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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.45 Rio de Jeneiro July/Dec. 2021

 

ARTIGOS

 

Da elaboração de Lacan sobre as psicoses a uma política emancipatória a respeito da saúde mental

 

From Lacan's elaboration on the psychoses to an emancipatory mental health policy

 

 

Marcella Hannah Nunes UrubatãI*; Cristóvão Giovani BurgarelliI**

IUniversidade Federal de Goiás - UFG - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo compõe uma pesquisa de mestrado que parte da seguinte pergunta: que direito tem tido o psicótico à sua subjetividade nos tratamentos que são oferecidos ao seu sofrimento? Para promover essa reflexão no leitor, levamos em conta um acontecimento mais recente em relação às Políticas públicas para a Saúde Mental e, em seguida, apresentamos uma articulação entre alguns pontos do percurso elaborativo de Jacques Lacan para indicar um efeito importante de suas construções teóricas acerca das psicoses, qual seja, a referência do sujeito ao significante, em vez dos equívocos de tomá-lo como referido à realidade. Objetivamos, portanto, contribuir com estratégias contra a aparência de uma ordem natural para as experiências humanas e, assim, participar das atuais propostas de políticas emancipatórias.

Palavras-chave: Saúde Mental, Política, Psicose, Subjetividade.


ABSTRACT

The present article is a part of a master's research that starts from the following question: what right has the psychotic had to his subjectivity in the treatments offered to his suffering? To promote this reflection we take into account a more recent event in relation to public policies for Mental Health in Brazil and present an articulation between some points of the elaborative path of the Jacques Lacan's theory to indicate an important effect of his constructions about the psychoses: the subject referred to the signifier, instead of the mistake of taking it as referred to reality. The aim is, therefore, to contribute with strategies against the appearance of a natural order for human experiences and, thus, to participate in the current proposals for emancipatory policies.

Keywords: Mental Health, Policy, Psychosis, Subjectivity.


 

 

Levando em consideração a nossa pergunta-chave Que direito tem tido o psicótico à sua subjetividade nos tratamentos voltados para o seu sofrimento psíquico?, pretendemos, primeiramente, fazer uma exposição, mesmo que pela via de um recorte, sobre o momento atual das políticas públicas voltadas para a saúde mental. Partiremos de um acontecimento mais recente nessa história. Em dezembro do ano passado (2020), o Ministério da Saúde apresentou uma proposta de alteração das estratégias e da rede de cuidado voltadas para a assistência das pessoas em sofrimento psíquico. O projeto consistia em revogar cerca de 100 portarias editadas entre 1991 e 2014 que têm como base as mudanças empreendidas pela Reforma Psiquiátrica.

Para conhecimento do leitor, citamos algumas das propostas apresentadas no projeto: a revogação dos mecanismos de fiscalização e estímulo à redução do tamanho dos hospitais psiquiátricos; a extinção de equipes que apoiam a transferência de moradores de hospitais psiquiátricos para serviços comunitários; a possibilidade de extinção dos Caps voltados ao atendimento de usuários de álcool e drogas; a extinção de serviços para atendimento à saúde da população em situação de rua; o afrouxamento do controle sobre internações involuntárias, revogando portaria que determina comunicação ao Ministério Público, e a dissolução da instância que reúne os principais gestores da política de saúde mental do país.

Não por acaso o projeto ficou popularmente conhecido com o nome de Revogaço. Em reação contrária, o Conselho Nacional de Saúde e o Conselho Nacional dos Direitos Humanos se manifestaram, ambos de 31 de janeiro de 2018, via Nota Pública à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, solicitando a revogação da Portaria 3.588. Para esses órgãos públicos, bem como para outras entidades envolvidas com a Reforma Psiquiátrica1, usuários e profissionais do campo da saúde mental, o desmonte proposto representa um claro retorno ao modelo manicomial. Disso a Frente Ampliada em Defesa da Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial se constituiu, formada a partir da aliança entre trabalhadoras(es), familiares e usuárias(os) dos serviços de saúde mental no Brasil, com o intuito de defender e promover mudanças na Política de Saúde Mental em conjunto com a sociedade, de modo democrático e tendo como horizonte os princípios e diretrizes de atenção e cuidado humanizados e em liberdade.

