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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.45 Rio de Jeneiro jul.dez. 2021

 

ARTIGOS

 

Complexo de Castração e Complexo do Nebenmensch: diferença, desamparo e violência1

 

Castration Complex and the Nebenmensch Complex: difference, helplessness and violence

 

 

Elisa Maria de Ulhôa Cintra2*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto parte da questão relativa às angústias que dão origem às identificações regressivas descritas em Psicologia das massas e análise do eu, de Freud (1921). Quando se engajam na massa, os sujeitos conquistam de forma imaginária um poder fálico que os autoriza a realizar qualquer ação e perdem a sua capacidade de se responsabilizar por si e pelos outros. Esta situação coloca a exigência de pensar os mecanismos de violência que estão em jogo e a natureza das angústias que levam aos extremos de alienação a um líder autoritário e despótico. As duas teorias da angústia em Freud são examinadas através do texto Inibição, sintoma e angústia (1926). A condição existencial de desamparo no nascimento é pensada como a angústia arquetípica e examina-se o Complexo de Nebenmensch. A angústia de castração é pensada como um esquema organizador de todas as ameaças e traumatismos que o sujeito enfrenta – constituindo o Complexo de Castração. É retomada a ideia de rejeição da feminilidade presente no texto Análise terminável e interminável (1937) para fazer uma crítica ao que Freud chamou de rochedo da castração.

Palavras-chave: Desamparo, Diferença, Violência, Complexo de Castração, Complexo do Nebenmensch, Rejeição da feminilidade, Rochedo da castração, Identificação narcísica de base.


ABSTRACT

The regressive identifications described in Freud’s Group psychology and the analysis of the ego (1921) lead to the question of the anxieties that lie under such regressive identifications and violent behaviors. When engaged in a big group, individuals develop an imaginary power that allows them to perform any violent action. The capacity for concern and the responsibility for each other are lost. Such situation invites a de-construction of the violence mechanisms that are at work through alienation toward a despotic leader. The origin of anxiety in Freud’s Inhibitions, symptoms and anxiety (1926) is revisited through a reconsideration of the second theory of anxiety. Helplessness as an existential condition at birth is considered as an Urangst – an archetypical form of anxiety that serves as a model for future anxieties. Helplessness is related to a Nebenmensch Complex present in a footnote in Freud’s Project I (1895): a description of the ambivalent relationship between the newborn and the adults in care of him/her. Such original anxiety is related to castration anxiety, also viewed here as an archetypical model for all threats and traumatic events one is exposed to. The ideas of "repudiation of feminity" and the nature of a bedrock level of resistances in Freud’s Analysis terminable and unterminable’ are criticized.

Keywords:Helplessness, Difference, Violence, Castration Complex, Nebenmensch Complex, Repudiation of feminity, Basic narcissistic identification.


 

 

Ao amigo Zeferino Rocha
in memoriam.

A inspiração para a escrita deste texto veio de uma antiga preocupação em buscar, na obra de Freud e dos psicanalistas que vieram depois dele, conhecimentos que nos ajudassem a desconstruir as raízes da violência psíquica e da violência vivida nos últimos duzentos anos, através de guerras, genocídios e dos milhares de atos de violência cotidianos.

A oportunidade para refletir sobre o assunto surgiu de um convite da Carla Penna, em nome do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, por ocasião do início de suas atividades deste ano de 2021, quando celebramos os cem anos do texto Psicologia das massas e análise do ego. Escolhi o tema das identificações como disparador do meu pensamento.

Em 1921, Freud descreve com grande clareza o caráter regressivo das identificações que acontecem quando o sujeito se engaja na massa e entra em um funcionamento psíquico regido pela lógica fálica, a recusa das diferenças, o elogio da força e do poder autoritário do líder, com suas lamentáveis consequências. Mas e as angústias? Quais são as angústias que levam as pessoas a entrar no dinamismo regressivo que caracteriza o engajamento na massa?

Freud inicia seu texto citando Le Bon, quanto a três fatores que provocam alterações do Eu nos indivíduos quando se encontram na massa. São traços de um modo de funcionamento regido por uma dinâmica fálica e revelam profundo desamparo e solidão.

O primeiro fator, (na citação de Le Bon):

[O primeiro] é que o indivíduo na massa adquire, pelo simples fato do número, um sentimento de poder invencível que lhe permite ceder a instintos, que estando só, ele manteria sob controle. E, cederá com tanto mais facilidade a eles, porque, sendo a massa anônima e, por conseguinte irresponsável, desaparece por completo o sentimento de responsabilidade que sempre retém os indivíduos (LE BON, 1895, p. 15).

Aqui eu chamaria atenção para a facilidade com que desaparece o sentimento de responsabilidade e aumenta a ilusão de um poder fálico e de uma tendência a usar toda a sorte de defesas maníacas e algo que associo à expressão protesto viril (ADLER). Na massa anônima eu divido minha responsabilidade de forma tão infinitesimal que não preciso me responsabilizar por mais nada; sinto-me livre do peso de assumir meu desejo, minha capacidade de sentir, de pensar e de julgar! Ocorre uma diluição ética: sou agora apenas uma gota d’água em uma massa líquida imensa que se move independente de meu esforço. Posso me deixar arrastar à realização dos feitos mais grandiosos, sem a sensação subjetiva do peso de ter que me encarregar de algo.

O segundo fator trata do contágio mental. "Em uma massa, todo sentimento e todo ato é contagioso e isso a ponto de o individuo sacrificar facilmente o seu interesse pessoal ao interesse coletivo" (LE BON, 1895, p. 16).

O terceiro fator é a sugestionabilidade do sujeito em uma massa, quando fica fascinado pelo líder, a sua personalidade consciente se enfraquece e o deixa exposto a uma impulsividade muito grande.

