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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.11 n.11 São Paulo dez. 2005

 

PART I

 

Violência e adolescência: uma experiência com adolescentes internos da FEBEM/SP

 

Violence and adolescence: an experience with adolescents in custody at FEBEM

 

 

Gabriela Balaguer*

GEHPAI – IP-USP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se do relato de uma experiência com adolescentes em conflito com a lei que foram encaminhados para cumprimento de medida socioeducativa de internação na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – a FEBEM. Com base na leitura de Freud, pretende-se pensar as experiências com a violência, levando em conta a relação, principalmente, entre a violência do Estado (como representante dos grupos dominantes na sociedade) e a produzida pelos próprios adolescentes. Assim, deve-se reconhecer os aspectos específicos daqueles que chegam à FEBEM no que diz respeito não apenas à sua maneira de viver a adolescência, como também à maneira como experimentam desde cedo a violência da privação dos direitos fundamentais. Dessa forma, podemos concluir que a violência dos atos transgressores dos adolescentes é a resposta mais freqüente a esse estado de barbárie gerado por uma sociedade que reparte “o mal-estar na civilização” de modo desigual. Apesar de os relatos dos adolescentes apresentarem formas diferentes de se relacionarem com a experiência da violência, não podemos deixar de nos preocupar em evitar novas condições de barbárie e, simultaneamente, cuidar daqueles que passaram por elas.

Palavras chave: Adolescência, Violência, FEBEM.


ABSTRACT

This article intends to present an experience with some adolescents who have committed felonies, and for that reason, they were sent to a juvenile detention center called Foundation for the Well-Being of Minors (FEBEM) in São Paulo. Based on Freud’s concepts, it is intended to think of violent experiences, considering the relation, mainly, between the State violence and the one provoked by the adolescents. In this way, it is necessary to recognize the specific aspects of the adolescents in custody at FEBEM, concerning not only the way of living the adolescence but also the way of how they experience the privation of fundamental rights. Then, it can be concluded that the violence committed by these adolescents is the answer to the State and society violence. Despite the adolescents’ reporting presents different ways of relating themselves to violent experience, we have to worry about avoiding new conditions of violence and, in the same time, take care of those who have got through this situation.

Keywords: Adolescence, Violence, FEBEM.


 

 

Princípios

Para Freud, os direitos previstos por uma sociedade humana originam-se da força física e da violência; eles nascem da necessidade de se contrapor à violência dos mais fortes por meio da união dos mais fracos. “O poder dos unidos representa agora o direito, em oposição à força do indivíduo isolado” (FREUD, 1974: 3209). Daí o direito de se transformar numa outra forma de poder da sociedade, não mais baseada na força física e, conseqüentemente, na violência, e, sim, herdeiro dela. Em sua carta dirigida a Albert Einstein, intitulada “O porquê da guerra”, Freud acredita que, numa determinada sociedade, os direitos garantidos por meio das leis tendem a reiterar a força dos grupos dominantes.

“O direito da comunidade torna-se então uma expressão da desigual distribuição de poder entre seus membros; as leis serão feitas por e para os dominantes e concederão escassos direitos aos subjugados.” (1974: 3209)

Sendo assim, os grupos dominantes tenderão a fortalecer a existência de direitos só para si, impedindo de forma violenta o acesso dos grupos subjugados aos direitos. Daí o motivo da retomada da violência e do abandono do direito, por parte, também, daqueles que não usufruem dos benefícios previstos pela lei dos dominantes, como forma de exigirem reconhecimento dos direitos como universais.]

Quando tratamos da experiência de jovens que infracionaram e foram encaminhados para uma medida de internação, não deixamos de nos deparar com questões como estas expostas por Freud. A presença da força física e, portanto, da violência de cabo a rabo nos diversos aspectos de suas vidas é o que mais nos impressionou. Começando pela violência do Estado, ausente nas políticas públicas universais que deveriam garantir os direitos fundamentais – à saúde, à educação, à convivência familiar, ao esporte, ao lazer, em suma, o direito à vida –, que mantém a polícia como única força representativa de sua presença entre os pobres. Velha conhecida brasileira, o aparato repressor brutal, isto é, a polícia permanece como das formas, a mais eficiente, para controlar os pobres: na base do cacete.1 Contudo, a violência do Estado não pára por aí. Ela reaparece, até mesmo, na própria instituição responsável pela medida socioeducativa de internação, quando esta se torna, única e exclusivamente, instituição vingativa e punitiva, reafirmando, mais uma vez, para os internos a privação de todos os direitos, submetendo-os novamente a um estado de verdadeira barbárie.

Há ainda outras aparições de violência: a ocorrida nas famílias, pelas agressões, omissões e abandonos que se repetiam indefinidamente nas mais diversas gerações e, claro, pelos seus próprios atos violentos. Lembro-me de um adolescente que, em nossas conversas, perseguia incansavelmente a cadeia de determinações que poderiam explicar o porquê de só lhe haver restado, até então, a violência como única ação possível nesse mundo, em que, de resto, era vítima. Percorrendo as gerações de familiares, ele só reencontrava entre os antepassados outras condições tão ou mais violentas, numa série interminável de desamparos de todos os direitos. Outro adolescente contou-me, durante uma sessão, que havia fugido de casa porque o pai lhe batia muito, pai esse que, por sua vez, havia sido criado no “couro”. Cultivados na violência, aquela força física primitiva que Freud mencionava em “O porquê da guerra” como forma de manter-se vivo diante da ameaça dos outros, os adolescentes e, muitas vezes, seus familiares encontram-se desesperançosos quanto à possibilidade de viver longe da ameaça, uma vez que são privados cotidianamente dos direitos ditos universais, das promessas que a civilização parece fazer.

