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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.11 n.11 São Paulo dez. 2005

 

PART I

 

Adolescência: do mito coletivo ao mito individual

 

Adolescence: from the collective myth to the individual myth

 

 

Gislene Jardim*

Sociedade de Pediatria de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata da relação entre a cultura e o sujeito na adolescência, por meio da concepção psicanalítica do complexo de Édipo como uma estrutura. O momento da adolescência é abordado como uma operação psíquica em que o sujeito se depara com a reconstrução da cena fantasmática originária do complexo de Édipo da infância. A ampliação do laço social na adolescência é compreendida como uma conseqüência da busca do sujeito por novas relações de objeto que desencadeia formas particulares de sintomas psicopatológicos.

Palavras chave: Adolescência, Psicanálise, Mito familiar, Complexo de Édipo, Laço social.


ABSTRACT

This article deals with the relation between culture and subject in the adolescence through a conception of psychoanalysis, the Oedipus complex, as a structure. Adolescence is treated as a psychic operation which the subject comes across the phantasmal scene reconstruction due to the Oedipus complex. The strengthened of the social bond in the adolescence is seen as a consequence of the search of subject for new object relations that stimulate particular forms of psychopathologic symptoms.

Keywords: Adolescence, Psychoanalysis, Familiar myth, Oedipus complex, Social bond.


 

 

A estrutura familiar como estrutura mínima da vida social

Ao tomarmos o complexo de Édipo como um modelo de estrutura de sustentação do sujeito e como um modelo de referência para a organização do campo social do qual o sujeito é extraído, colocamos na mesma dimensão a estrutura da sociedade e a do sujeito. Ao fazermos essa aproximação teórica, o tabu do incesto aparece como um eixo ordenador das relações em ambas as estruturas. Todavia, ao considerarmos o mito de Édipo como referência para a organização da vida social, tal como propõe Freud, e aplicarmos essa mesma estrutura edípica ao sujeito, uma outra interpor-se-á entre o coletivo e o individual, entre o social e o sujeito: a estrutura da “família conjugal” (LACAN, 1969: 14). Será a estrutura familiar – que supõe o interjogo da função materna com a função paterna na constituição do sujeito – a grande responsável pela tradução1 ou pela transmissão dos lugares simbólicos do jogo edípico.

Para Lacan (1980), o mito coletivo aparece no centro da clínica psicanalítica – mais precisamente, no cerne das formações sintomáticas do sujeito – e remete, sempre, à pré-história de cada um. Os sintomas analíticos revelam o modo como foram estabelecidas as relações familiares fundamentais que o precederam, mesmo que de modo contingente, mas que são a base do que há de mais fantasmático e de mais particular no sujeito. Dito de outro modo, os sintomas escutados na clínica psicanalítica podem ser entendidos como efeitos do mito coletivo da fundação da vida social no mito individual, ou seja, daquele sujeito em particular, sustentado pela estrutura familiar; ela própria portadora de uma versão mítica que inclui o social e o sujeito. Nessa perspectiva, a estrutura familiar pode ser considerada como estrutura mínima da vida social. De certo modo, Freud (1930) já tinha considerado a estrutura familiar como a célula mínima das relações sociais quando afirmou, por exemplo, que “a família não abandona o indivíduo” (FREUD, 1930: 123). Podemos somar a essa afirmação freudiana a suposição de que a família não abandona o sujeito exatamente por ele só ter existência2 por meio dos laços conjugais e familiares que o antecederam3. Dessa forma, a pré-história do sujeito só se torna possível pelo mito familiar.

