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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versión On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.45 Rio de Jeneiro jul./dic. 2021

 

ARTIGOS

 

Processos depressivos e luto através de uma vertente Kleniana: a experiência da perda de um bebê com malformação genética

 

Depressive processes and mourning through a Kleinian approach: the experience of the loss of a baby with a genetic malformation

 

 

Creuza da Silva Azevedo*

Fundação Oswaldo Cruz - Brasil
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho explora a questão do luto com base em leitura kleiniana, examinando sua relação com a posição depressiva. Os processos psíquicos infantis foram considerados em sua experiência arcaica na relação com seus objetos primordiais e suas repercussões nas vivências de luto na vida adulta. Um caso clínico é apresentado no qual a perda de um bebê com malformação fetal desencadeou angústias primitivas e dificuldades no luto, tendo sido uma experiência muito traumática para a mãe. O diagnóstico desencadeou uma experiência de perda e a interrupção da gravidez intensificou uma vivência de nascimento simultânea à de morte. O cuidado recebido favoreceu a elaboração da perda e das fantasias destrutivas.

Palavras-chave: Posição depressiva, Luto, Perda fetal, Trauma.


ABSTRACT

This article addresses the topic of mourning through a Kleinian perspective, examining its relation to the depressive position. The infant psychic processes were considered in their archaic experience related to primordial objects and their effects on the mourning experiences in adulthood. A clinical case is presented in which the loss of a baby with fetal malformation prompted difficulties in mourning and the outbreak of primitive anxiety, having been a very traumatic experience for the mother. The diagnosis and the termination of pregnancy intensified an experience of birth simultaneously with death. The care received favored the elaboration of the loss and the destructive fantasies.

Keywords: Depressive position, Mourning, Fetus loss, Trauma.


 

 

Introdução

Este trabalho procura explorar, baseada numa vertente kleiniana, a questão do luto, examinando sua relação com estados maníaco-depressivos. Dois textos centrais de Melanie Klein fundamentam este artigo: Uma contribuição à psicogênese dos estados maníaco-depressivos (KLEIN, 1934/1981), e O luto e sua relação com os estados maníaco-depressivos (KLEIN, 1940/1981). Será objeto de discussão um caso clínico atendido em um Instituto de Saúde, referência no Sistema Único de Saúde no Estado do Rio de Janeiro para atendimento a gestação com risco fetal.

A obra de Melanie Klein está voltada para compreender a relação inconsciente que o Eu estabelece consigo mesmo e com os outros, como objetos internalizados. Há um questionamento permanente sobre as relações arcaicas com a mãe e sobre o ódio primordial a si mesmo, ganhando relevo a investigação quanto à estrutura psicótica própria ao humano.

Os conceitos kleinianos precisam ser considerados com cuidado para não os tornar "interpretações mecanicistas e simplificadoras da vida mental" (BARROS, 2020, p. 7). É importante considerar a leitura de Klein, como o fazem Cintra e Figueiredo (2020), como uma preocupação com a representação e expressão mentais da vida pré-verbal, como um esforço e talento para dar "figurabilidade aos mecanismos mentais primitivos" (CINTRA; FIGUEIREDO, 2020, p. 9).

Melanie Klein é tida como a teórica das perdas, do luto e da melancolia, considerados pela autora não apenas como episódios ocasionais, mas como partes importantes da experiência existencial dos sujeitos (CINTRA; FIGUEIREDO, 2020).

Serão considerados neste trabalho os processos e mecanismos psíquicos empregados pela criança em sua experiência arcaica na relação com seus objetos primordiais e sua relação com experiências de luto na vida adulta. Para Klein, a criança passa por estados mentais comparáveis ao luto do adulto, de tal modo que esses processos primitivos são revividos na vida posterior. É a partir desta compreensão que vamos tratar o caso clínico.

 

Posição Depressiva

O conceito de posição depressiva infantil é fundamental para a compreensão dos processos de luto e os estados maníaco-depressivos. Klein (1940/1981) destaca que a criança experiência um estado mental depressivo particularmente intenso em torno do momento do desmame. O objeto do luto é o seio e o leite que constituem uma dimensão de amor, bondade e segurança. Essa perda é vivida pela criança como consequência de seus próprios impulsos destrutivos contra o seio materno. Ela fantasia que a perda é fruto de sua voracidade sem limites. Outras aflições e conflitos vinculados à perda surgem na situação edípica, envolvendo então a perda de ambos os pais, e que, para Klein, se instala muito cedo e mostra-se próxima aos impulsos e temores orais ligados ao seio (KLEIN, 1940/1981).

É importante destacar que a dinâmica aqui retratada refere-se a imagos construídas com base em fantasias inconscientes que a criança projeta sobre os objetos reais. Nos primeiros meses de vida, a criança vive processos psíquicos muito primitivos que conformam impulsos sádicos dirigidos ao seio da mãe e também contra o interior de seu corpo. Tais impulsos dirigem-se a esvaziar seu conteúdo, devorá-lo e destruí-lo.

