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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.45 Rio de Jeneiro July/Dec. 2021

 

ARTIGOS

 

Servidão, Resistência, Insurgência1 Algumas reflexões a partir da leitura do texto de Freud Psicologia de grupo (Massenpsychologie) e análise do ego de 1921

 

Submission, Resistance, Insurrection. Some reflections starting from the reading of Freud's Group psychology (Massenpsychologie) and the analysis of the ego, from 1921

 

 

Danilo Marcondes*

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil
Universidade Federal Fluminense - UFF - Brasil
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo do texto clássico de Freud Psicologia de grupo e análise do ego, de 1921, examinaremos algumas das principais questões que suscita. Discutimos os conceitos-chave de grupo, no sentido de "massa", e os conceitos de submissão e seus opostos. resistência e insurreição. O exemplo histórico da revolução haitiana (1791-1804) é examinado como algo que questiona a ideia de submissão - uma vez que representa um caso de insurgência de submissos em relação à dialética do senhor e do escravo, de Hegel.

Palavras-chave: Psicologia das massas, Submissão, Insurreição.


ABSTRACT

Starting from Freud’s classic text Group Psychology and the analysis of the ego, from 1921, we will examine some of the main questions it raises. We discuss the key concepts of group, in the sense of "mass", and the concepts of submission and its opposites. resistance and insurrection. The historical example of the Haitian revolution (1791-1804) is examined as something that questions the idea of submission as it represents a case of insurgency of the submissive ones in relation to Hegel’s master-slave dialectic.

Keywords: Psychology of the masses, Submission, Insurrection.


 

 

Essas reflexões são parte de uma proposta de discussão do texto de Freud citado acima, como tentativa de reler esse texto "Cem anos depois", considerando a pertinência das questões que discute, os caminhos que abre e como nos faz pensar e repensar questões que levanta para além do próprio texto.

O texto nos permite assim retomar vários temas atuais em comum com o contexto histórico de 1921, por exemplo, a crise europeia, sobretudo política e econômica, causada pelas consequências do final da Primeira Guerra Mundial, conhecida na época como a "Grande Guerra", um conflito que pela primeira vez atingiu praticamente todo o mundo; portanto, o primeiro conflito globalizado; e a "gripe espanhola" a primeira pandemia do período moderno, que igualmente atingiu todo o mundo, uma consequência da globalização que se iniciava. Vivemos ainda em grande parte as consequências de um processo histórico, eminentemente político e econômico ocorrido nesse período e que de muitos modos se prolonga até nós (MACMILLAN, 2004).

Proponho iniciarmos com uma questão conceitual a propósito do texto de Freud, na verdade relacionada a possíveis traduções do termo Massen encontrado na expressão Massenpsychologie e que tem sido traduzido em português por "grupo" ou "massa".

O termo Massen (multidão) ou o equivalente Gruppe, pode ser traduzido em inglês por crowd e em francês por foule, significando "turba", "multidão", "horda". "Grupo" parece sugerir uma unidade e organização em algum grau (grupo de trabalho, grupo de estudos, por exemplo). A multidão parece ser algo mais amorfo e por vezes mesmo se usa a expressão "multidão incontrolável". Freud, ele mesmo, usa também a expressão "horda primitiva". Portanto, há algumas precisões que tentaremos fazer tanto quanto possível na sequência deste texto. "Turba" parece ser um grupo mais violento, porque o verbo latino "turbare" pode significar "sacudir", estando o termo mesmo na raiz de "conturbado" e "perturbar" derivados do verbo "turbar". "Horda" vem do turco "urdu" referente ao grupo nômade que invadiu a Índia na antiguidade, vindo do Turquestão.

Podemos nos perguntar ainda sobre a questão da identidade: há identidade na massa ou na multidão? A identidade do indivíduo se dissolve na massa? Tomemos por exemplo uma torcida de time de futebol em seu caráter passional e muitas vezes violento, nas famosas "brigas de torcida". Massas e grupos com frequência têm um - ou mesmo vários - líderes com quem se identificam e a quem seguem porque parecem encarnar essa identidade coletiva. Temos como exemplo líderes ditos carismáticos como Adolf Hitler, com uma retórica exaltada - e chegamos a dizer "hipnótica". Daí a relação que Freud estabelece no texto com a hipnose. Na massa, como mostra Freud, os indivíduos estão submissos, perdem sua identidade, seguem o líder. Freud usa inclusive a imagem do rebanho, usada também por Nietzsche na Genealogia da moral, quando se refere à "moral do rebanho": simplesmente seguimos a maioria, somos levados, conduzidos.

