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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versión On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.45 Rio de Jeneiro jul./dic. 2021

 

ARTIGOS

 

Maiakóvski brilha, Picasso queima, e teu dia está próximo1

 

Maiakovski shines, Picasso burns, and your day is coming

 

 

Miriam Chnaiderman*

Instituto Sedes Sapientiae - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A força da poesia e do sonho em seu poder transformador aparece com força na poesia de Maiakóvski. Picasso queimado e sua obra transformada em um token mostram a força do neoliberalismo. O texto de S. Freud, Psicologia das massas e análise do eu, instrumenta essas reflexões ao repensar o lugar do poeta na superação do matriarcado e na instauração da lei. Pensadores contemporâneos tais como Chantal Mouffe, C. Castoriadis, Cl. Leffort, Toni Negri e Thomas Hardt vão apontando caminhos possíveis para os impasses do mundo atual ao recolocar o lugar da política como sendo sempre de confronto. A partir de Nathalie Zaltzman mostramos o paradoxo a que chega Freud nesse texto: como, a partir de sua formulação da pulsão de morte, poderia incluir a destrutividade no fenômeno das massas?

Palavras-chave: Sonho, Poesia, Neoliberalismo, Política, Confronto, Massa, Multidão, Humanidade, Democracia, Pai, Matriarcado.


ABSTRACT

The poetry's and dreams' strength, in their transforming power, powerfully appear in Mayakovsky's poetry. Picasso burned and his work turned into a token show the strength of neo-liberalism. S. Freud's text "Group Psychology and Analysis of the Ego" instruments these reflections by rethinking the poet's place in the overcoming of matriarchy and in the establishment of the law. Contemporary thinkers such as Chantal Mouffe, C. Castoriadis, Cl. Leffort, Toni Negri and Thomas Hardt point out possible paths to the impasses of the current world by moving back politics - as always a place of confrontation. Based on Nathalie Zaltzmann, we show the paradox Freud reached in this text: how, based on his formulation of the death drive, could he include destructiveness in the phenomenon of masses?

Keywords: Dream, Poetry, Neo-liberalism, Politics, Confrontation, Mass, Crowd, Humanity, Democracy, Father, Matriarchy.


 

 

Escárnios
Desatarei a fantasia em cauda de pavão num ciclo de matizes,
Entregarei a alma ao poder do enxame das rimas imprevistas.
Ânsia de ouvir de novo como me calarão das colunas das revistas
Esses que sob a árvore nutriz escavam com seus focinhos as raízes.

1916
W. MAIAKÓVSKI
(Tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman)

 

O poeta, Maiakóvski

Escolhi iniciar com a força do sonho e da utopia, falando daqueles que, na poesia, conseguem manter a alegria, em oposição àqueles que cultivam o mortífero cinzento dos dias que vivemos. O sonho como possibilidade de resistência ao vírus peçonhento de um Brasil que vai se esfacelando, mas que precisa continuar desejando. Um Brasil da morte. Mas, "teu dia está próximo"... Qual dia? E, próximo do quê?

O poema acima foi escrito em 1916, um ano antes da revolução. Maiakóvski nasceu em 1884, tinha 22 anos. Esse poema se chama "Escárnios". Um dia também viveremos escárnios e o sol há de brilhar porque "gente é prá brilhar" (MAIAKÓVSKI, 1923/2003, p. 169).

Schnaiderman observa que parece que o poema foi escrito em meio a uma polêmica no jornal em que Maiakóvski publicava. Nas publicações "... o emprego das chamadas palavras e expressões não poéticas eram acompanhadas de um desprezo pela divisão convencional em gêneros superiores e inferiores (SCHNAIDERMAN, 2003, p. 19). É um poema que mostra de forma expressiva como Maiakóvski compreendia a função do poeta no mundo moderno, "ligado à linguagem coloquial e utilizando os meios de difusão que a civilização industrial permitia" (Idem, p. 19)

No poema, o contraste entre a árvore nutriz, potência de nascimentos, de vida, contrasta com focinhos peçonhentos escavando a terra em agonia. O colorido da cauda de pavão triunfa sobre o lodaçal. Maiakóvski luta do lado dos que passam fome, luta por um mundo melhor. Esse era o clima pré-revolucionário.