No entanto, é sabido que o complexo de Édipo estrutura a cena fantasmática do sujeito e que o tempo da infância é, por excelência, o momento crucial para a organização das posições dos elementos da cena, ou seja, do lugar do pai, da mãe e do filho. Sabemos, ainda, que o sujeito infantil poderá vir a ter um lugar discursivo somente se ele se assujeitar ao campo do Outro parental. Por outro lado, sabemos que as mudanças no corpo advindas com a puberdade abalam a ordenação da estrutura edípica que foi construída pelo sujeito na infância na medida em que sua posição de sujeito na tríade da cena fantasmática deve, agora, incluir um significante de referência ao sexual (ao Outro sexo), dado que esse novo tempo de identificações estará marcado por uma nova imagem de corpo próprio, referida a uma posição sexual discursiva masculina ou feminina. A estrutura edípica montada na infância apontará para o lugar do sujeito no discurso social. Desse modo, a operação adolescente – ela própria uma operação psíquica – consistirá em aproximar o real do corpo à imagem do corpo próprio sexuado, fazendo assentar sobre essa imagem um significante referenciado ao Outro sexo. Nessa reoordenação, aparecerá o impossível da relação sexual no lugar da falta fundamental do sujeito. Essa dimensão é logicamente possível ao sujeito depois de estabelecida uma diferenciação discursiva entre as posições masculina e feminina, diferenciação iniciada na infância pelo complexo de Édipo, mas só finalizada no tempo da adolescência, depois do enigma colocado pelo Outro sexo, o feminino. Colocar a estrutura familiar no centro das organizações sociais é também tomá-la como referência fundamental do sujeito. Isso implica pensar que a estrutura familiar questionará e será questionada pelo sujeito nos diferentes momentos lógicos da constituição subjetiva. Podemos conjecturar que as crises da adolescência interrogam justamente as bases da estrutura familiar que, outrora, deram contorno à sua própria constituição subjetiva. Assim, o desafio da adolescência como uma operação psíquica será a reconstrução da cena fantasmática que originou o complexo de Édipo na infância. Apesar da estrutura familiar ser o cenário do complexo edípico, sabemos que é para cada um que essa montagem mostrar-se-á, ou não, eficaz. Sob os efeitos da puberdade, o estilo de cada adolescente de reeditar a cena edípica da infância apontará não somente para o seu próprio sintoma4, como também para uma forma de gozo. É desse modo que o mito familiar de cada sujeito falante fará a ligação entre o mito coletivo e o mito individual.

 

Complexo de Édipo e adolescência: a ampliação do laço social

O mito coletivo pode associar-se com a fantasmática individual do sujeito em dois momentos: pela alienação ou pela separação ao campo do Outro. De acordo com Poli (2003), as narrativas de origem do sujeito na situação analítica revelam a dupla face de uma mesma estrutura: elas colocam em cena o mito coletivo e a fantasia individual. Isso significa dizer que “a passagem individual pelo complexo de Édipo pressupõe que o mito da horda primitiva esteja inscrito no discurso que dirige o laço social” (2003: 83-84). E mais, podemos considerar o complexo de Édipo como uma atualização ontogenética de uma herança filogenética da horda primitiva, pois ambas as estruturas organizam discursivamente o jogo de posições do enlace pulsional. A conseqüência disso é que “uma narrativa das origens não é nem individual, nem social” (2003: 84), pois ela se situa no ponto de encontro entre a clínica social e a psicopatologia individual. Nessa perspectiva, a adolescência como uma operação psíquica seria um dos tempos lógicos do sujeito, tempo em que ele estaria às voltas com a construção de uma narrativa sobre sua origem, incluindo a alienação e a separação do campo do Outro. Para Poli (2003), as narrativas de origem podem ser abordadas do lado da cultura (ou do Outro) ou do lado do sujeito, de acordo com as seguintes correspondências5: cena primária e teoria sexual infantil, romance familiar e mito individual (do neurótico), tragédia e fantasma e, por último, sintoma e sinthoma. O primeiro elemento do par responderia pelo tempo de alienação do sujeito ao campo do Outro e o segundo corresponderia ao tempo da separação do Outro; essa divisão poderia ser feita colocando, de um lado, o social (a cultura) e, do outro lado, o particular (o sujeito). Temos como exemplo das narrativas de origem a seguinte comparação: “na cena primária o sujeito é contado pelo Outro [e] na teoria sexual, ele se conta para outros, apropriando-se dos significantes do Outro” (2003: 87). Esse mecanismo valeria para cada um dos pares de narrativas, uma vez que eles estariam em funcionamento em diferentes tempos da constituição subjetiva.