A esta identificação regressiva com os pares acrescenta-se, então, a identificação com um líder que passa a ocupar o lugar do Eu Ideal, que convida todos a se diluírem em um único projeto fundamentalista. O importante é igualar-se, submeter-se, purificar as crenças e destruir as diferenças. Isto cria uma tal exigência de não diferenciação, que torna impossível responsabilizar-se verdadeiramente por si ou pelos outros. Em um estado hipnótico todos se tornam obedientes à mesma razão delirante: existe aí a enorme violência envolvida nesse estado de despersonalização, compensada pela ilusão de pertencer e de ganhar poder. Acredito que há em todos os humanos uma insaciável aspiração a pertencer, a sentir-se fazendo parte de um projeto grande, importante. A ilusão de pertencer e de ter poder provoca deliciosa embriaguez e acabará autorizando atos violentos em intensidade crescente. Mas o que leva as pessoas a entrar neste dinamismo?

No texto de 1921 Freud quase não se detém no exame da dor, do desamparo e das angústias que levam os indivíduos a se alienarem tanto. Esta entrega da sua capacidade de sentir, pensar e julgar a uma figura de autoridade revela a presença de um desamparo muito grande. O texto de 1921 nos coloca no centro de uma exigência: a de pensar os mecanismos de violência que estão em jogo e a natureza das angústias que levam a tal extremo de alienação. Sem compreender melhor a natureza das angústias é difícil pensar os caminhos que possam desmontar a lógica dessa violência.

Foram estas considerações que me levaram a desenvolver três reflexões que se encontram bem à margem do texto de 1921, mas em diálogo com ele.

A primeira é reavaliar, com Freud, as noções de angústia e desamparo, em busca das origens mais remotas desse desejo de alienação tão extremo. O texto Inibição, sintoma e angústia será meu fio condutor, buscando articular a angústia de castração e o desamparo. É o que me tomará mais tempo. Pretendo considerar a angústia de castração no âmbito do Complexo de Castração, e o desamparo no âmbito do que vou chamar de Complexo do Nebenmensch.

A segunda reflexão será em torno da ideia de Nebenmensch - no Projeto de 1895, quando Freud tece algumas considerações sobre o desamparo do recém-nascido e a necessidade de encontrar alguém que possa se responsabilizar por ele. A ideia de poder responder ao outro vai me levar a uma breve alusão à identificação narcísica de base, uma ideia desenvolvida por René Roussillon, que será comparada com a identificação adesiva que aparece entre os pares na massa. Depois de discorrer sobre o desamparo, como situação arquetípica de angústia, pensarei sobre o Complexo de Castração e a ampliação da noção de angústia de castração associada aos ferimentos narcísicos e ao Complexo de Édipo.

A terceira reflexão me foi suscitada por uma ideia que Freud apresenta ao final de Análise terminável e interminável quando fala sobre a rejeição da feminilidade, como a resistência mais difícil a ser superada em uma análise. Será que ao invés de falar em rejeição da feminilidade não podemos discernir nisto a tendência a recusar uma dimensão - a feminilidade - que seria diferente da lógica fálica, do protesto viril e do fascínio pelo poder, que levam à passagem ao ato e à violência? Desejo propor uma leitura desta rejeição à feminilidade e da ideia de rochedo da castração, articulando-as ao Complexo de Castração e ao Complexo do Nebenmensch (desamparo originário). Acho importante recuperar uma intuição freudiana que aí se encontra, liberando-a desta associação com a noção de feminilidade que tem sido justamente criticada ao longo dos anos. Esta será a minha conclusão, que se abre a reflexões futuras: foi profundamente inspirada pelo livro Os destinos da angústia na psicanálise freudiana, de Zeferino Rocha. E me foi vivamente sugerida pela questão clínica do mestrado de Arianne Angelleli: o desamparo e o desespero dos cuidadores na perinatalidade.

 

Inibição, sintoma e angústia

Relendo o texto de 1926, sobretudo o capítulo oitavo deste longo texto, resolvi acompanhar passo a passo o movimento do pensamento de Freud, que o levou a criar a segunda teoria da angústia.

A primeira teoria da angústia tinha sido pensada do ponto de vista econômico. A angústia era um estado de acréscimo de estímulos, tensões e afetos que não encontravam caminhos de resolução e acumulavam-se, provocando desconforto e dor: este era o caso das neuroses atuais. Nas neuroses de transferência, quando o recalcamento entrava em cena, a separação entre afeto e representação levava à transformação de todos os afetos em angústia. Ora, em 1926 surge em Freud um desejo – talvez o mais exato seria dizer uma exigência – de encontrar algo além da descrição fisiológica para o estado de angústia. Era o desejo de escapar do que ele próprio chamou de sua obsessão pelo vértice econômico. Tratava-se então da exigência de levantar uma hipótese quanto às raízes originárias da angústia.

Relendo o texto de 1926, ouvimos Freud percorrer com paciência e rigor todos os quadros clínicos já estudados, procurando retomar tudo que já havia observado e pensado acerca do fenômeno da angústia. São setenta páginas nas quais revisa tudo que havia pensado até então sobre o assunto. É nítido o seu desejo de descobrir uma inteligibilidade da angústia que revelasse o que há em comum nos diversos estados de angústia, ou seja, encontrar uma angústia de base, que servisse de arquétipo a todas as angústias que se manifestam ao longo de uma vida. Ouçamos sua voz:

Poder-se-ia dizer, então que os sintomas são criados para evitar o desenvolvimento da angústia, mas isso não nos leva a enxergar profundamente. É mais correto dizer que os sintomas são criados para evitar a situação de perigo que é sinalizada pelo desenvolvimento da angústia (FREUD, 1926/2014, p. 68).

Vemos então nosso autor em busca de uma situação de perigo que seria, ela sim a origem do afeto da angústia. Mas que situação de perigo seria esta? E pergunta-se ainda mais profundamente: "Mas o que é um perigo?".