Assim, mesmo que protegidos por lei, ou pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, os jovens pertencentes às classes populares enfrentam, no cotidiano, um estado (e por que não Estado?) de violência. A despeito de o ECA ter produzido avanços do ponto de vista da legislação sobre a infância e a adolescência, podemos reconhecer de cara a forma desigual com que é usado. Dividido entre seus dois livros, o ECA trata tanto dos aspectos gerais que dizem respeito aos direitos universais da infância e da adolescência, como, em sua parte especial, regula situações específicas em que seus direitos não se encontram cumpridos, ora pela ameaça alheia (dos pais e responsáveis, da sociedade e do Estado), ora pela sua própria ameaça ao restante da sociedade. Por isso, os chamados adolescentes em conflito com a lei, adolescentes que infracionaram, recebem, segundo ECA, medidas socioeducativas específicas. É curioso como a análise de Freud se ajusta bem a esse caso. Na maior parte das vezes, adolescentes que não se beneficiaram dos direitos universais previstos pelo ECA são os principais agentes de infrações mais ou menos violentas que pululam em nossa sociedade. Eles receberão, quando pegos pela polícia, uma medida socioeducativa como forma de dupla reparação: deles para com a sociedade e da sociedade para com eles. Estamos tratando aqui justamente os casos de adolescentes que infracionaram e foram encaminhados para o cumprimento de medida de internação2 na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor – FEBEM, órgão responsável por essa medida e também pela semiliberdade no Estado de São Paulo.

 

A experiência

O trabalho com a medida de internação na FEBEM iniciou-se em novembro de 2002 e terminou em julho de 2004. Fui selecionada pela Associação Fique Vivo (AFV) para trabalhar, como psicóloga, em duas funções diferentes. Primeiramente como coordenadora das atividades de campo em uma unidade e, depois, como psicoterapeuta, realizando um plantão psicológico para os adolescentes. Em todo caso, é importante frisar que, em ambas as funções, não era funcionária da FEBEM, e sim da AFV, para a qual prestava serviços. Ou seja, ainda que psicóloga, não realizava as mesmas atribuições da equipe técnica de funcionários da FEBEM.3

Contratada pela referida fundação, a AFV era responsável por oferecer oficinas de arte-educação aos adolescentes, e teve como eixo temático a prevenção às DSTs/AIDS, às drogas, além de discussões sobre cidadania. Como complemento a essas atividades, a Associação Fique Vivo realizava o plantão psicológico em algumas unidades do Complexo Tatuapé, estratégia de acolhimento e escuta individual dos adolescentes. Entretanto, havia um objetivo outro e latente da parte da AFV de não apenas tomar os adolescentes como objeto de suas intervenções, mas a instituição como um todo. Desse modo, os trabalhos da AFV deveriam exercer um papel catalizador de mudanças, por meio de reflexões e práticas nos diferentes grupos institucionais, alterando, dessa forma, o caráter contensivo, violento e privativo de direitos4 por um verdadeiro trabalho norteado pelo ECA, considerando que o adolescente, além de estar em conflito com a lei, é um sujeito em desenvolvimento.

No exercício das minhas atividades na FEBEM pela AFV – primeiro como psicóloga-coordenadora de campo, acompanhando as oficinas educativas com os educadores e exercendo, com base nessa atividade, um papel que se aproxima do trabalho de um psicólogo de instituições5 e, posteriormente, como psicoterapeuta, atendendo, no Plantão Psicológico, aos adolescentes –, realizei um mergulho nas histórias de vida desses jovens que chegam a FEBEM, nas maneiras diferentes com que cada um, apesar da homogeneidade criada pela própria situação da instituição total, lidava com as situações de violência enfrentadas no “Mundão” e no “Mundinho”6. Os adolescentes da FEBEM Nem todos os adolescentes que são internos da FEBEM provém de famílias pobres, embora sejam a maioria. Eles vêm não apenas das periferias da cidade de São Paulo, como de outras periferias ou regiões pobres do interior ou do litoral do Estado, já que não há um sistema regionalizado e municipalizado de internação. Como é sabido, a medida de internação é inteiramente responsabilidade do governo do Estado e, ao menos, em São Paulo, apresenta algumas poucas unidades no interior e no litoral, concentrando o maior número de vagas na cidade.(VOLPI, 1997: quadro das medidas socioeducativas)

