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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro Jan./June 2021

 

ARTIGOS

 

Como você quer ser chamado? Questões acerca do nome próprio na análise

 

How do you want to be called? Questions about the proper name in the analysis

 

 

Luiza Adelaide Vieira Naue*; Isalena Santos CarvalhoI, II**

IUniversidade Federal do Maranhão - UFMA - Brasil
IIAssociação Escola de Psicanálise do Maranhão - AEPM - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O nome próprio é uma temática da qual a psicanálise se ocupa, especialmente a partir de Jacques Lacan. Este concebe o nome como uma marca que nos particulariza. Nosso nome nos é dado por outras pessoas, sendo que, pela inserção no mundo de linguagem, há que se considerar como precisamos responder por ele na neurose. Em relação ao trabalho de uma análise, Lacan alerta para prestarmos atenção em como o paciente quer ser chamado pelo analista, sinalizando que essa escolha não é qualquer coisa, pois tem a ver com questões de sujeito. Este artigo pretende chamar atenção para a discussão acerca do nome próprio na análise e para a escolha do sujeito em relação a como responderá por esse nome. Para tal, abordamos inicialmente a definição do nome no contexto brasileiro; em seguida, apontamos questões colocadas pela Psicanálise acerca da nomeação para a discussão que se segue: como o sujeito quer chamado e em que implica sua convocação.

Palavras-chave: Nome, Psicanálise, Sujeito, Freud, Lacan.


ABSTRACT

The proper name is a theme of which the Psychoanalysis occupates itself, especially since Jacques Lacan. This author conceives the name as a brand that makes us particular. Our name is given to us by other people, but, by the insertion in the language's world, the way we respond to it in neurosis needs to be taken into consideration. In regard to the work of an analysis, Lacan warns us to pay attention to the name the patient chooses to be called by the analyst, signaling that this choice is not an ordinary thing, because it is related to matters of subject. This article intends to bring attention to the discussion about the proper name in the analysis and to the subject's choice in relation to how they will respond to this name. For this, we initially approach the definition of name in the Brazilian context; then, we point out questions placed by Psychoanalysis about the naming process for the discussion that follows: what the subject wishes to be called and wherein implies his/her convocation.

Keywords: Name, Psychoanalysis, Subject, Freud, Lacan.


 

 

Introdução

A necessidade de identificação através de um nome está presente desde sempre na sociedade. Todas as pessoas no mundo são identificadas por algum nome que as distingue umas das outras. No Direito, o nome encontra-se no âmbito dos Direitos de Personalidade e consiste, segundo Amorim e Amorim (2010), na principal forma de identificar uma pessoa no meio social. É através do nome que somos identificados e diferenciados perante os demais. Segundo esses autores, a questão do nome outrora também compareceu para o Direito em discussões dentro do campo do Direito de Propriedade, em que o nome se associava à ideia de posse, o que permitiria dar a ele o mesmo tratamento que se dá a um bem material. Se o nome fosse uma propriedade, seria possível emprestá-lo, mantê-lo ou mesmo escolher não transmitir um sobrenome. Contudo, o nome se encontra no rol de Direitos da Personalidade porque não é um bem material, mas sim um direito subjetivo, assim como os direitos de identidade, liberdade e reputação, por exemplo.

Portar um nome que nos foi dado implica carregar uma marca que tem efeitos para cada sujeito durante o curso de sua existência no mundo. Ele constitui não só uma marca de identificação, como indica o Direito, mas também de distinção do sujeito, dividido e marcado pela falta constitutiva na estrutura neurótica, sobre a qual versamos neste artigo. Ainda de acordo com Amorim e Amorim (2010), a importância de um nome pode ter maior ou menor relevância à medida que a pessoa que o porta tenha reputação conhecida e distinta na sociedade. A Psicanálise nos mostra, contudo, que independentemente de tais fatores, o nome tem relevância - tem peso. Não se trata apenas de um registro no cartório, mas de uma marca cuja incidência tem efeitos para cada um.