Freud está repensando a centralidade conferida ao perigo pulsional na primeira teoria da angústia e vai recapitulando tudo que havia dito entre 1895 e 1925, nos diversos quadros clínicos, até chegar à ideia da situação de desamparo do recém-nascido. Esse desamparo seria o modelo arquetípico – Urangst – para todas as angústias que irão aparecer ao longo da vida. Pensando enquanto escreve, ele vai reunindo evidências de que a angústia está sempre associada a uma situação de falta, perda ou separação. Volta então seu olhar aos estados autodestrutivos da melancolia, ao masoquismo primário, e à reação terapêutica negativa e finalmente chega às fobias infantis, e às situações de perigo que aí se revelam. Ouçamos a sua voz:

Apenas alguns casos de manifestação da angústia na infância nos são compreensíveis; a eles precisaremos nos ater. Quando, por exemplo a criança está sozinha ou na escuridão, ou depara com uma pessoa desconhecida no lugar do que lhe é familiar (a mãe). Esses três casos se reduzem a uma só condição, a falta da pessoa amada (ansiada). Com isso acha-se livre o caminho para o entendimento da angústia e para a resolução das contradições que parecem ligar-se a ela. (FREUD, 1926/2014, p. 78).

Nestas três situações – solidão, escuro e o contato com alguém estranho – configura-se claramente a separação do objeto primário que pode dar segurança e amparo. São justamente três situações de desamparo que passam a ser consideradas repetições de uma angústia originária de base vivida no nascimento, ainda que, naquele momento tenha sido vivida de forma traumática e pouco simbolizada. Contato com alguém estranho não significa apenas a aparecimento de alguém desconhecido, mas, no encontro com os que são familiares, perfila-se de repente o rosto hostil, esquivo ou desinteressado. Isto é ainda mais ameaçador. Esta súbita irrupção da alteridade e dessa estraneidade naqueles que nos são familiares é fonte de muito desamparo. Não é mais possível confiar em ninguém; estamos no registro da paranoia. E o desamparo originário?

No momento do nascimento, grandes quantidades de excitação se acumulam sem poder ser imediatamente descarregadas e dominadas psiquicamente, e de fato pode-se considerar o nascimento como uma separação do corpo materno e uma perda do estado de homeostase anterior. Em razão da chegada ao mundo em estado de agudo desamparo, sem condições de cuidar de si mesmo, o recém-nascido precisa depender inteiramente de seus cuidadores que ganham assim enorme importância. Comparado a outros animais, o bebê humano passa por uma existência intrauterina breve e chega ao mundo menos pronto para viver de forma autônoma. A sua própria imaturidade biológica deixa-o em um estado de dependência muito intenso. Essas considerações me levaram a revisitar uma pequena nota escrita por Freud no Projeto de 1895.

 

A ideia do Nebenmensch – no Projeto de uma Psicologia.

Ao escrever o Projeto (1895), Freud fará uma breve menção à relação original com o Nebenmensch3 - com o ser que se encontra aí próximo, o vizinho, o semelhante.

O grito de necessidade do recém-nascido lança-o na exterioridade, em busca de escuta e de reconhecimento. Sem defesa, o recém-nascido lança o seu apelo e, do outro lado, o adulto que o escuta se encontra, ele também, em estado de vulnerabilidade, pois se vê lançado no movimento de prestar socorro, e para isto precisa esquecer-se, pelo menos transitoriamente, de seu próprio desamparo. Na verdade, ambos estão em estado de desamparo e de vulnerabilidade suscitando grande acúmulo de excitações, medos, e angústias, associados às primeiras representações, insuficientes para dar conta do excedente de afetos: podemos chamar essa situação de – o Complexo do Nebenmensch. O que a torna tão complexa é que ao lado do movimento de ir ao encontro do outro há uma outra dimensão, inerente ao movimento de pedir e de prestar socorro.

Freud pensa que esse pedido de socorro é endereçado a uma "ajuda estrangeira" – fremde Hilfe – (FREUD, 1950[1895]/2003, p. 326), ao mundo externo ainda hostil e estrangeiro, antes da formação dos laços de amor

Aquilo que é fremd corresponde ao não familiar, ao desconhecido, àquilo que só pode ser apreendido com um certo terror. Um desconhecido que está situado, porém, numa relação de extrema proximidade, pois é designado como Nebenmensch, como "ser próximo". (SCHNEIDER, 1997, p. 73).

Ou seja, o ser próximo, a "única potência capaz de prestar socorro é, ao mesmo tempo, "o estrangeiro", o outro, o primeiro objeto hostil. Esse entrelaçamento originário pode ser comparado à relação que se tem com o médico, "ser que é visto, ao mesmo tempo, como encarnação da ameaça de morte e como portador possível da mais radical ajuda; aliás, o termo "ajuda" Hilfe, aparece constantemente em Freud, para designar o médico infantil" (SCHNEIDER, 1997, p. 74).

Em Emmanuel Lévinas, encontramos uma reflexão a respeito do momento de aproximação da morte:

A solidão da morte não faz desaparecer o outro, mas se mantém numa consciência da hostilidade e, por isso mesmo, torna ainda possível um apelo ao outro, à sua amizade e à sua medicação. O médico é um princípio a priori da mortalidade humana. A morte se aproxima, no medo de alguém e na espera em alguém. (LÉVINAS, 1974, p. 210).

"Ser um princípio a priori da mortalidade humana" – isto quer dizer que quando precisamos de um médico estamos de algum modo diante de nossa condição mortal e precisamos dirigir nosso pedido de ajuda, ainda que não tenhamos garantia de ele poder nos curar ou eliminar o risco de ele poder nos envenenar.

A ambivalência comparece sempre na relação com os outros, e de forma especial com o outro cuidador; é muito aguda nos momentos do início e do fim da vida.