Se a passagem pelo complexo de Édipo garante ao sujeito a representação de si próprio pelo referencial fálico, a explosão pubertária fará com que sujeito chegue à adolescência com o enigma do Outro sexo. Uma reconstrução da cena edípica estruturada na infância faz-se necessária, dado que as pulsões ordenadas pelo falo tenderão a uma organização genital em que prevaleça uma das posições discursivas sexuais (a feminina e a masculina); a construção do feminino como Outro sexo implicará a busca de um significante que seja referência dA mulher no discurso. A ausência desse significante provocará o adolescente a perguntar-se “o que quer uma mulher?”

Para Poli (2003), “a adolescência é, pois, o momento no qual o fantasma vai se constituir em versão de uma tentativa de representação do movimento de alienação/separação do sujeito na relação com o Outro sexo” (idem p. 91). A inevitável produção de sintomas na adolescência revelará exatamente isso: a insistência do sujeito em resolver o enigma colocado pelo Outro sexo. Sabemos que o sujeito ficará em suspenso diante desse enigma, o qual já estava lá na infância, já colocado pelo complexo de Édipo, mas que foi resignificado depois da explosão pubertária.

Nessa perspectiva, como operação psíquica, a adolescência é uma tentativa6 de enlace do real, do imaginário e do simbólico, e o sintoma no tempo da adolescência representaria o quarto elo, aquele que sustentaria – provisoriamente, ou não – uma posição discursiva do sujeito, estabelecendo lugares para o desejo e o gozo. Teríamos que considerar, também, que a adolescência como uma operação psíquica poderá, ou não, produzir uma nova inscrição significante; na adolescência, o jogo edípico será remontado para o sujeito, exigindo-lhe uma reformulação fantasmática que inclua o Outro sexo. O trabalho psíquico na adolescência será sempre de cada um, e não há garantias7 de que esse trabalho seja concluído com o lançamento do sujeito para o universo adulto. A conseqüência da reconstrução da cena edípica do sujeito na adolescência será o surgimento de novos objetos a que passarão a nortear a busca por novas formas de gozo, sendo os sintomas8 na adolescência a contraprova da operação psíquica em curso.

A reedição do complexo de Édipo na adolescência provoca, no sujeito, uma reordenação pulsional em que prevalecerá o caráter genital, diferenciando a posição masculina da feminina. A relação do sujeito com o outro/Outro verá-se abalada à medida que a promessa edípica não se cumpre. Isso faz com que outras referências passem a ser almejadas pelo sujeito. É nesse momento que a relação fraterna com o semelhante, com outros adolescentes, torna-se prevalecente à relação familiar. É nesse momento que a estrutura da família, em seu todo, será estilhaçada pelo adolescente. Para Lesourd (2004), esse cenário corresponde à percepção do sujeito de que “há um significante faltando no Outro”. Ele prossegue:

“... a descoberta do logro que é a promessa edipiana revoluciona toda a organização psíquica do sujeito e especialmente a sua relação com o significante. Não há mais resposta aos enigmas da vida e do sentido, não há mais significação última que organizaria o conjunto dos significantes ordenando-os. Não há grande organizador de um sentido da vida, o céu está vazio Deus está morto, ou, para falar em termos analíticos, não existe mais, como no tempo da infância, um Outro que teria resposta para tudo, que saberia tudo” (LESOURD, 2004: 114).