Segundo o Código Civil Brasileiro (2002), todos têm direito ao nome e nele estão contidos o prenome e o sobrenome, que indica a procedência familiar. No Brasil, um nome é composto primeiramente pelo prenome, depois pelo sobrenome do pai da mãe (avô materno) e, por último, pelo sobrenome do pai, de modo que uma mulher casada tem a possibilidade de alterar seu nome ao adicionar o sobrenome do marido, se assim quiser. Assim, cada um dos pais transmite ao seu filho um sobrenome, mas não há uma lei específica que regulamente esse processo (FERRETTO, 2000). Tradicionalmente em nosso país existe o padrão de nomeação já mencionado até os dias de hoje: o prenome, que pode ser mais de um (por exemplo, Maria Luiza), acompanhado dos sobrenomes materno e paterno. Atualmente existem também muitas pessoas que, diante de uma situação de abandono paterno, possuem em seu registro civil somente o nome da mãe.

Possuir um nome civil registrado não inviabiliza a convocação de um sujeito através de outros nomes. Uma pessoa pode ser chamada por um apelido, um título ou mesmo por parte de seu prenome se assim quiser. Mas quais as implicações disso no que se refere à clínica psicanalítica? A forma pela qual o sujeito quer ser chamado pelo analista diz algo de sua posição em relação ao Outro?

O nome implica a convocação de uma resposta. É a partir dela que se abre para o sujeito a possibilidade de falar em nome próprio. Assim, a forma pela qual o sujeito quer ser chamado pelo analista é algo que não pode ser ignorado, pois é a via a partir da qual responde a uma convocação. Ela remete à posição desse sujeito na análise e ao lugar que o analista ocupa para ele. Para realizar essa discussão, partimos de algumas questões colocadas por Freud em relação ao inconsciente e posteriormente das ideias de Lacan no que diz respeito à temática do nome próprio. A partir disso, discutimos a importância do nome próprio na análise.

 

O nome próprio para a Psicanálise: questões indissociáveis entre a teoria e a clínica

A escolha de um nome próprio é fruto do desejo de um Outro encarnado por alguém. Cada sujeito é convocado a responder por um nome. Ele é um direito, mas é também um dever, pois "(...) se toda pessoa tem direito ao nome, ela precisa, de algum modo, posicionar-se em relação a ele em sua história. Precisa posicionar-se diante de uma escolha anterior ao seu nascimento, diante de algo que não teve participação alguma na decisão" (CARVALHO; CHATELARD, 2016, p. 139). Ali onde inicialmente não há nada que particularize o sujeito no mundo, criamos uma marca e lá colocamos: Letícia, Joana, Carlos, Pedro. O nome é uma convocação que mostra, através de nossa resposta, como cada um conta a sua história, a partir da forma como foi contado pelo Outro, encarnado por um outro.

Freud, criador da Psicanálise, não desenvolveu a questão do nome próprio em sua teoria, mas sublinhou a importância que ele tem no funcionamento psíquico, o que pode ser observado em seu texto O esquecimento de nomes próprios (FREUD, 1901/1996). Nele, vemos que o nome não pode ser simplesmente apagado e é uma marca que se mostra mesmo quando a "esquecemos", pois o nome insiste e está para sempre como marca para o sujeito. Basta lembrarmos que tudo o que faz marca no aparelho psíquico freudiano consiste em um traço que está investido de certa quantidade de energia, mas será sempre alguma coisa que fez marca. Freud criou e desenvolveu conceitos que mais tarde permitiram a Jacques Lacan um denso avanço da Psicanálise, o qual se mostrou, dentre os mais diversos desdobramentos, no trabalho com o nome próprio.

Em Totem e tabu, Freud (1913-1914/1996) recorre ao mito da horda primeva para discorrer acerca do que rege o laço social - o tabu do incesto. Os homens são proibidos de ter relações sexuais com as mulheres de seu clã: suas mães e suas irmãs. No clã, os membros se reconhecem como parte daquele grupo, pois recebem o nome do mesmo totem e o transmitem aos futuros membros do clã. Mas para sustentar esse nome, é preciso haver submissão à lei simbólica: a proibição do incesto. Posteriormente, temos com Lacan (1953/1998) o registro do simbólico, suportado pelo Nome-do-Pai. "É no Nome do Pai que se deve reconhecer o suporte da função simbólica que, desde o limiar dos tempos históricos, identifica sua pessoa [do pai] com a imagem da lei" (p. 279). O simbólico comparece, então, como um registro que confere à palavra o status de lei, de alguma coisa que permite o laço social, visto que todo sujeito neurótico é confrontado de alguma forma com o "não", desde a mais tenra infância até a vida adulta.

