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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.44 Rio de Jeneiro Jan./June 2021

 

ARTIGOS

 

Rabiscando as linhas de um estudo sobre o prazer na obra de D. W. Winnicott

 

Scribbling the lines of a study on pleasure in the work of D. W. Winnicott

 

 

Stephanie Brum*

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A questão do prazer apresenta importância basal ao longo do desenvolvimento da teoria psicanalítica. Ao adentrarmos no estudo das relações de objeto, nos questionamos se seria possível trabalhar uma vertente prazerosa da experiência na qual o movimento de descarga não precise necessariamente estar presente. A partir da obra de Winnicott proponho pensarmos uma modalidade de prazer que pode ser vivida justamente diante dos estados calmos e do campo da experiência que se abre na ausência de grande elevação de tensão. O presente artigo objetiva abordar o conceito de um prazer da experiência, a partir do qual podemos repensar alguns pontos importantes da constituição subjetiva e dinâmica psíquica.

Palavras-chave: Prazer, Espaço potencial, Brincar, Comunicação, Encontro.


ABSTRACT

The issue of pleasure is of fundamental importance throughout the development of psychoanalytic theory. As we enter the study of object relations, we ask ourselves whether it would be possible to work on a pleasurable aspect of the experience in which the discharge movement has not necessarily to be present. Based on Winnicott's work, I propose to think of a modality of pleasure that can be experienced precisely in the face of calm states and the field of experience that opens up in the absence of a great increase in tension. This article aims to approach the concept of a pleasure of experience, from which we can rethink some important points of the subjective constitution and psychic dynamics.

Keywords: Pleasure, Potential space, Play, Communication, Meeting.


 

 

Introdução

A dinâmica do prazer recebe grande destaque desde os primórdios da psicanálise. Apesar dos acréscimos e modificações presentes na história elaborativa da teoria psicanalítica, o conceito de prazer tende a se manter atrelado a uma vertente metapsicológica sobre a qual se pauta a própria construção da ideia de um aparelho psíquico - ponto que não discutiremos aqui. Com isso, tanto nos escritos freudianos quanto nos de seus colaboradores que mantêm suas considerações referidas à tríade metapsicológica - economia, topologia e dinâmica - a dinâmica do prazer tende a seguir seus caminhos e perlaborações atrelada a uma economia psíquica, a partir da qual seriam os movimentos de excitação e descarga os responsáveis por um direcionamento do aparelho. Contudo, esta organização tão bem formulada, não tem se mostrado suficiente frente a casos que nos demandam um olhar para além da vertente metapsicológica - na qual as exigências pulsionais se apresentam de forma marcante e a questão do conflito psíquico surge como ponto central. Nesse sentido, direcionarei nossas discussões às considerações de D. W. Winnicott, a fim de propor uma modalidade outra de prazer que emerge de um panorama relacional.

A teoria winnicottiana é marcada pela experiência clínica do autor como pediatra, realizando atendimentos com bebês - ou crianças pequenas - e suas mães, assim como de crianças e jovens que viveram situações de privação - como aquelas inerentes aos eventos que marcaram a Segunda Guerra Mundial. Tendo por base autores já conceituados no campo psicanalítico, como o próprio Freud, Melanie Klein e interlocutores como Lacan e Balint, Winnicott desenvolve uma linguagem que lhe é particular, se dedicando ao estudo do amadurecimento psíquico inserido em um panorama relacional. Neste contexto, o autor enseja um pensamento original em um momento particularmente delicado na Sociedade Psicanalítica Britânica. Aqui nos referimos à cisão da Sociedade Britânica de Psicanálise em dois grandes grupos: os Annafreudianos e os kleinianos. Winnicott, por sua vez, pertencia ao chamado Middle Group, um grupo de psicanalistas que se dizia independente da grande rivalidade entre os dois principais. Abrindo mão de uma linguagem metapsicológica estabelecida pela psicanálise freudiana, Winnicott propõe as linhas de um desenvolvimento emocional primitivo, em decorrência do qual o indivíduo passaria de um estado de "não existência" inicial à constituição de um self capaz não apenas de se distinguir do mundo à sua volta, mas também de se relacionar com este. A promoção de um estudo sobre o prazer a partir desta perspectiva suscita a ampliação do campo psicanalítico, trazendo à tona um aprofundamento das problemáticas referentes à constituição do indivíduo e reconhecimento de formas de adoecimento psíquico não apenas referidas a conflitos sexuais inconscientes, mas também à fragilidade e incerteza a que a própria dimensão da existência se encontra referida.

Toda essa mudança de perspectiva nos coloca diante de um olhar sobre os processos de constituição subjetiva a partir da afetividade, do vínculo, e de uma expressão sensorial capaz de promover concomitantemente a integração (do próprio sujeito), diferenciação (do infante com relação ao mundo) e a relação (do indivíduo com uma realidade compartilhada). É justamente nesta mudança de foco que observamos a possibilidade de estruturação de um prazer da experiência, remetido a uma potencialidade e direcionamento do indivíduo à vida. Um prazer que se expressa por meio do encontro/construção de algo próprio, estando assim referido ao existir e ao se sentir real. Proponho trabalharmos sobre uma forma de prazer que se apresenta em decorrência da capacidade de expressão de uma potencialidade de ser e de uma manifestação criativa no encontro do indivíduo com o mundo.

