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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro jan./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Articulações entre Winnicott e Bachelard: a casa como símbolo de confiança

 

Articulations between Winnicott and Bachelard: home as a symbol of trust

 

Diálogos entre Winnicott y Bachelard: la casa como símbolo de confianza

 

 

Maria Teresa de Oliveira SaldanhaI*; Perla KlautauI, II**

IUniversidade Veiga de Almeida - UVA - Brasil
IICírculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Por meio de uma articulação entre fenomenologia, psicanálise e arquitetura, desenvolveremos um estudo da casa como símbolo de confiança e, assim, como instrumento facilitador do processo de desenvolvimento emocional do ser humano. Nossa investigação tem por meta demonstrar em que medida o pensamento do pediatra e psicanalista inglês Donald Woods Winnicott acerca do ambiente, articulado com a poética de Gaston Bachelard, pode enriquecer as bases teóricas da arquitetura, e design de interiores. De acordo com a teoria psicanalítica de Winnicott, a confiança na mãe-ambiente é fundamental para que o bebê tenha o sentimento de existir e, posteriormente, habitar a realidade compartilhada. O sentimento de confiança garante as bases para que a criança possa avançar no processo psíquico de formação de um self autônomo e sentir-se segura para habitar a realidade compartilhada. É somente a partir dessa atmosfera da confiança que a criança poderá sentir-se apta para entrar em contato com o mundo e, posteriormente, realizar suas primeiras interações lúdicas, isto é, o brincar, que na vida adulta se manifesta na experiência cultural. Na mesma linha, o filósofo francês Gaston Bachelard considera que a casa é um símbolo de segurança e proteção, atuando como guardiã da nossa identidade. A casa configura, portanto, um elemento que garante estabilidade, sendo um produto do próprio sentimento de acolhimento, conforto e segurança.

Palavras-chave: Winnicott, Psicanálise, Arquitetura.


ABSTRACT

Through an articulation between phenomenology, psychoanalysis, and architecture, we will develop a study about the house as a symbol of trust and, thus, as an instrument that facilitates the emotional development of the human being. Our research aims to demonstrate to what extent the work of the English pediatrician and psychoanalyst Donald Woods Winnicott on the environment, articulated with the poetics of Gaston Bachelard, can enrich the theoretical bases of architecture and interior design. According to Winnicott's psychoanalytic theory, trust in the mother-environment is essential for the baby to feel existing and, later, to inhabit the shared reality. The feeling of trust guarantees the bases so that the child can advance in the psychic process of forming an autonomous self and feel safe to inhabit the shared reality. It is only from this atmosphere of trust that the child can feel able to get in touch with the world and, later, carry out his/her first playful interactions, that is, playing, which in adult life manifests itself in a cultural experience. In the same vein, the French philosopher Gaston Bachelard considers that the house symbolizes security and protection, acting as guardians of our identity. Therefore, the house is an element that guarantees stability, being a product of the very feeling of shelter, comfort, and security.

Keywords: Winnicott, Psychoanalysis, Architecture.


RESUMEN

Através de un diálogo entre la fenomenología, el psicoanálisis y la arquitectura, desarrollaremos un estudio de la casa como un símbolo de confianza y, por lo tanto, como un instrumento de facilitación del proceso de desarrollo emocional del ser humano. Nuestra investigación tiene como objetivo demostrar en qué medida el pensamiento del pediatra y psicoanalista inglés Donald Winnicott sobre el ambiente, en conjunción con la poética de Gaston Bachelard, puede enriquecer la base teórica de la arquitectura y el diseño de interiores. Según la teoría psicoanalítica de Winnicott, la confianza en el entorno materno es fundamental para que el bebé tenga la sensación de existir y, más tarde, habitar la realidad compartida. El sentimiento de confianza garantiza las bases para que el niño pueda avanzar en el proceso psíquico de formar un yo autónomo y sentirse seguro para habitar la realidad compartida. Solo desde este clima de confianza el niño puede sentirse capaz de entrar en contacto con el mundo y, posteriormente, realizar sus primeras interacciones lúdicas, es decir, jugar, que en la vida adulta se manifiesta en la vivencia cultural. En la misma línea, el filósofo francés Gaston Bachelard considera que la casa es un símbolo de seguridad y protección, actuando como guardiana de nuestra identidad. La casa es, por tanto, un elemento que garantiza la estabilidad, siendo producto de la propia sensación de acogida, confort y seguridad.