Na compreensão kleiniana (1934/1981), os mecanismos dominantes no processo de desenvolvimento do bebê são a introjeção e a projeção. Esses mecanismos, quando direcionados ao seio da mãe favorecem a demonstração da agressividade do bebê e a introjeção do seio como objeto bom ou mau, expressando, então, suas vivências de satisfação ou de frustração. Nas fantasias agressivas contra o seio, o bebê o concebe como perseguidor, construindo então imagos fantásticas sobre o objeto real, tornando o mundo exterior fonte de grandes ansiedades, já que esse objeto mau pode devorá-lo, cortá-lo em pedaços, envenená-lo. O objeto mau interiorizado e os conteúdos de ansiedade que daí derivam, tornam-se a fonte de constituição de mecanismos defensivos e a base da ansiedade psicótica infantil, da paranoia e mesmo do surgimento de mecanismos obsessivos na infância.

A partir do processo de organização do ego, imagos interiorizadas se aproximam da realidade, sendo então favorecidas as identificações com os objetos bons. Se inicialmente o medo à perseguição estava voltado apenas para o ego do bebê, passa a ser também dirigido ao objeto "bom" que então precisa ser preservado para a própria sobrevivência do ego do bebê. Esse desenvolvimento na organização egoica leva a uma importante mudança: a passagem de uma relação de objeto parcial à relação de objeto total. Esta nova posição do ego o leva a novas ansiedades e defesas. O amor volta-se ao objeto como um todo e a perda é também sentida como um todo.

É importante realçar que, ao se identificar com os objetos bons interiorizados, o bebê é capaz de perceber que não consegue protegê-los contra os objetos interiorizados perseguidores e mesmo contra os impulsos do id. Assim, ansiedades paranoides a propósito dos objetos se fazem presentes. Mecanismos sádicos de destruição e ataque aos objetos não foram abandonados, ainda que o ego se torne identificado com o objeto. Neste contexto, se iniciam os processos depressivos e o uso do mecanismo de reparação do objeto. A partir da identificação com o objeto, nesta nova posição, o ego do bebê tenta desenvolver uma reparação dos ataques sádicos dirigidos ao objeto. Embora os objetos bons e maus estejam mais diferenciados, os estímulos externos e internos podem ser fontes de perigo. Objetos maus, mas também os bons, podem ser ameaçados pelo id que, em acessos de ódio ou até mesmo de ansiedades amorosas devoradoras, podem colocar em risco o objeto. Há uma experiência de ameaça quanto à posse dos objetos interiorizados.

Destaco aqui o risco apontado por Klein (1934/1981), de que crianças ou adultos em processos depressivos vivam o medo de abrigar objetos moribundos ou mortos dentro de si e possam se identificar com os objetos nesta situação.

À medida que o ego vai se organizando, novas ansiedades e defesas vão se estruturando. A formação do superego pode ser compreendida nesta dinâmica de exigências e perseguições dos objetos internos. Há necessidade de cumprir as exigências estritas dos objetos bons e de protegê-los dentro do ego contra o ódio que advém do id. A preocupação contínua de que os objetos bons possam se transformar em maus favorece a sensação de prisão às exigências impossíveis, contraditórias e cruéis. Os objetos bons e maus produzem ansiedades de perda dos objetos amados que levam à luta do ego para salvá-los, tornando a tarefa da reparação próxima às exigências superegoicas.

A ansiedade relativa à destruição dos bons objetos e desintegração do ego desencadeia intensos esforços para salvar os objetos bons internos e externos. No processo de introjeção do objeto como um todo, o ego é então capaz de compreender possíveis efeitos de seu sadismo e canibalismo e sentir-se aflito pela possibilidade de destruir e fazer em pedaços o objeto de amor. Tais ansiedades estão presentes em situações de depressão e são atravessadas por dúvidas quanto à capacidade de restauração. No processo de reparação, recolher as partes do objeto então perfeito e belo é a tarefa central. A ideia de perfeição procura, por meio de uma defesa, abolir a vivência de desintegração.

A identificação com o objeto total leva a uma nova capacidade, a de reconhecê-lo como sujeito desejante, como alguém a ser preservado e não consumido (CINTRA; FIGUEIREDO, 2020). Neste processo de organização, o ego acessa seu amor pelo objeto bom, total e real, mas ao mesmo tempo produz forte sentimento de culpa em relação a ele. A identificação com o objeto se molda simultaneamente com culpabilidade e remorso, fruto de fantasias sádicas, condensando então emoções e sentimentos complexos. A posição depressiva é, portanto, marcada pela ansiedade em relação ao objeto e pela necessidade de reparar. Assim, afetos persecutórios e depressivos em relação ao objeto interpenetram-se (PETOT, 2016).

Sobre isso é importante frisar as sensações do ego de existência de amor e ódio e as possibilidades de destruição que podem se originar do id e ameaçar o objeto amado. Tudo isso potencializa o surgimento de sentimentos de culpa, desvalorização e desespero, sendo a base da tristeza. Os "autoreproches" do depressivo, como denominou Klein (1934/1981, p. 366), expressam o ódio do ego contra o id, favorecendo sentimentos de desvalorização e desespero.