Ao pensar na situação de desamparo do recém-nascido, Freud intui que o grito do recém-nascido faz ressoar de forma muito intensa o desamparo do adulto e a sua memória de ter sido, e de certa forma ainda ser, ele também, um recém-nascido em desamparo, um Hilflos: existe aqui um entrelaçamento existencial entre o bebê e o adulto, que torna o cuidar de um recém-nascido algo ao mesmo tempo muito atraente e muito assustador.

Surgem assim as três faces do Nebenmensch – ao mesmo tempo ele é o semelhante, o salvador e o exterminador ou, em outras palavras, o primeiro objeto de satisfação, o primeiro objeto hostil e a única potência capaz de prestar socorro. Na condição do semelhante, o Nebenmensch participa do circuito estabelecido pela vivência de satisfação, e toda a atividade primária e secundária do psiquismo terá como meta encontrar e reencontrar este rosto e esta vivência. Mas o outro que cuida surge também como o primeiro objeto hostil, pois o grito de socorro pode encontrar a violência do outro, pode provocar a violência do outro, ou pode ainda, ecoar no vazio e nem ser ouvido.

O terceiro rosto do Nebenmensch seria aquele da "única potência capaz de prestar socorro", ante o estado de passividade radical do recém-nascido. Esta face é designada por Freud como a fonte de todas as motivações morais. Por que fonte de todas as motivações morais? Penso que Freud pensa de forma naturalista a origem das motivações éticas e da capacidade de cuidar do outro. Ter sido cuidado gera uma dívida de gratidão muito grande, impagável, talvez. E ao mesmo tempo pode suscitar o desejo de retribuir o cuidado recebido; aí estaria a origem do sentimento de responsabilizar-se pelo outro, (co) responder a ele; e pode nascer assim o desejo de fazer reparações relativas às diversas formas de violência vividas nesta situação primária de desamparo.

"Única potência capaz de prestar socorro e ao mesmo tempo objeto hostil e amoroso": Quanto poder! No Nebenmensch estariam também os traços do grande líder das massas e do pai da horda primitiva? No início da vida, estamos diante de algo paradoxal: de um lado subjetividades abertas uma à outra, neste recém-nascido e nesta potência capaz de prestar socorro. Mas Freud nos adverte logo: não deixem de ver também, ao lado desta abertura e desta diferença, os terríveis movimentos de fechamento de um ao outro; algo que podemos transpor também para outros relacionamentos, inclusive aquele entre analista e paciente. Por que fechamento? Porque o desamparo excessivo, a dependência absoluta e a impotência geram em nós ódio, horror e rejeição. Há em todos os humanos um desejo de controlar a situação de desamparo, recusando-a; há uma rejeição muito forte à condição originária de ser vulnerável, frágil. Há um horror intenso ao sentir excessivo e à imensa inveja e destrutividade que surgem nas bordas desta condição humana originária. Creio que este horror ao excedente de afetos é uma das piores resistências a se tornar capaz de cuidar de alguém, de aprender algo novo e até mesmo uma resistência a se analisar, a entrar em contato com a sua própria condição de desamparo.

As três faces do Nebenmensch anunciam ao mesmo tempo a dimensão da proximidade e vizinhança e, ao lado desta, surge a lógica fálica, a aspiração a um poder sem medida, correlato ao sentimento de impotência. Sem esquecer a nostalgia imensa que alguém tão poderoso desperta em qualquer um de nós.

A memória dessa relação de dependência absoluta e de passividade radical diante de uma única potência capaz de prestar socorro precisa ser profundamente transformada para que se possa curar a infinita nostalgia de encontrar novamente uma figura de poder capaz de erradicar da face da terra a condição de desamparo. Ao contrário disto, toda a psicanálise e toda a cultura precisariam dedicar-se a restabelecer a amizade com a condição humana de desamparo. Seria necessário pensar na criação de novas formas de identificação, empáticas, e que possam resgatar a condição de desamparo como um solo comum entre os pares. Como seria possível desconstruir a identificação com líder todo poderoso?

Se olharmos para o fanático e para o fundamentalista, considerando somente sua (aparente) condição de força, deixamos de enxergar nele também a fragilidade e o desamparo que se escondem atrás de seus muros defensivos. Corremos o risco de retirar dele sua humanidade e reproduzir – com relação a ele, em espelho – a mesma violência que ele dirige àqueles a quem odeia e desautoriza. A razão delirante que o move tem imenso poder de contágio; ao reagir a ela de forma direta, frontal, somos atingidos pelo mesmo vírus e pela mesma lógica mortífera. Sem dúvida é preciso lutar contra esta forma de violência, mas será preciso encontrar meios de desconstruir essa couraça defensiva e encontrar, em seu avesso, o desamparo que foi recusado.

 

A identificação narcísica de base

Em tempos recentes, René Roussillon (2019) propôs a ideia de uma identificação narcísica de base. Seria algo que ocorre em todos os relacionamentos, colocando os alicerces de qualquer vínculo afetivo. A relação analítica só seria possível a partir deste alicerce, embora, ao longo da análise, também seja necessária uma regulação da identificação narcísica de base, uma transformação dela em direção a processos de diferenciação e de simbolização.

A identificação narcísica de base repousa em mecanismos cognitivos (imitação) e afetivos (identificação): é um fenômeno que independe da vontade consciente e se cria espontaneamente, desde que haja abertura para a vida afetiva do outro sujeito. É comum a todos os encontros humanos, mas é diferente em relações de parceiros sexuais, entre pais e filhos e entre analista e paciente, possuindo enquadres diferentes e diferentes características dependendo de hábitos culturais. Faz parte dos processos de mediação e de metabolização dos aspectos enigmáticos da experiência afetiva e dos processos de apropriação da realidade psíquica.