Palabras-clave: Winnicott, Psicoanálisis, Arquitectura.


 

 

Fenomenologia da casa e a ideia de confiança

Nossa investigação acerca do poder simbólico da casa tem como ponto de partida a fenomenologia de Gaston Bachelard, especialmente o trabalho desenvolvido na obra A poética do espaço (1974). Nesta obra, o filósofo Bachelard aponta o espaço como verdadeiro instrumento de análise para a alma humana. O autor examina as diversas imagens dos espaços recorrentes na literatura: a casa, o porão, o sótão, a cabana, a gaveta, o cofre, o armário, o ninho, a concha e o canto. Trata-se de um estudo fenomenológico que investiga as relações psicológicas presentes na interação do homem com a sua morada. Esta forma narrativa de Bachelard denominou-se topoanálise. Segundo este autor: "A topoanálise seria, então, um estudo psicológico sistemático dos locais de nossa vida íntima" (BACHELARD, 1974, p. 361).

De acordo com essa perspectiva, a casa se compara a um grande berço, remetendo à ideia do aconchego e segurança proporcionados pela mãe na infância. Como expõe Bachelard, "a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz" (BACHELARD, 1974, p. 359). A casa constitui, portanto, um lugar de proteção do homem, que o acompanha por toda a vida. Em A poética do espaço, Bachelard (1974) desenvolve um estudo fenomenológico da casa, a fim de revelar a função original do habitar. De acordo com o autor, o homem habita a sua casa antes de habitar o mundo. Nessa medida, todo espaço realmente habitado traz a essência da noção de casa, que é o nosso primeiro universo. O filósofo francês percebe o enorme poder de integração que a casa tem para os pensamentos, lembranças e os sonhos do homem, postulando que, sem ela, o homem seria um ser disperso. Até a mais modesta habitação, vista intimamente, é bela, pois a casa é o espaço onde somos nós mesmos. Para Bacherlard (1974), o homem só pode ser verdadeiramente homem na medida em que possui um lar, uma casa. Sendo assim, a casa é o elemento que garante establidade ao ser:

Se nos perguntassem qual o benefício mais precioso da casa, diríamos: a casa abriga o devaneio, a casa protege o sonhador, a casa nos permite sonhar em paz (...). Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma. É o primeiro mundo do ser humano. (...) em nossos devaneios, a casa é um grande berço (BACHELARD, 1974, p. 201).

A obra A poética do espaço (1974) pode ser compreendida como uma poética da casa, isto é, do espaço de habitação e morada. O espaço habitado permite o aconchego e a confiança, abrigando o pensamento, a imaginação, enfim, o devaneio. Ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua profundidade. O devaneio tem um privilégio de autovalorização: ele usufrui diretamente de seu ser. Então, os lugares onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo devaneio. Segundo Bachelard, é exatamente porque as lembranças das antigas moradias são revividas como devaneios que as moradias do passado são em nós imperecíveis.

Nessa perspectiva, a casa da infância, a casa da memória, se destaca como a habitação da imaginação, sendo em nós imperecível. Como observa Bachelard, "nosso inconsciente está 'alojado', nossa alma é uma morada e, quando nos lembramos das 'casas', dos 'aposentos', aprendemos a 'morar' em nós mesmos" (BACHELARD, 1974, p. 354). O regresso à casa do passado é, de certa forma, um regresso a si mesmo. Nessa medida, habitar a casa - mesmo que seja através das lembranças - é habitar o ser. A ideia de "morar em nós mesmos" merece ser articulada com a chamada capacidade de estar só, expressão cunhada pelo psicanalista inglês D. W. Winnicott (1958/2007).