É importante notar que, para Winnicott, os momentos primordiais da vida devem estar imersos em um terreno de tranquilidade, previsibilidade, estabilidade e continuidade, os quais são proporcionados ao infante por um meio bem adaptado através do holding e do handling1 que permitem a construção de um self, assim como a consolidação do sentimento de ser/de existir. Logo, os estados de tranquilidade apresentam uma função de pano de fundo fundamental sobre o qual a continuidade do ser pode ser adquirida, por meio da confiabilidade dos cuidados promovidos pelo meio. O lugar de positividade atribuído por Winnicott aos estados de tranquilidade permite ampliar os apontamentos sobre o prazer. Isso se deve ao fato de que, embora em sua obra o prazer não seja desvinculado da ideia de sexualidade e tampouco de um movimento de descarga, são apresentadas modalidades outras da experiência, próprias aos estados de tranquilidade - vinculadas à expressão do verdadeiro self2 -, nas quais reconheço a incidência de funções análogas à categoria de prazer.

Neste contexto o sentimento de existência, o ser, é resultado de uma série de processos e aquisições que acarretarão a capacidade de agir, recebendo assim im portância particular no que tange à modalidade do prazer que proponho explorar. Vale destacar que, para Winnicott, dois caminhos são possíveis: o ser ou a aniquilação (WINNICOTT, 1960/2007). Enquanto o ser é alcançado por meio da experiência de continuidade proporcionada por um ambiente bem adaptado, o sentimento de aniquilação, por outro lado, se dá em decorrência da impossibilidade de agir criativamente, fazendo com que o indivíduo se expresse de maneira reativa diante de um meio hostil. Nesse sentido, a vida para Winnicott está relacionada à possibilidade de ser e esta, por sua vez, diz respeito à capacidade de alcançar uma posição criativa e de se expressar espontaneamente.

Em síntese, na teoria winnicottiana o que está em jogo não se restringe às formas pelas quais o sentimento de existência pode ser alcançado, mas a como tal sentimento se expressa através de produção criativa. É justamente nestas formas de expressão criativa, capazes de proporcionar uma relação entre o verdadeiro self e a realidade compartilhada, mantendo um sentimento de integração e diferenciação do indivíduo, que identifico o prazer da experiência que se ergue sobre o terreno dos estados de tranquilidade. Tendo isso em vista, somos levados a concordar com a afirmação de Lejarraga (2015) segundo a qual "Winnicott (...) amplia a ideia do prazeroso, apontando para formas de prazer que não podem ser reduzidas ao prazer instintivo sexual" (p. 47).

 

Uma modalidade de prazer expressa na relação

Ao nos dedicarmos aos períodos iniciais do desenvolvimento emocional do indivíduo, bem como às falhas provenientes deste momento primordial da constituição da existência, percebemos que as aquisições aqui alcançadas advêm de processos entrelaçados e interligados. Seguindo por essa via não seria estranho pensar que, ao trabalhar com uma analogia ao prazer a partir da obra de Winnicott também nos víssemos diante de tal característica.

De acordo com o proposto por Winnicott, inicialmente o infante se encontraria em um estado de não integração diante do qual o cuidador suficientemente adaptado é capaz de promover sustentação adequada e apaziguar o bebê. Na saúde, é em decorrência deste encontro entre duas figuras - as quais o infante ainda não é capaz de reconhecer como duas peças que compõem a amálgama inicial mãe-bebê - que as necessidades físicas e psíquicas do bebê podem ser supridas de maneira satisfatória. Inserida nessa dinâmica, a mãe (ou quem quer que venha a substituí-la como figura de cuidado adaptada ao infante) está preparada para oferecer ao bebê o que ele necessita dentro de um tempo que não torne a experiência traumática. Esta oferta de cuidado possibilita a instauração de um estado de ilusão no qual tanto a realidade interna quanto a externa seriam "(...) uma e a mesma (...)" (OGDEN, 1985/2013, p. 49) permitindo também que a experiência de contato com o mundo se dê de modo tranquilo e protegido por uma teia de confiabilidade. É a superposição do anseio do bebê com a oferta, por parte de sua figura de cuidado, de um objeto capaz de saciá-lo, o que permite que o infante tenha a ilusão de ter criado o objeto. A partir do entrelaçamento das duas vertentes da agressividade primária3 em um desenvolvimento suficientemente bom, a potencialidade singular do lactente é estimulada, permitindo que os movimentos agressivos iniciais deem origem ao reconhecimento do mundo como algo distinto de si.

A esse respeito, Winnicott confere lugar de destaque às necessidades egoicas. Estas não dizem respeito a um tipo de necessidade de caráter orgânico ou instintivo. Em vez disso, tais necessidades podem ser satisfeitas a partir de um cuidado dotado de intimidade, no qual o infante pode ser envolvido pelo colo materno, sentindo os batimentos cardíacos da mãe, seu tom de voz e ritmo próprio. Este encontro promove uma forma de comunicação a partir da qual uma tônica particular se inscreve. Vemo-nos diante da composição tanto do vir a ser do infante, a partir do reconhecimento de suas formas de expressão próprias, quanto o gradual reconhecimento de um colorido particular trazido à cena por algo que é próprio do cuidador em questão. Tal ponto nos coloca diante de uma vertente comunicativa do cuidado e constituição subjetiva presente mesmo antes que uma completa diferenciação entre o infante e o mundo possa ser alcançada.