Todos sabemos que Maiakóvski se suicidou com um tiro na cabeça no dia 4 de abril de 1930. A decepção com os descaminhos da revolução russa o amargurou.

O poeta S. Iessiênin suicidara-se em 28 de dezembro de 1925. Augusto de Campos traduziu o poema que deixou:

Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento é passageiro
É sinal de um encontro no futuro.
Adeus, amigo, sem mãos nem palavra.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.

(IESSIENIN, p. 108, tradução de Augusto de Campos)

O poema que Maiakóvski escreve em homenagem a Serguei Iessiênin, com quem polemizara seriamente, mostra sua amargura. Era 1926.

Sim,
        se você tivesse
                   um patrono no Posto
ganharia
        um conteúdo
                   bem diverso:
todo dia
        uma cota
                   de cem versos,
longos
        e lerdos,
                como Doronin

Já há aqui uma terrível ironia com a burocracia e os privilégios que vão dominando o Partido Comunista Russo.

(...)
Melhor
            morrer de vodca
que de tédio!

S. Iessiênin bebia muito... e muitos atribuíram seu suicídio ao alcoolismo. Maiakóvski aqui se vê identificado.

(...)
Mas,
        dizei-me
                anêmico e anões
os grandes,
        onde,
                em que ocasião,
escolheram
        uma estrada
                   batida?
(...)
           Nesta vida
                morrer não é difícil
O difícil
           É a vida e seu ofício

(MAIAKÓSVSKI, 2003, tradução de Haroldo de Campos)

 

Freud e o poeta

Algumas vezes, no texto Psicologia das massas e análise do eu Freud faz referência ao poeta... E coloca questões que nos interessam... Após afirmar que a massa também é capaz de criações intelectuais geniais - e o exemplo que Freud nos dá, é o da linguagem - indaga-se o "quanto o pensador ou o poeta isolado deve às incitações da massa em que vive, se ele é mais do que alguém que completa um trabalho psíquico no qual, ao mesmo tempo, os outros também tomaram parte" (FREUD, 1921/2010, p. 60). Freud é aqui precursor ao entender que todo poeta e criador será fruto de seu tempo. Desmorona aqui qualquer afirmação de que "o coletivo e o individual obedeceriam à mesma estrutura e responderiam às mesmas leis" (GOLDEMBERG, 2014, p. 42). Ou que "o comportamento da turba revela os componentes do psiquismo individual" (Idem, p. 42). E, que, "menos que esclarecer o funcionamento das multidões" esse texto teria servido "para mostrar o que ali se revela sobre o funcionamento psíquico em geral" (Idem, p. 43). Não é assim, pois Freud quer entender o que são as massas. Quer entender de que forma a sociedade pode funcionar. Quer entender o que move um povo na guerra, o que o move na ascensão do nazismo, o que o move na revolução soviética. Não por acaso Adorno (1951) retomaria, anos depois, esse texto para entender a ascensão do fascismo nos Estados Unidos dos anos 50. Adorno afirma que Freud vislumbrou claramente a ascensão e a natureza dos movimentos de massas fascistas, a partir de suas categorias puramente psicológicas.

Em Psicologia das massas (FREUD, 1921/2010) a interseção entre o psíquico e o social se mostra claramente. Esse texto justifica a afirmação de Nathalie Zaaltzman: "Essa realidade mais íntima, mais singular, inscrita no mais subjetivo do inconsciente, é também a verdade histórica comum a mais impessoal, pois circula pela humanidade em geral" (ZALTZMAN, 1999, p. 6). "A realidade que interessa à psicanálise é o que acontece a cada indivíduo através da sua pertinência à realidade humana..." (Idem, p. 7) Afinal "o homem é um animal de horda" (FREUD, 1921/2010, p. 128) conforme afirma Freud na Psicologia das massas ao criticar Trotter que pensava no homem como um animal gregário (Idem, p. 128).