Em seus textos, Winnicott (1958/2007) usa esta expressão para referir-se ao período em que a criança está constituindo a confiança para que consiga ficar sozinha na presença da mãe. O paradoxo contido na ideia apresentada deve ser entendido da seguinte forma: cada um conserva sua identidade pessoal sabendo que o outro existe e está por perto. Para Winnicott, a capacidade de estar só "é um dos sinais mais importantes do amadurecimento do desenvolvimento emocional" (WINNICOTT, 1958/2007, p. 31), diferenciando-se tanto do medo quanto do desejo de estar só. É preciso acrescentar que, nos tratamentos psicanalíticos, a capacidade de estar só manifesta-se quando há momentos mais prolongados ou mesmo uma sessão inteira de silêncio. E, como afirma Winnicott, "esse silêncio, longe de ser evidência de resistência, representa uma conquista por parte do paciente" (WINNICOTT, 1958/2007, p. 31).

No texto A capacidade de estar só (1958/2007), o psicanalista inglês descreve três formas de estar só, correspondentes a diferentes graus de maturidade emocional do indivíduo. Num primeiro momento, quando o lactente está ainda na fase de dependência absoluta e, portanto, em fusão emocional com a mãe, ele está, de fato, . Isso porque na fase da dependência absoluta o bebê forma com a mãe uma unidade (o par mãe-bebê), que o protege do mundo externo, permitindo-lhe um espaço onde exista só ele, ou em outras palavras, o par mãe-bebê. Em seguida, com o apoio dos primeiros cuidados, o bebê desenvolve o sentimento de confiança na mãe. Isso é fundamental para que ele possa construir a noção de um self (si mesmo) autônomo. Neste período, a mãe ajuda o bebê a afastar-se dela, permitindo-lhe estar só na presença de alguém. Num terceiro momento, na sequência do processo de desenvolvimento emocional do bebê, a criança inicia uma tarefa que vai se prolongar por toda sua vida, de gerir seu mundo interno. Tendo internalizado os cuidados trazidos pela presença da mãe "suficientemente boa", ele está apto para começar a apreciar os momentos de solidão. Essa capacidade pressupõe a internalização pelo bebê de um ambiente que ofereça uma atmosfera de confiança e previsibilidade (WINNICOTT, 1958/2007).

De acordo com Winnicott, "a base da capacidade de ficar só é um fenômeno sofisticado e tem muitos fatores contribuintes. Está intimamente relacionada com a maturidade emocional". (WINNICOTT, 1958/2007, p. 37) A capacidade para estar só, portanto, depende da vivência do eu sou pela criança, que através do sentimento de confiança desenvolve uma noção de si mesma (self), e aprende a construir um espaço de solidão na presença da mãe. Cabe à mãe ajudar a criança na construção desse espaço de solidão através de um afastamento suficientemente bom. Dessa forma, não pode haver presença demasiada nem afastamento excessivo da mãe, sob pena de se reprimir a capacidade da criança de refletir e raciocinar. Como lembra Santos (1999), é justamente a perda da possibilidade de pensar secretamente que está no fundamento da psicose. Segundo o autor, é contra suas consequências que o delírio se insurge e tenta lutar. Dessa forma, a paralisia do pensamento é uma característica muito comum dos pacientes psicóticos. Essa estagnação tem sua origem na falência precoce da organização de um espaço de intimidade psíquica, que serviria de continente que abrigaria os pensamentos e a própria atividade do pensar.

A constituição de um espaço de solidão depende fundamentalmente da experiência do uso do "objeto transicional". Conforme destaca Abram (2000), Winnicott emprega diferentes termos para referir-se a essa dimensão - terceira área, área intermediária, espaço potencial, local de repouso e localização da experiência cultural. Enfim, o espaço potencial pode ser entendido como uma área de ilusão. Trata-se de um tipo de experiência que não é nem objetiva nem subjetiva, está situada numa zona intermediária entre o mundo externo e o interno, isto é, entre a realidade objetiva e a realidade subjetiva.

A casa sempre integrou o universo imaginário do indivíduo, sendo tema presente nas obras de diversos pensadores. Conforme observa Leroi-Gourhan, "desde o paleolítico superior, a tomada de posse do tempo e do espaço por intermédio de símbolos se traduziu pela criação da casa" (LEROI-GOURHAN, 1977, p. 140). A seguir veremos que a casa da infância pode ser percebida como uma área intermediária de experimentação, entre a realidade interna e a realidade externa. Isso porque, ao mesmo tempo em que é uma realidade concreta e material, a casa é uma realidade mental dotada de poder simbólico, cuja função é ser habitada e vivida pelo indivíduo.