Roussillon (2004) denomina esta forma de comunicação mais primitiva e fundamental, que condiciona o próprio investimento libidinal ao corpo do infante de partage esthésique [compartilhamento estésico]. Segundo o autor, esta forma de comunicação pode ser observada a partir de uma coreografia ajustada e recíproca entre a mãe e seu bebê. Uma forma de comunicação gestual e corporal que, ao mesmo tempo em que busca, encontra, aproxima e comunica, também marca a distinção entre um e outro. Uma distinção que se enuncia desde muito cedo, mesmo no terreno da dependência absoluta, a partir das nuances próprias da relação que se estabelece. O processo de partage esthésique se configura como uma exploração primitiva das sensações corporais e das primeiras formas de afeto. Deste modo, a expressão corporal do sujeito é atravessada pelo reflexo apresentado pelo outro em um jogo de investimento espelhado mútuo. Neste ponto Roussillon (2004) traz à tona a função de espelhamento realizada por um double [duplo], que deve ser uma figura distinta do infante, capaz de reconhecer-lhe em sua particularidade, ingressando em um jogo de ajustamento dual próprio para lhe conferir identidade. E nesse sentido, tendo em vista a importância deste interjogo do bebê com sua mãe que se expressa para além de uma comunicação situada em um terreno de excitações, mas tendo como principal marca o cuidado constante e seguro possível a partir dos estados de tranquilidade, o infante torna-se capaz de gradativamente alcançar o estatuto de ser.

Tais considerações nos colocam diante de uma diferença notória entre duas modalidades distintas de demanda, cada qual possuindo e apresentando sua importância particular no processo de constituição subjetiva. Aqui me refiro às necessidades egoicas e aos instintos sexuais. Lejarraga (2015) acentua as diferenças entre as necessidades egoicas e os instintos sexuais, marcando que as primeiras não podem ser reduzidas às segundas. Enquanto as necessidades egoicas precisam de objetos (ambiente) constantes e dotados de previsibilidade, os objetos da pulsão são variáveis e contingentes. Além disso, as necessidades egoicas devem ser satisfeitas, caso contrário o indivíduo poderá sofrer graves danos em seu processo de desenvolvimento, ao passo que as pulsões jamais poderão ser plenamente satisfeitas. Devido a esse papel fundamental que as necessidades do Eu adquirem no processo de constituição do indivíduo, Winnicott confere a elas relevância maior do que a própria satisfação instintual nos momentos iniciais do desenvolvimento emocional. Tal consideração coloca os estados de tranquilidade em lugar de destaque, uma vez que, nestes, ocorrem processos basais na constituição do verdadeiro self, garantindo um fundo de segurança e tranquilidade sobre o qual as experiências instintivas podem agir. No que tange a nossa temática central, reconhecemos nesta distinção o cerne de nossa problemática. Enquanto o prazer proposto por Freud se encontra referido às pulsões sexuais e a descarga promovida pela satisfação destas, a modalidade de prazer que proponho se encontra referida justamente à possibilidade de expressão e reconhecimento de um verdadeiro self que emerge em decorrência de um ambiente capaz de suprir as necessidades egoicas.

É devido aos processos próprios do desenvolvimento e à satisfação das necessidades egoicas que se dão a integração e constituição de um self delimitado. Winnicott (1945/2000) aponta que o processo de integração da personalidade está em constante desenvolvimento e poderá sempre regredir a um estágio anterior, no qual o indivíduo pode se deparar com um sentimento de não integração. O infante passaria, neste caso, por momentos distintos, nos quais este bebê não seria o mesmo, uma vez que não possuiria ainda uma continuidade de existência. Da mesma forma, o infante não reconheceria como os mesmos o objeto que o acalenta e o objeto a quem visa devorar (WINNICOTT, 1945/2000). Essa diferenciação se dá a partir da consideração de dois estados distintos, os tranquilos e os excitados.

A não integração inicial e a variação proveniente da oscilação entre estados de tranquilidade e excitação trazem à tona a importância que a ideia de intervalo adquire na obra de Winnicott. Dito de outra forma, da não integração inicial advém o intervalo entre uma necessidade e outra, a partir do qual surgem os estados de tranquilidade. Um intervalo entre uma experiência de excitação vivida na unidade dual primária e a tranquilidade proporcionada pela sustentação, limitação e continência do outro acalentador que, no início, não é percebido como diferenciado do infante. Ou seja, é nesse intervalo que a experiência do bebê pode se constituir como tal, dotada de uma temporalidade capaz de proporcionar sua integração nesses dois diferentes estados (excitação e tranquilidade). Neste contexto, somos levados a afirmar que é no espaço entre a calmaria dos estados de tranquilidade e os estados de excitação que o self ao mesmo tempo em que constrói, descobre o objeto, podendo encontrar certa integração.

É pensando justamente na passagem de um estado no qual o infante não se reconhece em sua integração e continuidade de existência, a uma gradual distinção e delimitação de si como indivíduo inserido em uma realidade compartilhada, que Winnicott propõe a ideia de espaço potencial. Ele afirma que, ao alcançarmos um status unitário se ergue uma barreira que divide exterior e interior, cada qual com uma realidade própria. Contudo, o autor é categórico em apresentar um lugar, fora do tempo e do espaço, no qual estes dois mundos podem interagir e até se misturar em certa medida, sem que o indivíduo se perca nesta relação, ou seja, a existência de "(...) uma área intermediária da experimentação, para a qual contribuem tanto a realidade interna quanto a vida externa" (WINNICOTT, 1953/1975, p. 12, grifo do autor). É desse espaço potencial, também referido como uma terceira área de experiência, que emerge o prazer do brincar (WINNICOTT, 1994). Além disso, é em decorrência da possibilidade de continuidade de existência, garantida pela sustentação e continência do infante nos estados de tranquilidade, que o indivíduo é capaz de suportar a alternância entre os estados de menor e maior integração. Ele consegue, assim, usufruir da terceira área da experiência de maneira criativa nos momentos de não excitação, na medida em que se torna capaz de criar algo de si a partir da junção entre algo que lhe é próprio e o mundo.