Klein investiga a relação entre processos paranoides e depressivos. Supõe que a posição depressiva leva o ego de volta a uma posição paranoica. Além do temor pela integração do ego estão presentes os temores pela integridade do objeto. No tocante à desintegração do objeto, nos aponta a autora, que o movimento do depressivo, por sua dor e ansiedade pelo objeto, busca reuni-lo novamente em um todo. No paranoico o objeto vivido de modo desintegrado, estaria expresso em uma multidão de perseguidores, que se tornam fragmentos perigosos. Para Klein, o estado depressivo se baseia no estado paranoide e dele deriva. Assim, o estado depressivo é compreendido como resultado de uma mescla de ansiedade paranoide, sentimentos de desespero e defesas que ficam ligadas às ideias de perda iminente do objeto amado.

Na posição depressiva, o bebê tem sentimentos ambivalentes que misturam amor e ódio. Antes, quando predominava o sadismo, o desejo era de devorar e incorporar o outro. Na posição depressiva tais sentimentos têm como contraponto o desejo de preservar o objeto. Assim, o conflito entre amor e ódio ganha forte presença na posição depressiva. A culpa pela agressividade contra o objeto levará o bebê a tentativas de reparação através de seu amor. A reparação buscaria a integridade ferida. A posição depressiva "envolve a unificação e a relativização dessa "bondade" e "maldade" (CINTRA; FIGUEIREDO, 2020, p. 89).

O temor dos ataques dos objetos "maus" externos e internos continua, neste caso, a dominar o estado afetivo, mas a ênfase está no temor de que os perseguidores destruam o objeto. (...) A preocupação correspondente a esta situação ansiógena é a de abrigar o bom objeto, protegê-lo... (PETOT, 2016, p. 8).

A sobrevivência do objeto bom estaria identificada pelo ego à sua própria sobrevivência (PETOT, 2016).

Neste processo podem ser acionadas as defesas maníacas que viriam para libertar o sujeito da culpa e do medo de aniquilamento. Mecanismos de onipotência e negação que são empregados nestas defesas servem para se neutralizar e se contrapor ao pesar, à culpa, ao sentimento doloroso de ter lesado o objeto. O emprego de sentimentos de onipotência teria o propósito de controlar e dominar os objetos (PETOT, 2016). A recusa, a reparação maníaca e a idealização são os mecanismos defensivos empregados. A idealização visa conferir perfeição aos bons objetos. Assim, ressalta Petot (2016), ao despedaçamento dos objetos corresponde o esforço para reunir os pedaços. Klein (1934/1981) indica a importância para sublimação, dos movimentos de reparação, que conduzem novamente a um objeto "belo e perfeito" (p. 365).

As defesas maníacas funcionam como reguladoras da intensidade das paixões e emoções (CINTRA; FIGUEIREDO, 2020) e são mobilizadas em contextos de muito sofrimento e desespero. No entanto, devem ser superadas por reais movimentos de reparação. Nestes, há diferenciação de processos fantasmáticos, daqueles reais, e a aceitação de responsabilidades por estragos reais aos objetos.

Cintra e Figueiredo (2020) dão destaque à noção de saúde psíquica associando-a à capacidade de amar e reparar, enfim, de elaboração da posição depressiva, como constituição de um espaço psíquico onde os conflitos podem ser enfrentados, resultando na "introjeção consolidada do objeto bom interno" (p. 90) favorecendo um aumento da tolerância à frustração.

 

Processos de Luto

No texto de 1940 O luto e suas relações com os estados maníaco-depressivos, a posição depressiva é explorada com foco nas questões do luto. Para Klein, o luto é um processo de aprofundamento da relação do sujeito com seus objetos internos, embora no início produza a vivência de caos interior e aniquilamento.

Klein (1940/1981) considera que o início da vida é marcado por angústias de natureza psicótica. A posição depressiva teria por tarefa transformá-las no que a autora denominou de neurose infantil. Este processo compreende a gradual organização e integração que caracteriza os primeiros anos de vida e envolve um período de intenso trabalho psíquico voltado para salvar a criança da psicose (CINTRA; FIGUEIREDO, 2020).

A autora aponta a estreita conexão entre a prova de realidade no luto normal, já apontada por Freud, e os processos mentais arcaicos (KLEIN, 1940/1981). O luto experimentado nos processos infantis é revivido em experiências da vida adulta. Inicialmente o objeto do luto é o seio da mãe e aquilo que representa na experiência da criança. Esta sente que perdeu segurança, amor e bondade devido a sua intensa voracidade e impulsos destrutivos voltados para o seio da mãe e ampliados depois para os irmãos, também objeto de fantasias de ataque e sentimentos de culpa e perda. A dor e a preocupação com a perda de objetos bons, experiência própria à posição depressiva, é a base para a situação edipiana e da relação da criança com os outros.

A partir das experiências reais com mãe, pai e outras pessoas, portanto, com o mundo externo da criança, conforma-se seu mundo interno. Este é fruto da incorporação desses personagens como pessoas vivas dentro de si, sobre as quais opera seu mundo inconsciente, suas fantasias e impulsos. Klein acentua a importância do ambiente e da mãe real para o reasseguramento e moderação das angústias depressivas (FIGUEIREDO; COELHO JUNIOR, 2018)

Se o ambiente em que a criança vive é relativamente pacífico, proporcionará experiências de integração e sentimentos de segurança. Assim, a mãe real e concreta, favorece uma experiência de mãe interna "carinhosa ou zangada, prestimosa ou vingativa" (KLEIN, 1934/1981, p. 394). A hipótese subjacente é que a realidade externa pode frear ansiedades e fantasias e é decisiva para equilibrar tendências paranoides, contribuindo então para a saúde psíquica da criança (CINTRA; FIGUEIREDO, 2020): "o aumento do amor e da confiança e a diminuição dos temores através de experiências felizes, ajudam a criança, passo a passo, a ultrapassar sua depressão e sentimento de perda (luto)" (KLEIN, 1940/1981, p. 395).