Assim é muito comum encontrar, entre os adolescentes, um que veio da Baixada Santista, outro de uma pequena cidadezinha do interior do Estado, e grande parte de todos os cantos das periferias da cidade de São Paulo: Itaquera, Parelheiros, Capão Redondo, Cachoeirinha e Perus. São estes alguns dos distritos de onde eles provêm. Em geral e aparentemente, as queixas e as histórias de vida desses jovens apresentam semelhanças incríveis: por um lado, uma ausência violenta de quase tudo que lhes seria de direito, o que já comentamos anteriormente e, por outro, o crime ali, mais ou menos organizado, oferecendo-se, com todo seu charme e poder, como resposta e lugar onde o adolescente ganha uma identidade entre os iguais, na sua comunidade e também na sociedade de modo geral, mesmo que seja uma identidade negativa. “A vida do crime” e seu personagem principal, “o ladrão”, como costumam falar, é severa, violenta e insegura; no entanto, oferece um sossego temporário e instável a todo aquele que desejar ser reconhecido. Dessa forma, mesmo na FEBEM, os adolescentes referem-se uns aos outros como ladrão, constituindo entre todos os iguais um laço forte em torno dessa identidade, provado pelos feitos de cada um, pela capacidade de respeitar as regras, bem como à ética severa e retaliadora da vida do crime, e obter de todos o reconhecimento e a identidade para viver. Na falta de outras alternativas, “a vida do crime” torna-se o lugar de onde o adolescente da periferia pode responder, com uma identidade, ao mal-estar em que vive: por ser adolescente na sociedade ocidental e, finalmente, por ser adolescente pobre, privado no mesmo grau que os adultos de sua comunidade, inclusive seus pais, de todas as promessas e garantias que refazem dia após dia o pacto social (PELLEGRINO, 1987: 195-205). Portanto, estamos falando não apenas de adolescentes, e sim de adolescentes que vivem sua adolescência de maneira muito específica.

Ora, sabe-se que a adolescência é um conceito histórico que ganhou força no século XX, no pós-guerra, e vem servindo para designar o tempo intermediário e indefinido entre a infância e a vida adulta (CALLIGARIS, 2000: 60). Seu início é certamente marcado pelo momento da puberdade, por volta dos 12 anos, com o amadurecimento dos órgãos e das funções sexuais, permitindo, a partir de então, que o adolescente seja desejável por outros e igualmente os possa desejar, “amar, copular e gozar, assim como se reproduzir” (idem, p. 15) tal como um adulto. Embora seja o corpo e suas razões fisiológicas o “agent provocateur” de mudanças, é preciso deixar claro que estas não param por aí. Se o corpo torna-se maduro tal como o de um adulto, as imagens e as representações de si, tanto quanto o lugar entre os pais e os outros grupos de socialização, também são transformadas e devem, então, reconfigurar-se à nova mudança. O que queremos dizer é que se se origina no corpo, as transformações levam consigo o psiquismo e a maneira como se reposiciona em relação aos outros. Não sendo mais visto como criança, o adolescente passa a ser visto como uma espécie de “adulto em miniatura” pronto, mas não o suficiente para ser reconhecido pelos verdadeiramente adultos como um igual, não sabendo quando e como dar-se-á essa passagem derradeira para a vida adulta. Segundo Calligaris, esse estado de espera e de moratória, é o que cria um conflito inerente à adolescência, como nos dias de hoje na sociedade ocidental. (CALLIGARIS, 2000: 15-16)

Podemos dizer que então questionado em sua identidade infantil pelas próprias transformações do corpo e as decorrentes repercussões no psiquismo, o adolescente não encontra sossego mais como criança, tampouco como adulto, já que a sociedade lhe diz, pelas suas leis e estatutos, tal como o ECA, que ele também ainda não é um adulto, mas apresenta a “condição peculiar de pessoa em desenvolvimento” (Lei 8.069/90, Livro I, Título I, artigo 6). Com isso, não queremos dizer que somos contra o ECA, mas apenas situá-lo no interior desse movimento mais geral da nossa cultura, a qual estabeleceu, nos últimos tempos, esse estado de moratória para o adolescente.

Dito isso, como então vive o adolescente tomado ainda como entidade abstrata, não obtendo dos adultos nem reconhecimento como um igual, nem o velho reconhecimento da infância? Ele vive tentando, de diversas formas e, na maior parte das vezes, por meio de atos, (ALBERTI, 1999: 51) encontrar um lugar e um reconhecimento na cultura para suas transformações pulsionais, que ofereçam respaldo e respostas contra o temor e a angústia advindos da potência que agora tem em mãos. Por um lado, a própria puberdade, por si só, traz um elemento-fonte de angústia em decorrência do incremento quantitativo pulsional que exige uma nova adaptação psíquica (FREUD, 1958: 72), pois o adolescente é capaz agora de levar a cabo tanto suas fantasias sexuais como as de destruição presentes desde a infância. Essa fonte inestimável de criação e de destruição que são as pulsões, deve ser novamente recalcadas e, por isso, a adolescência é uma nova reafirmação (Bejahung)7, ou melhor, uma reedição em outro nível dos mesmos processos de constituição da sexualidade ocorridos desde a infância8. Isto é, se agora o adolescente é capaz de amar, ele também é capaz de matar (WINNICOTT, 1997).

Assim, o adolescente sofre seja pela nova configuração pulsional e psíquica decorrente da puberdade, seja pela ausência de reconhecimento dos adultos como igual diante dessas mudanças, tendo, então, que recorrer a outros meios para dar conta de obter uma identidade. Ele pede reconhecimento de si, tolerância e contenção a esses impulsos, fonte de ansiedade e da força criativa, ao mesmo tempo que, pelo fato de não poder ser reconhecido como igual pelos adultos, exigirá, de um jeito ou de outro, mesmo que seja pela negação, o reconhecimento de sua potência. Daí a procura pelos seus iguais, por outros adolescentes que agora, em grupo, podem estabelecer critérios mais transparentes de aceitação e reconhecimento, como o uso de determinadas roupas (os punks, os hippies os rappers etc.), traços corporais (tatuagem, estilo de cabelo, piercing etc.) ou, até mesmo, a realização de certos atos (pichar, roubar, fugir da escola, ou até matar etc.).