É no espaço potencial - ao qual o sujeito é capaz de recorrer a qualquer momento ao longo da vida - que as barreiras entre Eu e não-Eu se dissolvem. Este movimento abre caminho para que o lactente projete algo próprio no contato com o mundo, conferindo a este espaço a característica de intermediário entre o interno e o externo, entre o subjetivamente concebido e o objetivamente percebido (WINNICOTT, 1953/1975). Graças às características particulares dessa terceira área da experiência, se torna possível reviver um estágio de não integração anterior sem perder a já adquirida continuidade da existência. Desta forma, é a integração que permite o sentimento de continuidade, alcançado em decorrência dessa comunhão de espaços entre e, consequentemente, a possibilidade de usufruir desta terceira área da experiência sem perder de vista a própria dimensão de si. É também nesse intervalo, que configura o espaço potencial, que o indivíduo pode começar a, gradativamente, ingressar na relação com os objetos e fenômenos transicionais (WINNICOTT, 1951/2000). Vale lembrar que estes se apresentam como a primeira posse não-Eu do infante, da qual, no entanto, ele não se vê ainda completamente diferenciado.

Após atravessar a experiência de ilusão e, ademais, saindo de uma dependência absoluta com um sentimento de confiança no ambiente, o infante é capaz de fazer uso de seu objeto transicional (WINNICOTT, 1953/1975). Este objeto - que é ao mesmo tempo Eu e não-Eu - representa a maternagem suficientemente boa na ausência da mãe, além da capacidade do bebê de criar o que necessita (ABRAM, 1996/2000). O objeto transicional é capaz de ser amado e também de resistir aos ataques da criança, tornando possível a atuação do bebê com a mãe-ambiente dos estados tranquilos e a mãe-objeto dos estados excitados. Deste modo, a criança se torna capaz não apenas de distinguir Eu e não-Eu, mas também de viver na terceira área da experiência, que possibilita que o interior e o exterior sejam interligados apesar de sua reconhecida separação. Diante disso considero possível pensarmos o espaço potencial como um lugar fora do tempo e do espaço que ao mesmo tempo em que expressa uma capacidade de separação em relação ao ambiente, também torna possível maior vinculação com este, a partir do reconhecimento de sua mútua relação de independência relativa.

Devido à possibilidade de habitar esse espaço - no qual é possível experienciar algo que não é nem unicamente seu, nem apenas do outro, mas que se encontra nesse intervalo no qual a relação se constrói -, para Winnicott, o contato com a realidade não se apresenta como fonte de frustrações, mas sim como algo prazeroso. Mais especificamente, o espaço potencial é aquilo a partir do qual se dá não apenas a construção de seu existir particular, mas também a expressão e reconhecimento de um existir no mundo. Logo, o sentimento de continuidade da existência, que também põe em jogo o estatuto da experiência ao conferir ao indivíduo a posse de seu próprio agir e relacionar-se com o mundo; é algo particular do espaço potencial. É justamente diante da capacidade de experienciar algo de si em conformidade com o mundo, em um intervalo no qual as barreiras entre indivíduo e ambiente não precisam ser tão bem definidas, que surge a possibilidade de criação de algo singular de maneira criativa em conformidade e inserido no mundo. É nesse contexto que a terceira área da experiência traz consigo as questões do brincar e do viver criativo, permitindo que, ao ingressar no terreno dos fenômenos transicionais, possamos reconhecer como se dá de fato a experimentação desta área que culminará no interjogo dos fenômenos culturais (WINNICOTT, 1967/1975).

 

O brincar e o papel da criatividade

Um dos temas centrais ao voltarmos nossa atenção para a apreensão do espaço potencial se concentra na questão do brincar e do viver criativo. Partindo da ideia de criatividade, temos que, para Winnicott, esta seria definida como "(...) um colorido de toda a atitude com relação à realidade externa" (WINNICOTT, 1971a/1975, p. 108). A criatividade ganha importância ímpar no texto winnicottiano, se referindo a uma expressão própria do verdadeiro self que permite que o indivíduo usufrua de uma capacidade de apreensão particular do encontro com o outro em meio a sua experienciação do mundo no qual se encontra inserido. Nesse sentido, é justamente a possibilidade criativa que garante a apropriação da experiência e o sentimento de que a vida vale a pena ser vivida. Deste modo, criatividade é sinônimo de saúde psíquica, referindo-se assim a uma expressão do estar vivo.

Visto isso, direciono nossos estudos ao entendimento de que o potencial criativo está presente desde os primórdios da vida do sujeito, sendo garantido por um ambiente que recebe as expressões do infante de forma adaptada, não se configurando nem como um ambiente ausente nos cuidados, nem como invasivo. Logo, devemos reconhecer que a criatividade originalmente se expressa através da apercepção criativa, que seria justamente "(...) a experiência subjetiva que o bebê tem da mãe e do ambiente desde o início." (ABRAM, 1996/2000, p. 243), o que garante a aproximação entre o que é vivido e o colorido pessoal que aos poucos vai sendo adicionado à experiência. Nesse sentido, "É a partir do sentimento de haver criado o mundo que se estabelece tudo aquilo que é verdadeiramente importante." (ABRAM, 1996/2000, p. 89).