Ao ser amada, a criança aumenta a esperança e confiança nos objetos "bons" e na própria bondade, diminuindo os temores de destruição do mundo interno. Assim, permite que o bebê teste sua realidade interna através da realidade externa.

Portanto, apontam Cintra e Figueiredo (2020),

Estabelecer seus objetos bons internos é, então, a condição necessária para atravessar com sucesso os primeiros processos de luto que compõem a posição depressiva e - aprendendo bem a lição - conseguir atravessar os outros milhares de lutos que a vida vai exigir que se enfrente. Este aprendizado começa sempre em casa, isto é, com uma internalização pacífica e harmoniosa dos pais (p. 94).

Por outro lado, experiências de guerra e litígio levam ao aumento do "caos interno". Este aspecto é fundamental para o caso clínico que trataremos a seguir:

As experiências desagradáveis e a falta das agradáveis, na criança pequena, especialmente a falta de alegria e contato íntimo com os seres amados, aumentam a ambivalência, diminuem a confiança, a esperança e confirmam as ansiedades sobre a aniquilação interna e perseguição externa (KLEIN, 1940/1981, p. 395).

Como dito antes, na posição depressiva alojam-se sentimentos de culpa, medo de destruir e pesar por ter destruído o objeto amado, que se iniciam no processo de desmame, mas os medos e angústias próprios a este momento habitarão o adulto em diversas situações de vida em que se sente aflito por "ter estragado tudo" levando a um "estado de sofrimento intenso, desejo que pulsa desassossegado, é um "penar" (CINTRA; FIGUEIREDO, 2020, p. 97) que se associa ao medo de perder os objetos amados e ao desejo de recuperá-los.

As defesas maníacas são acionadas na posição depressiva na tentativa de dar conta deste penar. Podem ser construídas fantasias onipotentes e violentas que buscam controlar os objetos maus e perigosos e resguardar os objetos amados. Associam-se à onipotência, à negação e à idealização que têm o papel de preservação do ego na ligação com o objeto amado. Neste processo, a ambivalência dá o tom, envolvendo fantasias destrutivas e de reparação. Busca-se de forma mágica, consertar todos os estragos feitos pelo sadismo (CINTRA; FIGUEIREDO, 2020).

Com os processos maníacos, entram também em jogo mecanismos obsessivos. A sensação de triunfo sobre o objeto, salientada por Klein (1940/1981), se origina no desejo de controlá-lo, de vencê-lo, de dominá-lo. A rivalidade desempenha um papel neste contexto e favorece a culpa. Tais processos primitivos são atualizados em adultos quando existe dificuldade de viver o êxito, pois alcançá-lo pode significar ferir os outros, ou triunfar sobre pais e irmãos, por exemplo. A dinâmica com o objeto pode gerar desconfiança, sentimentos persecutórios e processos depressivos pelo fracasso em reconciliar-se com ele.

Para Klein (1940/1981), em processos de luto o indivíduo enfrenta um estado maníaco-depressivo modificado e temporário e repete em um contexto distinto os processos que a criança atravessa em seu desenvolvimento.

Para abrandar a dor, faz parte do processo, a ativação de defesas maníacas que diminuem seu impacto. Em sua ação, tais defesas "produzem sentimentos de triunfo sobre o objeto, o que significa a celebração de um sentimento de superioridade sobre o outro; ou seja, no caso de perda por morte, um contentamento de que tenha sido o outro, e não a própria pessoa, a ter morrido" (CINTRA; FIGUEIREDO, 2020, p. 99). O sentimento de triunfo corresponde a um aspecto de "elação" da mania, representa "a face de ilusão de onipotência que infiltra a atitude de reparação da posição maníaca. (...) Esta rivalidade assume uma dimensão de revanche..." (PETOT, 2016, p. 20).

Sentimentos de triunfo fazem parte de processos normais de luto, mas contribuem para algumas dificuldades. Estão ligados ao predomínio do ódio para com o objeto amado e perdido, e não apenas transforma o objeto amado em perseguidor, mas reduz a crença do sujeito nos bons objetos de seu mundo interno.

Outro mecanismo empregado é a idealização, elemento fundamental da posição maníaca, ligado à negação. No luto, ele contribui para aceitação da perda e instalação do objeto perdido no ego, caminho a ser trilhado para superar a dor: "Como sabemos, o indivíduo de luto obtém um grande alívio ao recordar a bondade e as boas qualidades da pessoa que acaba de perder. Isso se deve em parte ao conforto que sente ao manter seu objeto amado temporariamente idealizado" (KLEIN, 1940/1981, p. 405).

Cintra & Figueiredo (2020) afirmam que esta dinâmica de ligação com o objeto amado e a autonomia entre ligações e separações, devem favorecer certa capacidade de estar só, que constitui um critério de saúde psíquica.