“O adolescente transforma assim sua faixa etária num grupo social, ou então num conglomerado de grupos sociais dos quais os adultos são excluídos e em que os adolescentes podem mutuamente se escolher como pares.” (CALLIGARIS, 2000: 35-36)

Todos esses conflitos que vive o adolescente pela constituição dessa nova identidade e por sua luta pelo reconhecimento dos adultos levam-no a se dar conta das contradições dos adultos. Podendo exercer sua força, seu poder, sua sexualidade e sua capacidade de trabalhar tanto como um adulto, e, ao mesmo tempo, sem obter dele esse estatuto de reconhecimento, o adolescente percebe as promessas feitas, especialmente de seus pais, da possibilidade de ser singular e ter autonomia quando chegasse à vida adulta e, ao mesmo tempo, enxerga como ninguém os limites dela, isto é, os limites da necessidade da repressão dos impulsos como forma de viver em sociedade. A imagem de seus pais idealizada na infância vai sendo revista e criticada, e os aspectos da frustração, da acomodação e da resignação do adulto diante do mundo podem ser escancarados. O adolescente pode viver, mais ou menos, radicalmente essa experiência de indignação com um mundo que deveria lhe ofertar o que lhe é preciso segundo sua condição subjetiva e com um mundo que se oferece como resistência, frustração e violência a essa ilusão9.

Digamos, assim, que na adolescência é que os conflitos fundamentais do homem são postos às claras, a saber: esse mal-estar na civilização. Como posso fazer uso de meus impulsos e meus desejos, se devo, para conviver em sociedade, reprimi-los; devo me desfazer deles em nome da “necessidade fundamental de identificação e de se alimentar dos objetos investidos”? (JEAMMET 1995: 89 apud KHAN, 2002: 147)

Assim, a transgressão e a violência na adolescência podem aparecer como uma tentativa de ser ouvido pelos adultos e demonstrar o desprezo e o inconformismo pelas instituições sociais tão caras a eles e tão cheias de contradições. Na maior parte das vezes, esse empenho, como veremos, não produzirá mais do que ódio e reconhecimento negativo da adolescência, uma vez que os adultos, definitivamente, não podem reconhecer nem sua própria violência e desejo de transgressão que foram recalcados em nome do projeto de civilização (em nome da constituição de uma sociedade de direitos), nem o mal-estar daí proveniente.

Porém, não estamos tratando aqui da experiência de adolescentes abstratos e genéricos, e, por isso, uma questão deve ser posta: a existência de adolescências tanto quanto de adolescentes. É bom lembrarmos que muito provavelmente há diferenças gritantes entre as experiências da adolescência, uma vez que, se depender da classe social e da cultura que informa cada grupo social, a experiência e o sentimento da adolescência podem ser diferentes.

Em linhas gerais, se podemos dizer que o adolescente vive um estado de espera e de moratória para a vida adulta, não recebendo destes o reconhecimento como igual, como podemos situar os adolescentes pobres, bem como seus pais e sua comunidade, todos moradores das periferias das grandes ou pequenas cidades de São Paulo e esses adolescentes que chegam à FEBEM? Serão, até mesmo, aqueles adultos reconhecidos pela sociedade e suas leis como gente com direito a gozar do bem-estar que a promessa de civilização veiculou a todos, ao negarem assim seus impulsos? Segundo nos conta Freud e, seu leitor, Pellegrino, não (PELLEGRINO, 1987: 195-205). E negados assim seus direitos a desfrutar das vantagens da civilização, é pela ruptura do pacto social que encontram meio de reivindicar aos berros, ou pelo “berro”10, seus direitos.

Apesar de termos levado adiante a linha de argumentação de Calligaris acerca da moratória vivida na adolescência, introduzimos a questão de termos em conta a existência de “adolescências” e não de uma única adolescência tomada abstratamente. Poderíamos até mesmo pensar se a idéia da adolescência como moratória seria válida para os adolescentes das classes populares, pois não sabemos até que ponto não apresentam outras concepções culturais e outros rituais de passagem do adolescente para a vida adulta. É de se suspeitar que a idéia do adolescente como sujeito em desenvolvimento que se deve esperar, não sabemos o quê, para se tornar adulto, não encontra muito sentido entre as classes populares. Afinal, é muito comum que os adolescentes tornem-se responsáveis por cuidar da casa, dos irmãos mais novos ou, até mesmo, da família, trabalhando legal ou ilegalmente para trazerem renda e sustento, quando não tendo seus próprios filhos e realizando, assim, a passagem para a vida adulta: de ser filho para ser pai, de ser filha para ser mãe. Muitos dos adolescentes internos da FEBEM comentam sobre seus filhos. Por vezes, eles aparecem como a razão de viver, a razão de parar com o crime ou com as drogas. Certa vez, um adolescente disse durante um atendimento que seu filho, internado no hospital, havia falecido. Ele acrescentou com muita dor e pesar que não havia mais esperança, pois precisava que o filho o chamasse de pai. Isso era como o sinal do reconhecimento do filho de sua paternidade, de seu lugar nesse mundo. Para ele, sem ser pai, já não podia ter esperança de mais nada para sua vida, já não podia esperar outro lugar na cultura, outra identidade.