A proposta de revogação (talvez mesmo, de ab-rogação), que cunhou o nome Revogaço para tal projeto, não surgiu como uma irrupção inaugural e isolada, mas conta com o apoio da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria) que, desde o governo Temer, tem defendido a "nova Política Nacional de Saúde Mental", um projeto que visa à implementação das medidas publicadas pela Resolução CIT Nº 32/2017 e da Portaria MS N° 3.588/2017, que resultaram na implementação do CAPSad IV (Centro de Atenção Psicossocial, Álcool e Outras Drogas), cujas características principais são o aumento de quantidade de leitos nas enfermarias e mais recursos hospitalares visando, sobretudo, aos atendimentos de urgência e emergência. Na contramão do referencial anterior, que privilegia projetos terapêuticos singulares visando ao cuidado contínuo, a partir dos vínculos humanizadores, essa "nova" política defendida pela ABP soa como velha, uma vez que, como já mencionado, traz de volta traços do modelo manicomial que muito recentemente - a partir do empenho das pessoas envolvidas na Reforma Psiquiátrica e na Luta antimanicomial - vem sendo gradativamente substituído pelo modelo assistencial.

A consagração do campo psiquiátrico, bem como de toda a medicina como ciência contou com os interesses e a influência do grande capital e da indústria farmacêutica. Vale relembrar que a reviravolta causada pelo Relatório Flexner (1910) - que elegeu a postura positivista e o método científico na medicina - não por acaso é contemporânea à crescente compra de espaços para propaganda nas publicações da Associação Americana de Medicina (1847) pela indústria farmacêutica. De acordo com Pagliosa & Da Ros,

a associação entre a corporação médica e o grande capital passa a exercer forte pressão sobre as instituições e os governos para a implantação e extensão da "medicina científica". Pode-se concluir, pois, que a medicina científica ou o "sistema médico do capital monopolista" se institucionalizou através da ligação orgânica entre o grande capital, a corporação médica e as universidades (2008, p. 495).

A consolidação dessa medicina científica, que perdura até os dias atuais, nos indica por onde passa o que vem se instalando no Brasil sob o nome de contrarreforma psiquiátrica - termo que aparece na Nota Técnica da ABRASME, publicada em 2020, em virtude do Revogaço. Essa contrarreforma representa as medidas e propostas que vêm sendo - sobretudo a partir de 2015 - produzidas pela ABP a partir das críticas2 de que o modelo da reforma psiquiátrica é oneroso; incompetente no que diz respeito à assistência oferecida; e, não científico, mas ideológico.

A partir do discurso capitalista, a psiquiatria se organiza e delibera diagnósticos e tratamentos. Segundo Dunker (2021), trata-se de um funcionamento que tende a resultar em uma prática consumista que substitui as verdadeiras experiências de um sujeito por simples vivências-padrão. Também, Fisher (2020), em seu livro Realismo capitalista, permite-nos argumentar nessa mesma direção, quando diz que

o neoliberalismo tem procurado acabar com a própria categoria de valor em um sentido ético. Ao longo dos últimos trinta anos, o realismo capitalista3 implantou com sucesso uma "ontologia empresarial", na qual é simplesmente óbvio que tudo na sociedade, incluindo saúde e educação, deve ser administrado como uma empresa (p. 34).

Essa ontologia empresarial, por sua vez, sustenta a aparência de uma ordem natural, e é em direção à destruição dessa aparência que diversos teóricos - de Brecht a Foucault, incluindo aí, entre outros, Lacan e Badiou - orientaram uma política emancipatória. A obra lacaniana participa disso a partir de algumas contribuições importantes como, por exemplo, a inclusão da loucura no campo da linguagem - empreendida por Freud e ampliada por Lacan - e a teoria dos discursos. Neste artigo, por questões metodológicas, nosso recorte buscará abordar mais especificamente a primeira.

Em 1932, ainda um tanto distante da psicanálise freudiana, Lacan defendeu sua tese de doutorado Da psicose paranoica em suas relações com a personalidade.4 Ali discutiu as principais questões da psiquiatria de sua época, sobretudo o que diz respeito ao impasse produzido pelo conceito "doença mental", que dividia o campo entre os partidários da corrente da organogênese e os da psicogênese. Segundo Aires (2016, p. 39),

podemos ler a Tese lacaniana como uma retomada da situação geral da psiquiatria em relação aos conceitos de paranoia e de personalidade, uma discussão - ou melhor dito, uma tomada de posição - frente à dualidade doutrinária da psiquiatria e a proposição de um novo método que implicará o reconhecimento da paranoia de autopunição como uma nova categoria psiquiátrica.