Para Lacan (1972-73), há uma relação entre o Outro sexo, o feminino, e a descoberta de um significante da falta no Outro. Podemos supor que a desilusão fálica sofrida pelo sujeito no momento da adolescência resulta da percepção de que A mulher não existe e de que tampouco existirá a completa relação sexual prometida na infância. Essa desilusão será a fonte do desamparo e da agressividade do adolescente dirigida para o outro/Outro parental. A angústia e o desamparo provocados pela quebra de suposição de saber no Outro parental levarão o adolescente a fazer novos laços. Quanto mais o adolescente contestar o Outro do território familiar – confrontando os lugares da sua estrutura familiar – mais ele procurará elementos novos com os quais se identificar9 fora da família. É nessa perspectiva que a ampliação do laço social na adolescência poderá ser tomada como uma das conseqüências do rearranjo da cena edípica para a inclusão do sexual. A reordenação dessa cena na adolescência partirá do desenlace do sujeito com o Outro parental, e outras encarnações do Outro serão buscadas pelo adolescente no discurso social. Aqui, constatamos, de fato, que a ampliação do laço social na adolescência decorre da busca do adolescente por significantes estrangeiros aos familiares, significantes que o representarão no discurso.

 

Laço social e formações psicopatológicas na adolescência

O enfraquecimento da função paterna no campo social colabora para que o sujeito adolescente coloque um semelhante no lugar do saber suposto no Outro parental. Isso traz uma conseqüência importante para a travessia da adolescência: o laço fraterno mostrar-se-á como aquele que poderá suprir o sujeito de suas faltas, indicando não somente sua nova posição discursiva sexuada, como também alguns objetos de gozo. É nesse momento que a fabricação de um sintoma na adolescência encontra terreno fértil, para cada adolescente, no laço social mais amplo10.

Para o adolescente, o Outro que lhe servirá de referência poderá estar encarnado na figura dos irmãos de sangue, dos amigos e dos ídolos que, imaginariamente, suportarão os objetos de gozo, substitutos dos objetos prometidos pelos pais. Na adolescência, a identificação com o semelhante mostrar-se-á como uma saída para a elaboração do mal-estar familiar, em que os pais revelaram-se como aqueles que não têm seus objetos de gozo. A procura do adolescente por um semelhante provocará, de acordo com Melman (1997), a instalação de um novo sistema em que

“... inicialmente, é a fraternidade que domina, ou seja, um sistema de trocas entre os participantes, que está fundado na reciprocidade do dom. Eles se trocam coisas, trocam os livros, passam a moto e, até mesmo, ao extremo, podem se trocar as meninas, mas, em todo caso, inventa-se um sistema de trocas que não tem mais a ver com a dureza e a crueldade da nossa troca social. É um sistema, em última análise, simples: aquele que tem pode passar para o amigo, que pode passar ao outro e assim sucessivamente... Circula. As roupas também circulam. É uma sociabilidade na qual todo mundo é semelhante” (1997: 35-36).


Em relação ao ídolo, Lesourd (2004) ressalta que a sua função na adolescência é ser figura de identificação para o sujeito e que será “nas relações sociais, no que chamaremos discursos sociais, que é preciso procurar a origem do ídolo, a sua criação” (2004: 86-87). Podemos supor que o adolescente busque no ídolo aquilo que lhe faz falta na relação com o Outro parental. Geralmente, tais objetos11, materiais ou simbólicos, têm a ver com o mundo do adulto, tão almejado pelo adolescente. No entanto, não podemos esquecer que os ídolos veiculam certos valores sociais que podem representar, ou não, aqueles valores transmitidos pela estrutura familiar. Por isso,

“... o ídolo só pode ser compreendido como uma mistura. Modelo identificador de diferenciação em relação aos adultos, ele é também uma representação dos valores dominantes da sociedade do momento, a dos adultos. Ele tem assim para o adolescente uma função de laço com os da sua classe de idade, os pares contra os adultos, mas também de laço com a sociedade em seu conjunto, através das mensagens de valores que ele transmite” (LESOURD, 2004: 89).