 

Casa e maternagem

O pediatra e psicanalista inglês aborda a estruturação da vida psíquica e o desenvolvimento do self a partir da observação da interação do indivíduo com o ambiente. Este processo tem início nas etapas mais primitivas do desenvolvimento emocional infantil, especificamente em um período de tempo em que o bebê ainda não possui condições de perceber-se como um ser uno nem de estabelecer uma diferença entre os cuidados desempenhados pela mãe, a pessoa da mãe e o ambiente. Desta forma, no vocabulário winnicottiano, mãe (ou o outro que se ocupe dos cuidados necessários para a sobrevivência do bebê), ambiente e cuidados maternos devem ser entendidos como sinônimos.

Se lançarmos mão do que foi dito a respeito do estudo da fenomenologia da casa por Barchelard - em que a casa é vista como nosso canto no mundo, constituindo um espaço de valor singular para o desenvolvimento da subjetividade -, é possível estabelecer uma articulação com o papel de ambiente desempenhado pela mãe postulado por Winnicott. Observe-se que, enquanto a mãe desempenha o papel de ambiente facilitador para o bebê, garantindo-lhe proteção e auxiliando-o em seu processo de reconhecimento gradual da realidade externa através do sentimento de confiança (WINNICOTT, 1958/2007), a casa é o grande berço capaz de proporcionar ao indivíduo aconchego e segurança, constituindo um verdadeiro ninho para o homem. Nessa mesma perspectiva, Freud aponta a casa para moradia como um substituto do útero materno. Confira:

Se remontarmos suficientemente às origens, descobriremos que os primeiros atos de civilização foram a utilização de instrumentos, a obtenção do controle sobre o fogo e a construção de habitações. (...) a casa para moradia constitui um substituto do útero materno, o primeiro alojamento, pelo qual, com toda probabilidade, o homem ainda anseia, e no qual se achava seguro e se sentia à vontade (FREUD, 1929/1994, p. 42).

O valor simbólico da casa decorre, portanto, do seu valor emocional, tendo por função primordial fornecer para o sujeito confiança, acolhimento e abrigo, nutrindo-o e fortalecendo-o emocionalmente para enfrentar os desafios da realidade externa. Desta forma, os bebês, protegidos inicialmente pelo útero materno, após o nascimento recebem o acolhimento do colo da mãe. Essa experiência servirá de ambiente inicial para preparar a criança até que esta possa se estabelecer, futuramente, no mundo. Como afirma Loparic (2007), os bebês moram:

(...) no colo da mãe, do qual o berço é uma extensão não tematizada como tal pelo bebê. Quero dizer: sem esse tipo de mundo, eles não poderiam existir enquanto seres humanos na condição de bebês. Para chegar ao mundo e estabelecer a relação com o ser, o bebê humano precisa de outro ser humano. E para se manter no mundo, na relação com o ser, ele precisa de uma sustentação pelo ambiente, sendo que esse ambiente é essencialmente a mãe (LOPARIC, 2007, p. 25).

Ao vencer essa fase do desenvolvimento, com o auxílio do ambiente facilitador, a criança poderá ter seu primeiro contato com o mundo a partir da casa. Como observa Bachelard (1974), a casa pode ser percebida como um corpo de imagens que se organizam no nosso psiquismo a partir de dois eixos: vertical e horizontal. O eixo vertical permite o movimento de subida e descida, que se dá do sótão para o porão ou do porão para o sótão; já o eixo horizontal, que pressupõe o movimento num eixo central, permite uma consciência de centralidade na habitação, através do sonho e do devaneio, dos lugares preferidos da casa (BACHELARD, 1974). De acordo com Bachelard, "existe para cada um de nós uma casa onírica, uma casa de lembrança-sonho, perdida na sombra de um além do passado verdadeiro" (BACHELARD, 1974, p. 365). A casa onírica consiste numa unidade da imagem e da lembrança, ou seja, numa espécie de misto funcional entre a imaginação e a memória. A casa onírica é, portanto, uma casa criada a partir de nossas lembranças e sonhos. Apesar de não existir mais, pode ser reencontrada e revivida por nós através da lembrança e do devaneio.