A lei simbólica está dada desde sempre, é uma lei fundamental cuja origem desconhecemos. "O significante é, pois, dado primitivamente, mas ele não é nada enquanto o sujeito não o faz entrar em sua história" (LACAN, 1956/2010, p. 185). Assim, embora esteja dada e seja anterior ao sujeito, a rede de significantes só se articula em sua existência a partir do constante deslizamento do significante sobre o significado. Por conta disso, cada significante pode ser associado a diferentes significados, o que nos mostra na fala uma ambiguidade constante que é inerente à divisão do sujeito. É nesse deslizamento que advêm as formações do inconsciente - os chistes, o sonho, o ato falho -, de que temos notícia através da fala.

O funcionamento inconsciente nos dá a chocante notícia de que não somos senhores em nossa própria casa (FREUD, 1917/1996). Há algo que nos ultrapassa. Com isso, Freud desmistifica toda uma ênfase na questão do comportamento consciente, racional e controlado: há sempre um tropeço. Posteriormente, Lacan (1964/1985) coloca o inconsciente estruturado como uma linguagem. "A natureza fornece, para dizer o termo, significantes, e esses significantes organizam de modo inaugural as relações humanas, lhes dão as estruturas e as modelam" (p. 26). O inconsciente não é uma espécie de porão ou caixa preta em que os conteúdos desagradáveis à consciência ficam guardados: ele está na superfície, revelando que somos sempre ultrapassados por questões inconscientes que se manifestam em nosso funcionamento.

Existe algo no significante de que o significado não dá conta, que não é passível de atribuição de sentido. De acordo com Lacan (1973/1985), "(...) o significante só se coloca como não tendo nenhuma relação com o significado" (p. 42), pois a linguagem mostra a todo instante algo que é escorregadio, ambíguo, que desliza para uma Outra coisa. Ainda segundo Lacan (1955-1956/2010), todo sistema de linguagem abrange todas as significações possíveis, mas não esgota todas as possibilidades do significante. Este, enquanto tal, não significa nada, não pretende significar - mas sim representar um sujeito para outro significante (LACAN, 1960/1998). O funcionamento da cadeia significante para o sujeito permanece, então, no plano da representação parcial, do não fechamento de sentido e da constante possibilidade de abertura da palavra dita para uma Outra coisa. Assim, não nos é possível dizer algo do sujeito que o defina, que diga quem ele é e por que é.

Sendo o inconsciente estruturado como uma linguagem, o nome se entrelaça às questões estruturais de cada sujeito, é falado e transmitido através da linguagem. Para Lacan (1961-1962/2003), o nome próprio consiste na inscrição de uma marca distintiva: o traço unário. Este conceito é desenvolvido como o significante anterior ao sujeito, e é a partir dele que lhe é possível o mergulho em uma rede de significantes. "No princípio era o verbo quer dizer No princípio é o traço unário" (LACAN, 1962-1963/2005, p. 31). Tudo que é possível de ser ensinado conserva a marca desse início, de modo que todo significante é constituído pelo traço. "Os significantes fazem do mundo uma rede de traços em que a passagem de um ciclo a outro torna-se então possível. Isso quer dizer que o significante gera um mundo, o mundo do sujeito falante (...)" (p. 87). O traço unário funda, então, tudo aquilo que se constitui posteriormente para o sujeito como parte de sua história e isso inclui o seu nome.