Os três fatores que provocam a dissolução dos sujeitos na massa estão presentes nela, embora não da mesma forma que nas identificações regressivas, pois essa identificação caracteriza uma abertura ao estado de desamparo do outro e não uma recusa deste. Em um sujeito psíquico, os traços mnêmicos que não puderam ser representados, em conjunto com tudo que foi recalcado, formam o conjunto de aspectos da realidade psíquica que se encontram em sofrimento (ROUSSILLON, 2019) e precisam ser sentidos, vistos e escutados através de um Nebenmensch. São aspectos que só se tornam acessíveis através da mediação de outros sujeitos que possam abrir esta "caixa preta", colocando-se em proximidade, através da identificação narcísica de base. Isto só será possível se houver aguda consciência da vulnerabilidade e do desamparo humano e se a identificação narcísica puder ser transformada e simbolizada. A referência a esta forma de identificação é o começo de uma reflexão sobre as transformações das identificações regressivas, para libertá-las dos aspectos de dissolução ética, alienação cognitiva, contágio afetivo e tendência a se sugestionar. Como encontrar, no avesso da lógica fálica, o desamparo que foi recusado?

 

O Nachträglichkeit - ou après coup.

Voltando ao texto de 1926, e ao desamparo vivido no momento do nascimento, quando ainda não há um sujeito psíquico organizado. A questão é que a angústia vivida no momento do nascimento não pode ainda constituir uma verdadeira experiência; ela é vivida como trauma, "no imediato do corpo, como ameaça e angústia de morte e destruição". Isto nos leva à pergunta: será que a vivência angustiante do nascimento seria uma experiência unicamente biológica e não uma experiência de angústia propriamente dita? Freud se coloca a mesma questão, e quando afirma que o desamparo é a experiência arquetípica da angústia, nos obriga a entender exatamente o que quer dizer com isto.

As experiências arquetípicas são aquelas que só encontram o seu sentido na posterioridade das repetições, no "só depois" – ou Nachträglichkeit.4 Na teoria do trauma, o primeiro acontecimento só adquire o seu valor traumático no segundo e no terceiro tempo. Podemos afirmar então que o primeiro acontecimento – em nosso caso é a situação de angústia do recém-nascido – contém um "apelo de sentido" que só ganhará pleno sentido através de sua repetição, nas angústias futuras. Freud nos ensina isto: que o contato afetivo com a experiência de desamparo será construído, passo a passo, através da experiência do desmame, da ausência da mãe, das pequenas e grandes ameaças de perda, castigo, abandono e separações que ocorrerão no futuro. É através destes acontecimentos que a angústia originária adquire o sentido de uma verdadeira experiência afetiva.

Podemos então pensar que uma experiência arquetípica na verdade "nunca termina de ser feita". "Ela se constitui, na medida em que constitui as demais experiências que dela se originam". (ROCHA, 2000, p. 112). Zeferino Rocha faz uma analogia interessante ao dizer que a fonte que produz rios e lagos só se configura plenamente como fonte quando pensamos nela a partir dos rios e lagos, pois aí se revela o seu caráter de ser fonte.

De certa forma, todas as angústias vividas ao longo de uma vida é que irão constituir a vivência do nascimento como experiência arquetípica da angústia. Esta nunca terminará de ser assim configurada, pois a cada situação de perda ou separação, o desamparo arquetípico será configurado e reconfigurado.

Quais são as outras situações de angústia que aparecerão depois do nascimento? O desmame, a perda da mãe nos momentos de sua ausência concreta ou quando estiver irritada ou desatenta, as mais diversas ameaças de perda, o perigo de perder o amor, a ameaça de perder o valor frente às exigências do Superego (FREUD, 1926/2014, p. 166). Freud concedeu um lugar central à angústia de castração que em sentido restrito referia-se ao medo de perder o órgão genital. Entretanto, a crescente importância dada aos ideais narcísicos de perfeição levou a uma ampliação da angústia de castração a todo acontecimento com a potencialidade de ferir os ideais narcísicos. O desmame, por exemplo, pôde ser pensado como uma forma de castração oral, algo que assim se constitui après coup, na posterioridade do próprio evento do desmame. A partir do trabalho de Jacques Lacan, tornou-se comum fazer a leitura da angústia de castração associando-a a tudo que tenha impacto sobre a ilusão de completude narcísica e de onipotência. Aliás, são estas ilusões, por sua vez, que sustentam as identificações regressivas, descritas em 1921. Veremos que a angústia de castração no pensamento de Freud adquire assim um valor arquetípico e passa a ter um valor para a desconstrução da lógica fálica.

 

Angústia de castração

A fantasia de castração é uma das fantasias originárias. Laplanche enfatiza o aspecto mítico desta fantasia; não deve ser confundida com nada da realidade empírica, mas deve ser vista como um esquema organizador de todas as ameaças e de todos os traumatismos que uma criança (e um adulto) podem encontrar em sua história individual (LAPLANCHE, 1980, p. 230).

Freud afirma que as fantasias e afetos ligados à castração formam um complexo associado ao primado do falo nos dois sexos, ou seja, apoia-se em outra fantasia, a da completude originária de todas as pessoas. Desde o caso do pequeno Hans, já aparece a ideia de que a castração é uma ameaça de perda que tem impacto sobre a aspiração a ser completo, a ter tudo; a perda imaginária do falo tem impacto sobre a imagem de si e constitui um ferimento narcísico.

