paciente e que lhe permite esquecer o abuso sofrido em algumas sessões. Por outro lado, a psicóloga reconhece que não perdura uma negação, mas sim, há esforços de superação, os quais implicam avanços e recuos inerentes ao tratamento. Constatamos a diferença do encadeamento das cenas de quando Odette está com sua psicóloga, que são mais organizadas e mais lentas, para quando Odette está distante em suas viagens, em que há uma montagem caótica de takes rápidos.

Em consonância com essas reflexões, Seligmann-Silva (2008) analisa as contribuições da psicanalista armênia Hélène Piralian, a qual discorreu sobre o genocídio do seu povo e sobre as dificuldades dos sobreviventes para representá-lo. Ela escreve acerca da necessidade de o fato congelado, preso em um único topo e em um único tempo, ser retemporalizado e aquecido, imbuído de sua dimensão simbólica. Seligmann-Silva (2008) ressalta, partindo das contribuições de Piralian, que a cena achatada do trauma pode adquirir tridimensionalidade no trabalho terapêutico, através da imaginação e da ampliação das capacidades simbólicas. Andréa Bescond consegue se apropriar da dor daquilo que viveu no exercício tridimensional de realizar seu filme e de, então, representar simbolicamente. Assim como Odette pode, a partir do tratamento, narrar e representar o ocorrido. Contudo, Seligmann-Silva (2008) faz uma ressalva:

Na cena do trabalho do trauma nunca podemos contar com uma introjeção absoluta. Esta cena nos ensina a sermos menos ambiciosos ou idealistas em nossos objetivos terapêuticos. Para o sobrevivente sempre restará este estranhamento do mundo advindo do fato de ele ter morado como que "do outro lado" do campo simbólico (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 69).

A terapeuta funciona como testemunha do testemunho. E é fundamental que interroguemos: qual o destino do testemunho para Odette? A personagem lança mão de tentativas para integrar a verdade do ocorrido e acessar o seu passado de outro modo, apesar de sempre restar esse núcleo difícil de ser introjetado, tal como um corpo estranho dentro do sujeito (SELIGMANN-SILVA, 2008). Em seu conceito de linguagem da ternura, Ferenczi (1933/1992) propõe a invenção de uma maneira de falar, singular a cada paciente. A terapeuta emprega uma linguagem da empatia para acolher Odette, em vez de meramente interpretá-la. Segundo Kupermann (2017), deve-se sempre indagar qual regime linguageiro teria uma qualidade estruturante, ou seja, não traumática, para o paciente. No caso de Odette, ela se comunica muito com o corpo durante as sessões: caminha, senta, levanta, dança. Os seus movimentos são catárticos e desesperados. Há uma cena em que Odette reproduz, no ensaio de seu grupo de dança, o seu solo: ela se joga no chão com força, entregando-se com furor. O professor associa a sua performance com a de um sobrevivente dos campos de concentração, conectando-se ao teor traumático daquela linguagem corporal que remete ao indizível. Ademais, o professor chama a atenção para o ponto forte de Odette como dançarina: não é a técnica, mas a capacidade de sentir. Em sintonia a essa ideia, Kupermann (2017) situa uma clínica dos afetos cuja técnica seria elástica, empática e cuidadosa, efetuando uma crítica ao abuso da técnica interpretativa que, nesse caso, poderia ser também retraumatizante.

Odette, já adulta, está dançando na festa de aniversário de um cliente. Ela cai, se machuca, e um homem vem em sua direção para auxiliá-la. Seu nome é Lenny, ele é osteopata e pode cuidar do tornozelo danificado de Odette. Além da terapeuta, essa é a primeira abordagem de um cuidado, de uma hospitalidade que a personagem recebe na vida adulta. Odette o convida para ver a sua apresentação na noite do mesmo dia como gesto de agradecimento. Após o show, no primeiro diálogo com Lenny, ela pergunta de forma direta se ele quer transar. Lenny é cauteloso, diz que gostaria de conhecê-la primeiro, ensaiando um outro tipo de aproximação. Em seguida, os dois iniciam um relacionamento e, com o tempo, passam a morar juntos. Lenny é um objeto seguro, estável. Na experiência junto a ele, Odette passa a descobrir o amor. Após algum período unidos, Odette quer gravar uma dança conjunta com Lenny, para enviar a uma seleção de uma companhia internacional. Apesar de o namorado não saber dançar, a técnica não parece ser decisiva: o que realmente é fundamental é a possibilidade de contato entre os dois. Odette cria uma coreografia em que se encosta nele, agarra-o, depois o retém, como se estivesse ensaiando sobre a sua experiência romântica de tato e de reconhecimento. Nessa dança, diferente das anteriores, Odette não está sozinha e não aparenta se machucar. Não se atira no chão, não se debate. Está desfrutando de um encontro sereno com Lenny e parece admitir precisar do outro para se estruturar.