A construção da Tese partiu do método de Jaspers (1883-1969), que consistia em eleger um caso para que, com um estudo rigoroso da vida do paciente, servisse como protótipo para a classificação de casos análogos. Lacan escolheu Aimée, mulher aspirante do mundo das letras. Na abertura do capítulo reservado ao caso, escreve:

Escolhemos, pois, o caso que vamos relatar agora por duas razões. Primeiro, em virtude de nossa informação: observamos, quase cotidianamente, essa doente durante cerca de um ano e meio, e completamos esse exame por todos os meios oferecidos pelo laboratório e pela pesquisa social. O segundo motivo de nossa escolha é o de caráter particularmente demonstrativo do caso: ele corresponde, com efeito, a uma psicose paranoica, cujo tipo clínico e cujo mecanismo, a nosso ver, merecem ser individualizados. Tanto um quanto outro nos parecem dar a chave de certos problemas nosológicos e patogênicos da paranoia e, em particular, de suas relações com a personalidade (LACAN, 1932/2011, p. 145).

O mergulho no cotidiano de Aimée resultou na proposição lacaniana de visar ao processo de individuação a partir das dinâmicas de socialização que segundo Safatle (2018) implica propor uma gênese social da personalidade que, por sua vez, se relaciona à ênfase dada ao que Lacan chama de "história vivida do sujeito", ou sua "história psíquica", engendrando, assim, outra teoria sobre a causalidade psíquica.

Anos à frente, no texto De nossos antecedentes, Lacan (1958/1998) reconstrói algumas de suas memórias. Inicia o texto falando da Tese e, na sequência, põe em discussão a teoria da causalidade psíquica, que não mais se fundamenta numa relação de causalidade assentada nem no fenômeno nem na descrição via enunciados. Ao dar a ver a transformação do conceito de sintoma a partir do caso Aimée e dos estudos iniciais da teoria freudiana, Lacan supera o fosso que a leitura psiquiátrica estabelece entre normalidade e patologia e, assim como Freud, orienta o tratamento por outra via que não a adaptativa.

A fidelidade ao invólucro formal do sintoma, que é o verdadeiro traço clínico pelo qual tomávamos gosto, levou-nos ao limite em que ele se reverte em efeitos de criação. No caso de nossa tese (o caso Aimée), efeitos literários - e de mérito suficiente por terem sido recolhidos, sob a rubrica (reverente) de poesia involuntária, por Éluard (LACAN, 1958/1998, p. 70).

Tomar o sintoma em seu sentido literário permite considerar o delírio (de Aimée) de outro modo, a saber:

[...] o efeito como que de insuflação que, em nosso sujeito, dera à luz esse anteparo a que chamam delírio, a partir do momento em que sua mão tocou com uma agressão não inofensiva uma das imagens de seu teatro, duplamente fictícia para ela por ser a de uma atriz na realidade, reduplicou a conjugação de seu espaço poético com uma escansão abissal (LACAN, 1958/1998, p. 70).

A diferença de localizar a sintomatologia no campo da linguagem implicou outra forma de considerar a relação entre o eu e a realidade. Considerando-os como constituídos em estreita relação e não mais como planos naturalmente ordenados e que podem ser superpostos ou não, Lacan reitera a posição de que os descompassos entre eles não são exclusivos dos casos patológicos e afirma que "é o conhecimento humano, em geral, que se comporta de uma maneira mais ou menos patológica" (SIMANKE, apud AIRES, 2016, p. 88).

"Longe de tomar o eu do homem moderno como norma capaz de delimitar a loucura, perspectiva que tende a conceber a loucura como desrazão, inverdade e termos correlatos" (IANINNI, 2013, p. 91), a nova categoria psiquiátrica proposta por Lacan, desde a sua Tese, apresenta uma via em que os fenômenos da psicose surgem como produtos homólogos à personalidade, e não como "um processo mórbido que introduz algo de heterogêneo ou de novo" (AIRES, 2016, p. 24). Isso o conduziu a cunhar uma nova cartografia das relações da subjetividade a partir da tensão entre razão e linguagem, saber e verdade, sentido e não sentido.

Defendida a Tese, a aproximação com a psicanálise começa a ganhar mais força. Inicialmente, seguiu mais próximo do que se conhece como a psicanálise do eu. Alguns anos depois, lança-se às questões sobre a dialética entre subjetividade e alteridade a partir dos encontros com Kojève, que, entre 1933 e 1939, ministrou seu curso sobre a Fenomenologia do Espírito, de Hegel. Com isso, pôde formular uma teoria do desejo "capaz de fornecer o fundamento para sua ideia de uma ciência da personalidade enquanto solo de orientação da análise das patologias mentais e de uma clínica de moldes psicanalíticos" (SAFATLE, 2018, p. 31).