Ao refletir sobre o que move as massas, Freud está colocando de que forma é possível ao ser humano viver em sociedade, e que depois culminaria em O mal-estar na civilização. Pois, toda convivência questiona o que é o próximo e coloca a questão da representatividade e governabilidade. Questões tão cruciais nos tempos que vivemos.

Chantal Mouffe faz importante distinção entre o político e a política (MOUFFE, 2015, p. 7). A política teria a ver com o nível ôntico: são as práticas e instituições que organizam a convivência humana. O político teria a ver com o ontológico que tem a ver com a organização das sociedades. E, para Chantal Mouffe o político é sempre conflituoso. Penso que o texto Psicologia das massas é, sim, um texto político, tal como Chantal Mouffe definiu. Freud vai pensar as condições para o estabelecimento da sociedade. Não por acaso vai a Totem e tabu e nos fala das origens de nosso mundo. Ao pensar a identificação e a transformação do objeto em ideal do eu como o que instaura as massas, Freud procura entender o que torna possível a massa. Seriam formas de lidar com o conflito inerente ao político. Assim como para Chantal Mouffe, o campo do político, em Freud, é um campo de conflito. Sem conflito não há a política.

O não conflito viria da transformação do líder em ideal do eu, levando ao fanatismo. O fanatismo assassina o político, assassina o conflito.

A concepção de Hanna Arendt sobre o que é a política é radicalmente outra. Para Arendt a política seria a condição de os homens se entenderem. Luis Carlos Menezes afirma que a partir de H. Arend pôde concluir que "o poder que se opõe à violência só não é ele mesmo violência na medida em que seja exercido no campo da política" (MENEZES, 2019, p. 1). A política é proposta como uma "prática do convívio social que trata da comunidade e da reciprocidade entre diferentes tendo como base a pluralidade humana" (Idem, p. 1). Para Mouffe esta ideia de um político não conflituoso já seria fruto de um pensamento neoliberal onde o espaço da política deveria se tornar um espaço neutro. Mouffe propõe o conflito agonístico (e não antagonístico) como constituinte do político. Cito Mouffe: "... graças às instituições democráticas, conflitos podem ser encenados de uma forma que não é antagonística mas agonística" (MOUFFE, 2015, p. 21).

 

O poeta e o matriarcado

No "Apêndice" de A psicologia das massas e análise do eu, Freud vai falar do primeiro poeta épico como aquele que reverte a horda primitiva (FREUD, 1921/ 2013). Primeiro, ao comparar o exército e a igreja, coloca uma diferença fundamental: no cristianismo, além de amar Cristo o cristão deve identificar-se com Cristo e amar os cristãos como Cristo os amou. Onde existe a identificação deve existir o amor objetal. No exército, o soldado toma o general como seu ideal e se identifica com seus pares. Na religião, cada um passa a ser deus e amar os pares de um lugar identificado com deus.