Através do devaneio, podemos viver novamente o conforto da casa de infância, que uma vez nos acolheu. Isso porque é no plano do devaneio - e não no plano dos fatos - que a infância permanece viva em nós e poeticamente útil. Através dessa infância permanente mantemos a poesia do passado. Assim, habitar oniricamente a casa natal é mais que habitá-la pela lembrança, é viver na casa desaparecida como nós sonhamos (BACHELARD, 1974).

Vale observar que, na infância, a criança deve ter um lugar especial na casa para habitar. Desta forma, a casa, onde mora a infância, pode ser considerada como a morada da atividade simbólica, já que a partir de sua representação, o sujeito tem a possibilidade de simbolizar seus limites, suas fronteiras com o mundo (FELIPPE, 2010). É preciso destacar que, não apenas a casa e as construções, mas qualquer objeto natural (pedras, animais, flores, fogo, etc) ou abstrato (números, ideias, formas geométricas etc) pode adquirir valor simbólico (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2001). É importante ressaltar que, por intermédio da atribuição de valor simbólico, objetos comuns podem adquirir infinitos significados. Segundo Winnicott (1896-1971/2006), no caso dos bebês, a capacidade para a simbolização é desenvolvida a partir da maternagem suficientemente boa que, através da experiência da mutualidade, auxilia a adaptação bem-sucedida do infante à realidade externa. Para tanto, é preciso que o ambiente se mostre seguro, contínuo e previsível, permitindo a antecipação do comportamento e das consequências de suas ações, pois somente assim será possível despertar no bebê o sentimento de conforto e de confiança. A mãe, de fato, comunica-se com o bebê quando diz: "sou confiável, pois sei do que você está precisando; além disso, me preocupo e quero providenciar o que você deseja" (WINNICOTT, 1896-1971/2006, p. 87). Esta comunicação é silenciosa, o bebê não a escuta, mas pode sentir seus efeitos. A consequência disto é o estabelecimento da confiança no ambiente.

O início de capacidade para simbolizar depende, portanto, da atuação de uma mãe suficientemente boa que auxilie a criança no processo de reconhecimento da realidade externa. Conforme explica Winnicott, quando o simbolismo é empregado, o bebê já está claramente distinguindo entre fantasia e fato, entre objetos internos e objetos externos, entre criatividade primária e percepção (WINNICOTT, 1955/2000). A origem do processo de constituição dos símbolos está no objeto transicional que é, na verdade, o primeiro símbolo encontrado-criado pelo bebê, sendo o primeiro elemento visível da sua passagem do mundo subjetivo para mundo objetivo. Nas palavras de Winnicott:

É verdade que a ponta do cobertor (ou o que quer que seja) é simbólica de algum objeto parcial, tal como o seio. No entanto, o importante não é tanto seu valor simbólico, mas sua realidade. O fato de ele não ser o seio (ou a mãe), embora real, é tão importante quanto o fato de representar o seio (ou a mãe) (WINNICOTT, 1955/2000, p. 19).

O valor que o objeto transicional tem para o bebê advém do fato de este ser um símbolo da mãe. Esta é a razão pela qual o objeto transicional só pode manter seu valor como símbolo na medida em que a mãe encontra-se presente, seja de forma física ou apenas na mente do bebê. Se a ideia da mãe desaparece - o que pode ocorrer no caso de sua ausência por um período maior do que ele é capaz de tolerar - o objeto transicional perde sua função simbólica, e o seu valor, se descaracterizando como tal. Nunca é demais ressaltar que o objeto transicional simboliza a mãe, atuando como um substituto dela, mas seu valor vai além. Winnicott destaca que o valor desse objeto está no fato de ele ser criado pela criança e possuir, ao mesmo tempo, realidade material.