 

Moema: luto e depressão

Moema, 42 anos, chegou em fevereiro de 2019 para atendimento psicoterápico no serviço de saúde mental após dois meses da interrupção de uma gravidez, autorizada judicialmente, pois o bebê apresentava uma síndrome genética incompatível com a vida. Todo esse contexto foi muito traumático para Moema. Ela e seu marido decidiram pela interrupção, um direito dos pais, reconhecido legalmente. Eles buscavam minimizar o sofrimento que se instalou a partir da notícia da malformação. Foi realizada a indução do parto e o bebê ainda estava vivo ao nascer, morrendo pouco depois. Ela pediu para pegar o bebê nos seus braços.

Ao chegar para a psicoterapia, Moema apresentava intensa ansiedade, tremores, falta de ar, insônia. A gravidez foi para ela "um susto", já que não tinha sido desejada. Ela falava de um momento de descuido quanto ao uso de métodos anticoncepcionais, o que contribuiu para seus sentimentos de culpa. O bebê era uma menina e no início da gravidez recebeu um nome pelos pais. No meio da gravidez foi identificada a existência de uma malformação fetal que só posteriormente, quando Moema foi atendida no pré-natal do Instituto de Saúde - referência para risco fetal - foi diagnosticada a síndrome de Edwards, considerada incompatível com a vida. Trata-se de uma trissomia do cromossoma 18 implicando malformação congênita múltipla e déficit cognitivo. A maioria dos casos com diagnóstico pré-natal morre no útero e 50% das crianças afetadas morrem nas primeiras duas semanas de vida. Há descrição na literatura de mais de 130 anomalias diferentes, as quais podem envolver praticamente todos os órgãos e sistemas (SANARFLIX, 2021; LASHKARI, 2021).

A gestação é um momento de trabalho e preparação da relação com o bebê, a partir do qual vai se constituindo o berço imaginário no qual este será recebido, feito de sonhos e aspirações futuras (AZEVEDO et al., 2021). As trocas corporais e imaginárias compõem a intersubjetividade inicial. Aulagnier (2002) nos aponta a noção de "Eu antecipado", ao qual se dirige o discurso materno, inserindo o bebê em uma ordem temporal e simbólica. Aragão (2016), discutindo a noção de antecipação, nos remete à compreensão da questão temporal presente na gestação, e corresponderia a "um tempo entre" as três dimensões que assim se apresentariam:

O passado, que ressurge como fantasma, o presente como um tempo suspenso, e o futuro, tempo marcado por projeções, desejos e temores. Desse modo, o tempo da gestação fica caracterizado como um tempo intermediário - entre os fantasmas e desejos do passado e as projeções do futuro (ARAGÃO, 2016, p. 60).

No entanto, quando há malformação, este tempo intermediário sofre uma ruptura.

Missonier (2004) aponta que a gravidez representa um momento de grandes exigências psíquicas para a mulher, pois o feto vai se deslocando de uma parte de si para uma posição de outro estrangeiro, dentro do próprio corpo. Há, ao mesmo tempo, um bebê-rei e um bebê-ameaça, compreendido através da noção freudiana de "inquietante estranheza" (MISSONIER, 2004), aquele que guarda as sombras das angústias dos pais, de sua ambivalência afetiva, de amor e ódio inconscientes. Assim, considerando com Guerra (2010) que o vínculo entre a mãe e seu bebê "é uma história de encontros e desencontros, de claridades e opacidades, de harmonias e desarmonias", no caso da malformação do bebê, estamos em um cenário de inúmeras vicissitudes e grande exigência de trabalho psíquico para os pais. Moema viveu este processo no contexto de uma gravidez inesperada, o que tornou sua experiência mais difícil e complexa.

A notícia da malformação instaura uma crise, uma "fratura" na imagem do bebê provocando uma experiência traumática de choque e pavor (ANSERMET, 2003). Os pais se descobrem numa situação de não poderem elaborar uma estrutura representacional de seu bebê, experienciando o que Stern (1997) denominou como "um vácuo representacional". É sempre uma vivência de crise intensa e possibilidades de disrupção. Com isso, instala-se na mãe uma vivência de luto, perda e ferida narcísica (GOMES; PICCINI, 2010). Bydlowski, (2002) estudou os movimentos psíquicos na mulher grávida e fez a descrição de um funcionamento psíquico maternal que se caracteriza pelo enfraquecimento das habituais resistências da mulher diante do recalque inconsciente. Assim, a gravidez torna-se um momento propício à revivescência intensa de conflitos infantis não resolvidos e dos laços que a mulher constituiu com seus próprios pais (DAVOUDIAN, 2013).

Na situação clínica que estamos tratando, a notícia de que havia alguma alteração fetal surgiu na metade da gravidez. O diagnóstico da malformação foi posterior. A indução do parto foi feita com 27 semanas de gestação e 20 dias após o diagnóstico. Moema me disse que após a interrupção houve um momento em que se sentiu particularmente aliviada, pensando que tudo iria melhorar e a vida voltaria aos poucos ao normal. Essa expectativa parece indicar uma tentativa de uso de defesas de onipotência e negação da dor envolvida. Este sentimento de alívio pode ser compreendido, a partir do referencial teórico aqui trabalhado, como uma tentativa de emprego de um recurso maníaco - que seria acionado para libertar o sujeito da culpa e do medo de aniquilamento. Assim, tais defesas viriam se contrapor ao pesar e à dor. No entanto, posteriormente, em vez de melhorar, como esperava, a paciente começou a sentir-se muito ansiosa, culpada e sem conseguir pensar em outra coisa.