A questão é que apesar de os adolescentes da periferia muitas vezes não viverem possivelmente a mesma moratória – que caracteriza para Calligaris a adolescência tomada em abstrato –, em virtude de sua condição de vida e de sua cultura, também é inegável que os adolescentes pobres recebem das mais diferentes formas os valores de que podem desfrutar os adolescentes das classes médias e abastadas do país, os adolescentes pertencentes às classes dominantes. O que queremos dizer é que o adolescente pobre sabe que existe outro jeito de viver a adolescência prevista por lei (ECA), porém ele não tem acesso a isso. Portanto, podemos supor que, apesar de seus próximos não transformarem a adolescência num período de espera, para eles esta é sinal de acesso a direitos, a bens que eles não podem usufruir.

Com isso, chegamos ao xis do problema: se nem os adultos das classes populares são reconhecidos pelo resto da sociedade como iguais, portadores daqueles direitos tanto quanto os outros, o que restaria para o adolescente que reivindica o reconhecimento do adulto e já encontra logo de partida uma falta de reconhecimento dos seus próprios pais na sociedade? Ou ainda, como poderiam esses adolescentes atravessar os temores enfrentados pela nova configuração pulsional própria à adolescência, aquilo que Winnicott chamou de capacidade de realizar as fantasias agressivas, quando justamente se dão conta das contradições das promessas da vida em sociedade, ao perceberem a desigualdade de exigências de frustração e privação, isto é, a desigualdade do mal-estar na civilização? Dizendo de outro modo, como atravessar a adolescência tendo a percepção clara da existência dos direitos e das leis para proteção de alguns, mas não de todos, tal como na interpretação de Freud? A meu ver, a violência é a maneira mais imediata e a mais freqüentemente usada para responder a uma outra violência, aquela da sociedade que priva grande parte dos seus membros das promessas de livrar os homens da ameaça e do medo. (ADORNO & HORKHEIMER, 1985: 19-52)

 

A violência como resposta

Bem, mas se a violência ou a força física é a resposta prevista e esperada dadas todas essas condições que falamos anteriormente, equivalendo na aparência todos os atos infracionais dos adolescentes, a reflexão que cada um pode realizar sobre sua infração é muito variada. Isso foi se tornando mais claro à medida que passei a reparar na maneira como os relatos impactavam-me. Cada relato de situações de grau extremado de violência produzia sensações, emoções e reações singulares. Por vezes, uma sensação de indiferença em relação à violência praticada pelo adolescente, como se, no seu relato, a esta equivalesse a qualquer outra ação sem importância. Isso me fazia pensar na maneira como eu os ouvia com mais ou menos indiferença, até como forma de me poupar do contato. Desse modo, posso agora pensar o quanto eu reproduzia a indiferença deles e da sociedade para com eles, algo que aparecia em seus relatos como “eu não tenho nada a perder, eu não sou nada”, frases estas que sempre me relembravam a persistência da indiferença entre nós.

De modo sucinto, apresento algumas formas mais significativas de se relacionar com a violência. Às vezes, ela pode ser vista como um apelo esperançoso do reconhecimento da dívida do mundo para com eles, tal como na interpretação de Winnicott (WINNICOTT, 1999); jeito encontrado de apontar a indignação diante das promessas feitas pelo adulto da realização pessoal e a presença de um mundo que não oferece comunhão possível com a realidade psíquica. No extremo oposto, podemos notar em alguns adolescentes um descrédito absoluto de outra alternativa de existir socialmente que não seja matar ou morrer, ser agressor ou ser vítima, aquele descrédito que Adorno chamou da “razão objetiva da barbárie”. Em “A Educação contra a barbárie”, Adorno diz que, para além dos aspectos subjetivos, a barbárie apresenta aspectos objetivos na mesma idéia de falência da cultura.

“A cultura, que conforme sua própria natureza promete tantas coisas, não cumpriu sua promessa. Ela dividiu os homens. A divisão mais importante é aquela entre trabalho físico e trabalho intelectual. Desse modo, ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como costuma acontecer nas coisas humanas, a conseqüência disso foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra o não-cumprimento da situação pacífica que se encontra propriamente no conceito de cultura. Em vez disso, a raiva voltou-se contra a própria promessa ela mesma, expressando-se na forma fatal de que essa promessa não deveria existir. (ADORNO, 1995: 164)

Dessa forma, não encontramos em alguns desses jovens qualquer esperança em relação às promessas de um mundo melhor, feito de reconhecimento dos seus direitos e do valor de cada uma de suas vidas. Trata-se de viver apenas com o único objetivo de se livrar da ameaça dos outros; já que a vida deles se apresenta como não fazendo diferença no mundo, por que não mostrar violentamente a mesma indiferença em relação à vida dos outros?

Com isso, queremos dizer que não há uma única forma de entender a violência entre os adolescentes; ela pode portar sim uma esperança de reencontro com um mundo rompido, um mundo que não suporta a subjetividade; e, no limite, ela também parece ser o recurso único de se viver já sem esperança alguma de obter qualquer reconhecimento como um verdadeiro sujeito, superando os pólos da vítima e do agressor. Há um sentimento de ser ou não ser, ser ou ser aniquilado pelo mundo: “ou eu ou o outro”. Isso aparece como “não vale a pena sair da vida do crime, pois de que adianta já que se pode ser, em algum momento, aniquilado pela polícia?” De que adianta a tentativa de confiar no mundo, se ele pode pegar de surpresa e arrebentar a vida? Entre estes, a dimensão da culpa e da responsabilidade pelo ato parece inexistir, pois, entre eu e o outro, sou mais eu. Como se diante do desigual mal-estar na cultura, esse mal-estar que, como já dissemos, o adolescente e o adolescente pobre experimenta como ninguém, ele tomasse como saída a reafirmação incessante da força do eu sobre o outro.

