SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número11Construindo a educomunicação: relatos de experiências do Projeto Educom.rádioJuventude, música e ancestralidade na comunidade jongueira do Tamandaré - Guaratinguetá/SP índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.11 n.11 São Paulo dez. 2005

 

PART I

 

Ouvir e contar histórias

 

Telling and listening to stories

 

 

Maria Alice Oliva de Oliveira*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto relata algumas experiências como professora de educação básica em escolas públicas. Pretende fazer uma reflexão sobre práticas pedagógicas desenvolvidas com estudantes adolescentes. Também pretende refletir sobre a necessidade de serem levados em conta os projetos e as necessidades de professores e alunos da educação básica, baseados na realidade vivida nas escolas.

Palavras-chaves: Educação básica, Estudantes, Práticas pedagógicas.


ABSTRACT

This article tells some experience of a basic education teacher in a public school. It intends to encourage a reflection about some pedagogical practices developed with young students. It also intends to reflect about considering the teachers and students’ needs and projects based on the reality faced in schools.

Keywords: Basic education, Students, Pedagogical practices.


 

 

Em dezembro de 2004, próximo ao recesso escolar, um artigo de Rubem Alves publicado no caderno Sinapse do jornal Folha de S. Paulo tinha como tema “ouvir”. O autor inicia assim o seu texto:

“De todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do amor, da vida em conjunto e da cidadania é a audição (...). É do silêncio que nasce o ouvir”.

Para ouvir a palavra, segundo o autor, é necessário silenciar os “ruídos interiores”: “Só posso ouvir a verdade do outro se eu parar de tagarelar. Quem fala muito não ouve”. Mais adiante, constata: “O aprendizado do ouvir não se encontra em nossos currículos. A prática educativa tradicional inicia-se com a palavra do professor”. Na escola tradicional, ele se apossa do ouvido do aluno e isso, para o autor, é uma forma de violência. Ele cita a sugestão que encontrou numa revista pedagógica italiana – que os professores, antes de começarem as atividades de ensino e aprendizagem, se dedicassem por semanas (ou meses) a apenas ouvir:

“No silêncio das crianças há um programa de vida: sonhos. É do sonho que nasce a inteligência. A inteligência é a ferramenta que o corpo usa para transformar os seus sonhos em realidade. É preciso escutar as crianças para que a sua inteligência desabroche”.

O autor, então, sugere aos professores

“que, ao lado da sua justa preocupação com o falar claro, tenham também uma preocupação com o escutar claro. Amamos não a pessoa que fala bonito, mas a pessoa que escuta bonito. A escuta bonita é um bom colo para uma criança se assentar...” (ALVES, 2004).

Influenciada pela leitura desse artigo, comecei o ano letivo de 2005 procurando conter a agressividade verbal das minhas aulas expositivas e a ansiedade de passar conteúdos que hipoteticamente serão úteis aos adolescentes das escolas públicas onde leciono Geografia para alunos de sétimas, oitavas séries e do primeiro ano do ensino médio.

Resolvi dar mais espaço e tempo à fala dos alunos, valorizando as discussões em detrimento da exposição. Porém, a escola não é, a princípio, atraente para os adolescentes. Ouvir pressupõe silêncio e atenção, o que é muito difícil de conseguir num público numeroso da faixa etária dos estudantes da educação básica – crianças e adolescentes. A escola perde a concorrência diante da sedução do computador, da Internet e da televisão.

Com poucos recursos, que na maior parte das vezes resumem-se ao giz, ao apagador, à lousa e à voz, como prender a atenção dos alunos, para que eles possam “calar seus ruídos interiores”, sendo capazes de ouvir seus colegas (e para que eu também possa ouvi-los)? Pensei, então, em introduzir o tema que pretendia discutir com base em uma história. Afinal, o cinema, a literatura, a TV e, até mesmo, o jornalismo seduzem por contar histórias.

Comecei as aulas utilizando um texto jornalístico sobre os Tsunamis que ocorreram na Ásia. Assim, poderia discutir sobre um acontecimento recente e desenvolver conteúdos da geografia com base em um fenômeno que, por suas dimensões, causou muito impacto, tendo uma grande cobertura na mídia.

Segundo a reportagem que utilizei, uma menina inglesa de dez anos, acompanhada dos pais, passava férias numa praia da Tailândia no dia em que ocorreram os Tsunamis. Ela havia tido aulas há pouco tempo sobre o fenômeno e percebeu os indícios de que este poderia ocorrer. Avisou os pais, que avisaram a equipe do hotel. Eles então retiraram rapidamente os demais turistas, e todos, naquela praia, conseguiram se salvar (Jornal da Tarde, 03/01/2005).

Um tanto inverossímil, mas impressionante, meus alunos julgaram ser a história. Afinal, é difícil acreditar que tantos adultos numa praia tivessem ouvido e acreditado numa criança... Pedi, então, que eles narrassem uma experiência de vida em que tivessem usado, para resolver uma situação prática, um conhecimento adquirido na escola.