Para pensarmos melhor no conceito de traço, imaginemos o exemplo lacaniano do material pré-histórico, que seriam os traços outrora desenhados pelo homem em cavernas a fim de marcar uma contagem. Por mais que cada traço parecesse igual ao anterior, eles jamais eram iguais de fato, pois cada um era único e funcionava justamente como marca distintiva do traço anterior. Cada traço mostrava, a partir da repetição, a diferença. "Se aquilo sobre o qual temos feito girar, temos feito retornar incessantemente essa função do significante, é para atrair a atenção de vocês para aquilo que, mesmo a repetir o mesmo, o mesmo, ao ser repetido, se inscreve como distinto" (LACAN, 1961-1962/2003, p. 323-324). Assim, o traço unário desempenha o papel de uma marca e é distintivo à medida que sinaliza a diferença entre um sujeito que se faz representar para outro. "O nome próprio deveria ser esse traço que permite a identificação, permite a contagem, permite ser um entre outros, não se confundindo com nada mais" (COSTA, 2008, p. 74). Dessa forma, por mais que duas pessoas possuam, por exemplo, o mesmo nome e sobrenome, cada uma delas responderá e se posicionará de forma singular. O nome próprio - e consequentemente a relação do sujeito com ele - entra, portanto, como o traço que marca essa diferença.

O nome em Psicanálise tem a ver com o desejo do Outro, o lugar da palavra. Os primeiros a se ocuparem dessa criança que veio ao mundo dão a ela um nome escolhido à sua revelia. Assim, esse nome traz consigo marcas do desejo do casal parental e da família. Lacan mostrou como o desejo mostra a falta: é falta. Quem se ocupa da criança recém-chegada ao mundo de linguagem transmite a ela a sua própria falta a partir do momento em que lhe coloca um nome. Nomear envolve uma aposta. Nada sabemos dessa criança nomeada, mas esperamos que ao ser convocada, ela responda, ainda que não se possa saber qual será a resposta.

Estamos sempre tentando traduzir aquilo que nos é indecifrável e, sendo o nome algo que não comporta um significado dotado de sentido, por vezes buscamos algumas "aproximações" de tradução. No entanto, Lacan (1961-1962/2003) é radical ao nos dizer que o nome não se traduz. Cleópatra continua sendo Cleópatra não só no Egito, mas em qualquer outro lugar onde a ela se faça menção. Não há no nome um significado intrínseco que pode aparecer com nova roupagem em outra língua: "João", no Brasil, não se torna "John" nos Estados Unidos, nem na fala, nem na escrita.

Contudo, Lacan (1964-1965/2006) nos alerta que seria um erro dizer que o nome não comporta alguma significação. "Já há um certo número de referências que vêm imediatamente com o nome próprio" (p. 65). Se me apresento a alguém, trago nessa apresentação alguma coisa que diz algo que comporta efeitos para quem escuta meu nome. Quando Jacques Lacan se apresenta como Jacques Lacan, já está dizendo que não é outra pessoa e traz aí algumas referências que se ligam a esse nome para quem o escuta: é o psicanalista francês que se tornou referência para a Psicanálise. Desta forma, "dizer que um nome próprio, em suma, é sem significação, é alguma coisa grosseiramente errada!" (p. 65).

A significação que um nome carrega é revestida por um ideal, o que possibilita fazer referência a partir desse nome. Temos notícia disso quando, por exemplo, nos deparamos com alguém cujo nome é Vitória porque sua gestação e/ou nascimento foram particularmente difíceis, como se houvesse vencido uma batalha. Existem também inúmeras mulheres batizadas de Maria devido ao nome da mãe de Jesus e de sua história bíblica. Nosso nome faz parte de nossa história. A nomeação desemboca em uma tentativa de amarração - tentativa porque jamais amarra ou fecha coisa alguma. O ímpeto de tentar amarrar o que não se amarra é da ordem da consciência, mas a descoberta freudiana do inconsciente nos desloca dessa ilusão. Nada sabemos sobre a criança nomeada, sobre quem ela irá se tornar, e a própria criança nada sabe de si, mas antes de nascermos já somos contados por alguém. Possuímos uma pré-história que ainda não conhecemos, mas que nos permite sermos contados por alguém antes mesmo de nascermos. Tem participação na escolha de nosso nome próprio, pois nossos pais possuem com ele alguma relação anterior ao nosso nascimento - seja uma admiração, uma lembrança, uma homenagem a alguém; em todas essas possibilidades existe ali o desejo, algo de que não se sabe - e é precisamente por isso que aquele nome, e não outro, é escolhido.