Contudo, um ambiente adaptado nem sempre está disponível para o infante. Neste caso, o sentimento oposto - de inutilidade diante do mundo não adaptado - provoca a sensação de que nada importa, pois de fato não é possível se reconhecer em seu viver. Sem a expressão de criatividade, a experiência não é apropriada pelo sujeito, o mundo se torna cinzento e o indivíduo não sente que coisas boas podem vir de sua relação com o ambiente. Tudo o que poderíamos reconhecer como vitalidade do self passa a ser protegido dos avanços do ambiente hostil em um núcleo que também o isola, podendo não permitir o reconhecimento da própria realidade como tal.

Para Winnicott, para além de uma ideia de saúde referida a ausência de expressões sintomáticas, esta se encontra muito mais vinculada à possibilidade de expressão verdadeira, espontânea e criativa do sujeito. Ou seja, o autor atribui grande ênfase a sua ideia de saúde psíquica à consolidação de um self capaz de conferir ao indivíduo o sentimento de ser e a continuidade de sua existência. Essa concepção contrasta com os reconhecidos casos difíceis nos quais seria justamente esta dimensão do existir que se encontraria fragilizada. Do mesmo modo, ao nos dedicarmos a um estudo da categoria de prazer a partir do arcabouço teórico proposto por Winnicott, reconhecemos o prazer como derivado desta capacidade de ser, em sua própria continuidade e possibilidade de inserção no mundo compartilhado, sem que o sentimento de si seja perdido ou ameaçado. Essa vivência prazerosa se dá na medida em que o indivíduo pode se apropriar do vivido, conferindo-lhe um colorido pessoal que garante que este seja reconhecido como uma experiência própria e singular. Tal ponto nos leva e tecer aproximações entre a ideia winnicottiana de criatividade e a questão do tédio.

Adam Philips (1993/1996) apresenta a importância dos estados intervalares também sob a perspectiva dos momentos de tédio. Nesse sentido, os estados de tédio se apresentam como um estado de expectativa suspensa, no qual embora algo seja iniciado, nada se propaga. Este estado desencadeia a vontade paradoxal por um desejo. Este paradoxo se inscreve na medida em que temos a aproximação de um estado intervalar - de pausa/expectativa - com aquele que se apresenta como um dos grandes promotores de movimento no mundo interno dos indivíduos4. Ao mesmo tempo, é justamente a partir do estado de expectativa criado pelo intervalo do tédio que, ao ser suportado, possibilita que o indivíduo se depare com seu próprio conteúdo interno. A chance de o indivíduo saciar sua própria vontade de expectativa, ou seja, saciar uma demanda que não é proveniente do outro, o lança diante da oportunidade de dar corpo a um movimento criativo, gerando assim o estado de desejo seguinte. Desta forma, o tédio nos lança diante da consideração de um sujeito que, na saúde, é capaz de viver de forma ativa seguindo as linhas de seu verdadeiro self e produzindo seus próprios estados de desejo. Vale destacar que ao relacionar o tédio a um movimento intervalar entre um estado de expectativa e o seguinte, este é aproximado da variação inerente aos estados calmos e excitados cuja integração e continuidade de existência corroboram tanto para o processo de integração geral do indivíduo quanto para a historicização de seu viver. Este movimento torna possível a construção de uma modalidade de vida da qual o indivíduo é capaz de se apropriar e reconhecer como própria. Deste modo, temos que, assim como o tédio, a criatividade conduz o sujeito ao momento presente, o instante em que a vida é vivida, garantindo, com sua apropriação, o que podemos reconhecer como a sensação de bem-estar própria dos estados não excitados. Nesse sentido, o viver criativo se enuncia paradoxalmente como causa e consequência do verdadeiro self, na medida em que se apresenta concomitantemente como forma de expressão do verdadeiro self a cada gesto e também garante a consolidação e reconhecimento deste. "O indivíduo capaz de espontaneidade, portanto, vive criativamente." (ABRAM, 1996/2000, p. 64).

Tal argumentação permite afirmar que a criatividade se encontra referida ao intervalo do espaço potencial, no qual se inscrevem os fenômenos transicionais e a experiência do brincar. De acordo com Winnicott, o brincar é uma experiência criativa, capaz de garantir uma continuidade no tempo e no espaço, configurando- se como uma forma básica do viver (WINNICOTT, 1971/1975).

O brincar foi destacado por Winnicott como uma das principais atividades no que tange à saúde psíquica. Tal ponderação confere ao brincar winnicottiano importância terapêutica até então não destacada. Enquanto outros autores trabalham com o brincar como uma forma de acessar as fantasias inconscientes da criança, para Winnicott o brincar é terapêutico em si (WINNICOTT, 1968/1975). Isso não significa dizer que o brincar não possa ser utilizado como forma de acesso ao inconsciente, muito pelo contrário; Winnicott também defende a presença de uma faceta reveladora do conteúdo continuamente encoberto através do brincar. Entretanto, não é seu objetivo interpretar o conteúdo, mas fornecer um ambiente no qual este possa ser experienciado e comunicado, favorecendo a criatividade do indivíduo. Ou seja, no lugar de privilegiar o conteúdo trazido na brincadeira, o autor confere grande importância à experiência do brincar em si mesma. No entanto afirma que quando o paciente não é capaz de brincar, o papel da psicoterapia é justamente fornecer um ambiente no qual se torne possível o desenvolvimento desta habilidade natural.