Freud quer chegar ao ponto onde a psicologia das massas se tornou psicologia individual, e aí o poeta tem a importância de marco fundador. Freud volta então ao "mito científico do pai da horda" (Idem, p. 151). O que se passa depois do assassinato do pai? Freud aponta como nenhum dos irmãos pôde se colocar no lugar do pai. Até reconhecerem que todos tinham que renunciar à herança do pai. Surge então a comunidade totêmica onde se expiava a lembrança do assassinato. Até que a massa de irmãos restaurara o antigo estado em um novo nível: o homem "voltou a ser o chefe de uma família e rompeu os privilégios do matriarcado que havia se estabelecido durante o período sem pai..." (Idem, p. 152). É aí que surge o "primeiro poeta épico". Cito Freud: "Naquela época, a privação plena de anseios pode ter levado um indivíduo a se separar da massa e se colocar no lugar do pai. Quem fez isso foi o primeiro poeta épico, e o avanço se efetuou em sua imaginação". O poeta reinterpretou mentirosamente a realidade conforme seu anseio. Ele inventou o mito heroico. (...) Da mesma maneira que o pai havia sido o primeiro ideal do menino, assim o poeta criava agora o primeiro ideal do eu na figura do herói que pretende substituir o pai" (Idem, p. 152) "Na mentirosa recriação poética dos tempos primitivos, a mulher que havia sido o troféu e a tentação para o assassinato, provavelmente se transformou em sedutora e instigadora do crime". (Idem, p. 153).

Será o sonho de Maiakóvski o heroísmo relatado pelo poema épico? Será o sonho a mentirosa recriação poética de que nos fala Freud? Será Lilia Brik, sua grande paixão, a mulher antes troféu que se transforma em sedutora e indutora do crime? Buscar a igualdade, buscar um mundo com menos injustiças, será algo mentiroso?

Come ananás, mastiga perdiz
Teu dia está prestes, burguês.

(MAIAKÓVSKI, 2003, p. 82, tradução de Augusto de Campos)

É surpreendente como essas reflexões de Freud vão levá-lo a mudar seu grande mito da origem da civilização. Os ouvintes podem se identificar com o herói "baseados na mesma relação de anseio como pai primordial" (FREUD, 1921/ 2013, p. 154). E afirma: "Talvez o herói divinizado tenha sido anterior ao deus pai; talvez ele tenha sido o precursor do retorno do pai primordial sob a forma de divindade" (Idem, p. 154). E, surpreendentemente afirma: "... a série de deuses seria então a seguinte: deusa mãe - herói - deus pai." (Idem, p. 154).

C. Castoriadis fala de uma ligação muita intensa com a mãe que se atualiza em diferentes relações com figuras que se tornam o "senhor da significação", "e que pode ser "Adolf Hitler, Joseph Stalin" (CASTORIADIS, 1987, p. 47), ou Bolsonaro, acrescentamos nós. Para Castoriadis "a raiz da alienação política e social está contida nessa relação primordial e muito fértil com a mãe" (Idem, p. 47). Algo anterior à entrada do pai e da cultura.

Há algo muito mais primitivo no fanatismo. O pai da horda foi assassinado, mas a mãe o substitui tomando o poder. É o momento do matriarcado. A poesia reintroduz o pai. O pai submetido a uma lei, não o pai da horda.

A poesia reintroduz a possibilidade de ter voz. Reintroduz a possibilidade da democracia, no sentido que Lefort e o grupo "Socialismo ou Barbárie" (do qual C. Castoriadis fez parte) formulou. Cito aqui Marilena Chauí falando de como Leffort define a democracia:

a democracia é invenção porque, longe de ser a mera conservação de direitos, é a criação ininterrupta de novos direitos, a subversão contínua do estabelecido, a reinstituição permanente do social e do político". (CHAUÍ apud LEFORT, 1987, p. 11).

Parece que a arte no mundo instaura a quebra necessária com o petrificado.

 

Picasso queimado

Em reportagem de Gabriel Rubinstein, publicada pela revista Exame, é relatado que um coletivo de artistas dos Estados Unidos, que no mês passado anunciou a criação do projeto "Burned Picasso" ("Picasso Queimado"), divulgou nas redes sociais a tokenização e destruição do original de uma obra do artista espanhol Pablo Picasso. A pintura transformada em um token não fungível (NFT) em blockchain e depois queimada - sim, com fogo - foi "Fumeur V", de 1964, adquirida pelo coletivo em um leilão da Christie's. A ideia do coletivo era leiloar um único NFT da obra, mas como após a queima o desenho ainda permanece visível, com a assinatura de Picasso praticamente intacta em uma forma de coração criada pelo calor, eles decidiram fazer dois NFTs - um antes e outro depois da queima - e entregar ao comprador também os restos queimados emoldurados.