Porém, o relacionamento também é marcado pela intensidade de Odette, por seus desaparecimentos e por suas atuações. Odette havia sido aceita na companhia internacional fazia algumas semanas, depois de ser aprovado o vídeo que gravara com Lenny, mas não havia conseguido partilhar esse feito com seu companheiro - assim como não lhe revelara o que vivera quando pequena. Lenny, ao descobrir que Odette omitira tal resultado, discute com ela, que se descontrola e o agride. Ambos rompem e se afastam por um período. Odette só é capaz de reatar com Lenny depois que, estimulada pela terapia, conta aos pais o ocorrido na infância pela primeira vez, decidindo também denunciar Gilbert na polícia. A mãe abandona Odette na porta da delegacia, não concordando com a decisão da filha, e esta liga para Lenny para buscá-la, podendo finalmente compartilhar com ele a violência que sofrera. O papel de Lenny é terapêutico e fundamental, uma vez que ele não deslegitima a vivência de Odette, validando a percepção da amada.

Gilbert Miguié já havia sido denunciado por outras mulheres, de quem ele abusou quando eram crianças - incluindo a própria irmã dele. Todas se encontram no dia do julgamento de Miguié. Novamente, não escutamos Odette depor, somente as outras vítimas. Aqui, percebemos a dimensão coletiva da experiência, que vai além da esfera individual e singular. Ao final, em um fundo escuro como o do começo, Odette dança, dança, parece se sacudir em cócegas. Seu corpo se debate, ela cai. Esta parece ser a sua catarse derradeira. Odette tem êxito, apesar da desmentida da mãe, em encerrar o seu processo terapêutico após longo período. Embora não tivesse muita experiência na modulação do afeto, Odette dá um abraço de gratidão em sua terapeuta e consegue reconhecer a importância deste vínculo. Na última cena, há as duas atrizes que interpretaram Odette lado a lado: a adulta e a criança, aludindo à possibilidade de integração. A Odette adulta pede desculpas por ter deixado a sua Odette criança abandonada por tanto tempo e pergunta: "você vem comigo, Odette?" ao que esta, pequena e desenhando, diz: "sim, faz tempo que estou sozinha". Agora, o passado pode existir como passado e coexistir no tempo como recordação.

 

Considerações finais

A partir da experiência sensorial e narrativa da película Inocência Roubada (2018), pudemos compreender como a diretora se utilizou da ficção para suportar uma experiência traumática: criando uma personagem, deslocando-se para um terreno onde é mais tolerável lembrar. O filme, ao instaurar um outro ritmo nos encontros de Odette com sua terapeuta, os quais transcorrem com mais linearidade e mais vagarosamente, tem êxito em sua tentativa de ilustrar a ressignificação de algo extremamente doloroso no contato com um outro capaz de ouvir e de acolher. Odette desacelera sua vida repleta de takes sucessivos e rápidos, de tempos aglutinados que deixam o trauma sempre atual e pulsante. Efetuando uma transposição para o contexto da clínica, os pacientes também podem fundar um novo ritmo na presença do analista, pensando com mais calma antes de agirem por impulso e freando o padrão conhecido da repetição e do aprisionamento.

Apesar de sempre persistir um núcleo não totalmente integrado que corresponde ao excesso de uma vivência que não ganhou representação, Odette consegue preservar um vínculo com a terapeuta, testemunha de sua dor - e é nesse espaço sensível que o analista deve apostar. Em sintonia com o que foi exposto acerca das ideias de Ferenczi (1933-1934/1992) e de Kupermann (2017), o filme mostra que o sentimento de irrealidade de que o fato traumático talvez não tenha ocorrido é desmistificado, pois há um outro que valida a percepção da paciente e a escuta. Ademais, a identificação com o agressor que transparece nos sentimentos de vergonha, de culpa e na tendência de autodestruição de Odette pode ir sendo substituída por outros tipos de identificação mais saudáveis. Por exemplo, a partir de sua ligação com a terapeuta, Odette se autoriza a viver um amor, a experimentar outra forma de relacionamento ancorada no cuidado, bem como a exigir uma reparação jurídica.

A psicóloga dispõe de muita sensibilidade ao não forçar Odette a falar e a rememorar. Nesse sentido, é importante que o trabalho psicanalítico lance mão de uma técnica empática e elástica, que não inunde a paciente de interpretações. Ambas constroem sessões mais lúdicas, bem-humoradas, em que conseguem esquecer por vezes do abuso, em consonância com as ideias propostas por Alvarez (1994). Assim como Odette e sua terapeuta, pode-se pensar que as análises também façam um movimento de aproximação e de afastamento das memórias infantis e, com isso, estendam o tempo e abram espaço para a recordação. No contato com a alteridade, a paciente pode narrar, simbolizar, perceber a passagem do tempo - conquistas valiosas adquiridas. O fato achatado traumático vai sendo mais maleável e ganha tridimensionalidade nesses encontros. Ao final do filme, Odette passa a conviver com sua própria criança antes abandonada, metáfora da coexistência de tempos e da possibilidade de seguir adiante, objetivos fundamentais de uma análise. O filme nos deixa, como espectadores, com esperança na capacidade da arte e do trabalho terapêutico em promover elaboração psíquica.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 03/05/2021
Aprovado para publicação em: 30/06/2021

Endereço para correspondência
Juliana Milman Cervo
E-mail: julianamcervo@gmail.com

 

 

*Psicóloga pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrado em Escrita Criativa pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialista em Psicoterapia de Orientação Analítica pelo Centro de Estudos Luís Guedes (CELG/CEPOA). Porto Alegre, RS, Brasil.

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