Se, por um lado, o ídolo apresenta-se como um elemento estrutural da travessia da adolescência – uma vez que permite a identificação do adolescente com o outro/Outro do laço social –, por outro, não há garantias do valor ético que um ídolo possa transmitir. Muito comumente, o adolescente apresenta um fascínio pelo ídolo, fato que o impede de manter uma posição crítica em relação a ele. É nesse momento que os adultos, principalmente os pais dos adolescentes, devem “dizer o que pensam sobre este ou aquele ídolo ao jovem que o toma como referência” (LESOURD, 2004: 92). Caso contrário, se nenhuma distância puder ser colocada entre o ídolo e o jovem, esse último estará completamente alienado12 ao ídolo, ficando impedido de construir outros pontos de referência para a vida adulta.

 

Novas formas de relação de objeto na adolescência


Podemos considerar, então, que a ampliação do laço social – que tem como conseqüência a valorização da relação entre os semelhantes e os ídolos – e a reordenação da cena edípica na adolescência provocam importantes mudanças na relação do sujeito com seus objetos. Segundo Rassial (2002: 101), a relação dos adolescentes com alguns objetos indicam-nos que há uma “imbricação do pulsional e do cultural” à medida que os objetos aos quais um adolescente se liga têm uma conexão com os objetos construídos na infância, por meio da relação parental. No entanto, ele nos lembra que “o objeto do desejo é efeito do fantasma” (2002: 93) e que a adolescência é um tempo em que o sujeito se vê, novamente, implicado na construção de uma relação de objeto que lhe proporcione uma imagem e uma representação de si próprio.

Para Lesourd (2004), na adolescência, o sujeito vê-se implicado na construção de uma relação com objetos da realidade e com objetos psíquicos e, dentre os últimos, há um muito particular: o objeto “eu” como fundamento do narcisismo. Ele considera que

“na passagem pubertária (Gutton, 1991), as bases do narcisismo são abaladas, e o adolescente deverá reconstruir esse narcisismo, retomando o seu eu como objeto de amor. É isso que constitui a importância das relações com os outros, com os pares, mas também com os adultos [...] é em torno desse objeto eu que vão desenvolver-se as questões de amor e de amizade” (LESOURD, 2004: 96-97).


De modo geral, os objetos que fazem parte da realidade psíquica, os objetos psíquicos, têm sua origem na primeira infância, no objeto alucinado, aquele que se apóia em vários objetos da realidade para satisfazer uma pulsão13. A função desses objetos é “ser o suporte do desejo do sujeito” (2004: 95-96) e, por isso mesmo, podem ser representados por diferentes objetos da realidade na mediação da relação do sujeito com os outros. Já os objetos da realidade marcam para o adolescente seu sucesso ou seu pertencimento a um grupo. O adolescente pode ter dois tipos de relações com os objetos da realidade, ele pode “consumi-los” ou “criá-los” (2004: 95).

A perda da relação de objeto de amor na infância faz da adolescência um tempo em que o sujeito se aperceberá de que, com nenhum objeto da realidade, ele se satisfará completamente, pois não existe objeto que preencha “a falta de ser” (2004: 99). É justamente essa perda do objeto de amor infantil que lançará o sujeito na busca de objetos da realidade que produzam prazeres, mesmo que parciais. Muitas vezes, as drogas e o álcool apresentam-se para o adolescente como objetos da realidade com o estatuto de uma recriação do objeto psíquico perdido na infância. Reconhecemos que tais objetos encontram-se no campo social para serem consumidos. Dentre os objetos de consumo dos adolescentes, estão os objetos da exibição e os da delinqüência.