É através do brincar que é possível realizar um interjogo de interno e externo, o que possibilita que o paciente usufrua da terceira área da experiência de maneira criativa. Nesse sentido, o brincar se caracteriza pela possibilidade de inserir, na área da brincadeira, objetos ou fenômenos próprios da realidade externa, usando-os a serviço de sua realidade interna, não recorrendo a formações alucinatórias. A criança traz para a realidade objetiva conteúdos próprios de sua vida psíquica, experienciando, com os objetos do mundo, uma dinâmica que até então estava restrita ao seu mundo interno: "No brincar, a criança manipula fenômenos externos a serviço do sonho e veste fenômenos externos escolhidos com significado e sentimento oníricos." (WINNICOTT, 1968/1975, p. 86). A referida relação que se estabelece entre o brincar e o sonho se inscreve no sentido de ser através do brincar que conteúdos internos, que poderiam se tornar acessíveis por meio dos sonhos, por exemplo, podem vir à tona e ser compartilhados. Nesse sentido, o mundo interno que para a psicanálise clássica seria acessível através de formações do inconsciente - dentre as quais os sonhos - encontra com Winnicott uma forma de expressão e comunicação por uma via distinta. Afinal, o brincar se apresenta como modelo de experienciação e comunicação de conteúdos intrapsíquicos de maneira a integrá-los ao mundo externo através de uma linguagem não verbal. Do mesmo modo, o brincar é apresentado por Winnicott (1964/2012) com uma forma pela qual se torna possível a aceitação de símbolos. A inscrição do indivíduo no registro simbólico traz à tona não apenas a utilização do mundo como ferramenta a fim de representar seu mundo interno, mas representa uma forma de composição particular e integração com o meio cultural no qual se insere. Através destas duas relações estabelecidas com o brincar podemos entender o brincar como modelo da forma pela qual é possível usufruir do espaço potencial. Isso se deve ao fato de o brincar se inserir na esfera do espaço potencial, no qual os objetos e fenômenos transicionais podem ser explorados pelo infante como símbolo de sua relação com a figura materna. Logo, a capacidade de aceitar símbolos por meio do brincar apresenta à criança possibilidades infinitas de experienciar sua realidade psíquica pessoal que, como destaca o autor, é a base de seu sentimento de identidade que se encontra em processo de amadurecimento. Desta forma, Winnicott (1971/1975) afirma o lugar do brincar como ferramenta privilegiada por meio da qual o indivíduo pode ser criativo e, assim, vivenciar sua personalidade integral.

Contudo, o brincar compartilhado não é possível desde o princípio. Inicialmente, o brincar é uma atividade solitária da criança5 em seu contato com o mundo, experienciando e vivendo o interjogo do espaço intermediário no qual as barreiras entre Eu e o mundo tornam-se menos delimitadas, sem que a continuidade da experiência - que gradativamente confere unidade ao self - seja perdida. Quando, em momento posterior, o brincar pode ser compartilhado, a experiência do brincar não pode se basear em uma excitação instintual, ao contrário do que poderia ser esperado: "(...) quando uma criança está brincando, se a excitação física do envolvimento instintual se torna evidente, então o brincar se interrompe ou, pelo menos, se estraga" (WINNICOTT, 1968/1975, p. 67). Todavia, Winnicott (1958/2007) aponta a existência de um "orgasmo do ego", o qual é entendido como uma experiência altamente satisfatória, à qual os indivíduos, de alguma maneira inibidos em sua capacidade de satisfação instintual, podem recorrer com grande frequência. Neste ponto, o autor se refere a experiências como ir ao teatro, ouvir um concerto, ter uma amizade e até mesmo o brincar da criança, afirmando que, através dessas experiências podemos reconhecer a ênfase que o clímax possui. No entanto, logo em seguida afirma:

Na minha opinião, se comparamos um brinquedo feliz de uma criança ou a experiência de um adulto em um concerto com a experiência sexual, a diferença é tão grande que não faria mal usar um termo diferente para a descrição das duas experiências. Qualquer que seja o simbolismo inconsciente, a quantidade da excitação física real é mínima em um tipo de experiência e máxima na outra (WINNICOTT, 1958/2007, p. 37).

Assim, o que está em jogo em um dito orgasmo egoico, é o reconhecimento de que essas experiências são fontes de satisfação para o sujeito - uma satisfação não sexual (BRUM, 2019). Portanto, o brincar não está referido a uma experiência instintual. Para além disso, diz respeito a uma experiência de expressão, vitalidade e continuidade do verdadeiro self. Em consonância a isso, Lejarraga (2015) afirma que, na saúde, as práticas sexuais próprias da infância devem possuir o status de brincadeiras sexuais, aludindo a um caráter terno que a concepção do brincar garante, remetendo à consideração de Ferenczi (1932/2011) segundo a qual a sexualidade infantil estaria inscrita na linguagem da ternura.

É justamente nesse sentido que o brincar se torna de extrema importância em nosso estudo. Afinal, traz à tona uma modalidade da experiência que além de não estar relacionada à satisfação instintual também se dissipa diante da elevação dessa excitação. A experiência de "(...) sentir prazer em brincar" (WINNICOTT, 1968/1975, p. 82) é algo que parece abarcar nossas proposições iniciais, além de apontar para um caminho que se origina na satisfação inerente à agressividade primária e desemboca no prazer do brincar no espaço potencial.