A ameaça de castração que Freud chamou (na segunda teoria da angústia) de angústia real, e que nós estamos re-interpretando como algo "real", sim, – mas no sentido de ser uma realidade mítica - é uma fantasia originária que serve de protótipo às futuras ameaças que um sujeito vive depois da fase fálica e que vão se constituir a posteriori como castrações. Já demos alguns exemplos destas futuras angústias: a ameaça de ser castigado pelos pais, de perder o amor do Superego, como representante dos pais e de figuras de autoridade ou qualquer ameaça de não ser reconhecido, aprovado, ou de não "sair bem na foto". Com o tempo, as ameaças se tornam mais impessoais e se passa a ter medo de atrair o castigo das Forças do Destino, das forças da natureza ou dos deuses. Entretanto, no início de sua obra, Freud pensou esta fantasia de forma bastante concreta:

O pênis é na infância a zona erógena diretriz, o objeto auto-erótico mais importante e a sua valorização reflete-se logicamente na impossibilidade de se representar uma pessoa semelhante ao ego sem essa parte constituinte essencial. (FREUD, 1908).

No Vocabulário de psicanálise (1967) Laplanche & Pontalis mostram como, no decorrer da obra freudiana, o castigo da castração adquire valor metafórico:

...o objeto ameaçado pode ser deslocado (cegueira de Édipo, o arrancar dos dentes, etc.), o ato pode ser deformado, substituído por outros danos à integridade corporal (acidente, sífilis, operação cirúrgica), e mesmo à integridade psíquica (loucura como consequência da masturbação), o agente paterno pode encontrar os substitutos mais diversos (animais de angústia dos fóbicos) (...) Pode-se procurar situar a angústia de castração numa serie de experiências traumatizantes em que intervém igualmente um elemento de perda, de separação de um objeto: perda do seio no ritmo da amamentação, o desmame, a defecação (LAPLANCHE; PONTALIS, 1967, p. 111-113).

É este valor metafórico que nos permite ampliar a noção de angústia de castração para todas as ameaças de perda e castigos sofridos ao longo da vida.

 

Castração como castigo e como promessa

Um outro grau de abstração surge se nos colocarmos no campo do complexo de Édipo, lembrando que é através da angústia de castração (uma punição imaginária) que a criança renuncia ao desejo incestuoso, com seu caráter onipotente. O que seria a castração como promessa? Ao renunciar ao incesto e ao parricídio a criança se liberta da ambição fálica de seu desejo narcísico e incestuoso – e pode aceder a um projeto futuro de realização sexual e pessoal. Isto é comparável à dinâmica da Lei, que não tem apenas um aspecto de punição e proibição, mas dá entrada ao pacto social e é condição indispensável para o acesso futuro à vida afetiva e sexual.

A castração tem então uma dimensão estruturante para a constituição do sujeito: é através da perda da soberania fálica que o homem sai de uma subjetividade fechada, onde pode ficar alienado em projetos megalômanos e maníacos de seu Ego Ideal e passa para uma experiência de subjetividade aberta, que leva em conta a alteridade e pode reconhecer e conviver com as diferenças. É preciso fazer o luto do Eu Ideal e dos objetos perfeitos para construir projetos e Ideais do Eu, de forma mais mediada pela palavra e pela entrada no pacto social.

Os sujeitos capturados por um líder autoritário ficam alienados e entram em projetos megalômanos e maníacos de poder. Pretendem purificar o mundo de tudo que é considerado imperfeito e deficiente, como vimos nas identificações descritas em 1921.

 

O que há em comum entre o desamparo - Urangst - e a angústia de castração?

O desamparo fica associado ao estado de passividade e vulnerabilidade do recém-nascido frente à atividade e ao poder do adulto. Esta seria a diferença antropológica fundamental, um termo criado por Laplanche5 que modifiquei aqui. A angústia de castração está associada à diferença entre os sexos. Antes de descobrir a fantasia de castração, Freud pensava na polaridade ativo-passivo, que foi mais tarde associada à polaridade fálico-castrado e depois à masculinidade-feminilidade. O que se depreende daí é que a masculinidade fica associada aos polos ativo-fálico-dominante e a feminilidade à polaridade passiva-castrada-submetida! Será que é possível desconstruir essas associações?

Ambas as angústias - desamparo e castração – ficam associadas a alguma forma de diferença que acaba dando lugar a preconceitos, ameaças, traumatismos e todo o mal-estar que o convívio humano gera a partir de qualquer diferença: de gênero, racial e sócio-cultural.

 

O rochedo da castração

Meu desejo neste texto era formular uma compreensão mais ampla das angústias e das resistências que mantêm os sujeitos presos aos mecanismos violentos descritos em 1921. Percorrendo o caminho trilhado por Freud em 1926, proponho agora encontrar um novo significado para as ideias de rochedo da castração e de rejeição da feminilidade, em Análise terminável e interminável.

Nas últimas páginas do texto Análise terminável e interminável, Freud dirá que há dois aspectos que produzem grande resistência à análise:

Os dois temas que se correspondem são, na mulher a inveja do pênis – a positiva aspiração a possuir um genital masculino – e, no homem, a revolta contra a sua atitude passiva ou feminina para com outro homem... Alfred Adler colocou em uso, para o homem, a apropriada designação de "protesto masculino"; mas penso que "rejeição da feminilidade" teria sido, desde o início, a caracterização exata desse traço notável da psique humana (FREUD, 1937, p. 322).

Aqui Freud prefere trocar a ideia de "protesto masculino" – que estaria no âmbito das defesas – por "rejeição à feminilidade" – que seria a condição a ser evitada, pois evoca as ideias de falta, inferioridade e passividade. Por outro lado, o protesto viril está presente na fantasia de ser um super-herói, tão comum no repertório imaginário da infância. Podemos supor que "inveja do pênis e aspiração a possuir um genital masculino" podem associar-se à "inveja de ter poder e controle sobre as circunstâncias da vida". Do lado feminino, a resistência seria compreensível por significar a opção de não ter poder e ter que se submeter aos mais fortes. Esta associação da feminilidade à falta, e a esta positiva aspiração a possuir um genital masculino nos causa hoje muito estranhamento. E nos impede de aproveitar uma intuição significativa que, no entanto, seria resgatável se pudéssemos entender que outra coisa pode se revelar atrás da palavra feminilidade.