O objeto da exibição tem como função tanto o reconhecimento no grupo como no campo social mais amplo, além de permitir ao adolescente diferenciar-se do semelhante. Lesourd (2004) considera que o look “participa da construção do objeto eu, na diferenciação que ele proporciona, diante do mundo dos adultos, especialmente parentais, e também na identificação com os semelhantes, com os pares” (2004: 100). Ao mesmo tempo em que os objetos da exibição na adolescência revelam e indicam algo para o outro da subjetividade do adolescente, mascaram “as inquietações sobre a identidade real do objeto-eu” (2004: 102).

Já o objeto da delinqüência, aquele emprestado ou roubado14 pelo adolescente, pode ser entendido como uma “apropriação de uma insígnia do outro, de um dos traços do outro” (2004: 103), uma marca qualquer que o adolescente ainda não tenha por si conseguido obter ou criar. Antes de qualquer coisa, as relações com o objeto da delinqüência são “tentativas de construir uma relação adulta com o objeto” (2004: 106).

Diferentes dos objetos de consumo, os objetos criados pelo adolescente são também uma tentativa de reprodução do objeto perdido na infância. As criações artísticas de adolescentes sejam elas musicais, literárias ou gráficas marcam um lugar no discurso social na medida em que fazem laço social, seja de um adolescente com um semelhante ou de um adolescente com um adulto. Para Lesourd (2004), os objetos de criação dos adolescentes devem ser de interesse para os adultos e os profissionais que se ocupam da adolescência, pelo fato de que tais objetos revelam não somente a relação do adolescente “com a genitalidade adulta procriadora” (2004: 107), como também a capacidade do adolescente de superar a crise pubertária.

A ampliação do laço social na adolescência revela não somente o reposicionamento do sujeito no discurso, mas também as transformações na relação de objeto, considerando que os objetos na adolescência estarão referidos às tentativas de reconstrução do objeto perdido na infância. Nessa linha de pensamento, o sintoma analítico15 na adolescência aparecerá como resto da operação fantasmática. O sujeito mostrar-se-á predisposto16 a produzir sintomas em referência ao Outro sexo e não ao Outro parental como na infância. Talvez, por isso, o sintoma do adolescente repercuta no campo social mais amplo que a família e encontre aí outros elementos17 que, estrutural e eventualmente, participarão na nova formação sintomática. Entretanto, não podemos afirmar que a ampliação social é responsável pelas formações sintomáticas na adolescência e nem que o sujeito adolescente fabrica seu sintoma, ao ampliar o laço social. Antes de tudo, o que as formações sintomáticas na adolescência revelam é que o sujeito não consegue atravessá-la sem perda de gozo18 , pois, para continuar seu percurso até a vida adulta, o sujeito terá que recolocar em relação ao seu gozo.

Temos, então, o seguinte cenário: na adolescência, o sujeito amplia sua circulação social ao ir ao encontro de um semelhante ou ao encontro de um ídolo e, ao ampliar sua circulação social, este pode fabricar sintomas como resto de uma nova posição discursiva referenciada ao Outro sexo. Essa particularidade das formações psicopatológicas na adolescência aponta para um novo campo de investigação, não somente para os psicanalistas, como também para os educadores.

 

Referencias

FREUD, Sigmund. “O mal-estar na civilização”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, v. 21, pp. 73-171.

JARDIM, Gislene do C. Adolescência e Modernidade: o sujeito entre o circuito pulsional e o circuito social. Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Psicologia da USP. São Paulo: texto inédito, 2004.        [ Links ]

LACAN, Jacques. “Duas notas sobre a criança”. In: ORNICAR? Revista do Campo Freudiano. São Paulo: 1986, pp. 13-14.

_____. O seminário 20: Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.         [ Links ]

_____. O mito individual do neurótico. Lisboa: Assírio e Alvim, 1987.        [ Links ]

LESOURD, Serge. A construção adolescente no laço social. Petrópolis: Vozes, 2004.         [ Links ]

MELMAN, Charles. “Os adolescentes estão sempre confrontados com o minotauro”. In: Adolescência: entre o passado e o futuro. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1987, pp. 29-43.