Todas essas considerações permitem reconhecer no brincar o próprio "prazer da experiência", a partir do qual o indivíduo pode reconhecer o mundo e seus eventos como reais, com os quais é capaz de se relacionar e se comunicar. Abram (1996/2000) afirma ainda que o prazer no brincar é uma garantia de saúde na criança, pois sinaliza que ela está apta a criar um modo de vida particular, podendo assim se tornar um indivíduo. Afinal, para Winnicott, é a partir do brincar que o sujeito é capaz de descobrir/constituir o self. Tudo isso graças ao desenvolvimento de uma terceira área da experiência, na qual é possível habitar um espaço intermediário no qual as barreiras entre o self e o mundo se rebaixam, mantendo um sentimento de continuidade de existência em meio a experiências compartilhadas. Ou seja, o prazer aqui se encontra referido à capacidade do indivíduo de usufruir da própria criatividade em seu interjogo com a realidade compartilhada.

 

O prazer na relação com o outro

Um ponto que não podemos deixar de destacar ao trabalharmos com esta modalidade de prazer se encontra referido à relação com o outro. Essa questão anuncia sua importância na medida em que é a partir de uma distinção mínima entre o Eu e o outro que surge o espaço no qual o indivíduo é capaz de experienciar um prazer próprio da continuidade inerente à relação, e também de vivenciar a possibilidade de expressão própria de um estado de tranquilidade. Devemos aqui apontar a estreita relação que o prazer adquire com a satisfação - relação que poderíamos classificar como de codependência. Afinal, para Winnicott, a satisfação seria vivida por duas vias: a primeira vinculada a uma satisfação libidinal e a segunda por meio de um movimento que busca oposição (BRUM, 2018). É pelo encontro com o meio, que se oferece como força de resistência à ação do bebê através de seu cuidado, amparo e limitação, que o infante tem seu primeiro contato com a realidade e certo contorno de sua experiência corporal, contribuindo assim para a instauração de um sentimento de si, bem como a todos os processos inerentes ao desenvolvimento emocional. Da mesma forma, nas experiências próprias ao espaço potencial, além de uma possibilidade de expressão criativa e interjogo de Eu e não-Eu, o indivíduo também é capaz de experienciar um sentimento de continuidade de existência através da relação com o outro. Aqui, o self já se encontra mais assegurado, sendo possível ao infante regredir a um estado de menor integração sem perder a dimensão de quem se é.

É no estado de tranquilidade que este se torna capaz de entrar em contato consigo mesmo e seus conteúdos internos em um campo mediado por uma alteridade que afirma o espaço potencial como lugar de troca, no qual uma relação de fato pode ser estabelecida. Depreendemos que o indivíduo winnicottiano adquire o estatuto da existência a partir de um contato satisfatório com o ambiente. Vale ressaltar que tal afirmativa não desconsidera a existência de um potencial próprio; muito pelo contrário, é justamente graças à capacidade do ambiente de receber, acolher, dar corpo e lugar a essa potencialidade que o existir se torna possível.

Contudo, inicialmente, a existência deve ser a todo momento assegurada por uma figura naturalmente adaptada ao infante, de quem este depende de forma irrestrita (WINNICOTT, 1965/2013). Assim, o cuidador assume a função de ambiente capaz de suprir as necessidades do bebê e, ao garantir que suas demandas tanto físicas quanto psíquicas possam ser satisfeitas, é estabelecida uma experiência de continuidade tanto em estados excitados quanto em estados de tranquilidade. Outro ponto a ser destacado é o fato de ser por meio da apercepção criativa, ou seja, a experiência subjetiva que o indivíduo tem do ambiente desde o início (ABRAM, 1996/2000), que o desenvolvimento pode se dar. Isso implica dizer que é em decorrência de um ambiente que permite a expressão e vivência da criatividade potencial do infante que se torna possível o emergir do sentimento de que a vida vale a pena ser vivida. "O que chama a atenção aqui em termos de 'ser' é 'ao olhar sou visto, então existo'. O bebê depende de ser visto (e precisa adaptar-se a isso) pela mãe para sentir-se vivo." (ABRAM, 1996/2000, p. 243). Ou seja, a capacidade do indivíduo não apenas de existir, mas de se sentir real é possibilitada pela atenção especular que lhe é direcionada pelo meio. "Sentir-se real é mais do que existir; é descobrir um modo de existir como si mesmo, relacionar-se aos objetos como si mesmo e ter um eu (self) para o qual retirar-se, para relaxamento" (WINNICOTT, 1967a/1975, p. 185). Nesse sentido, o reconhecimento diz respeito a um olhar capaz de identificar e dar lugar às particularidades do indivíduo (WINNICOTT, 1967a/1975).

O reconhecimento do indivíduo como dotado de necessidades que lhe são próprias assim como de suas formas de expressão singulares promove o surgimento de um sentimento de confiabilidade. Este ambiente adaptado e confiável possibilita que o indivíduo possa relaxar, vivenciando sua capacidade de ser, mesmo quando nos estados de tranquilidade, Estados nos quais a não integração pode ser experienciada sem angústia, graças à continuidade da sensação de ser. Deste modo, para Winnicott, a relação com o outro é satisfatória e prazerosa em decorrência da possibilidade de troca do verdadeiro self com o mundo. A possibilidade de o indivíduo poder ser visto nisso que lhe é mais particular, próprio e único, contribui ativamente para a constituição de um sentimento de si dotado de segurança capaz de resistir aos estados de não excitação. Isso permite que o indivíduo encontre a si mesmo, de maneira integral, na continuidade entre os estados de tensão e de tranquilidade - o que, para o autor, seria um indicativo de saúde psíquica.