Na época de Freud, a diferença anatômica entre os sexos era um limite biológico intransponível, talvez isto tenha lhe sugerido a ideia de um rochedo. Hoje, além das transformações culturais ligadas à questão de gênero, os avanços da medicina tornaram possível até a mudança de sexo, removendo o aspecto irredutível da diferença anatômica dos sexos. Entretanto a condição da falta, a incompletude, o desamparo e a mortalidade permanecem irredutíveis.

A rejeição à feminilidade é considerada por Freud como a parte mais dura das resistências humanas a ser transformada em uma análise – trata-se do terreno que ele denomina: "rochedo de base da castração". Proponho que se possa traduzir a rejeição à feminilidade por rejeição à condição de dependência e desamparo que caracterizou os primeiros tempos de vida. Voltar a se sentir vulnerável e em um estado de passividade radical, voltar a depender de alguém e ser obrigado a se deixar cuidar e talvez subjugar por um outro: este seria o verdadeiro objeto da rejeição.6

"Se e quando conseguimos dominar esse fator – a rejeição à feminilidade – num tratamento analítico, será difícil dizer" (FREUD, 1937/2018, p. 325).

Muitas vezes temos a impressão de que, com a inveja do pênis e o protesto masculino, penetramos por todas as camadas psicológicas até a "rocha básica" e, portanto, ao fim de nosso trabalho [...] A rejeição da feminilidade pode não ser outra coisa senão um fato biológico, uma parte do grande enigma da sexualidade. Se e quando conseguimos dominar esse fator, num tratamento analítico será difícil dizer. Consolamo-nos com a certeza que oferecemos ao analisando todo estímulo possível para revisar e mudar sua atitude para com ele. (FREUD, 1937/2018, p. 325-326).

A sugestão é de que a análise consegue penetrar todas as camadas psicológicas até encontrar o rochedo da castração, que seria para Freud rejeitar a dimensão de feminilidade/receptividade. Ora, é isto que ele considera um limite último para a eficácia de um tratamento analítico, e que o analista deve se consolar com a certeza de ter oferecido todo o estímulo possível para revisar e mudar a atitude do paciente em relação a suas dimensões femininas/receptivas? Disto depreendemos que se a resistência for vencida será possível um maior contato com a dimensão de feminilidade/receptividade.

A palavra rochedo (da castração) indica a qualidade pétrea e não atravessável desta suposta rejeição à feminilidade. Podemos redescobrir que aí se esconde a rejeição à condição de passividade radical, aberta a todas as penetrações do ambiente, e a uma inelutável dependência do Nebenmensch, nos primeiros momentos de vida e que pode ser revivida em outros momentos traumáticos, por exemplo, no bullying, na tortura ou em qualquer relação na qual exista abuso de poder, dominação e submetimento. Como dissemos acima, Freud trabalhava com a polaridade ativo/passivo associando-a às polaridades fálico/castrado e masculino/feminino. "Muitas vezes temos a impressão de que, com a inveja do pênis e o protesto masculino, penetramos por todas as camadas psicológicas até a "rocha básica" e, portanto, ao fim de nosso trabalho". Ou seja, chega-se a um estrato da rocha que não permite mais nenhuma penetração analítica. É possível que Freud quisesse apontar os limites do analisável, e isto é aceitável. O problema é associar este limite à inveja do pênis e ao protesto viril! É muito mais provável que haja rejeição a penetrar nas camadas mais duras e doloridas das vivências traumáticas; aí residiria o limite da análise. Para ultrapassar este limite é preciso ampliar a abertura do paciente ao analista e a abertura do analista à alteridade do outro. Esta abertura é o essencial da identificação narcísica de base.

Embora até a mudança de sexo tenha se tornado possível, permanece o rochedo, algo irredutível e inelutável na condição humana. Tanto o complexo de castração quanto o complexo do Nebenmensch são formas diferentes de se referir a isto que é, de fato, a realidade inelutável da vida humana – o verdadeiro rochedo – contra a qual acabamos todos nos chocando, em diferentes níveis e intensidades, ou seja, a realidade do desamparo, da finitude e da falta. Poderíamos então afirmar que aí residem as resistências mais duras e inelutáveis e talvez só parcialmente atravessáveis em um processo de análise.

 

Breve menção a duas interpretações da "rejeição à feminilidade"

Winnicott (1986/1996) afirma que homens e mulheres têm medo da Mulher, referindo-se a uma figura materna da fantasia inconsciente que exerceu um poder considerável nos primeiros tempos de vida. Vale a pena citar:

No trabalho psicanalítico e em outros trabalhos associados, descobre-se que todos os indivíduos (homens e mulheres) mantêm um certo medo de MULHER. Alguns indivíduos têm esse medo em grau maior do que outros, mas pode-se dizer que ele é universal. É muito diferente de dizer que um individuo teme uma mulher em particular. Esse medo da MULHER é um poderoso agente na estrutura da sociedade, responsável pelo fato de a mulher manter as rédeas políticas em poucas sociedades. Também é responsável pelo enorme volume de crueldade contra as mulheres, que pode ser encontrado em costumes aceitos em quase todas as civilizações. É conhecida a raiz desse medo da MULHER. Relaciona-se com o fato de que na história mais remota de todo individuo que se desenvolve adequadamente e que é são e que foi capaz de se encontrar a si mesmo, existe um débito para com uma mulher – aquela que se devotou a ele quando ele era bebê, e cuja devoção foi absolutamente essencial para o desenvolvimento saudável desse individuo. Essa dependência original não é recordada, exceto quando o medo da MULHER representar o primeiro estágio desse reconhecimento. (WINNICOTT, 1986/1996, p. 199).