No início das experiências transicionais, o bebê não consegue distinguir o que é externo do que é inerente a si próprio, ou seja, não pode diferenciar o que é criado por ele do que é encontrado, razão pela qual tem a impressão de ter criado, ilusoriamente, o seio provedor de alimento, experimentando a onipotência. A vivência da experiência da ilusão de onipotência é justamente o que dará ao bebê oportunidade de criar. Isso ocorre inicialmente quando o bebê acredita estar criando o seio provedor:

Felizmente o bebê não precisa de um padrão de comportamento muito rígido. Se tudo vai bem, o bebê estará pronto para descobrir o mamilo, e isso em si mesmo é um tremendo acontecimento, independente do ato de mamar. É muito importante do ponto de vista teórico que o bebê crie este objeto, e o que a mãe faz é colocar o mamilo exatamente ali e no momento certo para que seja o seu mamilo que o bebê venha a criar (WINNICOTT, 1988/1990, p. 123).

É possível observar que a sensação de onipotência faz com que o bebê acredite que é capaz de criar com sua imaginação tudo o que precisa. Essa vivência está intimamente relacionada à capacidade para a criatividade. A experiência de criação do objeto transicional, constituindo a gênese da capacidade de simbolizar, encontra um paralelo na vida adulta, onde o indivíduo continua a exercer o poder de criação simbólica, agora através da vida cultural. Conforme destaca Winnicott, "o lugar em que a experiência cultural se localiza está no espaço potencial existente entre o indivíduo e o meio" (WINNICOTT, 1967/1975, p. 139). A experiência cultural pode ser vista, portanto, como uma espécie de prolongamento dos fenômenos transicionais vividos na infância. Assim, o espaço potencial, onde são criados os objetos transicionais, permanece vivo na experiência cultural criativa da vida adulta. Nessa medida, o espaço potencial se revela como um campo de treinamento para voos cada vez mais altos, alcançados pelo poder criativo que se alimenta tanto da subjetividade do mundo interno quanto da realidade externa, com as oportunidades e desafios que ela oferece.

A família é o primeiro cenário da vida social de uma criança, devendo ser vivenciado como um espaço de segurança e suporte, um ambiente protegido onde esta possa desenvolver a confiança necessária para experimentar sua própria imaginação e agir. No contexto desse convívio com a família, a casa da infância em Bachelard (1974) estabelece justamente a passagem entre o mundo interno e o mundo externo, podendo ser vista como um ninho do homem, que na visão do autor desencadeia em nós o devaneio da segurança. De acordo com Bachelard:

Ao contemplarmos o ninho, estamos na origem de uma confiança no mundo, recebemos um mínimo de confiança, um apelo à confiança cósmica. O pássaro construiria seu ninho se não possuísse seu instinto de confiança no mundo? Se escutamos esse apelo, se fazemos desse abrigo precário que é o ninho - paradoxalmente sem dúvida, mas sob o impulso mesmo da imaginação - um refúgio absoluto, voltaremos às origens da casa onírica (BACHELARD, 1974, p. 264).

Nossa casa, compreendida em seu poder onírico, representa uma espécie de ninho neste mundo. Nela vivemos com confiança e, em nossos sonhos e devaneios, revivemos a segurança de nossa primeira morada. De acordo com Bachelard (1974), para viver esse sentimento de confiança, não temos necessidade de enumerar as razões materiais da confiança. Tanto o ninho quanto a casa onírica não conhecem a hostilidade do mundo. Ora, as experiências da hostilidade do mundo são mais tardias. No seu germe, toda a vida é bem-estar. O ser começa pelo bem-estar. Nas palavras de Bachelard: "o ninho do homem, o mundo do homem, nunca termina. E a imaginação nos ajuda a continuá-lo" (1974, p. 264).

 

Considerações finais: a casa como símbolo de confiança

Na visão winnicottiana, a confiança na mãe-ambiente é algo fundamental para que o bebê possa adquirir o sentimento de existir e, posteriormente, habitar a realidade compartilhada. O ambiente confiável para a criança é aquele permeado pelo fator previsibilidade e continuidade. É a partir daí que a criança poderá avançar no processo de formação de um self autônomo e sentir-se segura para habitar a realidade compartilhada. Nessa perspectiva, podemos dizer que é preciso confiar para habitar. Gradualmente, na medida em que evolui o processo de formação de um self autônomo, sob a atmosfera da confiança, a criança se sente segura para entrar em contato com o mundo e, posteriormente, realizar suas primeiras interações lúdicas, isto é, o brincar, que na vida adulta se manifesta na experiência cultural.