Entre esses relatos de suas próprias violências, ouvi certa vez algo que marcou para sempre a minha relação com a vida e a violência presente nela. Tratava-se do atendimento de um jovem que percebia, de maneira radical, a falta de sentido do mundo, quando se vive a barbárie. Era um jovem do interior de São Paulo, internado na FEBEM há mais de dois anos, que dizia ter se esquecido da infração que havia cometido. Ele chegou perguntando, como é de costume entre os jovens internos, como estava o “Mundão”11. Eu apenas perguntei o que ele queria saber do “Mundão”. Ele então passou a contar da relação de esquecimento em que se encontrava: não se lembrava de como era a cidade, tamanho o tempo que havia permanecido ali. Mais que isso, ele falava de um esquecimento do porquê de estar ali internado, pois não se recordava da infração que havia cometido. Assim, não se lembrando nem do “Mundão” nem do motivo de estar ali, esse adolescente permanecia num estado de desligamento, de ausência, de uma enorme perda de sentido. O processo todo do atendimento foi permitir esse religamento entre seu afastamento do “Mundão” e sua presença no “Mundinho”, isto é, permitir a fala sobre a experiência da falta de sentido trazida pela experiência do horror.

O atendimento prosseguiu e, a medida em que ia ganhando confiança, o adolescente foi encontrando um lugar para suas lembranças: o rosto de uma ex-namorada, o rosto da irmã pequena, o rosto da moça que havia matado. Ele perguntava se eu poderia suportar ouvir o relato do assassinato que ele próprio não agüentava se lembrar. Eu simplesmente não sabia. Até que um dia, depois de algumas sessões, ele resolveu contar as duas cenas mortais, já que levaram à morte não apenas a vítima, mas, de certo modo, ele próprio. O que trazia em seus relatos era, de fato, da ordem do insuportável, indizível, irrepresentável, aquilo que Freud chamou outrora de traumático. Ele reconhecia o horror de ter sido o motor da violência com os outros, sem banalizar isso, sem se desfazer nunca da dimensão desumana de seu próprio ato. Para mim, aqueles relatos faziam lembrar-me as experiências de horror como aquelas contadas por Primo Levi em “É isto um homem?”, em sua passagem nos campos de concentração, durante a Segunda Guerra Mundial. Por isso, era inacreditável que um jovem de apenas 17 anos poderia viver experiências tão terríveis quanto as de guerra, sem saber que estava na guerra, experiências de tamanho desamparo que o homem aparece reduzido à sobrevivência e, por esse motivo, a pergunta de Primo Levi: é isto um homem? Esse jovem também se perguntava isso: estou ainda vivo? Posso continuar vivo, depois de ter feito isso? Sou ainda um homem?

De algum modo, ele se dava conta de que, ao ter realizado a escolha pela sua sobrevivência em vez do outro, algo também havia morrido em si. De certo modo, o esquecimento do “Mundão” e o do motivo de estar ali no “Mundinho” da FEBEM eram a prova do estado de morto-vivo, o estado assustadoramente fantasmagórico de sua existência. O mais terrível ainda foi saber que na própria instituição onde cumpria a medida socioeducativa, reiterou-se novamente a mesma violência que o fez ir parar na FEBEM. Abandonados os adolescentes internos da FEBEM a sua própria sorte pelos funcionários da instituição, ali onde deveriam contar com a continência inexistente do lado do “Mundão”, mais uma vez reproduziu-se o mesmo descaso e abandono de antes, tornando o cumprimento da medida de internação mais uma experiência de falta de sentido e de barbárie.

Pergunto-me ainda, até hoje, como é possível que um adolescente, vivendo as questões sobre sua identidade, sobre a possibilidade de ser reconhecido no mundo, sem perder sua capacidade vital, possa viver tais situações de barbárie e, mais que isso, revivê-las no interior da própria instituição que lhe ofereceu a promessa de dupla reparação? O que podemos lhe oferecer a não ser aquilo que Adorno chamou de “admitir o contato com a questão” da barbárie e permitir que ela possa ser pensada, que ganhe existência no mundo pela reflexão, pelas palavras? Retomo Adorno.

“A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. (...) Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. (...) Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas.” (ADORNO, 1995: 119)

Não se trata de termos a mesma indignação em relação a experiências como essas relatadas por este e tantos outros adolescentes que vêm a procura de reconhecimento e contenção no mundo diante de seus impulsos e que se deparam com o mundo que lhes afirma ainda mais a violência como medida?

Nosso adolescente aqui mencionado foi capaz de perceber mais que muitos outros a radicalidade e a barbárie da sua experiência. Ele vivia a necessidade de reconhecer essa falta de sentido colocada na questão de “ou eu ou o outro”, e, de algum jeito, ele pôde ir adiante em suas reflexões, apresentando muito claramente o desejo de repetir as vivências, nas quais nem ele nem o outro apareciam ameaçados. Creio que a minha posição de contato com suas experiências, deixando-me afetar por elas, e, ao mesmo tempo, mantendo-me sempre presente, contribuiu muito para constituição de uma relação de confiança.