 

Considerações finais

Conforme trabalhado ao longo do presente artigo, consideramos a experiência própria ao espaço potencial como uma forma de prazer que podemos apreender dos escritos de Winnicott que não acarreta, necessariamente, um movimento de descarga. Esta forma de prazer traz como marca a capacidade de vivenciar um interjogo de algo que é próprio (interno) a cada indivíduo e algo externo. É através da possibilidade de usufruir do espaço potencial que o sujeito pode expressar algo que lhe é particular no contato com o mundo e, ao mesmo tempo, ser reconhecido por isso. A capacidade de habitar esse espaço intermediário permite que o sujeito, já minimamente distinto do mundo à sua volta, possa se relacionar com o mesmo sem ser invadido ou se perder nessa relação. Ou seja, é uma relação de continuidade que permite que o sujeito vivencie estados de menor integração sem que com isso, experiencie o sentimento de desintegração, fazendo uso do mundo externo a fim de dar vida ao seu mundo interno. Tais considerações nos fazem conceber esse estado como uma grande capacidade de expressão do potencial de vida do indivíduo, possibilitando que ele se sinta real e sinta que a vida vale a pena ser vivida. Afinal, é possível encontrar e criar familiaridade entre si e o mundo.

Deste modo, trago o brincar como modelo dessa forma de experienciar o prazer a partir da expressão própria de um potencial de vida criativo. No brincar, o indivíduo pode ser criativo, utilizando sua personalidade integral e, assim, sendo capaz de descobrir seu verdadeiro self (WINNICOTT, 1971/1975), o que confere ao brincar a capacidade de expressão criativa do indivíduo. Além disso, é graças à capacidade de expressão criativa em conformidade com o potencial verdadeiro que Winnicott (1971/1975) localiza no brincar a única forma possível de comunicação - exceto a comunicação direta, que seria própria à patologia ou a estados extremos de imaturidade. Logo, essa forma de prazer se enuncia, paradoxalmente, tanto como um modo de expressão criativo, quanto como meio a partir do qual é possível acessar um potencial próprio.

Neste contexto reconhecemos que a possibilidade de dar lugar no mundo a algo de si, de vivenciar o espaço entre o interno e o externo, pode se enunciar como algo prazeroso em si. Além disso, a dimensão da troca com o ambiente, como um meio através do qual não apenas se torna possível uma expressão criativa, mas também um reconhecimento acolhedor desta criatividade. Ou seja, não basta a possibilidade de realização de um gesto espontâneo, este deve contar com um interlocutor capaz de recebê-lo em sua particularidade.

Reconhecemos que a possibilidade de usufruir do prazer próprio dessa dimensão, que não pode ser localizada espacial ou temporalmente, necessita de mínima segurança de que sua existência não será perdida no envolvimento e troca com o outro. É diante da possibilidade de construção dos nossos limites e singularidade por um outro que estes são internamente circunscritos, permitindo que uma troca verdadeira e não invasiva seja possível, assim como a capacidade de viver criativamente, ao invés de reagir a uma ritmicidade ditada pelo meio.

Somos então levados a destacar a importância da confiança e esperança no meio, para que a existência não se perca diante da ausência de excitações. Este sentimento de confiabilidade também torna possível ao indivíduo usufruir de seus estados de relaxamento nos quais a área da criação pode ganhar vida e se constituir. Sendo assim, é a partir de um movimento integrativo que promove continuidade de existência mesmo diante dos intervalos entre os estados tranquilos e relaxados que se torna possível a emergência de um indivíduo que é. Desta forma, referimos justamente à capacidade de viver verdadeiramente, experienciando o mundo e a si mesmo concomitantemente, sentindo-se vivo mesmo diante dos momentos de tranquilidade, o que denominamos prazer da experiência.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 11/11/2020
Aprovado para publicação em: 30/05/2021

Endereço para correspondência
Stephanie Brum
E-mail: stephanie-brum@hotmail.com

 

 

*Psicóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutoranda em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Psicanálise Nebulosa Marginal. Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1Os conceitos de holding e handling dizem respeito ao amparo e sustentação, físicos e psíquicos, oferecidos pelo cuidador ao bebê em um desenvolvimento saudável.
2O verdadeiro self proposto por Winnicott não se refere apenas a uma faceta da personalidade, mas ao próprio sentimento de ser (de existir e sentir que a vida vale a pena ser vivida) que é promovido primeiramente pela distinção que passa a ser reconhecida entre o indivíduo e o mundo, assim como em decorrência da aquisição de uma unidade psicossomática.
3Winnicott propõe duas vertentes próprias à agressividade primária, uma ligada à excitação instintual e outra que se expressa através do puro potencial motor (WINNICOTT, 1950-5/2000).
4A importância concedida ao desejo em psicanálise é um tema em que não nos aprofundaremos aqui. Porém, vale destacar em poucas palavras que a mesma se inscreve tanto a partir da psicanálise clássica - na qual o desejo é visto como a mola que impulsiona o pulsional e assim movimenta toda a cadeia e dinâmica psíquicas - quanto a partir da vertente das relações de objeto da qual nos aproximamos aqui - onde o desejo, desenvolvido a partir de uma necessidade narra os caminhos e descaminhos do indivíduo diante das relações que vão sendo estabelecidas com os objetos à sua volta e como, diante destas, seus conteúdos internos podem ser comunicados e seu mundo interno enriquecido.
5O brincar, em um primeiro momento, só se torna possível graças a um adulto suficientemente bom que permite que a criança fique sozinha em sua presença. É a confiança de que o adulto estará disponível quando solicitado o que possibilita que a criança seja capaz de usufruir da solidão, a partir da possibilidade de estar só na presença de alguém (WINNICOTT, 1958/2007).

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