De acordo com Bachelard (1974), a casa é vista como nosso ponto de referência no mundo, como símbolo de segurança e proteção, bem como guardiã da nossa própria identidade. A obra A poética do espaço (1974) pode ser compreendida como uma poética da casa, isto é, do espaço de habitação e morada. A casa é, nessa perspectiva, o espaço que permite o aconchego e a confiança, abrigando a imaginação e o devaneio. Como observa Bachelard, "nosso inconsciente está 'alojado', nossa alma é uma morada e, quando nos lembramos das 'casas', dos 'aposentos', aprendemos a 'morar' em nós mesmos" (BACHELARD, 1974, p. 354).

Habitar a casa - mesmo que através das lembranças - é habitar o próprio ser. Nessa perspectiva, a ideia de "morar em nós mesmos" é articulada com a chamada capacidade de estar só, expressão cunhada pelo psicanalista inglês D. W. Winnicott (1958/2007). À medida que o self se constrói e o indivíduo se torna capaz de cuidar de si mesmo, a integração se transforma num estado cada vez mais con-fiável, sendo, a partir desse sentimento de confiança, que o indivíduo pode atravessar a fase da dependência relativa rumo à independência. À medida que o desenvolvimento emocional progride, o indivíduo não se torna isolado, mas passa a se relacionar com o ambiente. Podemos dizer que o indivíduo e o ambiente se tornam interdependentes.

De posse de tais reflexões, é possível considerar, a partir da teoria winnicottiana, a casa como um espaço potencial, como um berço de experiências transicionais que pode proporcionar o sentimento de confiança, tornando-se para o morador um ambiente facilitador dos seus processos de amadurecimento emocional e experiências culturais, que permitem o viver criativo. Sendo assim, o processo de construção da casa conduz à criação de um espaço de habitação para o sujeito, isto é, a criação de um lugar ao qual que ele pertence e que lhe proporcione conforto.

A ideia de uma interdependência entre indivíduo e ambiente, desenvolvida ao longo da teoria winnicottiana, pode ser articulada com a poética de Bachelard (1974). A casa concebida por Bachelard como um grande berço - aconchegante e seguro - pode ser comparada à descrição, efetuada por Winnicott, dos cuidados proporcionados pela mãe na infância: enquanto a mãe desempenha o papel de ambiente facilitador para o bebê, auxiliando-o em seu processo de reconhecimento gradual da realidade externa através do sentimento de confiança, a casa pode ser entendida como um ambiente capaz de proporcionar ao indivíduo segurança, constituindo um verdadeiro ninho para o homem. O valor simbólico da casa decorre, portanto, do seu valor emocional, tendo por função primordial fornecer para o sujeito confiança, acolhimento e abrigo, nutrindo-o e fortalecendo-o emocionalmente para enfrentar os desafios da realidade externa.

Para finalizar, é importante registrar que no Dicionário da língua portuguesa contemporânea, Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Academia das Ciências de Lisboa (2001) o termo conforto deriva do latim confortare e significa restituir o vigor e a energia às forças físicas, tornar forte, fortalecer, revigorar. Nessa perspectiva, podemos dizer que quando se projeta uma casa, o que se busca proporcionar é justamente um ambiente com o qual o sujeito se identifique e que possa ajudar no revigoramento, fortalecimento e recuperação das energias. Só dessa forma o ambiente poderá proporcionar o sentimento de confiança, que conduzirá à sensação de identidade, sintonia, segurança e integração.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 02/03/2021
Aprovado para publicação em: 26/06/2021

Endereço para correspondência
Maria Teresa de Oliveira Saldanha
E-mail: mariateresasaldanha@globo.com
Perla Klautau
E-mail: pklautau@uol.com.br

 

 

*Doutoranda em Psicanálise, Saúde e Sociedade pela Universidade Veiga de Almeida (UVA). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
**Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Professora Doutora da Universidade Veiga de Almeida (UVA). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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