Mas foi por volta dos anos 50, em contato com a antropologia de Lévi-Strauss, que Lacan empreendeu um retorno ao inconsciente freudiano. Daí em diante a noção de inconsciente, cujo estatuto advém do estruturalismo, ganha a centralidade de sua teoria. Daí a afirmação: "o inconsciente é, no fundo dele, estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem" (LACAN, 1955-56/1989, p. 142). A partir disso, destaca a referência do sujeito ao significante, indicando os equívocos de tomá-lo como referido à realidade (modelo psicológico e médico).

Assim, a prática analítica consolida a direção tomada desde o início, na Tese, direção oposta à que se daria a partir de uma abordagem psicológica da constituição do sujeito. Em Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan explicita esse ponto nodal que perpassa toda a sua elaboração.

Todo ponto de partida tomado da relação do sujeito a um contexto real pode ter sua razão de ser em tal experiência de psicólogo. Pode dar resultados, ter efeitos, permitir compor tabelas. Mas, é claro, será sempre em contextos em que somos nós que a fazemos, a realidade - por exemplo, quando propomos testes ao sujeito, testes que são organizados por nós. É o domínio de validade do que se chama psicologia, que não tem nada a ver com o nível em que mantemos a experiência psicanalítica e que, se assim posso dizer, reforça incrivelmente a miséria do sujeito (LACAN, 1964/2008, p. 141).

A psicopatologia, então, para a psicanálise lacaniana, não se ocupa de outra coisa senão dos efeitos de linguagem no sujeito. Para se dar conta melhor do que se consolida nesse momento da elaboração lacaniana, pode ser importante pinçar em seu percurso estes dois pontos: o primeiro n'O seminário, livro 2 (O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise) e o segundo n'O seminário, livro 3 (As psicoses).

Ao delinear algumas considerações para o seu seminário sobre as psicoses, Lacan (1954-1955/1985) busca problematizar, com Freud e com os pós-freudianos, algumas articulações entre a psicose da criança e a psicose do adulto, a regressão e o sintoma e, por fim, entre o sonho e a loucura - em vez de tomar a via do compreender demais apegando-se a um "extremo rigor conceitual" (p. 135), ele indaga "Por que será que um sonho não é uma loucura?" (p. 136) e, inversamente, busca definir o mecanismo determinante da loucura que, apesar de diferente, "lida sem dúvida com os mesmos elementos, os mesmos símbolos" (p. 136). Já numa lição mais à frente, Lacan, revisitando o mito de Anfitrião nas versões de Plauto e de Molière, aborda os temas do sósia, do duplo e da miragem do eu. Ali ele argumenta:

Alguns veem nos fenômenos da despersonalização sinais premonitórios de desintegração, quando, no entanto, não é absolutamente necessário ser predisposto à psicose para ter experimentado mil sensações semelhantes, cuja mola se acha na relação do simbólico com o imaginário (LACAN, 1954-1955/1985, p. 335).

Ao oposto, portanto, de se colocar no campo psicológico tomando a psique por uma espécie de duplo que se torna propriedade que o terapeuta vê, Lacan insiste que, embora as dimensões do imaginário e do simbólico se confundam no fenômeno, a questão que se põe para um psicanalista é outra, em que dimensão ele vai se situar com relação ao sujeito, "de uma maneira tal que se realize quer uma oposição, quer uma mediação" (p. 138).

Buscando fortalecer o argumento principal deste artigo, podemos trazer agora o segundo ponto que privilegiamos pinçar dessa longa e insistente elaboração de Lacan sobre as psicoses. Podemos introduzi-lo com a seguinte afirmação: "A promoção, a valorização na psicose dos fenômenos de linguagem é para nós o mais fecundo dos ensinamentos" (LACAN, 1955-1956/1992, p. 167). Com ela, Lacan reforça mais uma vez que a psicanálise não se contenta nem com a nosografia nem com o trabalho psicológico de tornar consciente um pensamento ou de fortalecer as defesas de um ego. É a partir daí que ele vai retomar, um pouco à frente, a carta 52 de Freud - ciente de que "os fenômenos de memória pelos quais Freud se interessa sempre são fenômenos de linguagem" (p. 180) - para articular as suas proposições sobre o significante primordial ao que Freud chamou de Wahrnehmungzeichen (signo perceptivo). Toma, nesse momento, o exemplo do Homem dos lobos e afirma:

[...] a impressão primitiva da famosa cena primordial permaneceu lá durante anos, não servindo para nada, e no entanto já significante, antes de ter o direito de exprimir seu efeito na história do sujeito. O significante é, pois, dado primitivamente, mas ele não é nada enquanto o sujeito não o faz entrar em sua história, que toma sua importância entre um ano e meio e quatro anos e meio. O desejo sexual é com efeito o que serve ao homem para se historicizar, na medida em que é nesse nível que se introduz pela primeira vez a lei (LACAN, 1955-1956/1992, p. 180).