Não é só "Burned Picasso" que está levando obras de Pablo Picasso ao blockchain. O banco suíço Sygnum, focado em ativos digitais, anunciou parceria com a empresa de investimento em arte Artemundi para tokenizar um quadro do artista e negociar frações da propriedade da obra em blockchain. "Fillete au Béret" está avaliada em 3,68 milhões de dólares (18,75 milhões de reais) e cada NFT - que representa uma cota - será vendido a 6 mil dólares, equivalente a 30.500 reais. A pintura do artista espanhol também é datada de 1964 e foi vendida pela última vez em 2016, por 2,48 milhões de dólares. Ela ficará sob custódia das empresas, em uma instalação de alta segurança ou emprestada a museus.

Os tokens não fungíveis que representarão a obra de Picasso só poderão ser adquiridos por investidores sofisticados ou institucionais, clientes do Sygnum Bank. Depois, os NFTs poderão ser negociados em um mercado secundário da SygnEx, plataforma do banco para negociação de ativos digitais.

As negociações serão liquidadas em francos suíços (CHF) usando a stablecoin nativa do Sygnum, a DCHF, lastreada na moeda do país. A propriedade fracionada da pintura será reconhecida pela lei suíça.

Quem são os poetas épicos em nossa contemporaneidade? Podemos sair do matriarcado onde o assassinato do pai nos atirou para instaurar um pai da lei? Será que estaremos fadados a viver relações primordiais onde delegamos nossa capacidade de pensamento e discernimento?

Nelson Silva, em seu ensaio "O Brasil da barbárie à desumanização neoliberal: do Pacto edípico, pacto social de Hélio Pellegrino ao: 'E daí' de Jair Bolsonaro" (SILVA, 2021) depois de nos contar sobre o diálogo de Platão - Protágoras - e nos lembrar do primeiro diagnóstico feito por Hélio Pelegrino no texto "Pacto edípico e pacto social" (1983), resgata V. Safatle que nos mostra como "a política não depende apenas da razão, mas também da qualidade dos afetos, do respeito pela opinião dos outros e da obediência à lei" (Idem, p. 256). Nelson Silva faz contundente análise do neoliberalismo que propõe que a vida social deve ser tecnicamente administrada suprimindo a dimensão. afetiva.

O Picasso queimado e toda a proposta do coletivo é caricata na concretização do que Nelson Silva coloca citando Dardot e Laval: o neoliberalismo não é apenas uma teoria ou política econômicas, mas uma "racionalidade política que se tornou mundial e que consiste em impor por parte dos governos, na economia, na sociedade e no próprio Estado, a lógica do capital até convertê-la na forma das subjetividades e na norma das existências" (Idem, p. 259). O modelo é de uma liberdade associal, pois o que deve ser garantido é a liberdade individual.

O custo-benefício da obra de Picasso torna-se mais acessível. É possível TER um Picasso por seis mil dólares. Enquanto a obra original, fechada em um cofre de banco, vai valorizando. A obra valoriza e o feliz proprietário continua ganhando mais e mais dinheiro. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade ganha contornos monetários obscenos.

 