Moema, ao chegar para atendimento psicoterápico, estava deprimida, dizia-se muito isolada, em alguns períodos, acamada. Sentia-se culpada pela gravidez não desejada, e por sua interrupção; me disse mais de uma vez que vivia aquela interrupção como se tivesse "matado" a criança, e que deveria ter aguardado até o final da gestação.

Iniciou também atendimento com um psiquiatra da instituição. Uma primeira fase do seu tratamento foi marcada por uma piora de seu estado, tendo diversas vezes tentado o suicídio. Passou a ouvir vozes chamando-a para morrer.

O casal tinha um filho de 25 anos e mostrava um relacionamento amoroso. A história familiar de Moema é marcada por muita precariedade social e violência. Seu pai era alcoólatra, afetivamente distante, de quem tem lembranças de cenas de brutalidade. Lembra-se que ele batia muito nos filhos (ela e dois meninos) e que abandonou a família quando ela tinha 12 anos. Não houve nenhuma conversa sobre isso, nem contato posterior com ele. Em uma sessão, ela se recorda de que era frequente o pai chegar bêbado em casa, algumas vezes botando a mulher e os filhos para fora de casa. Nessas ocasiões eles dormiam na rua, do lado de fora da porta de casa. Talvez o pai imaginasse que sua violência e descontrole poderia levá-lo a destruir sua família, sendo melhor afastar-se para mantê-la preservada. A mãe, de quem Moema teve maior carinho e proximidade, é considerada "dura", pouco afetuosa com os filhos e, em suas lembranças, quando criança a mãe deixava Moema e seus irmãos muito soltos, sem cuidados adequados. A mãe e também em algumas ocasiões, o pai, brigava com ela quando alguma atividade doméstica da qual era incumbida não era considerada "bem feita". Aos 10 anos já tinha responsabilidades de cozinhar e limpar a casa. Em sua casa todos temiam muito seu pai. A mãe também era considerada rigorosa e ameaçadora. Moema casou-se cedo, aos 16 anos, e expressa muito carinho pelo marido e pelo filho.

É importante salientar as dificuldades de elaboração do luto próprias ao óbito de um feto ou de um recém-nascido, é chamado de luto perinatal. A notícia da malformação instaura uma crise, uma "fratura" no ideal que o bebê representa, provocando grande choque e extenso processo de reorganização psíquica parental. O nascimento de um bebê com malformação representa o contato com um mundo desconhecido, com algo irrepresentável, de tal ordem que poderíamos dizer que "as coisas permanecem suspensas. Nada escora a situação [...]. É esse furo que traumatiza" (ANSERMET, 2003, p. 50).

A rede social que cerca os pais que viveram a perda de um bebê, por vezes, pode apresentar dificuldades de entender a dor que eles estão sentindo. O luto perinatal é tido por Vera Iaconelli (2007) como insólito, uma vez que tem características que o tornam incompreensível e irreconhecível para o entorno. Há grande dificuldade de atribuir à morte de um bebê (pré ou pós-termo) o estatuto de morte de um filho.

Esta verdadeira negação do sofrimento dos pais funciona como o desmentido da perda e obstrui a possibilidade de representação. O traumático é entendido aqui como algo da ordem de uma experiência, cuja dimensão requer intenso trabalho psíquico e que não encontra condições de ser operada (IACONELLI, 2007, p. 615).

É como se tal luto tivesse em si algo da ordem da incomunicabilidade (IACONELLI, 2007). Se o reconhecimento é uma necessidade vital que todo indivíduo tem de ser ouvido e respeitado (GONDAR, 2017), sua recusa é considerada por Ferenczi (1931/2011) como da ordem de um desmentido da própria condição de sujeito, já que suas percepções e seu sofrimento são negados. Moema refere-se a ter tido uma experiência desta natureza, seja com parentes, amigos e mesmo com sua mãe que, naquele período, não se mostraram sensíveis ao seu sofrimento, não tendo efetivamente se disponibilizado a dividir sua dor pelo bebê morto e ainda posteriormente, não compreenderam seu sofrimento prolongado e tão intenso relacionado à perda desse bebê.

Ao longo dos atendimentos muitos sonhos foram relatados. Inicialmente Moema contou um sonho relativo ao nascimento. Moema tentava pegar o bebê, mas não conseguia. Outro sonho se repetia: a cena era imediatamente após o parto, ela com o bebê nos seus braços, pedindo socorro, ajuda. A imagem que via era sempre de um bebê que lhe parecia muito pequeninho, roxinho. Tratava-se de um contexto traumático, de excesso e de contato com um bebê estranho, vivo-morto. No sonho, assim como em sua experiência, vida e morte foram sobrepostas (AGUIAR; ZORNIG, 2018). Este sonho traumático se repetiu inúmeras vezes, como se ela estivesse buscando elaborar a situação vivida, apresentando, no entanto, a cada relato, diferentes detalhes, como por exemplo, a existência de cobertas delicadas que envolviam o bebê.