É preciso ressaltar nesse sentido, a importância do contexto. Freud cita no texto a Primeira Guerra Mundial e os 14 pontos do pres. Wilson, sobre o qual escreverá mais tarde, no Tratado de Versailles. Em seguida, temos em 1921 o declínio da Áustria que deixa de ser o centro do Império Austro-Húngaro tornando-se uma pequena república na Europa Central. Viena deixa de ser a grande capital da Belle Époque juntamente com Paris para se tornar uma cidade provinciana até o Anschluss de 1938 em que a Áustria se torna parte do III Reich. São grandes transformações que ocorrem a partir dessa data que tomamos como referência.

As três perguntas iniciais de Freud no texto vão nos servir de pano de fundo:

O que é então um "grupo"? Como adquire ele a capacidade de exercer influência tão decisiva sobre a vida mental do indivíduo? E qual a natureza da alteração mental que força no indivíduo?

Vamos explorar melhor os conceitos que propus: Servidão ou Submissão, Resistência, Insurgência.

Começamos recorrendo ao pensador francês, um pioneiro dessa discussão em sua época, Étienne de la Boétie (1530-1563), cujo Discurso sobre a servidão voluntária (1574, publicado postumamente) foi precursor dessa discussão e crítico do absolutismo. La Boétie se pergunta exatamente por que os indivíduos se submetem, o que os leva a aceitar a submissão a um grupo, a um tirano. Por que a dominação ocorre? No que consiste a submissão como uma paixão, no sentido daquilo em que somos passivos, que nos afeta? La Boétie reflete, portanto, sobre o princípio da autoridade e de como a dominação de uma minoria se exerce sobre a maioria e em sua crítica faz uma defesa libertária da necessidade da não aceitação da dominação.

Um dos grandes exemplos é a religião, lembro inclusive que Islã significa literalmente "submissão", mas a ideia de submissão à vontade divina está presente em muitas religiões e significa a submissão do inferior ao superior, nesse caso ao Ser Supremo, mas. de qualquer forma e em todos os casos, essa parece ser a lógica da dominação2.

O texto clássico em que essa questão se põe pela primeira vez e que parece ser o ponto de partida de toda essa discussão na tradição é o tratado de Política de Aristóteles (I, 3-6). Nessa famosa passagem Aristóteles apresenta o conceito de "escravidão natural", definindo que indivíduos inferiores naturalmente se submetem aos superiores. O escravo é aquele que precisa de um mestre, senhor, ou dominador porque é incapaz de deliberar, de decidir por si mesmo - se o fosse, não se submeteria.

Freud cita no texto em questão o pioneiro da psicologia social britânico William McDougall que usa exatamente esse conceito de "mentes de inteligência inferior", que supõem a necessidade de um líder, de alguém que determine o que deve ser feito. O "pai da horda primitiva", que já encontramos em Totem e tabu (1913) estaria também na base dessas concepções.

Proponho agora, no desenvolvimento desse argumento, relacionar a servidão, ou submissão, a seu oposto, a insurreição, a insurgência e, no limite, a revolução.

Freud cita o grande paradigma de insurreição contra o tirano ou o monarca absolutista, a Revolução Francesa de 1789, inspirada por filósofos e pensadores políticos do Iluminismo.

Porém, quando pensadores políticos como Hobbes, Locke e Rousseau combatem a escravidão; eles o fazem não em relação à escravidão de origem africana nas colônias de seus próprios países, mas contra a escravidão em geral como condição humana.

Considero, contudo, que nessa discussão há um momento em que temos que examinar, como exemplo, um fato histórico.

Freud menciona a Revolução Francesa; vou buscar na História um outro exemplo mais radical: a Revolta de Escravos no Haiti. Primeiro estado fundado a partir de uma revolta de escravos e primeira revolução de independência bem-sucedida na América Latina.

Proponho então o exame da Revolução Haitiana, um evento histórico contemporâneo da Revolução Francesa, porém muito mais radical, resultado de uma revolta e de uma guerra contra o colonizador francês de 1791 a 1804. Temos de certa forma nesse exemplo histórico uma instância de algumas das questões de La Boétie e de Freud.

Como uma pequena minoria de colonizadores franceses conseguia dominar uma maioria de população escrava muitas vezes maior, um controle dessa "massa"? Haveria aí uma servidão voluntária ou uma escravidão natural? Como e em que condições escravos se revoltam?

Sem dúvida houve influência da Revolução Francesa; um dos líderes da revolução haitiana, Toussaint L’Ouverture, teria dito, "se lá, por que não aqui?" Os haitianos já revoltados enviaram uma delegação à Assembléia Nacional em Paris para reivindicar a liberdade. De fato, em 1795, a Assembléia Nacional liderada por Danton aboliu a escravidão em todas as colônias; mas em 1802, já sob a liderança de Napoleão Bonaparte, basicamente por razões econômicas, a escravidão foi restabelecida nas colônias francesas. À época o Haiti era o maior produtor de açúcar do mundo3.