Fica claro, portanto, a partir desse seminário, que Lacan investiga as psicoses com base no estatuto da linguagem, formulando a seguinte questão: "Qual será a relação do sujeito com o significante que distingue os próprios fenômenos próprios da psicose"? (LACAN, 1955-56/1992, p. 181). É nessa perspectiva que ele se propõe a uma leitura rigorosa tanto do texto de Freud sobre Schreber - Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (dementia paranoides) - quanto das Memórias de um doente dos nervos, do próprio Schreber.

Já que não conhecemos o sujeito Schreber, devemos de qualquer maneira estudá-lo através da fenomenologia de sua linguagem. É, pois, em torno do fenômeno da linguagem, dos fenômenos de linguagem mais ou menos alucinados, parasitários, estranhos, intuitivos, persecutórios de que se trata no caso Schreber, que vamos esclarecer uma dimensão nova na fenomenologia das psicoses (p. 120).

Sem dúvida, Lacan não se encontra no campo psiquiátrico. Os fundamentos e a direção são outros. Ainda nesse mesmo seminário, mesmo considerando que ele e os ouvintes para quem fala são "pessoas diversamente iniciadas na psiquiatria" (p. 122), ele diz: "cada vez que a psiquiatria avançou um pouco, foi aprofundada, logo perdeu o terreno conquistado pela própria forma de conceituar o que era imediatamente sensível nas observações" (p. 28). Para Lacan, isso ocorre, principalmente, devido ao equívoco de se considerar o signo, e não o significante, na prática clínica, desfazendo-se, consequentemente, da irredutibilidade própria ao fenômeno elementar para situá-lo no plano da compreensão. Eis, então, o seu alerta: "Comecem por não crer que vocês compreendem. Partam da ideia do mal-entendido fundamental." (p. 30).

A tentativa de eliminar esse mal-entendido pressupõe a possibilidade de um eu unificado, senhor de si. No que diz respeito à fala, seria como fazer coincidir totalmente enunciado e enunciação, e, consequentemente, impossibilitar um movimento desejante, cuja dinâmica se estabelece, justamente, sob a barra que as separa. Por outro lado, na referência do sujeito ao significante, de acordo com Lacan, essa identidade entre a enunciação e o enunciado se torna impossível, o que, por sua vez, garante a distinção entre saber e verdade. Isso "é o que permite alargar a racionalidade até um ponto em que a loucura não seja excluída, pois a noção de subjetividade não se funda mais na transparência, nem na intencionalidade" (IANINNI, 2013, p. 92).

A partir do "universo dos interditos da linguagem" (FOUCAULT, 1964, p. 215), os fenômenos da psicose se incluem no campo da verdade. Assim, o que a fenomenologia da loucura é capaz de indicar é que o eu é um outro (LACAN, 1955-56/1992), ou seja, o eu não está dado naturalmente nem é autônomo, como se costuma conceber, mas se constitui a partir de e em oposição a um outro. Isso, na obra lacaniana, implicou a desnaturalização das experiências subjetivas (incluindo o sofrimento psíquico) bem como uma crítica radical à razão dos tempos modernos. Contrariamente, portanto à aparência de uma ordem natural, depreendemos de toda a elaboração aqui alinhavada uma inversão importante: ao invés de seguir patologizando a subjetividade do louco para poder tratá-la, questiona-se a concepção de normalidade e de patologia da qual se parte.