É importante chamarmos atenção para uma diferença fundamental em relação ao prenome e ao sobrenome. Ambos compõem o nome próprio, mas o primeiro perpassa por uma escolha, enquanto o segundo marca algo da ordem de uma transmissão: a descendência (Lacan, 1964-1965/2006). É a partir do sobrenome que nos identificamos a uma linhagem, a um lugar em uma novela familiar que já está dada antes de nascermos. Em suma, o sobrenome identifica a linhagem e o prenome nos identifica e nos diferencia dentro dessa linhagem que possuímos em comum com outros sujeitos de nossa família. Aqui cabe ressaltar o conceito lacaniano de fantasma (LACAN, 1966-1967/2008) como sendo o mecanismo que torna o encontro do sujeito com o impossível do real de alguma forma suportável. O fantasma surge, então, como resposta à questão que esse sujeito formula sobre o desejo do Outro castrado, faltoso, e que lhe dá a notícia de sua própria falta. Ali onde não há nada, alguma coisa é posta é seu lugar, organizando a relação do sujeito com a realidade. Em relação ao nome próprio, o prenome é aquilo que nos organiza dentro de uma linhagem cujo sobrenome todos carregam. É o que mostra a diferença entre um núcleo familiar que compartilha o sobrenome por todos herdado.

Em relação ao trabalho de uma análise, sabemos que um analista é procurado a partir de uma demanda que será a ele endereçada. Sobre isso, Lacan (1961-1962/2003, p. 83) faz um alerta aos analistas:

Vocês sa bem, como analistas, a importância que tem, em toda análise, o nome próprio do sujeito. Vocês têm sempre que prestar atenção em como se chama seu paciente. Nunca é indiferente. E se vocês pedem os nomes na análiseé algo muito mais importante que a desculpa que vocês podem dar ao paciente, a saber, de que toda espécie de coisas pode esconder-se atrás dessa espécie de dissimulação ou de apagamento que haveria no nome, referindo-se às relações que ele tem, para pôr em jogo com algum outro sujeito. Isso vai muito além.

Lacan sinaliza com isso duas questões de suma importância, a saber: o nome próprio não é qualquer coisa e não deve ser ignorado na clínica psicanalítica. Em toda tentativa de apagamento de um nome, existem questões do sujeito. Se para a consciência o apagamento pode parecer ter se realizado com sucesso, para o inconsciente nada se apaga. O apagamento jamais ocorrerá, pois haverá sempre uma marca. O nome pode ser aproximado a uma espécie de sutura, a uma tentativa de amarração que se opera de forma única para cada um. Uma vez feita, ela mostra que algo passou e deixou uma marca. Freud (1925b/1996) em seu texto sobre um brinquedo, o bloco mágico, consegue ilustrar muito bem a questão dessa marca definitiva que não se apaga. Consiste em uma prancha com uma folha encerada e protegida por uma camada celuloide mais grossa que se adere à folha. É nessa camada grossa que a criança pode escrever qualquer coisa com material pontiagudo (como um estilete) e, ao levantá-la, tudo o que fora escrito constará na folha encerada. A necessidade da camada celuloide se dá porque o fino papel encerado se rasgaria com muita facilidade se entrasse em contato direto com o estilete. Assim, a camada celuloide atua como um escudo protetor para este papel, mantendo afastados os efeitos prejudiciais oriundos de fora. No entanto, a camada que é realmente marcada é o papel encerado: quando limpamos a camada celuloide para escrever outra coisa, vemos que a escrita anterior permanece retida no papel e pode ser vista sob a luz apropriada. "O bloco fornece não apenas uma superfície receptiva, utilizável repetidas vezes como uma lousa, mas também traços permanentes do que foi escrito" (p. 257). É inevitável não visualizar a partir desse exemplo a estrutura do aparelho psíquico freudiano, composto por "(...) um escudo protetor externo contra estímulos cuja missão é diminuir a intensidade das excitações que estão ingressando, e de uma superfície por trás dele receptora dos estímulos, ou seja, o sistema Pcpt-Cs" (p. 257). Esse sistema consiste na camada que recebe os estímulos, mas a permanência definitiva deles se dá no inconsciente, daí temos que nenhuma marca se apaga, apenas é enfraquecida em sua intensidade.