É curioso que o general Rochambeau comandante do exército enviado pelos franceses para reprimir os revolucionários haitianos, e que por eles foi derrotado em 1803, formula ao chegar a célebre questão, de inspiração aristotélica: "Mas como podem os negros, naturalmente escravos, se rebelar?" Essa foi aliás, a primeira grande derrota dos exércitos de Napoleão, ainda como primeiro cônsul.

Como é possível a insurgência partindo-se de um quadro de servidão e de dominação? Trata-se assim de questionar o determinismo da situação de submissão.

A resistência como antecipando a insurgência. A resistência se dá quando há consciência da necessidade de insurgência, mas as condições ainda não estão dadas. A resistência significa preservação da identidade, busca de alternativa, formação de um projeto, mas é também algo que permanece subjacente.

Mas, como responder efetivamente ao comentário do general Rochambeau que por incrível que pareça ainda se baseia na teoria aristotélica da escravidão natural, a que nos referimos anteriormente?

É claro que a revolução haitiana foi precedida de movimentos de rebelião e do que podemos chamar resistência. Um dos fatores de resistência foi o Voodoo, religião dos escravos, sobretudo de origem do golfo de Benin, do antigo Dahomé e com um parentesco muito próximo com as religiões de matrizes africanas do Brasil. Portanto, a religião também pode, em determinadas circunstâncias, servir à resistência e não necessariamente à dominação. A resistência supõe então a manutenção de uma identidade e uma atitude de insubmissão, que pode ser latente, mas pode também alimentar rebeliões, enquanto as condições ainda não estão dadas para a revolução.

Mas, voltemos à nossa questão: como responder ao general Rochambeau? A resposta virá alguns anos mais tarde, em 1807, com a Fenomenologia do espírito, de Hegel, parte I, sec. IV, a célebre Dialética do Senhor e do Escravo (LIMA VAZ, 1981).

Se retomamos o texto de Hegel, vemos que o que tornou possível o processo revolucionário no Haiti foram, não só a vontade de libertação da população escrava, mas os conflitos e contradições internas do próprio sistema e a crise provocada por esses fatores.

Ao trabalhar a natureza, mesmo sob o regime de escravidão, o escravo toma consciência de si e de seu papel, é o próprio trabalho que lhe dá essa consciência. Mas o senhor, o proprietário de escravos, o dominador, precisa do trabalho do escravo, precisa ser reconhecido pelo escravo.

Enquanto nesse processo o escravo se eleva e passa a ter condições de tomar as rédeas do processo, o senhor se submete exatamente na medida em que precisa do trabalho do escravo e precisa de seu reconhecimento.

É essa contradição interna, quando historicamente dada, que possibilita a ruptura com a escravidão, não como concessão, mas como conquista.

Mas é na Enciclopédia, obra de maturidade (1830) que encontramos o elo de que precisamos, quando Hegel menciona explicitamente o Haiti, ao questionar precisamente a submissão dos escravos de origem africana, porque "no Haiti eles constituíram um estado cristão". Isso parece nos autorizar a interpretação segundo a qual o sucesso da Revolução Haitiana cuja notícia chega à Europa no momento da redação da Fenomenologia do espírito possa ter servido de inspiração à dialética do senhor e do escravo, na medida em que essa revolução contesta como fato histórico a teoria aristotélica da escravidão natural e qualquer teoria da inevitabilidade da submissão.

 

 

Referências

BUCK-MORSS, S. "Hegel and Haiti". Critical Inquiry, 26, 4, p. 821-865, 2000.         [ Links ]

FREUD, S. Psicologia de grupo e análise do ego. Rio de Janeiro: Imago, 1969. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 18)        [ Links ]

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Petrópolis: Vozes, 2013.         [ Links ]

HOUELLEBECQ, M. Soumission. Paris: Flammarion, 2015.         [ Links ]

LA BOÉTIE, É. Discours sur la servitude volontaire. Disponível em: <https://www.singulier.eu/textes/reference/texte/pdf/servitude.pdf>. Acesso em: 20 out. 2021.         [ Links ]

LIMA VAZ, H. C. A dialética do senhor e do escravo: uma parábola da filosofia ocidental. Revista Síntese, 1981.         [ Links ]

MACMILLAN, M. Paz em Paris. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 01/11/2021
Aprovado para publicação em: 03/11/2021

Endereço para correspondência
Danilo Marcondes
E-mail: danilosouzafilho@gmail.com

 

 

*Doutor em Filosofia. Professor de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da Universidade Federal Fluminense (UFF). Membro Associado em Formação no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1Trabalho apresentado na XXIX Jornada Interna do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, Cem Anos de 1921: continuidades, rupturas, transformações. Dias 3 e 4 de setembro de 2021.
2É oportuno lembrar a distopia de Michel Houellebecq, Soumission (2015) em que este imagina num futuro próximo um presidente islâmico na França.
3A colônia francesa se denominava Saint Domingue. O nome Haiti, de origem Arawak, foi adotado após a independência, como forma de ruptura com o passado colonial e por referência à população nativa originária.

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