O medo e o horror a esta figura de mulher têm origem em seu poder sem limites, vivido no momento de maior desamparo do bebê. Winnicott chega a sugerir que, para fugir desta figura que inspira horror, até mesmo a adesão a um ditador pode ser uma alternativa melhor, pois um governante autoritário poderia

tomar para si o encargo de personificar e, portanto, limitar as qualidades mágicas da mulher todo-poderosa da fantasia que é credora de um imenso débito. O ditador pode ser derrubado, e eventualmente pode morrer, mas a figura feminina da fantasia inconsciente primitiva não tem limites em sua existência ou poder (WINNICOTT, 1986/1996, p. 200).

André Green (1997), por sua vez, e de certa forma próximo à ideia de Winnicott, concorda com Freud quanto à existência de um repúdio ao feminino em homens e mulheres, dando-lhe, no entanto, a seguinte interpretação: "Nunca terminaremos de repudiar aquilo que permanece em nós da marca materna. Por isso, propus alterar a fórmula. O objeto do repúdio é de fato o materno" (GREEN, 1997, p. 54).

Podemos pensar que as palavras – nunca terminaremos de repudiar aquilo que permanece em nós da marca materna – podem ser associadas à excessiva desproporção entre a mãe e o recém-nascido, a que demos o nome de Complexo de Nebenmensch.

Não se trata, pois, de uma rejeição da feminilidade, nem da mulher, nem da função materna, mas da rejeição a um complexo de afetos, pulsões e fantasias inconscientes que surgem da situação de desamparo e passividade radical do recém-nascido, em contraste com a única potência capaz de prestar socorro. É nesta grande desigualdade de poder que reside a sua potencialidade traumática.

 

Concluindo

As identificações regressivas descritas em 1921 estariam muito próximas do "protesto viril" como defesa contra a possibilidade de entrar em contato com a frágil condição humana do desamparo. Diariamente somos expostos a perdas e separações que exigem renunciar a nossas ambições fálicas.

É só quando a criança constata, nas sucessivas vivências de separação, que pode viver separada da mãe sem correr o risco de ser aniquilada, que ela consegue controlar a situação traumatizante do desamparo. Uma vez controlada e representada, a angústia de separação torna-se companheira inseparável do homem nas estradas da vida. Viver é estar sempre fazendo a experiência da dor da separação. Na vida, estamos sempre dizendo adeus aos lugares por onde passamos e às pessoas que encontramos em nossos caminhos. Viver é estar sempre dizendo adeus às pessoas que conhecemos e amamos. Viver é estar continuamente desfazendo laços. (ROCHA, 2000, p. 114).

Do lado das identificações regressivas descritas em 1921 estão a ilusão de onipotência, o contágio mental, a sugestionabilidade e a impulsividade, que movem as massas às ações violentas e à construção de uma razão delirante. Temos aí a recusa a um trabalho de elaboração de lutos e faltas e o processo de alienar a sua capacidade de sentir, pensar e julgar a um líder despótico que leva à construção de projetos megalômanos e maníacos.

Do lado do contato com a experiência originária do desamparo e com a angústia de castração como um esquema organizador de todas as ameaças e de todos os traumatismos, estão a aceitação da falta e a criação de um funcionamento psíquico e social que leva em conta a alteridade e permite o reconhecimento e o convívio com as diferenças. Da mesma forma que angústias e ameaças de castigo, reais ou imaginárias se repetem em nossa vida ad infinitum, podemos desenvolver alguma capacidade de fazer lutos e reparações que possa ser, em contrapartida, igualmente interminável, embora levando-nos a resultados sempre parciais e incompletos.

Em 1926, Freud define o desamparo como Urangst - angústia arquetípica vivida no nascimento, anterior à angústia de castração e mais ampla que esta. Ambas as angústias – desamparo e castração – estão associadas a tudo que é inelutável e irredutível na condição humana, e que contraria as aspirações de um narcisismo fálico. Nunca seremos tudo que gostaríamos de ser. O encontro consigo e com o outro em sua alteridade às vezes radical – vai sempre suscitar alguma forma de tradução ou metabolização. A ilusão da completude narcísica vai sempre se chocar com a realidade da falta, com a realidade de ter sido lançado na experiência de ser, sem garantias e sem proteção, confrontado desde o início e sem trégua ao luto originário, ao imperativo de renunciar às ambições de tudo possuir, tudo poder e tudo ser. Embora irredutível, se for acolhido, o desamparo pode se transformar em um desafio: há nele, o princípio de um apelo a receber, a dar e a encontrar sentidos e a criar laços sociais. A experiência originária do desamparo é assim: nunca termina de ser feita, mas é justamente ao se rever e se refazer que ela encontra o seu verdadeiro significado.

 

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Artigo recebido em: 26/10/2021
Aprovado para publicação em: 01/11/2021

Endereço para correspondência
Elisa Maria de Ulhôa Cintra
E-mail: elcintra01@gmail.com

 

 

*Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). São Paulo, SP, Brasil.
1Trabalho apresentado na XXIX Jornada Interna do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, Cem Anos de 1921: continuidades, rupturas, transformações. Dias 3 e 4 de setembro de 2021.
2Agradeço as leituras e sugestões de Neyza Prochet, Carla Penna, Luís Claudio Figueiredo e Eduardo Zaidan.
3Usei uma edição comentada do Projeto (1895) intitulada Notas a um projeto de uma psicologia de Osmyr Faria Gabbi Jr. (2003), páginas 207 e 208 e as notas correspondentes.
4Nachträglichkeit - em um texto de Figueiredo (1999).
5Laplanche fala da condição antropológica fundamental.
6Em um texto contemporâneo a este "De um enigma a outro: a comunicação humana" associei a rejeição à feminilidade a uma recusa da identificação feminina primária, tal como foi desenvolvida no livro de Paulo de Carvalho Ribeiro O problema da identificação em Freud. Recalcamento da identificação feminina primária. São Paulo: Editora Escuta, 2000.

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