Isso nos permite retornar a questão das políticas públicas de saúde mental no Brasil alertando que, apesar de as medidas propostas pelo Revogaço, felizmente, não terem sido implementadas, aquilo que lhe deu ensejo está longe de estar bem encaminhado em nossa cultura. Passa, não só pela influência do modelo da medicina científica e suas relações com o discurso capitalista apontados no início, mas, também, pela concepção de loucura que, nesse caso, se tenta produzir para legitimar uma prática. Portocarrero (2002), em sua tese Arquivos da loucura, Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da psiquiatria, apoiando-se no olhar foucaultiano, defende a concepção apresentada por Machado (1978), em Danação da norma, e que a psiquiatria no Brasil se constitui no cerne da medicina social, e que isso, por sua vez, implica que o louco surge a partir da medicalização da sociedade; do processo de conceber a sociedade como um novo objeto no campo médico e daí buscar modos e formas de controle social. Em outras palavras, no que diz respeito à experiência subjetiva e ao sofrimento, a medicalização funda o que se chama de loucura a partir da atribuição do signo de doença a determinados comportamentos.

Diante disso, e seguindo a orientação freudiana de que o psicanalista deve agregar à prática clínica do um-a-um a função de crítico da cultura que testemunha, tomamos o campo social como cena e indicamos que o Revogaço, além de perpetuar uma política coercitiva, excludente e pautada nos interesses hegemônicos, torna perceptível a manutenção e a defesa de uma ontologia naturalista que funciona para obturar as fraturas e inconsistências no campo da realidade aparente que a loucura é capaz de dar a ver - sendo que são justamente essas fraturas e inconsistências que, ao romper com a aparência do natural, nos indicam o sentido das revisões e repactuações necessárias tanto socialmente, como em relação ao campo do saber. Assim, é possível depreender que as formalizações acerca da psicose na teoria freudiana, mas sobretudo com Lacan, nos apontam para uma concepção da loucura que tem a possibilidade de funcionar como uma estratégia política interessante contra a manutenção de políticas públicas excludentes, que vão contra as possibilidades de transformação cultural, discursiva e subjetiva, que naturalizam a experiência e o sofrimento psíquico, e que são articuladas pelo discurso capitalista.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 09/08/2021
Aprovado para publicação em: 21/10/2021

Endereço para correspondência
Marcella Hannah Nunes Urubatã
E-mail: marcella.hannah@gmail.com
Cristóvão Giovani Burgarelli
E-mail: crgiovani@gmail.com

 

 

*Graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Psicanalista. Goiânia, GO, Brasil.
**Pós-doutorado em Ciências da educação pela Universidade Paris 8, Vincennes-Saint-Denis. Doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Psicanalista. Professor titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG), no curso de Pedagogia e no Programa de Pós-graduação em Psicologia. Goiânia, GO, Brasil.
1A Reforma Psiquiátrica Brasileira é um movimento sociopolítico ocorrendo no âmbito da saúde pública que, do ponto de vista da gestão de políticas públicas, consubstancia-se em uma legislação em saúde mental iniciada em 1990, com a Declaração de Caracas, aprovada por aclamação pela Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica dentro dos Sistemas Locais de Saúde. O Brasil é aderente a essa Declaração, e a ela se articula com um longo e conturbado movimento de trabalhadores de saúde mental que resultou na Lei n. 9.867, de 10 de novembro de 1999. Tal lei permite o desenvolvimento de programas de suporte psicossocial para os pacientes psiquiátricos em acompanhamento nos serviços comunitários. É um valioso instrumento para viabilizar os programas de trabalho assistido e incluí-los na dinâmica da vida diária, em seus aspectos econômicos e sociais. Há evidente analogia com as chamadas "empresas sociais" da experiência da Reforma Psiquiátrica Italiana. Em 6 de abril de 2001, o Governo Federal promulga a Lei n. 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental (BERLINCK; MATGAZ; TEIXEIRA, 2008, p. 21).
2A crítica da ABP ao fechamento de leitos nos hospitais psiquiátricos encontra-se disponível em: <https://agencia-brasil.jusbrasil.com.br/noticias/2256252/medicos-criticam-fechamento-de-leitos-em-hospitais-psiquiatricos>.
3Segundo o filósofo Mark Fisher (1968-2017), a expressão realismo capitalista "não é original. Já foi usada, na década de 1960, por um grupo de pop art alemã e por Michael Schudson em seu livro de 1984 Advertising: the uneasy persuasion" (FISHER, 2020, p. 33), assim o que é novidade no uso que Fisher faz se relaciona à expansão do significado. Para o autor a expressão "não pode ser confinada à arte ou à maneira quase propagandística pela qual a publicidade funciona. Trata-se mais de uma atmosfera penetrante, que condiciona não apenas a produção da cultura, mas também a regulação do trabalho e da educação - agindo como uma espécie de barreira invisível, limitando o pensamento e a ação" (Ibid., p. 33).
4Nos demais momentos em que estivermos nos referindo a esse texto grafaremos apenas Tese.

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