Em geral, a correção das avaliações tem que ser feita rapidamente. Há pouco tempo para tantas tarefas: organizar a sala, ministrar os conteúdos, resolver os problemas de disciplina, distribuir e recolher o material e preencher os controles burocráticos. Nas escolas públicas, as salas são numerosas, por isso a correção de trabalhos e avaliações demanda um tempo muito grande. Mas, ainda com o propósito de ouvir os alunos, procurei ler atentamente e comentar cada uma das redações sobre o tema que eu havia proposto.

Pedi que, primeiro, apresentassem oralmente uma experiência e, depois, as escrevessem. A maioria dos alunos teve dificuldade em lembrar-se de algo. Muitos se referiam, depois de muita insistência, a situações em que tiveram que fazer operações matemáticas, para conferir troco, por exemplo. Outros lembravam das aulas de Ciências ou Biologia, em que usaram informações sobre primeiros socorros ou sobre determinada doença. Alguns diziam simplesmente não lembrar de nenhum conhecimento da escola que tivessem usado no seu cotidiano.

Dentre as centenas de textos que li, um especialmente chamou minha atenção:

“O simples fato de saber ler já salvou minha vida várias vezes. Sabendo ler, eu consigo ler avisos como ‘Cuidado, produto tóxico’, ‘Cuidado, alta tensão’ etc.” (Daniel, 1o. ano do Ensino Médio)

Ler e escrever, talvez a primeira aprendizagem significativa que a escola proporciona, foi um conhecimento lembrado por poucos alunos como algo que já tivesse lhes servido e apenas um, nas dez salas onde fiz a pergunta, lembrou que é um instrumento capaz de “salvar vidas”.

É possível fazer, pelo menos, duas interpretações para a dificuldade que percebi nos alunos em relacionar os conhecimentos da escola com a vida prática. Talvez alguns aprendizados estejam tão incorporados ao dia-a-dia, como fazer operações simples de soma e subtração para conferir troco ou usar a leitura para descobrir que ônibus tomar, por exemplo, que, de certa forma, não são percebidos como conhecimento adquirido, mas como capacidades “natas”. Por outro lado, a escola, ainda que seja o ambiente em que as crianças e os adolescentes passem um período longo do dia – e da vida – está marcadamente separada de seu cotidiano. Nas aulas de Geografia, quais conhecimentos foram realmente assimilados, quantos adolescentes transformaram os conteúdos que desenvolvi em aprendizado significativo? Por que os adolescentes para quem fiz a pesquisa percebem a escola como algo tão apartado do seu cotidiano, a ponto de não se questionarem como é possível, estudando tantas horas e por tanto tempo, não reconhecerem nenhum aprendizado útil para suas vidas?

Da forma como a escola está organizada, há pouco tempo para ouvir, refletir e repensar as ações da vida escolar. Uma publicação da Secretaria de Educação do Município de São Paulo, distribuída para análise dos professores, referia-se à lógica taylorista/fordista em que a escola foi estruturada, através das séries, classes e disciplinas (Revista EducAção no 5, 2004). Muitas vezes, realmente me percebo como numa linha de montagem em que os estudantes passam em intervalos regulares, em grupos de 40 de cada vez, misturados e diluídos em seus anseios, habilidades e individualidades. Nessa esteira, tenho que dar conta de colocar conteúdos, cobrar resultados, colocar mais conteúdos e cobrar mais resultados. Conhecer os alunos, ouvindo-os, é tarefa quase impossível.

Uma segunda atividade que desenvolvi revelou quanto desconheço os alunos com quem convivo cotidianamente. Para introduzir o tema ecologia e ambiente, pedi que escrevessem como pretendiam contribuir com suas ações para ajudar a “consertar o mundo”. Entre as redações que li, duas especialmente me surpreenderam. As reproduzo aqui:

“Consertando o mundo – Vou ser justo para que o certo não se decepcione, vou ser mais econômico para que meus filhos, netos e bisnetos não tenham sede, fome ou miséria; posso fazer com que meu lixo seja mais reciclável, posso fazer orações para todos e, principalmente, aos necessitados, irei participar de greves a favor do povo, ajudar mesmo que seja com algumas moedinhas os mendigos e os meninos de rua, distribuir sorrisos a todos, até mesmo, aos meus inimigos, colecionar amizades, doar alimentos (...), não arranjar brigas, vou ficar de cabeça fria com os injustos, e respeitar os mais velhos, vou respeitar até a mim mesmo, e essas são as coisas que vou tentar fazer para melhorar o mundo.” (Alex, 8a. série)

“Como mudar o mundo –

Para vivermos num mundo melhor, é preciso cada um fazer sua parte. Coisas simples como jogar o lixo no lixo para não prejudicar o meio ambiente, respeitar os outros e não ter preconceitos idiotas como racismo, sexismo etc.

Economizar água é uma outra coisa muito importante.