Se não devemos permitir que as crianças e os adolescentes, assim como seus pais, vivam o horror, a barbárie, como lidar com estes que já atravessaram experiências tão traumáticas? Creio que um caminho possível seja apresentar primeiramente a necessidade e a condição de ouvi-los falar sobre suas vidas, deixarmo-nos afetar e sobreviver a isso, permitindo, de maneira viva e presente, a reflexão sobre a barbárie, em vez de somente vivê-la; ou, ainda, permitir que essas experiências sejam revividas por meio de outros objetos sensíveis e mais distantes, como obras de arte que oferecem justamente um espaço transicional entre a realidade objetiva e a realidade subjetiva, experiência perdida para maior parte desses jovens. Isso nos encaminha para a última parte desse artigo.

Lembro-me da primeira oficina que acompanhei em uma das unidades de internação na FEBEM. Tratava-se de uma oficina em que os adolescentes queriam discutir a relação entre a violência e a paz. Para tanto, trouxe, como matéria-prima para a conversa, um livro com fotos de obras de arte de um artista plástico brasileiro, Nelson Félix. Esse artista produz obras em que o tema do corpo e da violência, bem como da relação tensa entre natureza e cultura, está muito presentes (BALAGUER, 2004). Folheando o livro, os jovens iam comentando as imagens que ali viam. Logo, foi-se configurando uma indignação e uma sensibilidade possível diante de imagens que punham em questão a dimensão do desamparo, da falta de escolha diante da força da violência. Uma das imagens que mais os chocou foi a que segue.

 

Sem título (1995, Criança e ferro. Foto: Vicente de Mello)

 

Eles diziam da crueldade de se colocar chumbo em cima de um bebê tão indefeso, tão desamparado. Perguntavam-se se eram balas de revólver e se o bebê estava morto. Aquilo era uma “violência”, segundo eles, podiam reconhecê-la de maneira sensível, experimentá-la de longe. Outras imagens traziam à tona no grupo a mesma relação de desamparo, de falta de escolha diante de uma ação violenta que vinha do outro: especialmente, do homem adulto. À medida que as idéias do grupo prosseguiam, eu ia lhes contando que o bebê estava vivo e dormindo. Em suma, enquanto me falavam de que a violência era a força sobre o outro, o submetimento à revelia do outro, eu lhes dizia como a vida podia resistir, permanecer sem que houvesse necessariamente oposição entre o eu e o outro. De certo modo, a angústia que lhes vinha e era ali tratada a partir de outro objeto que não suas próprias vidas e histórias, permitia um duplo movimento de identificação: com o bebê, indefeso, desamparado, submetido, violentado em seu corpo frágil e, ao mesmo tempo, com o homem que lhe fazia aquele mal, o agressor, o violento, no caso, o artista. Creio que esse movimento duplo, em muito, assemelhava-se àquele feito pelo rapaz mencionado anteriormente que refletia sobre seu ato violento.

Ali na obra de arte sinalizava-se a presença da vida entre os dois pólos, da vítima e do agressor: o bebê dormia tranqüilo e, assim, era capaz de viver a despeito da presença daquele objeto pesado, escuro e, até mesmo, violento. Dessa forma, o ferro pesado sobre o corpo do bebê transformava-se em outra coisa diante da imagem de comunhão entre esses dois corpos.

Assim, por meio da obra de arte, era possível inventar e pensar em um outro destino humano, entre dois pólos de atitudes: nem vítima, nem agressor, em que a vida permanecesse, resistindo e, em comunhão com o outro, realizando, assim, uma possível passagem criativa pelo mal-estar na cultura. Isto é, que houvesse uma dialetização entre eu e o outro a fim de criar “não o um sem o outro” (KAHN, 2002: 74). Eis a tarefa que nos é imposta dia após dia para impedir “que Auschwitz não se repita” e que, ao mesmo tempo, esses jovens e tantos outros, exijam a realização das promessas da civilização.

 

Referencias

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Endereço para correspondência
Gabriela Balaguer
R. Tavares Bastos, 825 - Vila Pompéia
05012-020 São Paulo, SP
Tel.: (11) 3865-7618 (com.)/ (11) 3675-3523 (res)/ (11) 9797-8126 (cel.)
E-mail:
gabriela_balaguer@yahoo.com.br

Recebido em 15/05/2005
Aceito em 02/06/2005

 

 

 