Quando alguém escolhe mudar seu nome ou ser chamado por um nome que não seja necessariamente o que consta em seu registro, existe aí algo que o eu não pode mais arcar, embora a marca desse nome permaneça ali. Quando, por exemplo, em casos de nomes vexatórios em que a vida do sujeito é perpassada por constrangimentos, há a possibilidade de alteração de nome. Em geral, ela ocorre quando há alegações desse constrangimento e demais perturbações. Contudo, por mais que ele possa ser modificado no registro civil e na convivência com outros sujeitos, ainda existiu ali outrora um nome que era motivo de constrangimento. O novo nome só existe em função do antigo: existe ali uma marca cuja tentativa de apagar é sempre malsucedida. A questão de que se trata é que todo nome alterado ou suprimido, independentemente do motivo, sempre deixa suas marcas. A operação do recalque nos mostra isso de forma clara, pois Freud (1915/2010) nos mostra tudo aquilo que é recalcado - tudo o que tentamos apagar da consciência - sempre deixa um resto que retorna para o sujeito de alguma forma, mostrando que onde incide o recalque nada se apaga.

O próprio Freud viveu uma questão com seu nome. De origem judaica, foi batizado por seus pais como Sigismund Schlomo Freud. Ostow (1989) nos conta que aos 13 anos Freud trocou o prenome de batismo de Sigismund para Sigmund, sua forma mais germânica. Vemos aí que a diferença se encontra na supressão de uma letra, mas é precisamente essa letra que demarca alguma coisa acerca de sua origem que Freud não poderia mais sustentar. Sabemos que houve todo um contexto histórico anterior à mudança de nome de Freud. A essa época, o povo judeu já possuía um histórico de perseguição, mesmo antes da Segunda Grande Guerra. Os romanos, muito antes de Hitler, já se ocupavam dessa discriminação há muito tempo. Freud (1925a/1996) em sua autobiografia indica que os ascendentes de sua família migravam de um lugar a outro desde o século XV, até que por fim se instalaram na Áustria alemã. Não temos como precisar se esse foi, de fato, o motivo da modificação em seu nome. A questão de que se trata é que Freud, ao efetuá-la, mostrou alguma coisa de sua relação com esse nome - com essa letra - que não podia mais ser sustentada. De todo modo, a supressão de uma única letra que germanizou seu nome judeu não apagou Sigismund e tampouco os efeitos de ter uma origem judaica: ela retornava para Freud o tempo todo de alguma forma. Não é possível apagar os resquícios dessa marca fundadora que é o nome próprio. Por mais que ele seja alterado, permanece ali como um fantasma, insistindo e retornando para o sujeito. Ora, e o que é um fantasma senão aquilo que mesmo depois de "morto", insiste em retornar?

Ainda em sua autobiografia Freud nos conta que durante o período na universidade, muitos colegas esperavam que ele se sentisse inferior por ser judeu. Além, disso precisou se exilar durante a Segunda Guerra devido ao genocídio em massa contra os judeus. A própria forma pela qual ele sustentou a teoria psicanalítica, tão oposta ao que preconizavam a ciência e a moral da época, pode ter sido viabilizada devido a sua familiaridade em ser sempre um estranho. "Talvez sequer seja inteiramente um item do acaso que o primeiro advogado da psicanálise fosse um judeu. Professar crença nessa nova teoria exigia determinado grau de aptidão a aceitar uma situação de oposição solitária - situação com a qual ninguém está mais familiarizado do que um judeu" (FREUD, 1925a/1996, p. 235).

A forma como respondemos ao sermos convocados através de nosso nome diz de nossa posição no mundo. Stitou (2013) fala de um paciente seu, que nasceu na França, cuja família é de origem árabe e, ao se casar, adotou um sobrenome francês a fim de evitar que sua mulher e filhos sofressem com sua descendência estrangeira. Contudo, ao ser solicitado pelo psicanalista a falar quem era, disse: "Eu sou Mehdi Ben... esse é meu verdadeiro nome". Mehdi sofria com a diferença cultural e identificava seu nome de nascença com algo degradante e desvalorizado, reduzido somente a conflitos étnicos. Seus pais, exilados do país de origem, acreditavam que se fosse nascido e criado na França, Mehdi não sofreria os efeitos de sua verdadeira origem.