POLI, Maria Cristina. “Os tempos do sujeito e do Outro: narração, discurso e pulsão”. In: Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas. São Paulo: IPUSP, 2o. sem. 2003, v. VIII, pp. 82-93.

RASSIAL, Jean-Jacques. “La libido ets masculine”. In: LESOURD, Serge. (org.) Le féminin: um concept adolescent? Ramonville-Saint-Agne: Érès, 2001.

_____. O que os adolescentes ensinam aos analistas? São Paulo: IP-USP, 2002.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Gislene Jardim
R. Teodoro Sampaio, 1020, conj. 905 - Pinheiros
05406-050 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3081-5369
E
-mail: gcjardim@usp.br

Recebido em 1 de agosto de 2005
Revisão recebida em 2 de setembro de 2005
Aceito em 24 de agosto de 2006

 

 

* Psicanalista, mestre e doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, presidente do Departamento de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo.
1 O termo tradução aponta para uma característica importante da função da família conjugal: como uma estrutura, a referida família oferece uma forma que inclui lugares vazios, os quais serão encarnados por um homem, por uma mulher e por uma criança que, enlaçados uns com os outros pelo simbólico, pelo imaginário e pelo real, darão vida à estrutura. Dessa forma, será o modo de enlaçamento entre os participantes que fará com que as famílias tenham dinâmicas diferentes, uma vez que a estrutura delas se manterá a mesma.
2 Ou ex-sistência como propõe Lacan. Nessa noção, está incluída a idéia de que o sujeito só pode ser concebido fora dele, por assujeitamento ao campo do Outro.
3 Ao longo de sua vida, o sujeito aliena-se aos ideais familiares para posteriormente separar-se deles. Com a puberdade, esse dilema avoluma-se. Freud lembra-nos que, em determinadas culturas, os ritos de puberdade e de iniciação auxiliam o jovem na ampliação do universo familiar para o universo social mais amplo; porém, não podemos perder de vista que a dificuldade de ampliação do laço social na adolescência é uma dificuldade inerente a todos (FREUD, 1930) e que, se essa operação psíquica é malsucedida, ela é para todo o mundo (LACAN, 1974).
4 De acordo com Rassial (2001), sintoma-ele ou sintoma-ela.
5 Em cada par de narrativas, a primeira refere-se ao mito coletivo e a segunda refere-se ao sujeito.
6 Uma tentativa de pós-ordenação fálica das pulsões. É uma tentativa na medida em que todo adolescente fabrica um sintoma como elaboração psíquica dos fenômenos pubertários (real) atrelados com uma nova imagem corporal (imaginário) e com a busca de um significante que o represente no discurso como um homem ou uma mulher (simbólico). Se o sujeito não amarra essas três dimensões em um sintoma, podemos supor que a saída da adolescência estará comprometida, seja pela eclosão da psicose ou pela estruturação de uma perversão.
7 Sabemos que a passagem pela adolescência pode provocar abalos no sujeito que vão desde a formação de sintomas neuróticos, para os quais uma escuta analítica se faz pertinente, até possíveis crises com fortes indícios de uma psicose em crianças que venham demonstrando uma estruturação neurótica, caracterizando quadros clínicos conhecidos como borderlines.
8 As formações psicopatológicas na adolescência incluem o mal-estar provocado não só pela prevalência das pulsões genitais, como também pelo encontro do sujeito com a interrogação sobre o Outro sexo.
9 Há que se considerar que as dificuldades ou as resistências do sujeito adolescente em ampliar seus laços apontam para problemas estruturais provocados pela adolescência. Esta é uma das situações em que a escuta analítica deve ser acionada, mesmo sem demanda de uma análise. Nesses casos, a intervenção psicanalítica estará mais próxima de um acompanhamento do que de uma análise propriamente dita.