As massas nos dias atuais

Nelson Silva, em outro ensaio seu, O mal-estar no sofrimento e a necessidade de sua revisão pela psicanálise (2018) lembra-nos que foi um sobrinho de Freud, Edward Bernays que criou as bases do marketing, ou seja, "da manipulação simbólica como instrumento de consumo de massa" (SILVA, 2018, p. 42) Barnays mesmo, segundo Nelson Silva, definia "sua ciência como "engenharia do consentimento", isto é, como "arte de manipular as pessoas" (Idem, p. 42). Apoiava-se na psicanálise e defendia que essas eram formas de proteção da democracia, uma vez que as massas eram "fundamentalmente irracionais" e em cuja opinião não se poderia confiar (Idem, p. 42). Nelson nos conta que Bernays teve participação ativa no Comitee for Public Information, órgão estatal dos Estados Unidos que "manipulava a opinião pública das massas..." (Idem, p. 42). É objetivo da publicidade que então se afirma, "explorar o poder da carga simbólica dos produtos". É impressionante a frase de Bernays, citada por Nelson Silva apud Rikin: "A chave da prosperidade econômica é a criação de uma insatisfação organizada" (Idem, p. 42). Em um relatório do Comitê sobre as mudanças econômicas recentes de 1928 há uma "inquietante familiaridade com a teoria psicanalítica do desejo: "os desejos são insaciáveis, que um desejo insaciável abre caminho para um outro..." Assim é que "a cultura adquiriu a função de meio de produção de comportamentos de consumo" (SILVA, 2018, p. 43).

Vivemos em tempos de fake news, em tempos onde comportamentos são determinados pelo whatsapp. Como entender as massas hoje em dia? Como repensar os processos de identificação e a relação entre Eu e Ideal do Eu nos tempos que correm? Assistimos no Brasil a fanatismos dolorosos. Fanatismos armados que apavoram.

Antonio Negri e Michael Hardt buscam pensar as mudanças políticas do mundo contemporâneo a partir da constatação do quanto o neoliberalismo vai contestar a ideia de soberania nacional (HARDT; NEGRI, 2005, 2010). A política, para Negri, assim como para Chantal Mouffe, é o resultado de um embate de forças. Forças que querem dominar e forças que não querem ser dominadas; Essas forças se configuram numa forma de soberania (forças que querem dominar) e numa forma de resistência.

Negri e Hardt estabelecem importante diferenciação entre povo, massa e multidão.

O povo é um amontoado de indivíduos achatados pelo poder, é uma falsa unidade criada por dispositivos de sujeição. O contrato é feito entre o soberano e o povo, tornado unidade submetida. A massa, por sua vez, é temida como corpo irracional e perigoso. Sempre olhamos a plebe pelo olhar dos dominantes, que lhes imputa todo tipo de vício e baixeza.

O povo, sob o signo da Nação seria sempre uno. A multidão é múltipla.

A essência da massa é a indiferença, a essência da multidão é a diferença. Na massa, no povo, as diferenças são submetidas a uma unidade formatada; já na multidão, o uno é submetido à produção constante da diferença.

Interessante lembrar aqui, conforme podemos ler no Dicionário de Roudinesco e Plon, que foi Strachey que optou por traduzir Mass por grupo e que assim fazendo escolhia uma concepção reducionista, característica da psicologia social norte-americana. As diversas traduções francesas optaram por falar em psicologia coletiva. Plon e Roudinesco marcam que Freud escolheu o termo alemão Massen em lugar de Menge, privilegiando a conotação política. O livro de LeBon era Psychologie des foules, ou seja, das multidões (PLON; ROUDINESCO, 1998, p. 613) Qual é a massa de Freud? A massa de Negri? Hoje é possível pensar nessa massa internáutica nos moldes pensados no texto freudiano? Mas, Negri e Hardt vão além e pensam no contrafluxo dessa massa uniformizada do totalitarismo. E também, no contrafluxo do totalitarismo silencioso do whatsapp.

A Multidão é a resposta de Negri e Hardt para o Império. Multidão é o corpo não unificado, é um conjunto de singularidades que age, cria e transforma. Ela retoma a noção de multiplicidade como substantivo, uma diferença que se mantém diferença por sua própria potência de expressão. Multiplicidade heterogênea, não hierárquica, centrífuga. Ela é composta de inúmeros elementos, cada um diferente dos outros, mas que encontram uma forma de se articular, se comunicam, colaboram, agem em e no comum (BROWN; SZEMAN, 2006).