Procurei reconhecer o sofrimento envolvido na perda do bebê como perda de um filho, e na decepção vivida por gerar um bebê com malformação. Busquei aos poucos explicitar suas fantasias de punição pela malformação, por não ter desejado a criança e por não ter esperado até o fim da gravidez. Estava presente a fantasia inconsciente de que não conseguiu preservar seu bebê e também a culpa por um suposto ataque sádico expresso na interrupção da gravidez. Embora ao longo dos atendimentos eu tenha procurado marcar que a síndrome genética é uma fatalidade, um erro da natureza e que ela e os médicos são impotentes para mudar tal situação, para repará-la, persistia a ideia de que houve uma punição - ela não conseguia sair da depressão, como se estivesse presa a uma fantasia de ataque e castração.

Para analisar o processo de luto de Moema partimos aqui da compreensão de que houve uma reativação da posição depressiva infantil. O mal-estar psíquico estaria relacionado a ansiedades e ao domínio de objetos internos maus trazendo o perigo de desmembramento de seu mundo interno. Angústias psicóticas foram reativadas. A perda envolve culpa em relação ao objeto perdido e medo de que ele retorne de forma persecutória. A dor do luto liga-se à necessidade de reedificar o mundo interno, dada a vivência de deterioração e colapso. O trabalho psíquico aqui envolvido seria então aquele próprio à posição depressiva, o de integrar e restabelecer o mundo interno, e possibilitar a constituição de um objeto total com aceitação da ambivalência afetiva.

O sentimento intenso de culpa e remorso correspondia a um superego tirânico que ficava lhe apontando "falhei e não posso me perdoar", "vai ter que pagar caro". Assinalei em alguns momentos o quanto era difícil ela se autorizar a sair ilesa dessa situação, apontando aos poucos, que dentro dela parecia haver uma "justiceira cruel", como se ela tivesse que ter o mesmo destino que a criança, não tivesse direito à vida. A voz que a chamava para morte parecia implacável, não dava chances, atordoava-a. E preocupava a mim e ao marido. Em algumas ocasiões ela me passou mensagens no celular muito diretas, dizendo telegraficamente que tinha tentado se enforcar. Não havia espaço para perdão, para novas chances, ela atacava a si e ao outro também, chocava a mim e ao marido. Ela ensaiava a desistência e a endereçava.

Klein nos aponta que o sofrimento pela perda real da pessoa amada é aumentado pelas fantasias inconscientes de também ter perdido os objetos "bons" internos e pelo sentimento de predomínio de objetos maus. O mundo interno torna-se caótico e há forte vivência de perigo de uma ruptura. Angústia e medo de aniquilamento dominavam.

Após a licença-maternidade a que teve direito, Moema voltou ao trabalho tendo a esperança de que, ao se ocupar, iria melhorar. Ficava evidente um enorme esforço para se adequar a um ritmo muito intenso de atividades, seja pela longa jornada, seja pelo esforço psíquico para se manter ativa e capaz de dar respostas no trabalho. Aqui, novamente fez-se presente um funcionamento severo. Rondando todo este esforço estava o medo de ser castigada, de ser despedida. Esse temor, embora envolvesse sua sensação de desconfiança, que foi reativada, tinha uma base na situação real de conseguir manter o trabalho em um momento no qual muitos trabalhadores estavam sendo demitidos e ela, por outro lado, estava retornando e ainda muito desadaptada.

Passado um ano e meio da perda do bebê, Moema encontrava-se menos angustiada, sentindo-se mais à vontade no trabalho e, aos poucos, podendo ampliar um pouco o contato com amigos e familiares. Outro sonho foi diversas vezes relembrado. Ela se via na cena do velório em que ficava observando seu bebê no caixão, "muito bonitinho, rosadinho". Essa imagem contrasta com a do bebê "pequenininho e roxinho" presente no sonho que se repetiu por um longo período. O sonho com o bebê rosado talvez represente alguma idealização, a possível, perante um bebê malformado, portanto uma tentativa de emprego de algum recurso maníaco que tivesse o papel de preservação do ego na ligação com o objeto amado, apoiando assim a experiência de perda. A defesa maníaca é um primeiro caminho para superar o sofrimento, antes que o sujeito possa estabelecer confiança em suas capacidades reparatórias. A organização de defesas maníacas protege o ego do desespero total, sendo dirigidas contra a experiência de ansiedade depressiva e culpa (SEGAL, 1975).

Há seis meses a mãe de Moema apresentou um problema de saúde que veio se agravando. A mãe tornou-se uma paciente renal crônica com dependência de hemodiálise e passou a lhe demandar que largasse o trabalho para cuidar dela. Moema tentou convencê-la de que esta não era uma solução viável. Afinal, só há pouco tempo havia retornado da licença psiquiátrica, voltando a trabalhar para reconstruir sua própria vida. Procurou cuidar da mãe após o trabalho e nos fins de semana, mas esta reagiu de forma dura, rejeitando o cuidado possível. Moema teve uma recaída da depressão. Sentiu medo de perder a mãe e se ressentia de sua atitude "dura", de sua mãe não levar em conta a situação dela. Passaram a se falar pelo telefone, pois as visitas que Moema lhe fazia, tornaram-se penosas. Ela se sentia maltratada pela mãe e também pelos irmãos. Sentia que sua mãe a castigava e frustrava com esta forma de reagir. Reativou-se um sentimento de abandono, de ser lesada e também de perseguição. Ao mesmo tempo ela começou a sentir, no ambiente de trabalho, impressões de estar sendo observada e criticada.