10 Por exemplo, quando um adolescente encontra nas drogas o seu objeto de preenchimento da falta no Outro e depara-se, no laço social mais amplo, com outros adolescentes que, como ele, utilizam o mesmo objeto de gozo. Se, por um lado, a ampliação do laço social na adolescência favorece para que o sujeito elabore sua relação com o Outro parental, por outro, pelas formações psicopatológicas, o sujeito encontra, imaginariamente, as condições para que sua escolha pela droga seja amenizada como um sintoma, dado que outros adolescentes também fazem uso dela, muitas vezes, para reforçar o novo laço. No exemplo do uso de drogas, podemos fazer uma diferenciação clínica: o adolescente pode usar drogas como meio de manter-se em grupo, identificando-se com seus semelhantes, ou pode usá-las solitariamente, reforçando sua escolha de objeto de gozo. No primeiro caso, a droga pode ser um veículo de aproximação do Outro social - nesse momento, um outro semelhante -, podendo ser desprezada mais adiante. No segundo caso, a droga pode ser o objeto parcial de gozo que, ilusória e temporariamente, trará satisfação para o sujeito. É nesse último que a toxicomania se torna um bom exemplo de psicopatologia na adolescência.
11 Como exemplos atuais de objetos e traços buscados pelo adolescente nas figuras dos ídolos, podemos citar os modelos de beleza expostos pela mídia e, como conseqüência, as inúmeras tentativas de manutenção da juventude. Também, as fórmulas de sucesso que juntam amor e desejo. Sabemos que tudo isso está à disposição no discurso social não somente para os jovens, mas também para as crianças, o que tem provocado efeitos de aceleração da adolescência em crianças muito pequenas, os chamados pela mídia de teens. A esse respeito, ainda, podemos observar que o modelo veiculado no discurso social para os adolescentes captura também boa parte dos adultos para os quais os sinais de envelhecimento ficam adiados com as novas técnicas cirúrgicas e os tratamentos de beleza. A morte fica, assim, imaginariamente, distante e adiada para todos. modelo veiculado no discurso social para os adolescentes captura também boa parte dos adultos para os quais os sinais de envelhecimento ficam adiados com as novas técnicas cirúrgicas e os tratamentos de beleza. A morte fica, assim, imaginariamente, distante e adiada para todos.
12 Podemos citar o nazismo, certas seitas religiosas e a delinqüência como exemplos de alienação completa de jovens aos seus ídolos. Há, nesses exemplos, a identificação em massa dos jovens com a figura do líder. Sabemos que o resultado da alienação a Hitler e aos líderes espirituais de certas seitas religiosas foi a morte.
13 São exemplos de objetos da realidade os alimentos e o cigarro, substitutos para o seio, esse sim um objeto psíquico.
14 Estamos nos referindo aqui àqueles objetos que não têm valor comercial, mas sim valor para aquele que o utiliza; eles têm, portanto, valor fálico. Por exemplo: no caso das adolescentes, o empréstimo/roubo de uma bolsa da mãe para uso em uma situação específica e que, passada a situação, o objeto da delinqüência é recolocado no mesmo lugar em que estava. Um bom exemplo para os adolescentes é o uso do carro dos pais, sem o conhecimento e o consentimento destes.
15 Sintoma analítico tal como entendido pelos conceitos e noções fundamentais da psicanálise. Isto é, como uma substituição inconsciente e metafórica de um saber referente ao universo sexual de cada sujeito falante.
16 Uma predisposição estrutural do sujeito que, na adolescência, tem de incluir o significante referente ao feminino (ao Outro sexo) na cena fantasmática originária, o que implica, como vimos, mudanças nas relações de objeto.
17
Podemos considerar os semelhantes e os ídolos os novos elementos recortados pelo adolescente do discurso social mais amplo que a família e que poderão participar da formação sintomática na adolescência.
18
Na teoria psicanalítica sobre o sintoma, a perda de gozo representaria a possibilidade de o sujeito sustentar-se sem o gozo secundário que todo e qualquer sintoma produz.

 

 

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