Quando do nascimento de seu filho, ele entra em depressão - momento em que procura o analista. Stitou consegue escutar em sua fala um conflito com a dimensão da transmissão, que ativa em Mehdi questões acerca da filiação: a partir do momento em que se torna pai, comparece ali o que ele ignorava em si mesmo. "Ele tem, então, a sensação de ter traído o que possui de mais íntimo. Torna-se intolerável, para ele, imaginar que o nome que lhe foi legado não será transferido para nenhum descendente" (p. 31). Stitou ocupou para o paciente, naquela ocasião, o lugar ao qual Mehdi Ben pôde endereçar sua falta, mostrada em seu conflito com seu nome de origem. Ali havia um espaço para seu verdadeiro nome. Embora mantivesse e fosse conhecido naquele país por seu sobrenome francês, durante as sessões ele constantemente mencionava seu nome de origem. O nome se fazia presente, pois havia deixado uma marca.

Uma análise visa o sujeito e constitui uma possibilidade de "desatamento de coisas carregadas de sentidos que não poderiam ser desenlaçadas por outras vias. Aí está o solo firme sobre o qual se estabelece o campo analítico" (LACAN, 1964-1965/2006, p. 60). É na visada do sujeito que podemos nos dar conta das questões psíquicas que comparecem na fala do paciente. Mehdi Ben procurou a análise devido a uma depressão após o nascimento de seu filho. Com isto, pôde falar sobre o que era para ele a questão da transmissão do nome.

Tudo o que se diz no lugar do Outro diz de uma demanda (LACAN, 1964-1965/2006). Inicialmente, ela parte de nossos pais ou daqueles que, na ausência dos pais biológicos, se ocuparam de nossos primeiros dias no mundo de linguagem e nos nomearam, esperaram de nós alguma coisa. Esta é Marilourdes: uma linda menina, será inteligente como a mãe, torcerá para o Flamengo e irá gostar de Beatles. Quando alguém escolhe ser chamado de outra forma, existe aí uma demanda de sujeito. É quando ser Marilourdes torna a vida de alguma forma insustentável e passa-se, talvez, a ser Maria para que esse peso possa ser suportado ou aliviado através de um recorte. Lacan (1964-1965/2006) nos fala de um paciente, Ludovic, que preferia ser chamado de Victor - não se podia de modo algum chamá-lo de Ludovic. Isto diz de algo que não se pode mais arcar, uma vez que ele não se sente mais convocado a responder por Ludovic.

As pessoas por vezes se dão prenomes que não lhes pertencem. "Casanova, que se dava o nome de Seingalt, interrogado pelas autoridades policiais sobre as razões pelas quais havia tomado um nome que não era o seu, respondia com indignação que nenhum nome podia pertencer-lhe mais legitimamente, porque ele o inventara" (LACAN, 1964-1965/2006, p. 267). Seingalt, no entanto, não apaga Casanova. Ambos os nomes não têm como definir o sujeito ou apresentar um sentido sobre ele que pode ser revelado. "O 'eu sou Fulano' não traz ao 'que sou eu?' senão uma resposta experimentada como insuficiente (...)" (p. 268). A pergunta não comporta uma resposta que a explicará, que irá se fechar em um sentido. A falta de resposta é constitutiva para o sujeito.

O sujeito busca sempre um saber sobre si, está ali na espreita de que o Outro lhe diga o que ele é e o que quer dele. Uma análise consiste na possibilidade de mostrar ao sujeito que esse saber é inconsciente e que a falta é constitutiva: não chegaremos a uma definição de quem somos e do que precisamos para sermos completos, pois não há completude. Nada estará para sempre bem amarrado e com atribuições fechadas de sentido, e isso inclui o nosso nome próprio.