Neste período tornou-se novamente presente, de forma repetida, o relato do sonho do bebê em seus braços no momento do nascimento, e seu desespero pedindo socorro. Um outro sonho também foi trazido: a cena do parto e a chegada de um bebê despedaçado, que sai em partes de dentro dela. Ansiedades sádicas e culposas estavam claramente presentes. O sonho expressava o sentimento de desespero, desvalorização e "autoreproche" (KLEIN, 1934/1981). O bebê despedaçado; ela punida, despedaçada, desintegrada e culpada.

Ao longo da análise a relação com seus pais em sua infância foi muito trabalhada. Pudemos reconhecer sentimentos ambivalentes frente à sua mãe, percebida como alguém que não lhe dava a atenção e o carinho de que precisava. O pai ocupava sempre uma posição de violência. Em um momento em que Moema já se sentia melhor, lembrou-se em sessão que certa vez seu pai quebrou seu nariz com socos, por ela ter escondido um livro dele, do qual o irmão pequeno havia rasgado a capa. Moema em sua infância sentiu de perto impulsos destrutivos e a intensidade dessas experiências pode ter amplificado seus sentimentos destrutivos e por consequência, também os culpados. De certo modo, a interrupção da gravidez pode ter favorecido uma fantasia de repetição de um ato violento, semelhante aos que viveu com o seu pai. A interrupção da gravidez talvez tenha tido um conteúdo inconsciente para Moema que a associa à repetição de um padrão de processos violentos "que não merecem perdão".

Suponho que Moema deve ter tido processos tortuosos para instalar imagos dos pais como objetos bons, dentro de si e também para poder elaborar seus próprios impulsos sádicos.

Quando houve a perda do bebê, ela não pôde contar com o reconhecimento de seu sofrimento, próprio à perda de um filho, por parte de sua mãe e de seus irmãos, o que contribuiu para as dificuldades na elaboração do luto e para reconquistar harmonia no seu mundo interno.

Com o desenrolar da análise, que estava em seu segundo ano, ela foi conseguindo elaborar um pouco suas angústias. Compreendo que a explicitação, por mim, de suas fantasias pode ter favorecido alívio e elaboração. A continuidade do seu tratamento comigo e a possibilidade de, na transferência, ela fazer uso do objeto, parecem ter sido fundamentais. Pude suportar suas mensagens diretas e tentativas de autodestruição. Também foi possível me adaptar às suas necessidades, alterando horários, atendendo-a junto com o marido, buscando solução para seu atendimento psiquiátrico, além de procurar ajudá-la na obtenção de uma licença psiquiátrica, quando ela se desorganizou, ao final do primeiro ano de atendimento e estava sem médico. No meio deste processo veio a pandemia de coronavírus, e passei a atendê-la online. Por cerca de seis meses eu a atendi no seu horário de trabalho, única solução que ela via como factível. Ela saía de seu posto de trabalho e ia para uma escada que ligava seu andar ao seguinte e a sessão ali se desenrolava. A escada me pareceu um lugar de passagem e mediação; talvez esse setting possa ser visto como contexto de sua cena interna, de sua busca de integração e de construção de um objeto bom. Atualmente ela está sendo atendida online em casa.

Recentemente, Moema me relatou que, ao passar pelo mesmo caminho que usava para ir ao hospital, houve um momento em que rememorou sua imagem com a barriga grande e seus percursos para o Instituto de Saúde. Ela destacou que desta vez, essa lembrança foi diferente, lhe trouxe saudades, e que não estava mais torturada com suas lembranças. Falou-me que se sentia mais tranquila e que não temia mais esquecer a imagem de seu bebê. Sua face, ao longo da sessão, estava mesmo mais serena e até risonha.

 

Considerações Finais

No trabalho analítico de Moema, a elaboração de suas experiências emocionais esteve particularmente marcada por processos muito perturbadores. Se o processo de luto envolve instalar o objeto perdido dentro de si, tal processo não é primário. Ele compreende a recuperação do processo infantil de introjeção e projeção que leva à instalação de objetos bons e maus e à constituição do mundo interno, à organização do ego e do superego, numa relação complexa para o sujeito e em relação com suas experiências do mundo externo. A experiência de perda do bebê foi traumática e catalisadora de seus processos internos, tendo favorecido a eclosão de angústias mais primitivas. O caos interior e a experiência de aniquilamento, envolvidos no luto, foram adensados. A interrupção da gravidez intensificou, para Moema, uma vivência de nascimento simultânea à de morte. As experiências infantis reais e também as internas, com sua mãe e seu pai, certamente dificultaram a incorporação dessas figuras parentais como personagens que pudessem ser referência para a elaboração posterior de seu luto relativo à perda de seu bebê. No entanto, o cuidado recebido favoreceu a elaboração da perda e das fantasias destrutivas.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 10/05/2021
Aprovado para publicação em: 01/11/2021

Endereço para correspondência
Creuza da Silva Azevedo
E-mail: creuzadasilvaazevedo@gmail.com

 

 

*Doutora em Psicologia. Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz. Membro Associado em Formação do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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