Chnatal Mouffe nos mostra como "a necessidade de identificações coletivas nunca desaparecerá já que é constitutiva do modelo de existência dos seres humanos" (MOUFFE, 2021, p. 27). Falar de identificações é um jeito de não organizar o mundo em identidades essencializantes. O fanatismo propõe identidades petrificadas.

Em vez de pensar em lutas identitárias deveríamos pensar em pertencimentos múltiplos, tal como Laclau e Mouffe vão propor a partir do conceito gramsciano de hegemonia. E tal como Toni Negri e M. Hardt propõem pensar a multidão.

Não há como não resgatar o livro de Claude Leffort, A invenção democrática. Afirma Leffort:

... restaria apenas perguntar se se pode explorar a ideia dos direitos dos homens, as reivindicações que nela se inspiram, para mobilizar energias coletivas e convertê-las numa força suscetível de medir-se com outras forças no que se chama a arena política (LEFFORT, 1987, p. 38).

Continuo citando Leffort:

Nada se pode dizer de rigoroso sobre uma política dos direitos do homem enquanto não se examinar se esses direitos têm uma significação propriamente política, e nada se pode avançar sobre a natureza do político que não ponha em jogo uma idéia da existência ou, o que dá na mesma, da coexistência humana.

Na proposta de uma invenção democrática o direito se separa do poder e o homem passa a ser o novo ancoradouro.

Mas, do que falamos quando afirmamos o direito dos homens?

 

E Freud não pôde incluir a pulsão de morte...

Nathalie Zaltzman, no seu livro O espírito do tempo no capítulo III (2003), indaga-se sobre o que é o humano. E se propõe a partir do termo jurídico "crime contra a humanidade" analisar de que forma a cultura vem pensando o mal. Mas, o que aponta como sendo terrível, é que a noção de "crime contra a humanidade" não pensa que o mal é parte do humano. Para Zaltzman há uma elisão do mal.

Nesse pequeno e imenso livro, Zaltzman propõe que é o recalcamento do assassinato do pai da horda que permanece em um silencioso trabalho da cultura que leva à repetição do mal. Há uma culpa ancestral que leva à elisão do mal. O mal se apresenta como sujeito do recalcamento. O pensamento consciente reconhece a existência do crime e simultaneamente age afastando a representação da coisa. Freud concedeu ao mal um enorme lugar na constituição do homem. E cabe à psicanálise pensar a vida psíquica na sua relação com o mal.

Edson Souza no seu texto que introduz a edição da LPM do Psicologia das massas (2020) afirma que é o amor, Eros, que mantém a massa coesa. Como então explicar a ascensão do nazismo, os avatares do antissemitismo (e do racismo em geral) a reação violenta que o próprio Freud enfrentou às suas teorias? Como introduzir Eros que une as massas em sua teoria da pulsão de morte? A massa é a integração dos indivíduos. Mas também é indutora de uma adesão cega a um líder, que passa a representar o Ideal do Eu. A agressividade e o ódio são colocados na horda primitiva e é como se a família e a lei pudessem garantir o triunfo de Eros.

Infelizmente não tem sido assim...
Epílogo
De "V Internacional"
Eu
à poesia
só permito uma forma:
concisão,
precisão das fórmulas
matemáticas.
Às parlengas poéticas estou acostumado,
eu ainda faço versos e não fatos.
Porém
se eu falo
"A"
este "a"
é uma trombeta-alarme para a Humanidade.
Se eu falo
"B"
É uma nova bomba na batalha do homem.

1922
Maiakóvski, 2003
(Tradução de Augusto de Campos)

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 03/11/2021
Aprovado para publicação em: 05/11/2021

Endereço para correspondência
Miriam Chnaiderman
E-mail: chnaide@uol.com.br

 

 

*Psicanalista. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. São Paulo, SP, Brasil.
1Trabalho apresentado na mesa-redonda Cem anos de 1921: continuidade, rupturas, transformações no Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, no dia 28 de agosto de 2021.

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