O analista escuta como seu paciente quer ser chamado para escutar de que lugar ele fala. Isso diz de como ele conta sua história e de suas possibilidades no mundo como sujeito de linguagem. A partir disso, o analista pode escutar também a incidência do recalque, pois escolher ser chamado por um determinado nome e não por outro implica, "contraditoriamente", mostrar aquilo que não se mostra - para o inconsciente não há contradição. Procuramos uma análise para levarmos ali nossas questões, nosso sofrimento psíquico. Chamar o paciente por seu nome o convoca a trazer suas questões de sujeito. Desta forma, é preciso que continuemos atentos ao alerta de Lacan: temos sempre que prestar atenção em como nosso paciente quer ser chamado! Aqueles que trabalham com a Psicanálise não podem ignorar o nome próprio. É preciso escutar como - e se - esse sujeito se sente convocado a falar em nome próprio para escutar também como ele se relaciona com suas questões trazidas em análise. Seu nome é a marca fundante da narrativa que ele constrói sobre si e que é constantemente levada ao analista. Não é possível trabalhar essa narrativa sem escutar a relação do sujeito com essa sua marca inapagável que insiste e retorna em seu funcionamento psíquico, daí a impossibilidade do analista de ignorar o nome próprio e tudo o que com ele comparece em uma análise.

 

Considerações finais

A Psicanálise trata de questões referentes ao nome próprio desde Freud, o que permitiu a Lacan outros avanços em relação à temática. Com isso, o presente artigo visou apontar a importância que tem o nome para a clínica psicanalítica a partir da escolha do sujeito acerca de como quer ser chamado. Na escolha do nome próprio, que é dado pelo Outro encarnado por alguém, existe uma aposta de que há ali um sujeito, o qual responderá ao ser convocado. A aposta produz diferentes efeitos para cada um.

Vimos que o nome próprio não se constitui apenas em uma mera denominação que alguém carrega, mas está presente também no funcionamento psíquico do sujeito. Quando este é convocado a responder a partir de um nome, é convocado também a mostrar como se posicionou diante do desejo - da falta. O nome próprio remete também à questão da transmissão e de tudo que herdamos a partir de nosso nome, o qual nos foi dado à nossa revelia. Não escolhemos quem nos tira do desamparo e nos coloca um nome e um sobrenome, e tampouco escolhemos a novela familiar à qual seremos inseridos ao nascermos: para o neurótico, alguma coisa sempre irá faltar. Mas a falta do Outro, que aponta para a nossa própria falta, é o que nos permite posteriormente alguma reorganização, alguma possibilidade de virar contador e de contar a nossa história em vez de paralisarmos diante daquilo que não escolhemos, mas herdamos e carregamos.

A escolha do paciente sobre como quer ser chamado nos mostra que toda tentativa de amarração, de fechamento em um único sentido, é falível. Ela mostra o que aparece e o que não aparece no funcionamento do sujeito neurótico. A questão de que se trata para o analista é escutar qual a relação de seu paciente com seu nome - como é a sua relação com o recalque que incide naquilo que não se mostra e no que, a partir da premissa freudiana de que alguma coisa sempre retorna, incide também no que se mostra. Dessa forma, escutar a relação do sujeito com seu nome é escutar de alguma forma a relação, sempre singular, que ele tem com o recalque. A singularidade nos mostra que na análise não pode haver protocolo para lidar com questões de sujeito, pois para tratá-lo é preciso escutá-lo a cada vez. A falta, constitutiva em cada neurótico, é justamente o que permite que a cada vez que o sujeito abra a boca, alguma Outra coisa possa ser escutada. Assim, a forma pela qual o paciente quer ser chamado é uma escolha que nos mostra essa Outra coisa, mostra-nos onde ele se reconhece e, portanto, não pode ser ignorada se está ali um analista.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 16/02/2021
Aprovado para publicação em: 21/06/2021

Endereço para correspondência
Luiza Adelaide Vieira Naue
E-mail: vieiraluiza_@outlook.com
Isalena Santos Carvalho
E-mail: isalenasc@yahoo.com.br

 

 

*Psicóloga. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) na linha de Avaliação e Clínica Psicológica. São Luís, MA, Brasil.
**Psicóloga e Professora associada da graduação e da pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Doutora em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UNB). Membro da Associação Escola de Psicanálise do Maranhão (AEPM). São Luís, MA, Brasil.

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