Consumir menos, ser menos capitalista e egocêntrico. Não financiar o tráfico e a violência comprando drogas e armas.

Não acreditar em qualquer tipo de político (corruptos etc.) e nem dar segunda chance a eles, que já cometeram esses erros. Se todos votarem certo, o que é a parte mais fácil, a parte mais difícil ficará para os políticos que você eleger.” (Rodrigo, 8a. série)

Esses textos foram feitos por alunos para os quais dou aula há pelo menos dois anos. Porém, ao ler suas redações, espantou-me a clareza, a concisão do texto e a riqueza de idéias. São textos simples, feitos por adolescentes que neles colocaram seus pontos de vista sobre a corrupção, a política, bem como a necessidade da tolerância e da aceitação do outro. Surpreenderam por abordar temas que ainda não havíamos discutido, como o conceito de desenvolvimento sustentável e a questão do consumo e da reciclagem.

Só depois de alguns anos finalmente, fui conhecer as idéias de dois de meus alunos através da leitura de um de seus textos. Provavelmente, muitos passaram pelas minhas aulas sem que eu os conhecesse.

É muito freqüente encontrar na mídia artigos feitos por jornalistas, empresários e políticos, constatando a precariedade da educação no Brasil e a necessidade de melhorar a qualidade do ensino. Parece ser um consenso que o desenvolvimento do país passa pela melhoria na qualidade da educação, embora poucas medidas concretas sejam tomadas para mudar a situação. Exames mostram o fraco rendimento dos alunos brasileiros, comparando com avaliações feitas em outros países. Quando se tenta explicar o fraco desempenho dos alunos – especialmente das escolas públicas, que, em geral, apresentam piores resultados nesses exames - muitas vezes atribui-se aos professores a responsabilidade pela má-formação escolar. Estes estariam mal preparados, teriam formação deficiente e, por isso, têm grande parte da responsabilidade pelo fracasso escolar.

Por dois anos consecutivos, entretanto, os alunos que fizeram o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) não concordaram com essa análise. Esse exame é aplicado a alunos que estão concluindo a Educação Básica. Não tem caráter obrigatório, mas seu resultado é usado no processo seletivo em muitas universidades. Nele, os alunos preenchem um questionário socioeconômico em que também avaliam a condição da escola e o trabalho dos professores. Em 2004, mais da metade dos alunos considerou como regular e bom o conhecimento da matéria por seus professores, bem como a dedicação deles. Em 2003, o resultado foi semelhante (Jornal Folha de S. Paulo, 04/02/05).

Nas análises feitas pela imprensa e pelos políticos sobre educação, esse dado normalmente não é levado em consideração. Será que, para os alunos, seus professores são mal preparados? Parece que não. Na verdade, é só acompanhar de perto o trabalho em uma escola para perceber quantos pequenos projetos e quantos trabalhos importantes são desenvolvidos dentro da precariedade e da carência de recursos da educação pública brasileira. Acompanhando o dia-a-dia de uma escola, é fácil perceber a dedicação de muitos profissionais, algo que a maioria dos alunos, de acordo com o questionário do ENEM, referenda.

Porém, as análises sobre a educação básica brasileira e as políticas educacionais são, muitas vezes, feitas por pessoas que nunca estiveram numa sala de aula da educação básica ou que dela saíram há muito tempo. Por que então não ouvir os professores, para saber o que têm a propor para melhorar a qualidade da educação, o que significaria também melhorar sua condição de trabalho? Quais são as maiores carências, quais os maiores problemas, que propostas têm para solucioná-los? Quem melhor do que professores e alunos, os dois principais envolvidos na questão, para responder essas perguntas?

O bordão exaustivamente repetido de que é preciso melhorar a educação do país será sempre um chavão vazio, se persistir esse diálogo surdo.

 

Referencias

ALVES, Rubem. Ouvir para aprender. Caderno Sinapse, Jornal Folha de S. Paulo, 21/12/2004.        [ Links ]

JORNAL DA TARDE. Ela estudou geografia. E salvou 100 dos Tsunamis. Caderno A, p. 9, 03/01/2005.        [ Links ]

JORNAL FOLHA DE S. PAULO. Para alunos, escola respeita opinião, mas não considera problema pessoal (reportagem de Luciana Constantino), 04/02/2005.         [ Links ]

REVISTA EducAção nº 5 - Gestão, currículo e diversidade (autores diversos). Secretaria Municipal de Educação. Diretoria de Orientação Técnica. São Paulo: Secretaria Municipal de Educação, 2004.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Maria Alice Oliva de Oliveira
Av. N. Sra. de Sabará, 385, apto. 61 - V. Sofia
04685-000 São Paulo, SP
Tel.: (11) 5546-0062 - Cel. 9609-7807
E-mail: m.aliceoliveira@zipmail.com.br

Recebido em 14/03/2005
Aceito em 02/05/2005

 

 

 

* Professora de educação básica das redes de ensino estadual e municipal de São Paulo. Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo.

Creative Commons License