* Psicóloga, mestre em psicologia pelo IP-USP, pesquisadora do GEHPAI – IP-USP, coordenadora financeira da Verso – Cooperativa de Psicologia.
1 Cf. PATTO, Maria Helena Souza. Mutações do Cativeiro: escritos de psicologia e política. São Paulo: Hacker Editores/EDUSP, 2000, pp. 95-117.
2 Das medidas sócio-educativas, a medida de internação é certamente delas a mais severa, pois retira um dos direitos fundamentais de todo ser humano, o direito à liberdade. Iremos tratar aqui apenas de casos de adolescentes que infracionaram É previsto pelo ECA que a medida de internação deveria ser a última das medidas sócio-educativas a serem tomadas com os adolescentes que estão em conflito com a lei, de modo que sua aplicação estaria sujeita aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar do adolescente que é pessoa em desenvolvimento. Quer dizer, “o caráter breve e excepcional da medida surge, também, do reconhecimento dos provados efeitos negativos da privação da liberdade, principalmente no caso de pessoa em condição peculiar de desenvolvimento”. (CURY, 1992: 373). Assim o princípio da brevidade informa sobre a questão da incompletude institucional, pois já houve o pleno reconhecimento do fracasso da readaptação social por meio de práticas de isolamento e reclusão em instituições totais, como caracteriza Goffman: “Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo; em resumo, toda instituição tem tendências de “fecha ento’. (...) Seu “fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, florestas ou pântanos. A tais estabelecimentos dou o nome de instituições totais (...). Um aspecto central das instituições totais pode ser descrito com a ruptura das barreiras que comumente separam essas três esferas da vida. Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da atividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, pois uma atividade leva, em tempo predeterminado, à seguinte, e toda a seqüência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um grupo de funcionários. Finalmente, as várias atividades obrigatórias são reunidas num plano racional único, supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição.” (GOFFMAN, 1974: 16-18) O princípio da incompletude institucional deve garantir que as instituições não se tornem instituições totais, fechadas, fazendo com que os jovens possam circular em outras instituições para fora dos muros da unidade de internação. Já o princípio da excepcionalidade presente no ECA pretende dar conta dos casos em que a medida de internação deve ser aplicada. Segundo o artigo 122, a internação só deve ser aplicada quando: “I) tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; II) por reiteração no cometimento de outras infrações; III) por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. ”(Lei 8060/1990, art. 122) A bem da verdade, notamos o grau de afastamento que há entre a realidade do ECA e a realidade das políticas concretas para área da infância e adolescência, pois, em nenhum desses itens acima citados, o ECA foi cumprido nos casos que vamos aqui relatar. O que queremos dizer é que novamente o ECA e a tentativa de dupla reparação prevista por ele, como falamos acima, falha ao ser aplicado para os adolescentes que estão em internação. Brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar do adolescente são princípios que ainda permanecem distantes das práticas de internação de adolescentes na maior parte das unidades da FEBEM. Ao contrário, os adolescentes em conflito com a lei são expostos as mesmas privações de direitos que já viviam antes, isto é, revivem novamente a violência.
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A equipe técnica da FEBEM tem como função principal acompanhar os adolescentes e seus pais em sua passagem pela internação, realizando relatórios semestrais sobre o desenrolar da medida.
4 Todos os seus direitos previstos pelo ECA devem ser garantidos. (Livro1 – Título II - Dos direitos fundamentais). A gente sabe que a FEBEM, de modo geral, ao contrário, só reitera as privações, omissões e violências empreendidas pelo Estado ao privar os adolescentes dos direitos fundamentais.
5
Seguindo os objetivos latentes do próprio Fique Vivo, o psicólogo-coordenador de campo que acompanhava as oficinas em uma unidade do Complexo Tatuapé deveria ampliar os efeitos e modelo educativo para o resto da instituição, envolver-se em outras atividades com técnicos, funcionários do pátio e funcionários do pedagógico num processo reflexivo mais amplo sobre as práticas institucionais. Uma vez na unidade, o psicólogo-coordenador de campo deveria circular com seu saber, sua capacidade reflexiva e suas propostas educativas por outros espaços institucionais, tais como: o pátio com os 100 adolescentes e os funcionários que ali ficavam, as reuniões com equipe pedagógica e as reuniões com os técnicos.
6 Mundão e mundinho são os termos usados pelos adolescentes internos da FEBEM para designar o estado de internação na FEBEM criador de dois mundos, um paralelo ao outro, espelho do outro, porém menor, e mais restritivo, onde o direito a liberdade lhes foi negado. Mundão é o mundo para além das grades da FEBEM e mundinho, o interior, para dentro das grades, a própria FEBEM.
7 Segundo Alberti, “as esparsas observações de Freud diretamente relacionadas à adolescência sempre levam à noção da necessidade de uma reafirmação – poderíamos retraduzir, Wiederbejahung.” (Alberti, 1999, p.126)
8
. Nesse sentido, Anna Freud lembra o texto de Ernest Jones onde comenta que a adolescência é uma espécie de reedição em outro nível dos estágios do desenvolvimento sexual infantil. (Jones, 1922, p.399 apud Freud, 1958: 64).
9 Em Winnicott, podemos encontrar essa idéia de que o bebê deve experimentar lá no início de sua vida a experiência de ilusão. Isto é, a experiência de criar, a partir da realidade interior, os objetos do mundo que podem produzir a satisfação dos desejos e o ambiente, representado pela mãe, poder estar ali presente de fato, no momento de sua criação interior. Isso sustentaria a experiência viva e orgânica entre realidade interior e realidade exterior, alimentando, desse modo, a capacidade criadora do sujeito. Ao meu ver, na adolescência, essa esperança é posta em xeque. (WINNICOTT, 1971).
10 Na gíria carioca da criminalidade, berro quer dizer arma de fogo. Curiosa expressão da força do pedido de reconhecimento social.
11 Esse era um jeito típico de os adolescentes internos se aproximarem dos que ali chegavam de fora da FEBEM. Entretanto, reparei que à medida que não respondia à questão, mas permitia a abertura dela, o Mundão ia se tornando um aspecto muito significativo na vida dos adolescentes, restaurando, assim, nessa linguagem da instituição fechada a abertura para os universos singulares de significações.

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